Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
31298/20.7YIPRT.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS
TRANSPORTE RODOVIÁRIO
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) A admissão por acordo, decorrente da não impugnação do réu, a que se reporta o n.º 2 do artigo 574.º do CPC, reporta-se a factos, não podendo, por isso, ser admitida por acordo, matéria conclusiva ou de direito, ainda que, sobre ela, o réu não se tenha pronunciado.
II) O contrato de transporte rodoviário de mercadorias pode ter feição nacional ou internacional, consoante, respetivamente, o ponto de partida e o lugar de entrega de mercadoria previstos se situem, no mesmo país, em ou países diferentes.
III) O regime jurídico do contrato de transporte rodoviário de mercadorias nacional é disciplinado pelo D.L. nº. 239/2003, de 4 de outubro (que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias e das operações de carga e descarga de mercadorias realizadas em território nacional, incluindo dos tempos de espera, sejam elas relacionadas com transportes nacionais ou internacionais), enquanto que, o contrato de transporte rodoviário de mercadorias internacional está sujeito à disciplina da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra, de 19/05/1956, aprovada para adesão por Portugal pelo D.L. nº 46235, de 18 de Março de 1965, (vulgarmente conhecida por Convenção CMR).
IV) Do artigo 17.º do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro deriva para o transportador uma presunção de responsabilidade, segundo a qual, provado o dano – decorrente da perda, avaria ou demora da entrega das mercadorias objeto de transporte, ocorrido entre o momento do carregamento e o da entrega – o incumprimento (total ou parcial) do contrato de transporte deve ser imputado ao transportador.
V) A responsabilidade do transportador só será afastada se o mesmo lograr demonstrar que o dano ocorreu exclusivamente pela natureza ou vício próprio da mercadoria, a culpa do expedidor ou do destinatário, a caso fortuito ou de força maior ou decorreu dos riscos inerentes a qualquer dos seguintes factos: a) Falta ou defeito da embalagem relativamente às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão devidamente embaladas; b) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta destes; c) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos símbolos dos volumes.
VI) Porque cabe ao transportador demonstrar que a responsabilidade não lhe pode ser assacada, é dele a responsabilidade por danos derivados de causas desconhecidas.
VII) Não provando o transportador a ocorrência de qualquer das causas de exclusão de responsabilidade previstas na lei, cabe-lhe responder pelo sinistro ocorrido, em conformidade com o disposto no artigo 17.º, n.º 1, do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
1. Em 24-04-2020, GEFCO (PORTUGAL), TRANSITÁRIOS, LDA. apresentou requerimento de injunção, pedindo a notificação da requerida TRANSANTONINO, LDA. a pagar-lhe € 6.349,72, sendo € 5.821,50 de capital, € 426,22 de juros de mora e € 102,00 de taxa de justiça paga, em razão de contrato de “Fornecimento de bens e serviços”, correspondente a obrigação emergente de transação comercial, tendo alegado os seguintes factos:
“(…) 1. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias, bem como a armazenagem e manuseamento de carga e descarga de mercadorias e serviços de contabilidade, auditoria e consultadoria fiscal.
2. No passado dia 28 de Novembro de 2018, a Requerente, a pedido da sociedade COMECA - Importação e Exportação, S.A. (em diante, “COMECA”), efectuou a recolha de duas calandras com o peso total de 930 kg (465kg cada unidade).
3. Por sua vez, a Requerente contratou a Requerida para efectuar o transporte e entrega ao destino final das duas calandras, i.e. na “Multinfor – Equipamento e Manutenção Hospitalar Lda”, no Montijo.
4. Sucede que, na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da COMECA, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião.
5. Não obstante, a COMECA procedeu ao pagamento do montante de € 5.719,50.
6. Na sequência do acidente ocorrido no âmbito do transporte efectuado pela Requerida e da reclamação apresentada pela COMECA, a Requerente assumiu o pagamento, até à limitação leal da sua responsabilidade, da quantia de € 4.650 junto da COMECA.
7. Posteriormente, no passado dia 29.06.2019, a Requerente liquidou junto da Requerida a quantia de € 5.719,50.
8. Sucede que, tal montante não lhe é devido, encontrando-se, assim, por liquidar a factura n.º 2019.321/1594, emitida em 08.03.2019 e com data de vencimento a 20.05.2019, no montante de € 5.719,50 (cinco mil setecentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos).
9. Assim, ao capital em dívida, no valor de € 5.719,50 (sete mil setecentos e cinquenta e seis euros e dois cêntimos), são ainda devidos juros de mora calculados, à taxa legal, desde a data de vencimento da factura acima identificada até à presente data que ascende a € 426,22 (quatrocentos e vinte e seis euros e vinte e dois cêntimos).
10. Pelo exposto, a Requerida deve à Requerente a quantia total de € 6.349,72 (seis mil trezentos e quarenta e nove euros e setenta e dois cêntimos), respeitante ao capital em dívida, no valor de € 5.719,50 (cinco mil setecentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos), aos juros de mora vencidos até à presente data, no valor de € 426,22 (quatrocentos e vinte e seis euros e vinte e dois cêntimos) e, à taxa de justiça paga pela apresentação da injunção, no valor de € 102 (cento e dois euros), montante ao qual acrescem ainda os juros de mora vincendos até integral e efectivo pagamento”.
*
2. A requerida deduziu oposição, por exceção – invocando a falta de interesse em agir da requerente – e defendeu-se por impugnação, dizendo, em suma, que desconhece os termos da contratação ocorrida entre a requerente e a COMECA, S.A., mas que efetuou um transporte de mercadorias em 29-11-2018, cujo expedidor foi a requerente, mas foi carregada pela requerente, tendo sido esta a interferir no processo de carregamento e acondicionamento, pelo que, os danos sofridos na mercadoria não podem ser imputados à requerida, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro, impendendo sobre o expedidor a responsabilidade dos danos decorrentes do carregamento ou mau acondicionamento da mercadoria por si efetuados, por aplicação das cláusulas 17.º, nº 4, al. c) e 18.º da Convenção CMR, pelo que entende não ser devedora da quantia peticionada, nem de qualquer quantia a título de juros e/ou de taxa de justiça.
*
3. Prosseguindo os autos em conformidade com o disposto no artigo 17.º do regime anexo ao D.L. n.º 269/98, de 1 de setembro, em 02-09-2020 foi proferido despacho do seguinte teor:
“Na oposição deduzida veio a R. invocar exceção dilatória de falta de interesse em agir.
Ainda que a presente forma processual preveja que o contraditório seja exercido no início da audiência de julgamento, apoiados em critérios de gestão processual, entendemos que a apresentação de resposta em momento prévio ao da audiência de julgamento permite imprimir uma maior celeridade aos atos de produção de prova.
Pelo exposto, determino a notificação da A. para, em 15 dias, se pronunciar sobre a exceção invocada pelo R.(…)”.
*
4. Na sequência, por requerimento de 22-09-2020, a autora pronunciou-se pela improcedência da exceção dilatória invocada e pelo prosseguimento dos autos com conhecimento do mérito.
*
5. Em 11-11-2021 foi realizada audiência de discussão e julgamento, no âmbito da qual a autora juntou aos autos 5 documentos, que foram admitidos nos autos, sem a produção de outra prova.
*
6. Em 02-12-2021 foi proferida sentença, julgando a ação improcedente, por não provada, com absolvição da ré do pedido, decisão que é do seguinte teor:
“SENTENÇA
I - RELATÓRIO
A) Identificação
ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato n.º 31298/20.7YIPRT (superior = alçada de 1.ª instância).
Obrigação emergente de transação comercial
Autora: “GEFCO - (PORTUGAL) - TRANSITÁRIOS LDA”, com domicílio na Rua …, Algés.
Ré: “TRANSANTONINO, LDA”, com domicílio na Rua …, Loures.
(…)
A A., através de requerimento de injunção, pede o pagamento, pela R., da quantia global de € 6 349,72 (seis mil, trezentos e quarenta e nove euros e setenta e dois cêntimos), conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:
• Capital: € 5 821,50.
• Juros de mora vencidos: € 426,22.
• Taxa de Justiça paga: € 102,00.
(…)
Contrato de: fornecimento de bens ou serviços.
Data do contrato: 28.11.2018.
Período a que se refere: 28.11.2018 a 20.05.2019.
(…)
Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
(…)
Alega a A. para o efeito e, em síntese, que é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, receção e circulação de bens ou mercadorias, bem como a armazenagem e manuseamento de carga e descarga de mercadorias e serviços de contabilidade, auditoria e consultadoria fiscal.
No passado dia 28.11.2018, a A., a pedido da sociedade “COMECA - Importação e Exportação, S.A.” (em diante, “COMECA”), efetuou a recolha de duas calandras com o peso total de 930 kg (465kg cada unidade).
Por sua vez, a A. contratou a R. para efetuar o transporte e entrega ao destino final das duas calandras, i.e. na “Multinfor – Equipamento e Manutenção Hospitalar Lda”, no Montijo.
Sucede que, na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da “COMECA”, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião.
Não obstante, a “COMECA” procedeu ao pagamento do montante de € 5 719,50.
Na sequência do acidente ocorrido no âmbito do transporte efetuado pela R. e da reclamação apresentada pela “COMECA”, a A. assumiu o pagamento, até à limitação legal da sua responsabilidade, da quantia de € 4.650,00 junto da “COMECA”.
Posteriormente, no passado dia 29.06.2019, a A. liquidou junto da R. a quantia de € 5 719,50.
Sucede, porém, que, tal montante não lhe é devido, encontrando-se, assim, por liquidar a fatura n.º 2019.321/1594, emitida em 08.03.2019 e com data de vencimento a 20.05.2019, no montante de € 5 719,50 (cinco mil setecentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos).
Assim, ao capital em dívida, no valor de € 5 719,50 (sete mil setecentos e cinquenta e seis euros e dois cêntimos), são ainda devidos juros de mora calculados, à taxa legal, desde a data de vencimento da fatura acima identificada até à presente data que ascende a € 426,22 (quatrocentos e vinte e seis euros e vinte e dois cêntimos).
Pelo exposto, conclui a A. que a R. deve à A. a quantia total de € 6.349,72 (seis mil trezentos e quarenta e nove euros e setenta e dois cêntimos), respeitante ao capital em dívida, no valor de € 5.719,50 (cinco mil setecentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos), aos juros de mora vencidos até à presente data, no valor de € 426,22 (quatrocentos e vinte e seis euros e vinte e dois cêntimos) e, à taxa de justiça paga pela apresentação da injunção, no valor de € 102,00 (cento e dois euros), montante ao qual acrescem ainda os juros de mora vincendos até integral e efetivo pagamento.
(…)
A R. notificada pessoalmente, veio deduzir oposição.
I – POR EXCEÇÃO
Da falta de interesse em agir.
II – POR IMPUGNAÇÃO
Para além do mais, mas no que releva alega que não deve à A. o montante peticionado, assim como declara desconhecer a data e os termos da contratação ocorrida entre a A. e a “COMECA SA”.
A R. aceita, no entanto, o vertido no ponto 3 do requerimento de injunção apresentado, pois que, a R. efetuou um transporte de mercadorias no passado dia 29.11.2018, cujo expedidor foi a A., tendo a mercadoria sido carregada em Alverca, pelas 13h00.
Pese embora o transporte tenha sido efetivamente realizado pela R., a mercadoria transportada, onde se incluía a mercadoria tombada referida nos presentes autos, foi carregada por um colaborador da A., tendo sido este o único a interferir no respetivo processo de carregamento e acondicionamento.
Por força do acima exposto, jamais poderão os danos sofridos na mercadoria ser imputados à R., conforme pretende a A., por se encontrar excluída a sua responsabilidade nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 18.º do DL 239/2003, de 4 de outubro, pois tendo sido o carregamento da mercadoria efetuado pela A., apenas à mesma podem ser imputadas quaisquer responsabilidades por eventuais danos da mercadoria sofridos, por aplicação das cláusulas n.º 17.º, n.º 4, al. c) e 18.º da Convenção CMR – o que, in casu, se verifica, entendimento foi por diversas vezes manifestado pela R. junto da A.
Também a fatura emitida pela A. e por esta referida em 8 do requerimento de injunção foi devolvida pela R., com essa mesma indicação.
Conclui, assim, que a R. não é, assim, devedora da quantia peticionada, assim como não é devedora de qualquer quantia a título de juros e/ou de taxa de justiça.
Termos em que requer nos seguintes termos:
- deve ser julgada procedente a exceção invocada e, em consequência, ser a Requerida absolvida da instância;
- caso assim não se entenda, deve a presente oposição ser julgada procedente, por provada, absolvendo-se a R. do pedido formulado.
(…) Decorrente da dedução de oposição, foi o procedimento de injunção distribuído como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (superior =alçada de 1.ª instância).
(…) Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, conforme resulta da respetiva ata.
(…) Nos termos do disposto nos artigos 297.º n.º 1 e 306.º do CPC, fixo à ação o valor de € 6 247,72 (seis mil duzentos e quarenta e sete euros e setenta e dois cêntimos).
(…) II - DESPACHO SANEADOR
O Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e encontra-se isento de nulidades que total ou parcialmente o invalidem.
As partes, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas.
EXCEÇÃO DILATÓRIA DE FALTA DE INTERESSE EM AGIR
(…) Fundamentos
O interesse processual ou interesse em agir consiste no “o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, representando o interesse em utilizar a ação judicial e em recorrer ao processo respetivo, para se ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da parte contrária. Consiste -- como se diz no Acórdão deste Supremo, de 6/2/86, in BMJ nº354, págs.447 -- em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, na real precisão de utilizar a arma judicial, sem o que a atividade jurisdicional seria exercitada em vão, constituindo um pressuposto processual. E, tendo em conta o carácter processual, o interesse em agir -- interesse processual -- traduz-se na necessidade de o A. utilizar o processo por a sua situação de carência necessitar da intervenção dos tribunais (Cfr. A. Varela, em Manual de Processo Civil, 2ª ed.,págs.179).
Mas, aquela necessidade de se socorrer das vias judiciais não deve ser considerada como a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas, também não bastará uma necessidade de satisfação de um mero capricho ou de um puro interesse subjetivo de obter uma decisão judicial. O que se exige é que, por força dele, exista uma necessidade justificada, razoável fundada de lançar mão do processo (ob. e Autor citados, págs.183).” (cfr. acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12-01-1999, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme tentaremos demonstrar, vem a A. instaurar a presente injunção com fundamento no pagamento que fez à empresa “COMECA, SA” de uma fatura decorrente de determinado transporte de mercadoria efetuado pela R.
Sem que, no entanto, justifique devidamente o motivo de tal imputação à R.
Porquanto, conforme abaixo se indicará, tal imputação não pode ocorrer.
Razão pela qual não tem a A. qualquer interesse processual ou interesse em agir para a propositura da presente ação, com os fundamentos que apresenta.
O que consubstancia uma exceção dilatória de falta de interesse processual que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do artigo 278º, al. e) e 576º, n.º 2, ambos do CPC, o que se requer.
(…) A A. veio responder à exceção.
Alega, para o efeito, que veio a R., em sede de oposição, invocar a exceção dilatória de falta de interesse processual porquanto, a Autora não justificou devidamente o panorama factual que permite imputar à Ré a sua posição de devedora.
Com efeito, entende a R. que a A. não apresenta qualquer necessidade justificada, razoável e fundada para exercer o respetivo direito que lhe é, diga-se, constitucionalmente consagrado pelo princípio da tutela jurisdicional – vide artigo 20.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
Se atentarmos para o contributo jurisprudencial existente sobre esta temática, importa esclarecer que apenas existe falta de interesse em agir “(…) quando, entre o objeto da ação e o pedido formulado, não existe uma situação de conflitualidade (…) sobre o direito de que o autor se arroga” – in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 924/08-3, de 26 de Junho de 2008.
Por outro lado, importa esclarecer o seguinte:
Conforme referido no requerimento inicial, a pedido da sociedade COMECA, a Autora efetuou a recolha de duas calandras, tendo, para o respectivo transporte e entrega no destino final (i.e. sede da sociedade “Multinfor – Equipamento e Manutenção Hospitalar, Lda.”), contratado os serviços da R.
Sucede que, aquando da referida entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final ao se constatar que esta se encontrava tombada no veículo de transporte.
Ora, contrariamente ao que a R. alega a título de impugnação na presente oposição, a danificação da mercadoria tombada durante o respetivo transporte e, por esta razão, recusada e devolvida, em momento algum pode ser imputada à A., configurando-se, nesta medida, a situação de conflitualidade entre as partes que legitima a intervenção judicial e a necessidade dos presentes autos.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, “o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”.
Para afastar a responsabilidade que se lhe imputa, a Ré vem invocar o contexto de isenção presente no n.º 2 do artigo 1.º do mesmo Diploma, ao alegar que a arrumação da mercadoria foi concretizada pela Autora, enquanto expedidora.
Importa, desde já, referir que tal cenário não se coaduna na íntegra com a realidade.
A Autora de facto procedeu ao carregamento da maquinaria no veículo transportador, no entanto, importa esclarecer que tal ato foi supervisionado por um colaborador da Ré que, tacitamente dando o seu aval técnico à respetiva arrumação, não registou qualquer alegado dano que o processo de acondicionamento no veículo transportador pudesse ter causado e, pese embora tenha pretendido manifestar uma reserva na CMR relativa ao transporte, a A. introduziu na mesma uma contrareserva, já que o colaborador, efetivamente, assistiu integralmente ao carregamento.
Tanto mais que, em troca de correspondência entre a A. e a R., é esta última quem reconhece expressamente isso mesmo.
Desta forma, a partir do momento em que o processo de carregamento e acondicionamento teve a interferência e a aprovação de ambas as partes, não se pode esperar que a A. venha a aceitar que lhe sejam imputadas as responsabilidades de danos causados durante um transporte por si não testemunhado/realizado.
Acresce ainda o facto de, ainda que a mercadoria tenha sido recusada pelo destinatário final, não só a COMECA procedeu ao pagamento do serviço prestado pela Autora, como esta liquidou junto da R. o respetivo transporte que contratou, no montante de € 5 719,50.
Considerando que a A., na sequência do acidente ocorrido, reembolsou a COMECA ao efetuar o pagamento por esta exigido, cumpre agora à R. assumir as suas responsabilidades perante a A. em liquidar a fatura peticionada, uma vez que este montante deixou de lhe ser devido a partir do momento em que não cumpriu com o serviço de transporte que se comprometeu prestar.
Conclui pela improcedência da exceção dilatória invocada pela R ser por não provada, e, em consequência, deverão os autos prosseguir em prol do conhecimento do mérito da presente causa.
CUMPRE DECIDIR
Conforme Ac. do TRL de 12.12.2014 (processo n.º 233/14.2TTCSC.L1-4, Relator JERONIMO FREITAS, in www.dgsi.pt) , que ainda que reporte a factualidade da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, tem aqui plena aplicação, quer o segmento do acórdão citado, quer a respetiva fundamentação que reproduzimos com referência expressa ao redator do citado acórdão).
E de acordo com o sumário do acórdão citado (segmento)
“(…)
III. A desnecessidade no prosseguimento da acção, caso exista desde momento anterior à propositura da acção, reconduz-se à falta de um pressuposto processual, que é a falta de interesse em agir, o qual constitui uma excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso (artigos 577.º e 578.º do NCPC), conducente à absolvição da instância.
IV. Por força do interesse processual exige-se “uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção(..)”. “a desnecessidade no prosseguimento da ação, caso exista desde momento anterior à propositura da acção, reconduz-se à falta de um pressuposto processual, que é a falta de interesse em agir, o qual constitui uma excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso (artigos 577.º e 578.º do NCPC), conducente à absolvição da instância.”
IV. Por força do interesse processual exige-se “uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção(..)”.
Na fundamentação do acórdão em referência escreve se
Como elucida o citado aresto do STJ 15-03-2012, «O interesse processual tem duas facetas: o interesse em demandar e o interesse em contradizer. Aquele é aferido pelas vantagens na obtenção de tutela judicial para o impetrante, sendo que o de contradizer é a não concessão daquela tutela o que é avaliado pelas desvantagens impostas ao réu quando o interesse da contraparte é defendido.
E tal como acima se acenou – e é defendido pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “O Interesse Processual na Acção Declarativa”, 1989, p. 6 – “a vantagem do autor e a desvantagem do réu são necessariamente apreciadas em relação à situação das partes no momento da propositura da acção; só conhecendo esta situação se pode saber se o autor vai obter algum beneficio com a atribuição da tutela requerida ou se o réu vai sofrer algum prejuízo com a concessão dessa tutela. O interesse processual não pode ser afirmado ou negado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte (activa ou passiva) se encontra antes da propositura da acção com aquela que existirá se a tutela for concedida, se pode saber se isso representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu. Se a situação relativa entre as partes não se alterar com a concessão dessa tutela judiciária, então falta o interesse processual.”
Em suma, o interesse processual determina-se perante a necessidade de tutela judicial através do meio pelo qual o autor, unilateralmente, optou».
Sobre o interesse em agir, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora - na obra conjunta Manual de Processo Civil – observam o seguinte:
-«Entre os pressupostos processuais referentes às partes, deve ainda incluir-se o interesse processual, embora a lei lhe não faça referência expressa.
O interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
(..)
Relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser una necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (..) ou o putativo interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial.
O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso».[2.º Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 179 e segts]
Das considerações expostas e que integram a fundamentação vertida no douto acórdão citado, desde logo resulta evidenciado que, no caso, a A. tem interesse direto em agir “(…)na necessidade de usar do processo, de instaurar(…) a acção.”, porquanto a demanda da R. assenta, na análise dos autos, na necessidade de vir a ser reconhecido do respetivo direito de crédito mercê de cumprimento defeituoso do contrato que imputa à R, pelo que lhe assiste o direito à propositura da presente ação.
Improcede, pelo exposto, a exceção dilatória de falta de interesse em agir invocada pela R.
Inexistem quaisquer outras exceções, tendo sido objeto de conhecimento, ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento de mérito da causa.
(…) III - FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Da audiência de julgamento e com relevância para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
A A. é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, receção e circulação de bens ou mercadorias, bem como a armazenagem e manuseamento de carga e descarga de mercadorias e serviços de contabilidade, auditoria e consultadoria fiscal. [do art.º 1.º do requerimento de injunção]
Por sua vez, a A contratou a R. para efetuar o transporte e entrega ao destino final das duas calandras, i.e. na “Multinfor – Equipamento e Manutenção Hospitalar Lda”, no Montijo. [do art.º 3.º do requerimento de injunção]
Posteriormente, no passado dia 29.06.2019, a A. liquidou junto da R. a quantia de € 5 719,50. [do art.º 7.º do requerimento de injunção]
(…) MOTIVAÇÃO
Considerando que não constitui objeto do litígio a apuramento do objeto social da A. com a exatidão decorrente dos respetivos estatutos e, assim vertidos na respetiva matricula, entendemos que dos documentos juntos aos autos pela A, designadamente da troca de emails entre as partes e à aceitação pela R. da matéria alegada pela A. no artigo 3.º do requerimento de injunção, que se admita a prova da factualidade alegada no artigo 1.º do requerimento de injunção, não obstante impugnada pela R. por desconhecimento, a qual, face ao exposto, não poderia deixado de ter conhecimento.
A matéria do artigo 3.º do requerimento de injunção mostra-se expressamente aceite pela R. nos artigos 12.º, 13.º e 14.º, 1.ª parte da oposição.
A matéria do artigo 7.º do requerimento de injunção surge aceite pela R. na globalidade da respetiva oposição, na recusa de pagamento à A. do montante aí assinalado por entender que o transporte foi efetivado em conformidade cm as normas legais aplicáveis ao caso, não havendo da sua parte qualquer responsabilidade na avaria da carga, que, em todo do caso admite ter ocorrido na troca de emails, mas cuja responsabilidade imputa aos colaboradores da A. pelos fundamentos constantes da oposição deduzida.
(…) FACTOS NÃO PROVADOS
(…) 2. No passado dia 28 de Novembro de 2018, a Requerente, a pedido da sociedade COMECA - Importação e Exportação, S.A. (em diante, “COMECA”), efectuou a recolha de duas calandras com o peso total de 930 kg (465kg cada unidade).
Na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da “COMECA”, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião. [do art.º 4.º do requerimento de injunção]
A “COMECA” procedeu ao pagamento do montante de € 5 719,50. [do art.º 5.º do requerimento de injunção]
Na sequência do acidente ocorrido no âmbito do transporte efetuado pela R. e da reclamação apresentada pela “COMECA”, a A. assumiu o pagamento, da quantia de € 4 650,00 junto da “COMECA”. [do art.º 6.º do requerimento de injunção]
A mercadoria transportada, onde se incluía a mercadoria tombada referida nos presentes autos, foi carregada por um colaborador da A., tendo sido este o único a interferir no respetivo processo de carregamento e acondicionamento. [do art.º 14.º da oposição]
(…)
A prova apresentada apenas pela A., traduz-se na troca de emails entre A. e “COMECA, S.A.” de acordo com a qual a A. aceitou a reclamação por esta apresentada e aceita a emissão de fatura pelo valor de € 4 650,00 acrescida de iva (ver email 10.01.2019, 16:21m, onde se reporta a guia n.º 32062002) e ainda na guia de transporte n.º 10120, que, na parte legível se consegue visualizar “guia de transporte n.º 10120 e numeração 298254”, bem com a data de “28.11.18” correspondente á data , assinatura do destinatário assinado por “Mendes”, documento de muito difícil leitura, mas seguido de um documento no qual vem aposta a informação “carga sem presença”, “motorista assistiu carga” .
A fotografia junta pela A. a acompanhar o documento .n.º e não permite saber , na falta de legenda ou descrição por qualquer testemunha envolvida no processo de carga e acondicionamento nenhum “apport” nos revela quanto aos termos em que a mercadoria foi carregada e acondicionada, pelo que , na falta de outros meios de prova resulta não provada qualquer das posições defendidas por A. e R, quanto aos termos do carga e acondicionamento.
Por sua vez, cimo parte integrante do documento n.º 3 somos confrontados com uma fatura a fatura n.º 2019A1/153, de 14.01.2019 emitida pea “COMECA, S.A.” e dirigida à A. pelo valor de € 5715,90. Com a ref.ª SAV:321AV201800348 – Guia 32062002, guia que não logramos localizar, sendo que, porém, a fatura descreve “calandra cilíndrica elétrica IC4 3320”.
O documento n.º 4 espelha a troca de emails entre A. e R., mas sem que dos mesmos se logre obter qualquer informação válida acerca dos termos da carga e acondicionamento da mesma, correspondendo, na globalidade, as posições vertidas pelas partes nos respetivos articulados.
E ainda que, por email contido no documento n.º 5 de 08.03.2019, 10:49 dirigido à R., a A. declare ter emitido a fatura FI2019.321/1594, não vem, contudo, acompanhado da fatura em apreço, sendo que, em todo o caso a R. aceita ao recebimento desse documento, declarando tê-lo devolvida, consignando a inexigibilidade desse pedido de pagamento.
Do exposto resulta a ausência e meios probatórios bastantes, , designadamente qualquer aceitação pela R. documentada, dada qual decorra a assunção da responsabilidade pela carga , decorrendo a, pelo contrário a justificação da ausência de qualquer atuação conducente à avaria da carga, cujo resultado imputa, porém, aos colaboradores da A.
(…) Os artigos 1.º a 6.º da oposição reportam à matéria da exceção dilatória de falta de interesse em agir a qual foi já conhecida e julgada improcedente.
(…) No mais, a matéria dos artigos da matéria dos artigos 8.º, 9.º, 10.º do requerimento de injunção e artigos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º,12.º,13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º da oposição mostra-se conclusiva, argumentativa, reporta a impugnação ou aceitação dos factos alegados no requerimento de injunção.
(…) B) O DIREITO
1 –DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO CONTRATO
A presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias é emergente de transação comercial, tal como assinalado pela A. no requerimento de injunção.
Não obstante a entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10.05, ao caso aplica-se o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02, alterado pelo Decreto-Lei n.º 107/2005, de 01.07 e pela Lei n.º 3/2010, de 27.04, mantendo-se em vigor no que respeita aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma, o que é o caso dos autos.
Por força do disposto no artigo 14.º do Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10.05, o diploma em causa é aplicável apenas aos contratos celebrados a partir da data de entrada em vigor do mesmo, salvo as situações previstas nas alíneas a) e b), não aplicáveis aos autos.
O artigo 3., alínea a) do Dec.Lei n.º 32/2003, de 17.02, define «Transação comercial» como “qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respetiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”.
Ainda que de transação comercial se trate, a matéria dada como provada permite concluir pela celebração entre as partes de um contrato de transporte de mercadorias.
“Segundo o art 17º/1 da CMR «o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega».
Segundo o nº 2 desta norma, «o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar».
“E decorre do nº 1 do art 18º que compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos n(esse) artigo 17, parágrafo 2.
Conforme Ac. TRC de 12.07.2020,(processo n.º 4237/18.8T8PBL.C!, Relator MARIA TERESA ALBUQUERQUE, in www.dgsi.pt) que temos vindo a seguir de perto
É evidente que o conceito de «avaria», utilizado nestas normas da CMR, corresponde a “deterioração”.
Assim, e como o evidencia o mencionado Ac STJ 14/6/2011, considerando que se está na presença de uma prestação de resultado final, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil, contratualmente previsto, «basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para estabelecer o incumprimento do devedor, sendo, então, que este apenas se desonera da responsabilidade, através da impossibilidade objectiva e não culposa da prestação, provando que a inexecução é devida a causa que lhe não é imputável, como, por exemplo, a existência de factores externos que a excluam, de circunstâncias exoneratórias da sua responsabilidade, previstas pelas disposições conjugadas dos artigos 17º, nº 2 e 18º, da Convenção CMR.».
O transportador exonerar-se-á da culpa que o não alcance do resultado lhe implica em função das causas liberatórias a que aludem os arts 17º e 18º da Convenção, das quais resulta, em termos gerais, a existência de circunstâncias, especiais ou excepcionais, que eliminem a censurabilidade da sua conduta.
Dispõe o nº 2 do art 18º que «quando o transportador provar que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17, parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes».
É desta presunção que a aqui R., transportadora, se pretenderia fazer valer na sua defesa, ao alegar que foram os funcionários da expedidora quem procedeu ao carregamento e acondicionamento da mercadoria em causa, pois que resulta do nº 4 do art 17º que «o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes, entre o mais, ao facto referido na sua al c)»: o da «manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria ter sido (feita) pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário». [9]
Sucede que a R. não logrou provar a matéria em causa.
(…)
Ora, quando na al. c) do nº 4 do art. 17º da CMR se erige o facto da «manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria ter sido (feita) pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário» como causa (presumida) da exclusão da culpa da transportador, está-se necessariamente a pressupor a total responsabilidade do expedidor ou do destinatário pela manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria, e não apenas o facto da execução material daqueles atos ter sido feita por funcionários daqueles, mas em função de ordens do funcionário da transportadora.
Provado que a R. efetuou o transporte da mercadoria não se mostra demonstrados, porém, os termos em que se processou o acondicionamento da mercadoria transportada pela R., mostrando-se divergente a posição das partes a este respeito.
Deve, por conseguinte, improceder a ação.
IV – DECISÃO
Nestes termos e com tais fundamentos julgo a presente ação improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a R. “TRANSANTONINO, LDA” do pedido.
(…) As custas a cargo da A. (art. 527.º e 607.º n.º 6 do CPC) (…)”.
*
7. Não se conformando com a referida decisão, dela apela a autora, pugnando que seja “revertida a decisão sobre matéria de facto, passando a matéria constante dos artigos 4.º e 8.º do requerimento de injunção a ser considerada provada” e pela correção do “erro de julgamento em matéria de Direito, sendo revogada a Sentença recorrida e substituída por uma decisão de condenação da Recorrida nos termos peticionados pela Recorrente”, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A. A matéria alegada pela Recorrente no artigo 4.º do requerimento de injunção, desde logo, não foi expressamente impugnada pela Recorrida na Oposição;
B. Nem poderia ter sido, pois a defesa da Recorrida nunca foi no sentido de negar, nem o transporte, nem os danos na mercadoria que levaram à recusa pelo destinatário final, mas sim, e apenas, no sentido de recusar, com uma argumentação estritamente jurídica, que a responsabilidade por tais danos fosse sua;
C. Como flui com clareza do artigo 14.º da Oposição, a Recorrida refere que “embora o transporte tenha sido efetivamente realizado pela Requerida, a mercadoria transportada, onde se incluía a mercadoria tombada referida nos presentes autos, foi carregada por um colaborador da Requerente”.
D. Esse reconhecimento pela Recorrida de que o transporte foi por si efectuado e de que a mercadoria chegou ao destinatário final danificada resulta também da carta remetida à Recorrente que consta do Documento n.º 5, junto por esta última aos autos.
E. Assim, quer por falta de impugnação, quer por resultar aceite na Oposição apresentada pela Recorrida, quer por resultar confirmado pela prova documental constante dos autos, o Tribunal a quo incorreu em erro na decisão sobre a matéria de facto ao dar como não provada a matéria constante do artigo 4.º do requerimento de injunção, que deverá ser dada como provada por V. Exas.
F. O mesmo se diga no que toca à matéria constante do artigo 8.º do requerimento de injunção, que se refere à falta de pagamento, pela Recorrida, da factura que a Recorrente emitiu perante si, correspondente ao prejuízo decorrente da danificação da mercadoria e de, ainda assim, ter pago à Recorrida o serviço de transporte que esta prestou, apesar de ser esta a responsável pelos danos causados à mercadoria.
G. A matéria constante do artigo 8.º do requerimento de injunção, que se refere à falta de pagamento, pela Recorrida, da factura que a Recorrente emitiu perante si, correspondente ao prejuízo decorrente da danificação da mercadoria e de, ainda assim, ter pago à Recorrida o serviço de transporte que esta prestou, apesar de ser esta a responsável pelos danos causados à mercadoria, não se encontra expressamente impugnada pela Recorrida na Oposição, pois aí, designadamente no artigo 20.º, a Recorrida, ao recusar ser devido o valor constante da factura em causa, reconhece simultaneamente que não pagou o valor da factura à Recorrente.
H. A falta de pagamento da factura e a sua recusa pela Recorrida também resultam claras da carta que consta do Documento n.º 5, junto pela Recorrente aos autos.
I. Assim, requer-se a V. Exas. que revertam o erro em que o Tribunal a quo incorreu na apreciação da matéria de facto quanto à factualidade alegada no artigo 8.º do requerimento de injunção, dando-a como provada, pelo menos no que toca ao não pagamento, pela Recorrida, da factura que a Recorrente emitiu perante si como forma de ser ressarcida do prejuízo decorrente da danificação da mercadoria que a Recorrida transportou.
J. Da CMR decorre que as únicas formas de o transportador não ser responsabilizado pela deterioração da mercadoria por si transportada – responsabilidade prevista no artigo 17.º, n.º 1 –, são as circunstâncias previstas no n.º 2 ou numa das alíneas do n.º 4 do mesmo artigo 17.º.
K. A CMR é também clara quando, nos termos do artigo 18.º, n.os 1 e 2 (ainda que, no caso deste último, a exclusão da responsabilidade do transportador seja meramente presumida e susceptível de prova em contrário), estabelece que é ao transportador que incumbe fazer prova – não limitar-se a alegá-las – de tais circunstâncias.
L. A Recorrida não produziu qualquer prova, nem documental, nem testemunhal, nos autos, pelo que nunca poderia ter satisfeito o ónus probatório que sobre si impendia, de onde não se verifica qualquer exclusão da sua responsabilidade.
M. Não havendo causa para exclusão da responsabilidade da Recorrida nos termos da CMR, essa responsabilidade tinha forçosamente que ter operado e a Recorrida devia ter sido condenada nos termos peticionados pela Recorrente.
N. Ao retirar da ausência de prova pela Recorrida uma inexplicável situação de “impasse probatório”, o Tribunal a quo desrespeitou os comandos legais a que estava vinculado,
O. E, o que é pior, inverteu o ónus da prova legalmente definido, exigindo implicitamente da Recorrente a prova de circunstâncias – como os extractos termos em que o carregamento da mercadoria teve lugar – que esta não estava de forma alguma vinculada a provar.
P. Nos termos da CMR, provando-se, como se provou nos autos, que (i) entre duas entidades foi celebrado um contrato de transporte de mercadorias, e que (ii) a mercadoria, recolhida pelo transportador, chegou danificada ao destino final, sem que o transportador faça qualquer prova de qualquer das circunstâncias previstas no artigo 17.º, n.os 2 e 4, como impõe o artigo 18.º, n.os 1 e 2, ambos da CMR, a responsabilidade pela danificação da mercadoria é inequivocamente do transportador.
Q. O erro de julgamento do Tribunal a quo deve ser corrigido por V. Exas., revogando-se a decisão de primeira instância e condenando-se a Recorrida a pagar à Recorrente a factura por esta emitida, cujo pagamento a Recorrida sempre recusou, o que expressamente se requer. (…)”.
*
8. A recorrida não contra-alegou.
*
9. Por despacho de 23-02-2022 foi admitido o requerimento recursório.
*
10. Foram colhidos os vistos legais.
*
2. Questões a decidir:
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
I. Impugnação da matéria de facto:
A) Se a matéria constante do artigo 4.º do requerimento de injunção deverá ser considerada provada?
B) Se a matéria constante do artigo 8.º do requerimento de injunção deverá ser considerada provada?
II. Mérito do recurso:
C) Se ocorreu erro de julgamento na decisão recorrida, por se dever concluir que não existe causa de exclusão da responsabilidade da ré nos termos da CMR e que essa responsabilidade se deve operar?
*
3. Fundamentação de facto:
São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso os elencados no relatório.
*
4. Fundamentação de Direito:
Vejamos o recurso apresentado, apreciando as questões supra enunciadas.
*
I. Impugnação da matéria de facto:
Visa a recorrente que a matéria que alegou nos artigos 4.º e 8.º do requerimento de injunção seja considerada provada, ao invés do que foi consignado na decisão recorrida.
Com a alegação produzida, a recorrente/apelante pretende colocar em crise a factualidade apurada pelo Tribunal a quo.
Dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Para além disso, e especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Em feliz síntese, expressou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017 (Pº 1426/15.0T8BGC-A.G1, rel. ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA): “I- Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; II- Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. III- Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
No caso, como se disse, foi apenas produzida prova documental, não tendo as partes aportado para os autos qualquer prova de produção pessoal.
Nada obsta, em face da alegação da recorrente e ao acima referenciado, à apreciação da impugnação da matéria de facto em questão, mostrando-se observados os ónus de impugnação que resultavam a cargo da recorrente.
*
A) Se a matéria constante do artigo 4.º do requerimento de injunção deverá ser considerada provada?
Tendo em conta a decisão precedente, cumpre apreciar cada uma das questões de facto suscitadas e que não foram objeto de rejeição liminar, o que se passa a conhecer nos termos seguintes:
Conclui a recorrente – conclusões A a E que, no seu entender, o Tribunal recorrido errou em considerar não provada a matéria alegada no artigo 4.º do requerimento de injunção que entende dever transitar para os factos provados.
Alega a recorrente, para tanto, que a recorrida não impugnou tal matéria, que a aceitou e que a mesma resulta confirmada pela prova documental – doc. 5 junto pela recorrente - junta aos autos.
Vejamos:
O artigo 4.º do requerimento de injunção tem a seguinte redação: “4. Sucede que, na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da COMECA, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião”.
Na oposição deduzida pela recorrida, a mesma não impugnou expressamente o aludido artigo 4.º, embora tenha admitido, nomeadamente, que “pese embora o transporte tenha sido efetivamente realizado pela Requerida” (cfr. artigo 14.º da oposição).
Ora, atento o disposto no artigo 574.º, n.º 2, do CPC, perante a ausência de impugnação da ré sobre tal alegação da autora e não se mostrando a correspondente alegação conclusiva ou contendo matéria de direito, deveria ser considerada como incluída no rol dos factos provados, por acordo.
A inclusão de tal matéria no rol dos factos provados determina a sua eliminação e retirada do rol dos factos não provados.
Em conformidade, procede, neste segmento, a impugnação da matéria de facto deduzida, devendo incluir-se no rol dos factos provados, imediatamente antes do último parágrafo que consta de tal rol, o seguinte: “Sucede que, na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da COMECA, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião [do art.º 4.º do requerimento de injunção]”, determinando-se, em conformidade, a retirada desta matéria do rol dos factos não provados.
*
B) Se a matéria constante do artigo 8.º do requerimento de injunção deverá ser considerada provada?
No recurso apresentado, a recorrente concluiu ainda que o alegado no artigo 8.º do requerimento de injunção deverá ser incluído nos factos provados, formulando as seguintes conclusões sobre este ponto:
“F. O mesmo se diga no que toca à matéria constante do artigo 8.º do requerimento de injunção, que se refere à falta de pagamento, pela Recorrida, da factura que a Recorrente emitiu perante si, correspondente ao prejuízo decorrente da danificação da mercadoria e de, ainda assim, ter pago à Recorrida o serviço de transporte que esta prestou, apesar de ser esta a responsável pelos danos causados à mercadoria.
G. A matéria constante do artigo 8.º do requerimento de injunção, que se refere à falta de pagamento, pela Recorrida, da factura que a Recorrente emitiu perante si, correspondente ao prejuízo decorrente da danificação da mercadoria e de, ainda assim, ter pago à Recorrida o serviço de transporte que esta prestou, apesar de ser esta a responsável pelos danos causados à mercadoria, não se encontra expressamente impugnada pela Recorrida na Oposição, pois aí, designadamente no artigo 20.º, a Recorrida, ao recusar ser devido o valor constante da factura em causa, reconhece simultaneamente que não pagou o valor da factura à Recorrente.
H. A falta de pagamento da factura e a sua recusa pela Recorrida também resultam claras da carta que consta do Documento n.º 5, junto pela Recorrente aos autos.
I. Assim, requer-se a V. Exas. que revertam o erro em que o Tribunal a quo incorreu na apreciação da matéria de facto quanto à factualidade alegada no artigo 8.º do requerimento de injunção, dando-a como provada, pelo menos no que toca ao não pagamento, pela Recorrida, da factura que a Recorrente emitiu perante si como forma de ser ressarcida do prejuízo decorrente da danificação da mercadoria que a Recorrida transportou.
O artigo 8.º do requerimento de injunção é do seguinte teor: “8. Sucede que, tal montante não lhe é devido, encontrando-se, assim, por liquidar a factura n.º 2019.321/1594, emitida em 08.03.2019 e com data de vencimento a 20.05.2019, no montante de € 5.719,50 (cinco mil setecentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos).”.
O Tribunal recorrido considerou que esta matéria –entre outra que identificou –constante do artigo 8.º do requerimento de injunção se mostra “conclusiva, argumentativa” – cfr. página 13 da decisão recorrida (sendo que as demais menções que expressou não se podem reportar a matéria alegada no requerimento injuntivo).
Vejamos:
De acordo com o que constava dos artigos 508.º-A, n.º 1, al. e) e 511.º do CPC de 1961, na redação ultimamente vigente, a base instrutória deveria conter a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias situações plausíveis da questão de direito e sobre a qual incidiriam as diligências instrutórias de prova e de julgamento. Estas normas harmonizavam-se com a disposição contida no artigo 513.º do mesmo Código (com a epígrafe “Objecto da prova”), no qual se consagrava que a instrução tinha por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devessem considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
No novo e vigente Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos enunciados de facto controvertidos, mas apenas a enunciação das questões essenciais de facto, em que assenta a controvérsia entre as partes, deixando-se para a decisão sobre a matéria de facto - a ter lugar, em regra, no momento de prolação da sentença - a descrição dos factos que, relativamente a cada tema da prova, tenham sido provados ou não provados.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “[r]elativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual”.
Ora, conforme se evidencia no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “Será, pois, admissível que a enunciação dos temas da prova, actualmente prevista no n.º 1 do artigo 596.º do nCPC, assuma um carácter genérico e até, por vezes, aparentemente conclusivo, apenas devendo ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique.
Todavia, no que concerne à decisão da matéria de facto, a mesma já não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, ali se exigindo que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão a decidir.
Não obstante a redacção dada ao artigo 410º do nCPC, nos termos do qual a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os factos constante dos articulados apresentados pelas partes que a produção de prova e respectivos meios incidirão, como se infere dos artigos 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, do nCPC, e não sobre os respectivos temas de prova enunciados.
São de igual modo os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º do nCPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença.
Acresce que decorre do artigo 413.º do nCPC, que reproduziu sem alteração o artigo 515.º do aCPC, que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, mantendo-se, assim, intocável o princípio da aquisição processual.
Nos termos do aludido princípio, as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, pouco importando saber por via de quem foram trazidas para os autos (…)”.
Ou seja: “A enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstração ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio (…).
Haverá ações em que os temas da prova surgirão com maior concretização, embora não seja necessário (nem sequer aconselhável, na maior parte dos casos) que cada tema corresponda a um facto puro e simples, e haverá ações em que os temas da prova se apresentarão numa formulação de pendor mais genérico ou até mesmo conclusivo (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 699-700).
De todo o modo, como sublinham estes mesmos Autores (ob. cit., p. 701), “a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”.
Assim, não obstante o artigo 646.º, n.º 4, do anterior CPC (onde se dispunha que: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”) não se encontrar no CPC em vigor, certo é que, da fundamentação da sentença devem constar factos, o que, desde logo, deriva da previsão do artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
De facto, ao invés dos factos essenciais (os que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas) que devem ser alegados pelas partes, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do CPC e, além dos factos que sejam considerados pelo juiz, de harmonia com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, há determinada alegação que comporta a invocação de factos irrelevantes ou conclusivos, ou conter matéria de direito, aspetos que não devem ser transpostos para a seleção factual realizada pelo Tribunal em sede de sentença: “A matéria conclusiva (que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito é contrária à matéria estritamente factual que, como decorre do art. 607º nº4 do CPC, deve ser seleccionada para a fundamentação de facto da sentença” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-02-2021, Pº 701/19.0T8PFR.P1, rel. MENDES COELHO). De tal sorte que, “a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO).
Contudo, nem sempre, na prática, se torna evidente se estamos perante absoluta matéria conclusiva ou de direito ou ainda em face de matéria de facto.
Conforme se escreveu – ainda no âmbito do precedente CPC - no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2003 (Pº 8271/03, rel. MARIA JOSÉ MOURO, CJ, 2003, t. I, pp. 79-87): “A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.
Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 206-207 referia: «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.”
Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.
Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.
As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei”.
Na mesma linha e também no âmbito do CPC de 1961, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-1992 (Pº 003400, rel. DIAS SIMÃO) que: “Nem sempre é fácil a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, podendo mesmo afirmar-se que a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida da estrutura da norma aplicável e dos termos da causa (…). Como critério geral de distinção pode dizer-se que é de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, se o apuramento dessas realidades se realiza à margem da aplicação directa da lei, ou seja, tratando-se de averiguar factos cuja existência não dependa da interpretação a dar a qualquer norma jurídica. Acontecendo, porém, que o conceito normativo mencionado na lei seja igual ao conceito empiríco, utilizando aquela expressão de uso corrente na linguagem comum, nesse caso, poder-se-à quesitar empregando-se as palavras da lei, na medida em que, tomando-se esse conceito no seu sentido vulgar para este reservado”.
Em termos gerais, com referência aquilo que se verteu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009 (Pº 08S3441, rel. VASQUES DINIS) pode considerar-se que: “Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”.
Assim, como princípio, não devem enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir.
Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.
Isso mesmo tem sido assinalado, em diversos arestos, pela jurisprudência, exemplificativamente se citando os seguintes (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021 (Pº 2999/08.0TBLLE.E2.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES): “Em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação, mas pode conter pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2020 (Pº 2124/17.6T8VCT.G1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “Factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (Pº 3789/15.9T8VFR.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-11-2019 (Pº 3875/18.3T8MTS.P1, rel. RITA ROMEIRA): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 109/17.1T8ACB.C1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES): “Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Pº 338/17.8YRPRT, rel. FILIPE CAROÇO): “O desaparecimento da previsão do nº 4 do art.º 646º do antigo Código de Processo Civil não significa que a fundamentação de facto da sentença, tal como delineada na primeira parte do n° 3 e no n° 4 do artigo 607º do atual Código de Processo Civil tenha passado a poder incidir também sobre matéria conclusiva e de direito. Em termos gerais, o facto corresponde a um estado ou acontecimento que se configura como uma realidade passível de constatação e apreensão, seja ele um facto do mundo exterior (facto externo) ou um facto da vida psíquica (facto interno: o dolo, o conhecimento de determinadas circunstâncias, uma determinada intenção)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 (Pº 3499/11.6TJVNF.G1.S2, rel. ROSA TCHING): “No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO): “Face ao Novo Código de Processo Civil é na sentença que o juiz declara quais os factos que julga provados e os que julga não provados. A selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017 (Pº 809/10.7TBLMG.C1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA): “A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado. Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2015 (Pº 819/11.7TBPRD.P1.S1, rel. JOÃO TRINDADE): “Em face do NCPC (2013), haverá que considerar, de uma forma inovadora, que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista. É possível agora ao juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “É hoje admissível que a enunciação dos Temas da Prova prevista no nº 1 do artigo 596º do nCPC assuma um carácter genérico e por vezes aparentemente conclusivo - ao invés do que sucedia com a Base Instrutória elaborada, nos termos do artigo 511º do aCPC – encontrando-se apenas balizada pelos limites decorrentes da causa de pedir e das excepções invocadas na lide. A decisão da matéria de facto não deverá, todavia, conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, impondo o artigo 607º do nCPC, no seu nº 4, que na sentença o julgador declare provados ou não provados os factos e não os temas da prova”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2013 (Pº 400/09.0PAOVR.C1.P1, rel. EDUARDA LOBO): “Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-04-2004 (Pº 04B652, rel. FERREIRA GIRÃO): “O vocábulo janela pertence ao mundo dos vocábulos ou expressões, que, traduzindo embora determinado conceito técnico-jurídico, têm também um significado de uso corrente, fácil e inequivocamente identificável; Consequentemente, não se deve dar como não escrito, ao abrigo do nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, o vocábulo janela, quando incluído na decisão da matéria de facto sem qualquer discriminação das suas características - tal como, aliás, foi alegado”.
Assim: “Se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas”, estendendo-se as dificuldades de delimitação também no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019 (Pº 4372/09.3TTLSB-A.L1-4, rel. DURO CARDOSO).
Noutros arestos tentou-se mais uma aproximação:
- “É matéria conclusiva toda aquela que não consiste na percepção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno, mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual. Dentro da matéria conclusiva devem distinguir-se os juízos de facto periciais, dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2014, Pº 2138/10.7TBPRD.P1, rel. CARLOS GIL); e
- “Não são meros “juízos conclusivos” as expressões que têm um sentido perfeitamente apreensível na linguagem comum e cujo significado é totalmente apreendido na linguagem corrente, podendo até dizer que hoje em dia são os mesmos utilizados muitas vezes na vox populi” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 145/18.0T8SRP.E1, rel. ELISABETE VALENTE).
Revertendo estas considerações e aplicando-as ao caso dos autos, vemos no artigo 8.º do requerimento de injunção ter sido alegado, por um lado, “Sucede que, tal montante não lhe é devido” e, por outro lado, o segmento “encontrando-se, assim, por liquidar a factura n.º 2019.321/1594, emitida em 08.03.2019 e com data de vencimento a 20.05.2019, no montante de € 5.719,50 (cinco mil setecentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos)”.
No caso, constituindo a pretensão do pagamento do valor da factura em questão o cerne do objeto do litígio dos autos, não poderá o mesmo ser fundado num juízo conclusivo.
E, de facto, a afirmação de que se encontra por liquidar a factura n.º 2019.321/1594 (…)” traduz um mero juízo certificativo da requerente sobre a liquidação do montante da fatura, mas, enquanto reportado à requerida, o mesmo traduz um mero juízo conclusivo, que não poderá resultar assente por via da invocada não impugnação factual por banda da contraparte.
Conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-02-2021 (Pº 20633/19.0T8LSB.L1-8, rel. MARIA ISOLETA COSTA), posição que se subscreve, “o efeito cominatório do artigo 567º nº 2 do CPC não se estende aos factos conclusivos constantes da petição inicial”.
Aplicando tal princípio, por decorrência inclusive da previsão da alínea c) do artigo 568.º do CPC, verifica-se que é ineficaz a vontade das partes para produzir efeito de admissão de factos conclusivos, razão pela qual, se conclui que, a admissão por acordo, decorrente da não impugnação do réu, a que se reporta o n.º 2 do artigo 574.º do CPC, reporta-se a factos, não podendo, por isso, ser admitida por acordo, matéria conclusiva ou de direito, ainda que, sobre ela, o réu não se tenha pronunciado.
O mesmo é de dizer relativamente ao restante alegado no artigo 8.º: A invocação de que o montante de € 5.719,50 (“tal montante”, reporta-se à quantia de € 5.719,50 referida pela requerente como liquidada junto da requerida – cfr. artigo 7.º do requerimento de injunção) não é devido à requerida, traduz a emissão de um mero juízo de valor, conclusivo e indemonstrável e que, por isso, não poderá ser incluído na selecção factual que o Tribunal efetue (não devendo ser incluído, quer no rol dos factos provados, quer no rol dos factos não provados).
Compreende-se e concorda-se, pois, com a motivação de facto expressa na decisão recorrida, inexistindo motivo para a alteração factual gizada pela recorrente.
A impugnação da matéria de facto pretendida quanto ao artigo 8.º do requerimento de injunção é, em conformidade com o exposto, improcedente.
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
A A. é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, receção e circulação de bens ou mercadorias, bem como a armazenagem e manuseamento de carga e descarga de mercadorias e serviços de contabilidade, auditoria e consultadoria fiscal. [do art.º 1.º do requerimento de injunção]
Por sua vez, a A contratou a R. para efetuar o transporte e entrega ao destino final das duas calandras, i.e. na “Multinfor – Equipamento e Manutenção Hospitalar Lda”, no Montijo. [do art.º 3.º do requerimento de injunção]
Sucede que, na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da COMECA, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião [do art.º 4.º do requerimento de injunção]
Posteriormente, no passado dia 29.06.2019, a A. liquidou junto da R. a quantia de € 5 719,50. [do art.º 7.º do requerimento de injunção]
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
No passado dia 28 de Novembro de 2018, a Requerente, a pedido da sociedade COMECA - Importação e Exportação, S.A. (em diante, “COMECA”), efectuou a recolha de duas calandras com o peso total de 930 kg (465kg cada unidade).
A “COMECA” procedeu ao pagamento do montante de € 5 719,50. [do art.º 5.º do requerimento de injunção]
Na sequência do acidente ocorrido no âmbito do transporte efetuado pela R. e da reclamação apresentada pela “COMECA”, a A. assumiu o pagamento, da quantia de € 4 650,00 junto da “COMECA”. [do art.º 6.º do requerimento de injunção]
A mercadoria transportada, onde se incluía a mercadoria tombada referida nos presentes autos, foi carregada por um colaborador da A., tendo sido este o único a interferir no respetivo processo de carregamento e acondicionamento. [do art.º 14.º da oposição]
*
II. Mérito do recurso:
*
C) Se ocorreu erro de julgamento na decisão recorrida, por se dever concluir que não existe causa de exclusão da responsabilidade da ré nos termos da CMR e que essa responsabilidade se deve operar?
Conclui a recorrente que ocorreu erro de julgamento do Tribunal recorrido que deverá determinar a revogação da decisão de primeira instância, com condenação da recorrida a pagar-lhe a fatura emitida, formulando as seguintes conclusões recursórias:
“(…) J. Da CMR decorre que as únicas formas de o transportador não ser responsabilizado pela deterioração da mercadoria por si transportada – responsabilidade prevista no artigo 17.º, n.º 1 –, são as circunstâncias previstas no n.º 2 ou numa das alíneas do n.º 4 do mesmo artigo 17.º.
K. A CMR é também clara quando, nos termos do artigo 18.º, n.os 1 e 2 (ainda que, no caso deste último, a exclusão da responsabilidade do transportador seja meramente presumida e susceptível de prova em contrário), estabelece que é ao transportador que incumbe fazer prova – não limitar-se a alegá-las – de tais circunstâncias.
L. A Recorrida não produziu qualquer prova, nem documental, nem testemunhal, nos autos, pelo que nunca poderia ter satisfeito o ónus probatório que sobre si impendia, de onde não se verifica qualquer exclusão da sua responsabilidade.
M. Não havendo causa para exclusão da responsabilidade da Recorrida nos termos da CMR, essa responsabilidade tinha forçosamente que ter operado e a Recorrida devia ter sido condenada nos termos peticionados pela Recorrente.
N. Ao retirar da ausência de prova pela Recorrida uma inexplicável situação de “impasse probatório”, o Tribunal a quo desrespeitou os comandos legais a que estava vinculado,
O. E, o que é pior, inverteu o ónus da prova legalmente definido, exigindo implicitamente da Recorrente a prova de circunstâncias – como os extractos termos em que o carregamento da mercadoria teve lugar – que esta não estava de forma alguma vinculada a provar.
P. Nos termos da CMR, provando-se, como se provou nos autos, que (i) entre duas entidades foi celebrado um contrato de transporte de mercadorias, e que (ii) a mercadoria, recolhida pelo transportador, chegou danificada ao destino final, sem que o transportador faça qualquer prova de qualquer das circunstâncias previstas no artigo 17.º, n.os 2 e 4, como impõe o artigo 18.º, n.os 1 e 2, ambos da CMR, a responsabilidade pela danificação da mercadoria é inequivocamente do transportador (…)”.
Decorre dos factos provados que, a autora, no exercício da sua atividade comercial de prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, receção e circulação de bens ou mercadorias, bem como a armazenagem e manuseamento de carga e descarga de mercadorias e serviços de contabilidade, auditoria e consultadoria fiscal contratou a ré para efetuar o transporte e entrega ao destino final das duas calandras, na “Multinfor – Equipamento e Manutenção Hospitalar Lda”, no Montijo.
Resulta do exposto que a autora contratou a execução do transporte e entrega de mercadorias, celebrando-se um típico contrato de transporte comercial.
Cunha Gonçalves (Comentário ao Código Comercial Português, 2º, p. 394) definia o contrato de transporte como o “que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas coisas de um lugar para o outro e aquele que por um determinado preço se encarrega dessa condução. Este contrato é bilateral e oneroso, e quanto à sua forma é meramente consensual”.
Por sua vez, o mesmo autor (ob. cit., loc. cit.) referia que o contrato de transporte em relação ao transportador pode ser civil ou comercial. O primeiro caso ocorre quando o transportador faz dele profissão, quando seja pessoal e directamente exercido ou quando constitua um acto acidental. O transporte será comercial quando o transportador for uma empresa ou companhia regular e permanente.
O artigo 366º do Código Comercial definia o contrato de transporte nos termos seguintes: “O contrato de transporte por terra, canais ou rios considerar-se-á mercantil, quando os condutores tiverem constituído empresa ou companhia regular e permanente. Haver-se-á por constituída empresa, para os efeitos deste artigo, logo que qualquer ou quaisquer pessoas se proponham exercer a indústria de fazer transportar por terra, canais ou rios, pessoas ou animais, alfaias ou mercadorias de outrem. As companhias de transportes constituir-se-ão pela forma prescrita neste Código para as sociedades comerciais, ou pela que lhes for estabelecida na lei da sua criação. As empresas e companhias mencionadas neste artigo serão designadas no presente Código pela denominação de transportador (...)”.
Como resultava desta disposição legal – revogada pelo artigo 26.º do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro - o objeto do contrato de transporte consistia na operação material de deslocação de pessoas ou mercadorias (em sentido amplo) de um local para outro.
Em regra, este contrato supõe três entidades: o expedidor (o que incumbe o transporte), o transportador (o que se obriga ao transporte) e o destinatário (a pessoa a quem a mercadoria deve ser entregue).
Assim, pode concluir-se que o contrato de transporte de mercadorias é “o contrato pelo qual uma das partes - o carregador - encarrega outra - o transportador - que a tal se obriga, de deslocar determinada mercadoria de um local para outro e de a entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição” (assim, Francisco Costeira da Rocha; O Contrato de Transporte de Mercadorias - Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias; Almedina, Coimbra, 2000, p. 55).
Dito de outro modo: O contrato de transporte “é a convenção pela qual um transportador profissional se compromete perante outrem – o interessado ou expedidor – a garantir a deslocação de pessoas ou de mercadorias de um ponto a outro, conforme um meio de locomoção e mediante um preço determinado, denominado frete” (assim, Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Coord. M. Januário da Costa Gomes; Almedina, 2010, p. 89).
Tal operação poderá ser efectuada directamente pelo transportador ou por terceiros. É isso que dispõe o artigo 367º do Código Comercial: “O transportador pode fazer efectuar o transporte directamente por si, seus empregados e instrumentos, ou por empresa, companhia ou pessoas diversas.
§ único. No caso previsto na parte final deste artigo, o transportador que primitivamente contratou com o expedidor conserva para com este a sua originária qualidade, e assume para com a empresa, companhia ou pessoa com quem depois ajustou o transporte, a de expedidor”.
Mas, conforme se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-11-2017 (Pº 66941/16.3YIPRT.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA), o contrato de transporte rodoviário de mercadorias que, em termos gerais, se carateriza por ser de natureza consensual, sinalagmática, onerosa e de resultado, pode ter feição nacional ou internacional, “consoante, respetivamente, o ponto de partida e o lugar de entrega de mercadoria previstos se situem no mesmo país em ou países diferentes, ainda que neste caso a viatura de transporte não chegue (por qualquer razão, vg. por furto da mercadoria no seu trajeto) a transpor a fronteira do país do ponto de partida.
Enquanto os primeiros estão sujeitos ao regime jurídico do DL nº. 239/2003, de 04/10, já os segundos estão sujeitos à disciplina da Convenção CMR (assim designada a Convention de Transport International de Marchandises par Route)”.
De facto, o transporte internacional de mercadorias por estrada encontra-se regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra, de 19/05/1956, aprovada para adesão por Portugal pelo D.L. nº 46235, de 18 de Março de 1965 (modificada pelo Protocolo de Genebra de 05-07-78, aprovado para adesão pelo Dec. nº 28/88, de 06 de Setembro, tendo Portugal depositado o respectivo instrumento de confirmação e adesão a este Protocolo em 17-08-89, conforme aviso publicado no D.R., I série, nº 206, de 07-09-89), vulgarmente conhecida por Convenção CMR.
Sobre a responsabilidade do transportador internacional de mercadorias, dispõe o artigo 17º da Convenção CMR que:
“1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.
2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, a avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
3. O transportador não pode alegar, para se desobrigar da sua responsabilidade, nem defeitos do veículo de que se serve para efectuar o transporte, nem faltas da pessoa a quem alugou o veículo ou dos agentes desta.
4. Tendo em conta o artigo 18, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes:
a) Uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso foi ajustado de maneira expressa e mencionado na declaração de expedição;
b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas;
c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário;
d) Natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fractura, ferrugem, deterioração interna e espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou acção de bicharia e dos roedores;
e) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos números dos volumes;
f) Transporte de animais vivos.
5. Se o transportador, por virtude do presente artigo, não responder por alguns dos factores que causaram o estrago, a sua responsabilidade só fica envolvida na proporção em que tiverem contribuído para o estrago os factores pelos quais responde em virtude do presente artigo”.
E, de acordo com o artigo 18º, nº 1, da Convenção CMR:
“1. Compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no artigo 17, parágrafo 2.
2. Quando o transportador provar que a perda ou a avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17º., parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes. O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa total ou parcial um desses riscos.
3. A presunção acima referida não é aplicável no caso previsto no artigo 17º., parágrafo 4, a), se houver falta de uma importância anormal ou perda de volume.
4. Se o transporte for efectuado por meio de um veículo equipado de maneira a subtrair as mercadorias à influência do calor, frio, variações de temperatura ou humidade do ar, o transportador não poderá invocar o benefício do artigo 17º., parágrafo 4, d), a não ser que apresente prova de que, tendo em conta as circunstâncias, foram tomadas todas as medidas que lhe competiam quanto à escolha, manutenção e uso daqueles equipamentos e que acatou as instruções especiais que lhe tiverem sido dadas.
5. O transportador só poderá invocar o benefício do artigo 17º., parágrafo 4, f), se apresentar prova de que, tendo em conta as circunstâncias, foram tomadas todas as medidas que normalmente lhe competiam e acatou as instruções especiais que lhe possam ter sido dadas.”.
Como salienta, com referência ao regime jurídico da Convenção CMR, Alfredo Proença (Transporte de Mercadorias por Estrada; Almedina, Coimbra, 1998, pp. 58-59) “o transportador é responsável pela mercadoria desde o momento em que a recebeu para o transporte (prise en charge) até à sua entrega no local do destino, no mesmo estado e quantidade em que a recebeu. Ao interessado (expedidor ou destinatário) bastará a prova de que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino ou que a entregou com avarias. Ao transportador incumbirá a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo acontecido ou seja limitativa da sua responsabilidade.
Configuram o incumprimento ou cumprimento defeituoso pelo transportador a não entrega da mercadoria, a entrega com avarias, a entrega com atraso. A não entrega pode ser devida a perda, destruição, morte do animal, extravio, retenção, arresto, penhora ou por qualquer outro acto da autoridade ou de terceiro. Ao transportador incumbirá a prova de que a não entrega ocorreu por facto estranho à sua vontade e por qualquer dos motivos referidos no art. 17º. (...)”.
Sucede que, conforme se viu, “a CMR destina-se somente a disciplinar os contratos de transportes que sejam internacionais. A internacionalidade, ou a estraneidade, do contrato (…) será um requisito da aplicação/aplicabilidade da sua disciplina” (assim, Nuno Manuel Castello-Branco Bastos; Direito dos Transportes, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho; Caderno n.º 2, Almedina, 2004, pp. 87-88).
Com efeito, dispõe o artigo 1.º, n.º 1, da Convenção CMR que: “A presente Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar de carregamento de mercadorias e o lugar de entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes”.
De facto, para a CMR ser aplicável tem de se estar perante um contrato de transporte internacional, o que significa que o lugar de carregamento da mercadoria e o lugar de entrega previsto devem estar situados em países diferentes, devendo ser um deles um país contratante.
Ora, não resulta dos autos que o transporte em questão tenha tido feição internacional, destinando-se a mercadoria transportada de Alverca (cfr. o documento n.º 5 junto em 11-11-2021) para o Montijo, ambas localidades sitas em Portugal, não se verificando qualquer elemento de estraneidade.
A Convenção CMR não tem, pois, direta aplicação à situação dos autos, transporte de cariz puramente nacional, muito embora, como se verá, a legislação interna sobre a matéria seja muito semelhante à previsão constante da aludida Convenção.
Importa assim ter em conta o regime jurídico do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro, que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias e das operações de carga e descarga de mercadorias realizadas em território nacional, incluindo dos tempos de espera, sejam elas relacionadas com transportes nacionais ou internacionais.
Dispõe o artigo 2.º do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro que:
“1- O contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias é o celebrado entre transportador e expedidor nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entregá-las ao destinatário.
2 - Para efeitos do número anterior, transportador é a empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias e expedidor é o proprietário, possuidor ou mero detentor das mercadorias.
3 - Quando, ao abrigo de um único contrato, as mercadorias sejam transportadas em parte por meio rodoviário e em parte por meio aéreo, ferroviário, marítimo ou fluvial, aplica-se à parte rodoviária o regime jurídico constante deste diploma.
4 - Não estão abrangidos pelo disposto no presente diploma os contratos de transporte de envios postais a efectuar no âmbito dos serviços postais e os transportes de mercadorias sem valor comercial.”.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do mesmo diploma, “a guia de transporte faz prova da celebração, termos e condições do contrato”, sendo que a sua falta, irregularidade ou perda, não prejudicam a existência nem a validade do contrato de transporte (cfr. n.º 2 do mesmo artigo 3.º).
O artigo 9.º do mesmo D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro prescreve sobre as reservas do transportador, nos termos seguintes:
“1 - O transportador pode formular reservas se, no momento da recepção da mercadoria, constatar que esta ou a embalagem apresentam defeito aparente, bem como quando não tiver meios razoáveis de verificar a exactidão das indicações constantes da guia de transporte.
2 - As reservas do transportador são descritas na guia de transporte e carecem de aceitação expressa do expedidor.
3 - Na falta de reservas, presume-se que a mercadoria e ou a embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o transportador as recebeu e que as indicações da guia de transporte eram exactas.
4 - As reservas do transportador podem ser objecto de tipificação e assumir a forma de reservas codificadas nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área dos transportes.”.
O cumprimento da prestação do transportador ocorre com a entrega da mercadoria ao destinatário (cfr. artigo 12.º, n.º 1, do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro), sendo que, em caso de vício aparente da mercadoria ou defeito da embalagem, o destinatário deve, no momento da aceitação, formular reservas que indiquem a natureza da perda ou avaria (n.º 2 do mesmo artigo) e, em caso de vício não aparente, o destinatário dispõe de oito dias a contar da data da aceitação da mercadoria para formular reservas escritas devidamente fundamentadas e para as comunicar ao transportador (n.º 3 do mesmo artigo), sendo certo que, se o destinatário receber a mercadoria sem verificar o seu estado contraditoriamente com o transportador, ou sem formular as reservas a que se referem os números anteriores, presume-se, salvo prova em contrário, que as mercadorias se encontravam em boas condições (cfr. artigo 12.º, n.º 4, do D.L. n.º 239/2003).
O D.L. 239/2003 contém um capítulo – III (artigos 16.º a 23.º) – dedicado à regulação da responsabilidade dos intervenientes no contrato de transporte, dispondo os artigos 16.º a 18.º deste diploma o seguinte:
“Artigo 16.º Responsabilidade do expedidor
1 - O expedidor responde por todas as despesas e prejuízos resultantes da inexactidão ou insuficiência das indicações contidas na guia de transporte relativas às mercadorias e ao destinatário, bem como pelas despesas de verificação da mercadoria.
2 - As despesas e prejuízos causados pelas alterações ao contrato feitas nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 5.º são da responsabilidade do expedidor.
3 - O expedidor responde pelos danos causados por defeito da mercadoria ou da embalagem, salvo se o transportador, sendo o defeito aparente ou dele tendo tido conhecimento no momento em que recebeu a mercadoria, não tiver formulado as devidas reservas.
4 - Quando o contrato tiver por objecto o transporte de mercadorias perigosas, ou outras que careçam de precauções especiais nos termos de legislação especial aplicável, o expedidor deve assinalar com exactidão a sua natureza, sendo responsável por todas as despesas e prejuízos, em caso de omissão.
Artigo 17.º Responsabilidade do transportador
1 - O transportador é responsável pela perda total ou parcial das mercadorias ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
2 - O transportador responde, como se fossem cometidos por ele próprio, pelos actos e omissões dos seus empregados, agentes, representantes ou outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato.
Artigo 18.º Causas de exclusão da responsabilidade do transportador
1 - A responsabilidade do transportador fica excluída se a perda, avaria ou demora se dever à natureza ou vício próprio da mercadoria, a culpa do expedidor ou do destinatário, a caso fortuito ou de força maior.
2 - A responsabilidade do transportador fica ainda excluída quando a perda ou avaria resultar dos riscos inerentes a qualquer dos seguintes factos:
a) Falta ou defeito da embalagem relativamente às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão devidamente embaladas;
b) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta destes;
c) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos símbolos dos volumes.
3 - O transportador não pode invocar defeitos do veículo que utiliza no transporte para excluir a sua responsabilidade”.
Com referência às causas previstas no artigo 18.º do D.L. n.º 239/2003 distingue a doutrina entre causas liberatórias e factos liberatórios, sendo as primeiras objecto do n.º 1, e as segundas constantes do n.º 2 do mencionado artigo 18.º. A diferença de regime estaria em que a prova das primeiras levaria a ilidir definitivamente a presunção de responsabilidade do transportador decorrente da constatação dos danos, enquanto que, a prova dos segundos, importaria para o transportador o benefício de uma mera presunção de causalidade, que o interessado na carga tanto poderia contrariar nos termos gerais, como tornar simplesmente ineficaz, mediante a mera demonstração de “concorrência da negligência do transportador” (assim, Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes; Direito dos Transportes, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho; Caderno n.º 2, Almedina, 2004, pp. 93-94).
O conceito de “perda” da mercadoria é heterogéneo podendo decorrer da efetiva destruição da coisa por ação interna (evaporação, combustão, etc.) ou externa (v.g. incêndio, furto), substituição de uma coisa por outra, entrega da mercadoria em lugar diverso ou mesmo falta de entrega, enquanto que, a avaria, traduz a simples deterioração da mercadoria.
Em face destes normativos, sublinha Adriano Marteleto Godinho (“A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Coord. M. Januário da Costa Gomes; Almedina, 2010, pp. 94-95) que “sobre o transportador recai uma presunção de responsabilidade, ou seja, provado o dano, decorrente da perda ou avaria da mercadoria ou da demora na entrega, presume-se que o incumprimento (total ou parcial) do contrato deve ser imputado ao transportador, regra que decorre dos arts. 17.º/1 e 18.º/1 da CMR e, no plano interno, também dos arts. 17.º/1 e 18.º/1 do Decreto-Lei n.º 239/2003.
Explica-se a existência de uma presunção de responsabilidade pelo fato de a CMR e o diploma interno enunciarem que, em regra, o transportador é responsável pelos danos. Essa responsabilidade somente será afastada caso o transportador logre demonstrar que os fatores legais de exclusão (fatores liberatórios ou causas liberatórias) estiveram na origem dos danos de maneira exclusiva. Esses fatores de exclusão, portanto, terminam por excluir não a culpa, mas a própria responsabilidade (…). Em síntese, eis a regra: o transportador é presumivelmente responsável pelos danos ocorridos entre o momento de recepção e o de entrega das mercadorias. Se não for capaz de defender-se por meio das causas e dos fatos liberatórios expressa e taxativamente previstos na CMR ou no diploma interno, arcará com o pagamento das indemnizações cabíveis”.
Igualmente, assinalando que a presunção resultante do artigo 17.º traduz uma específica presunção de responsabilidade, vd. Nuno Manuel Castello-Branco Bastos (Direito dos Transportes, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho; Caderno n.º 2, Almedina, 2004, pp. 93-94) e M. Januário Gomes (“O Acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico da CMR”, in Revista de Direito das Sociedades, 3, 2018, p. 612).
Adotando o referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-01-2013 (Pº 5066/07.0TBVFR.P1, rel. M. PINTO DOS SANTOS) pode concluir-se que: “No âmbito dos contratos de transporte rodoviário nacional de mercadorias impende sobre o/a transportador/a a presunção de culpa pela perda total ou parcial daquelas durante o respectivo transporte [entre o momento do carregamento e o da entrega], ou pela sua avaria ou demora na entrega, cabendo-lhe a ele/a, transportador/a, o ónus de ilidir essa presunção demonstrando a verificação de alguma das situações taxativamente enumeradas no art. 18° do DL 239/2003”.
Porque cabe ao transportador demonstrar que a responsabilidade não lhe pode ser assacada, “é dele a responsabilidade por danos derivados de causas desconhecidas” (assim, Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Coord. M. Januário da Costa Gomes; Almedina, 2010, p. 96).
Ora, no caso em apreço, tendo a autora contratado a ré para efetuar o transporte e entrega das calandras, tentada esta entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da COMECA, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião.
A ré invocou, em sede de oposição, que a mercadoria em questão foi carregada por um colaborador da autora, que, segundo alegou, foi o único a interferir no processo de carregamento e de acondicionamento.
Sucede que, realizado o julgamento e produzida a prova que as partes carrearam para o processo – como se viu, de natureza não pessoal - não resultou provado, como se evidenciou, aliás, na decisão recorrida, que a mercadoria transportada tenha sido carregada por um colaborador da autora e que este tenha sido o único a interferir no respetivo processo de carregamento e acondicionamento.
A invocação da ré destinava-se a eximir-se de qualquer responsabilidade pelo sucedido, por apelo ao disposto no artigo 18.º, n.º 2, al. b), do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro, com referência à responsabilização da autora no momento da carga.
Ora, sucede que, como se concluiu na decisão recorrida, não logrou, todavia, a ré provar a matéria em causa, inexistindo demonstração de algum fator liberatório da sua responsabilidade enquanto transportador.
Conforme se viu, cabia à ré o ónus de prova da verificação de alguma das causas de exclusão da sua responsabilidade, causas a que se reportam as situações previstas nos n.ºs. 1 e 2 do artigo 18.º do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro, ónus que, todavia, não observou.
Caberia à ré, como se disse, para se eximir de responsabilidade, invocar que a avaria da mercadoria se deveu à natureza ou vício próprio da mercadoria, a culpa do expedidor ou do destinatário, a caso fortuito ou de força maior, que a avaria resultou dos riscos inerentes a falta ou defeito da embalagem (relativamente às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a avarias quando não estão devidamente embaladas), a manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta destes ou a insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos símbolos dos volumes, o que não ocorreu.
E, nessa medida, por aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 17.º do D.L. n.º 239/2003, de 4 de outubro, cabe à ré inteira responsabilidade pelo sinistro ocorrido, não tendo, enquanto transportador feito prova de qualquer das causas liberatórias de responsabilidade previstas no artigo 18.º, n.ºs. 1 e 2, do mesmo diploma legal.
Não se acompanha assim a decisão recorrida, quando conclui que “não se mostra[m] demonstrados, porém, os termos em que se processou o acondicionamento da mercadoria transportada pela R., mostrando-se divergente a posição das partes a este respeito”.
Procedem, pois, as conclusões da apelante.
*
A apelação procederá, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, na procedência da ação, condene a ré no pedido formulado pela autora, ou seja, no pagamento da quantia global de € 6.349,72 - respeitante ao capital de € 5.719,50, juros de mora vencidos até 24-04-2020, no valor de € 426,22 e, à taxa de justiça paga pela apresentação da injunção, no valor de € 102,00 – acrescida dos juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.
*
De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, procedendo a apelação – não relevando, para este efeito, a improcedência de parte da impugnação da matéria de facto suscitada - , a responsabilidade tributária incidirá, in totum, sobre a apelada/ré, que decaiu integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível em:
1) Determinar a inclusão no rol dos factos provados, imediatamente antes do último parágrafo que consta de tal rol, da seguinte matéria de facto: “Sucede que, na tentativa de entrega, a mercadoria foi recusada pelo destinatário final e devolvida à agência da COMECA, tendo-se, então, constatado que a mesma se encontrava tombada no camião [do art.º 4.º do requerimento de injunção]”, determinando-se, em conformidade, a retirada desta matéria do rol dos factos não provados;
2) Julgar improcedente a impugnação da matéria de facto quanto ao alegado no artigo 8.º do requerimento de injunção; e
3) Julgar, quanto ao mérito do recurso, procedente a apelação, determinando-se a revogada a decisão recorrida e sua substituição pela presente que, na procedência da ação, condena a ré no pedido formulado pela autora, ou seja, no pagamento da quantia global de € 6.349,72 - respeitante ao capital de € 5.719,50, juros de mora vencidos até 24-04-2020, no valor de € 426,22 e, à taxa de justiça paga pela apresentação da injunção, no valor de € 102,00 – acrescida dos juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.
Custas pela apelada/ré.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 7 de abril de 2022.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
Maria José Mouro Marques da Silva