Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3892/2005-8
Relator: SILVA SANTOS
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: A necessidade de escrito para efectivação de arrendamento para habitação configura uma “formalidade ad probationem” .
Por isso, fica afastada a possibilidade de conhecimento oficioso da eventual nulidade do contrato de arrendamento.
A existência deste tipo de contrato pode fazer-se por recibo de renda, qualquer por documento devidamente assinado pelo senhorio que o demonstre e ainda por confissão válida.
Decisão Texto Integral:  ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – SECÇÃO CÍVEL:

I.
Olímpia ….., na qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito de seu marido José ….., interpôs no tribunal judicial da Moita acção de Despejo com processo sumário contra Armindo ...,alegando em síntese que:
    • Entre os bens deixados pelo de cujus figura o prédio urbano sito na Rua ………, n° 8, Baixa da Banheira que havia sido dado de arrendamento, em 1998, a aludida fracção ao ora aqui R., por contrato verbal e pelo prazo de um ano prorrogável por iguais e sucessivos periodos, mediante a renda anual de e 2.400,00 a pagar em duodécimos de E 200.
    • Sucede que o R. não paga as rendas a que está obrigado desde o mês de Julho do ano de 2002.
    • Ora, sendo o montante da renda mensal de e 200 (duzentos Euros) e uma vez que se venceram já 22 rendas, a quantia em dívida relativa ás rendas em atraso até à presente data é de € 4.400,00 (quatro mil e quatrocentos Euros).

Com fundamento na falta de pagamento  da renda pede a resolução do contrato, consequente despejo e o pagamento  à A. das rendas vencidas até à presente data no montante de € 4.400,00 ( Quatro mil e quatrocentos Euros), e as vincendas até ao trânsito em Julgado da Sentença que venha a decretar o despejo com juros contados à taxa legal até integral pagamento.

O réu, citado pessoal e regularmente, não contestou.

II.
Após considerou-se a acção totalmente improcedente e absolveu-se o réu Armindo Amélia Gomes da Silva do pedido.

III.
É esta decisão que a A. agora impugna pretendendo a sua alteração, porque:

1. A recorrente não foi notificada pelo Tribunal "a quo" para juntar "quaisquer outros documentos", além da "cópia do contrato de arrendamento", que por ser verbal (conforme já constava do Art° 5° da P.I.), não existe.
2. Mas sempre se dirá que a junção de "quaisquer outros documentos" não ia modificar a decisão recorrida, pois, no entender do douto Tribunal, só o recibo da renda (que está
na posse do Réu), poderia provar o arrendamento. E neste ponto a decisão recorrida entra em contradição, pois não se vê qual a utilidade que adviria da junção de outros documentos.

3. A recorrente só podia juntar os documentos que tem (a parte de onde foi destacado o recibo que está com o Réu, e os recibos de todas as rendas não pagas até hoje), e, podia apresentar prova testemunhal, se tivesse tido oportunidade, e, se o Tribunal "a quo" a admitisse.
4. O entendimento perfilhado na decisão recorrida(que aqui se dá por integralmente reproduzido em obediência ao princípio da economia processual), prejudica gravemente o Senhorio(no caso a Recorrente), quando o mesmo não dispõe do "recibo da renda" (por estar na posse do inquilino), e tenha interesse em fazer a prova do arrendamento verbal para pedir a resolução do contrato de arrendamento por falta do pagamento de rendas, e, o Réu não contesta, sendo a revelia absoluta;
5. Não admite para prova do contrato, nem a confissão, emergente, ou não, da revelia, nem a prova testemunhal, nem qualquer outra prova, que não seja o recibo da renda que está com o Réu ;
6. Pela decisão recorrida, o Réu poderá continuar no imóvel sem pagar renda, sem se vislumbrar solução para o obrigar a entregar o locado;
7. No caso em apreço, o Tribunal "a quo" deveria socorrer-se de um juízo de equidade (que o nosso C.C. apresenta como recurso para outros casos, mas que pode servir de orientação em situações como a presente), evitando premiar o Réu revel, até para não comprometer a confiança da Sociedade na realização da justiça.
8. Salvo o devido e merecido respeito por melhor opinião, a corrente doutrinária perfilhada por autores como Pereira Coelho e António Pais de Sousa, entre outros, é a que conduz a soluções mais justas, realistas e equilibradas, pois entendem que a exigência de escrito no art° 7° n° 1 do R.A.U., apenas serve para prova da declaração, é uma formalidade "ad probationem", por isso, o arrendamento pode ser provado por confissão, ou por qualquer outro meio de prova.
9. Nesta posição, adoptada por autores como Pereira Coelho, "Breves notas ao Regime do Arrendamento Urbano", in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 126°, págs. 194 e segs., e, in Rev. Leg. Jur., ano 125°, págs. 197 e 198, "Arrendamento", 1988, pág. 110 a 115) e, António Pais de Sousa "Extinção do Arrendamento Urbano", 2° edição, pág. 53, e "Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano", 4° edição, pág. 75 e 76, (entre outros que perfilham o mesmo entendimento), a prova do contrato de arrendamento verbal pode ser feita por confissão, ou outros meios de prova.
10. No caso em apreço, o Réu foi citado pessoal e regularmente com plena observância das formalidades prescritas na lei. Foi o Réu quem assinou em 06/05/2004   o "Aviso de Recepção"  que acompanhou a citação (cf. fls. 17 dos autos), no qual consta o n°299322 do seu Bilhete de Identidade, emitido em 09/11/2000 pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Setúbal. No mínimo, este facto prova que o Réu reside no locado, e aí recebe a sua correspondência.
11. Tendo a acção corrido sob a forma de processo sumário e, não sendo contestados os factos articulados na P.I., remetendo-se o Réu ao silêncio e à indiferença, em clara atitude ilícita de não colaboração com a justiça, deverão os factos na sua totalidade, ser tidos como aceites e reconhecidos como verdadeiros pelo Réu. - "Quem cala, podendo falar, consente."
12. E ao aceitar e reconhecer como verdadeiros a totalidade dos factos articulados na petição, está a aceitar e reconhecer que deve as rendas que a autora diz estarem em falta, e admitindo isto, confessa que o arredamento verbal existe. Consequentemente,       prova-se o arrendamento, independentemente da junção aos autos de documento que se entendesse necessário para a sua prova. (Neste sentido: O AC.RC.,            de 15/03/1994: BMJ,435°-915, e Ac. RL., de 02/05/1996: B4J,457°-428)
13. Desta forma, deverá a falta de contestação conduzir à condenação do Réu na totalidade do pedido formulado pela autora/recorrente. (Ac. RC., de 20/06/2000: BMJ, 498°,-286) .
14. Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, e em consequência ser revogada a decisão recorrida e, substituída por outra em que se julgue a acção procedente e provada, condenando-se o Réu na totalidade do pedido formulado pela Autora, que aqui se dá por integralmente reproduzido, em obediência ao princípio da economia processual.

Não foram apresentadas contra alegações.

IV.
É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões contidas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 684. 3 e 690.1 do CPC.

A questão objecto do recurso resume-se:
    • Conhecimento oficioso da decidida nulidade do contrato de arrendamento;
    • Validade do contrato.

V.
Antes de mais, anote-se, que não foram considerados quaisquer factos na sentença impugnada e por isso a decisão em causa é nula.

Suprir-se-á tal nulidade nos termos do art. 715 do C.P. C.

VI.
Assim, consideram-se assentes os seguintes factos:

1. A A. exerce o cargo de cabeça-de-casal na herança aberta por óbito de seu marido, José ……, falecido em 12/12/2003.
2. Entre os bens deixados pelo de cujus figura o prédio urbano sito na Rua ………n° 8, Baixa da Banheira,
3. Descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o n° …….. e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 181 da freguesia da Baixa da Banheira, concelho da Moita.
4. O falecido marido da A. cedeu em 1998, a aludida fracção ao ora aqui R.,
5. Tal cedência foi verbal e pelo prazo de um ano prorrogável por iguais e sucessivos periodos, mediante a renda anual de e 2.400,00 a pagar em duodécimos de E 200.
6. Sucede que o R. não paga as rendas desde o mês de Julho do ano de 2002.
7. Apesar de várias vezes ter sido interpelado para o fazer.
8. Ora, sendo o montante da renda mensal de e 200 (duzentos) Euros e uma vez que se venceram já 22 rendas, a quantia em dívida relativa ás rendas em atraso até à presente data é de € 4.400,00 (quatro mil e quatrocentos Euros).

VII.
O art.º 7º, n.º 1, do RAU, ( ao tempo em vigor – cfr. data do contrato - em 1998) exige que o contrato de arrendamento seja celebrado por escrito.
De acordo com o n.º 2 do citado preceito legal, na falta de contrato reduzido a escrito, este pode ser substituído pelo recibo da renda, e este recibo pode, por sua vez, ser substituído por qualquer outro documento assinado pelo senhorio e de que conste a confissão expressa do contrato de arrendamento.


Tem sido questionado se a prova do contrato de arrendamento para habitação só pode ser efectuada por recibos de renda.
Admite-se, porém, que também possa ser  efectuada pela exibição de qualquer outro documento assinado pelo senhorio e de que conste a confissão expressa do contrato de arrendamento.

Januário Gomes reflecte no sentido de que … «embora a exibição de recibos de renda tenha hoje função diferente da que o artº 1088º do CC lhe reconhecia (na vigência do artº 1088 do Código civil era um meio de prova de um contrato válido, e hoje é uma forma de convalidação de um contrato nulo) cremos que a orientação seguida a este respeito na doutrina e na jurisprudência em face do artº 1088º do CC ainda é de manter em face do RAU, e que, portanto, o recibo de renda pode ser substituído, nos termos do artº 364º nº 2 do CC, por qualquer outro documento assinado pelo senhorio e de que conste a confissão expressa do contrato de arrendamento»
[1].

E Pereira Coelho refere que …“Com efeito, se a lei admite que a falta de contrato escrito seja suprida por um documento (o recibo de renda) que tem uma função de prova do contrato de arrendamento, parece resultar claramente da lei que a forma escrita do contrato, relativamente aos arrendamentos de que se trata e em que a lei admite o suprimento, apenas é exigida «para prova da declaração negocial» nos termos do artº 364º nº 2 do CC, podendo por isso, ser substituída por qualquer outro documento em que se contenha uma confissão expressa pelo senhorio do contrato de arrendamento”
[2].

Do mesmo modo,  Mota Pinto, defende que no nosso direito a nulidade deixará de ser a sanção para a inobservância da forma legal, sempre que, em casos particulares, a lei determine outra consequência (artº 220º do CC). E daí que infere-se do disposto no artº 364º do CC que quaisquer documentos (autênticos ou particulares) serão formalidades ad probationem, nos casos excepcionais em que resultar claramente da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto e não qualquer das outras finalidades possíveis do formalismo negocial” [3].

Refere aí, este ilustre Professor, que nestes casos, é de admitir, como meio de suprimento da falta do documento,
a confissão expressa .

Ora, é também por esta referência, que se resolve definitivamente o problema.

Finalmente, o Cons. Aragão Seia, opinava que a forma escrita é uma “‘formalidade ad probationem’, não é elemento do negócio jurídico, não é indispensável à sua constituição e validade, pois o contrato é, como resulta da lei, válido independentemente do escrito que, sendo assim, tem por fim tornar mais segura a prova” (obra citada, pág. 181).
 O mesmo autor acrescenta que “admitindo o recibo a suprir o escrito o legislador afastou deliberadamente a forma como ‘formalidade ad substantiam’ postergando a aplicação do art.º 220º e do n.º 1 do art.º 364º, do C.C.” (idem).
Tratando-se de “formalidade ad probationem” e não de “formalidade ad substantiam”, fica afastada assim a possibilidade de conhecimento oficioso da eventual nulidade do contrato de arrendamento.
[4]
 
IX.
Por todos estes autores se pode pois concluir que a forma escrita para prova do contrato em questão configura uma formalidade «ad probationem».
Tratando-se de tal tipo de formalidade afastada fica o seu conhecimento oficioso.

Acresce que a presente acção não foi contestada.
Por conseguinte, atenta a confissão dos factos alegados se deveria logo considerar a confissão da existência de tal contrato. É pois expressa a confissão da existência do contrato o que por tal facto desnecessário seria a indagação de outras provas para tal efeito.

X.
Finalmente, mesmo adoptando-se a tese expandida na sentença em recurso, isto é, a nulidade do contrato por falta de forma e o subsequente conhecimento oficioso de tal nulidade, então … declarado nulo o contrato, dever-se-ia condenar o R. no pagamento das quantias equivalentes às rendas que deveria ter pago e não o fez, já que é uma consequência da declaração de nulidade do contrato, pois o artº 289º, nº1, do CC é claro ao prescrever que deve “ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”, o que não aconteceu.

Assim sendo, procedem na totalidade as conclusões da alegação do recorrente ainda que, parcialmente, por razões e fundamentos diferentes dos invocados.
O que determina a procedência do recurso.

XI.
Deste modo e, pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, na procedência da apelação, revoga-se a sentença, julgando-se a acção procedente e condenando-se o R. na totalidade do pedido.

Sem custas – art. 2 nº 2 al. g do C. C. Judiciais.

Registe e notifique.

Lisboa, 22/09/2005

(Silva Santos)
(Bruto da Costa)
(Catarina Manso)



[1]  In  “Arrendamento para Habitação”-2ª edição, pág. 61 e ss
[2] Cfr. “Breves notas ao Regime do Arrendamento Urbano” in RLJ, ano 126º, pág. 198, nota 37
[3] In Teoria Geral do Direito Civil-Lições do ano Lectivo de 1972-1973, pág. 512/513
[4]  In Arrendamento Urbano-4ª edição, pág. 181.