Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5476/2006-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
INCERTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - Em face dos dados da experiência comum de vida, é suficiente para se intentar uma habilitação de herdeiros incertos a alegação de se desconhecer se o falecido deixou sucessores;
II - Nesse caso deve o juiz, antes de ordenar a citação edital, determinar a realização de diligências úteis à identificação dos sucessores.
(RF)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A… requereu, por apenso à acção que intentou contra R1… e mulher R2, a habilitação como herdeiros do Réu R1…, entretanto falecido, da Ré R2… dos eventuais herdeiros incertos, porquanto ignora se o falecido deixou quaisquer outros herdeiros, com a consequente notificação da primeira e citação edital dos segundos.
O Mmº juiz a quo determinou que os autos ficassem a aguardar que o requerente diligenciasse no sentido de apurar quem são os herdeiros, sem prejuízo do disposto no artº 285º do CPC.
Inconformado, agravou o requerente concluindo pela ilegalidade do despacho recorrido.

II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio (1).
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (2).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (3).
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a única questão a resolver é saber se foi correcto ou não o despacho recorrido.

III – Fundamentos de Facto
A factualidade pertinente é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.


IV – Fundamentos de Direito
Para decidir como decidiu o Mmº juiz a quo invocou, louvando-se no decidido pelo STJ no seu acórdão de 6JUL2007 (proc. 05B2025), que a acção contra incertos só é admissível se o autor alegar a razão do desconhecimento da identidade do demandado o que, no caso dos autos, não só não vem alegado, como sempre era possível alcançar através da realização de diligências várias, nem que fosse pelo recurso ao pedido de cooperação do tribunal.
Tal jurisprudência não colhe a nossa adesão porquanto se entende que ela, na prática, redunda em ofensa de princípios fundamentais como sejam a proibição do ‘non liquet’ (artº 3º da Lei 21/85 – Estatuto dos Magistrados Judiciais) e o acesso ao direito (artº 20º da Constituição da República).
Com efeito, tendo sido instaurado um incidente de habilitação, e competindo ao juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo (artº 265º do CPC), não se vê como possa legitimar-se uma decisão como a recorrida, na medida em que a mesma, afirmando a inadmissibilidade de o mesmo ser deduzido (como foi) contra incertos, não indefere o incidente mas também não determina o seu andamento, limitando-se a determinar que os autos fiquem a aguardar a extinção da instância ou que o requerente deduza outro incidente, agora relativamente a pessoas certas. Estamos, a nosso modo de ver, perante uma não decisão.
Abordando a questão material subjacente, atentemos, então, na posição em que se encontra colocada a parte que se vê confrontada com o decesso da sua contraparte.
O conhecimento no processo da morte de uma das partes ( e todos aqueles que são parte no processo têm o especial dever de comunicar tal facto – artº 277º, nº 2 do CPC) determina a imediata suspensão do processo (artº 277º, nº 1, do CPC), nele só se podendo praticar os actos urgentes destinados a evitar dano irreparável (artº 283º, nº 1, do CPC), sob pena de nulidade (artº 277º, nº 3, do CPC). Devendo ser promovida a habilitação dos sucessores da parte falecida para com eles prosseguirem os termos da demanda, por qualquer das partes sobrevivas como por qualquer dos sucessores, contra as partes sobrevivas e contra os sucessores que não forem os requerentes (artº 371º, nº 1, do CPC), havendo lugar a citação edital e representação pelo Ministério Público se os sucessores forem incertos (artº 375º do CPC).
Decorre das citadas disposições legais, do princípio do dispositivo (artigos 3º e 264º do CPC) e do disposto no artº 16º do CPC, que impende sobre as partes sobrevivas ou sobre os sucessores do falecido o ónus de promover a habilitação. Ónus esse que pressupõe, desde logo, que o requerente da habilitação identifique os sucessores do falecido.
Os ónus processuais, enquanto encargos que impendem sobre os intervenientes, com vista à obtenção de determinados resultados, vantagens ou situações, sendo uma forma legítima de regulação processual, não deixam de estar sujeitos aos princípios da proporcionalidade e da proibição do arbítrio, não podendo ter-se como legítimo um ónus arbitrário e desproporcionado aos fins visados, contrário ao princípio constitucional do acesso à justiça (4). Daí que na delimitação do âmbito dos mesmos se não possa deixar de ter em atenção os limites impostos por aqueles princípios.
Decorre da experiência comum de vida não ser acessível a um qualquer cidadão saber da identidade dos sucessores de um outro cidadão, a não ser que seja das relações familiares ou sociais do defunto, ou que nesse sentido obtenha a colaboração voluntária das pessoas situadas nesses círculos.
Assim, ainda que descortine onde obter ou tenha acesso à certidão de óbito e daí obtenha a identidade dos progenitores tal não lhe possibilita saber qual a conservatória onde pode obter a respectiva certidão de nascimento donde possa constatar se os mesmos sobreviveram; e muito menos se, além deles, se encontram vivos outros ascendentes. Igualmente não descortina aí a identidade de descendentes e onde possa obter a respectiva certidão de nascimento. Sendo a única menção alcançável a do nome do cônjuge.
Por outro lado a informação em causa faz parte integrante do círculo da vida privada do defunto que, por se encontrar legalmente protegida, não é livremente acessível pelos outros cidadãos, não podendo as entidades que eventualmente possuam esses dados transmiti-los a terceiros. E dessa forma se encontra actualmente inviabilizada a diligência que, por excelência, era utilizada para efeitos de habilitação: obtenção de certidão das declarações do cabeça de casal para efeitos fiscais (cf. artº 64º da Lei Geral Tributária).
Em face dessa situação, e como decorre da experiência comum de vida, a parte sobreviva fica confrontada perante uma situação, senão de impossibilidade, pelo menos de grande dificuldade, em obter a informação relevante acerca dos sucessores do falecido, não lhe podendo ser imposto, sob pena de violação dos apontados princípios, que, não obstante, venha a diligenciar pela identificação dos sucessores.
A jurisprudência em que se louvou a decisão recorrida acaba, aliás, por reconhecer isso mesmo quando acaba por admitir a necessidade de recurso à colaboração do tribunal nos termos do artº 266, nº 4, do CPC.
Mas para poder obter essa colaboração é imperioso que seja instaurado um processo onde ela possa ser solicitada; não o podendo ser no processo suspenso, por não ser um acto urgente destinado a evitar dano irreparável, só pode ser no incidente de habilitação. E para instaurar este, só o pode instaurar contra incertos alegando o desconhecimento da sua existência ou identidade (que é alegação adequada em face da experiência comum de vida e do exigido no artº 16º do CPC).
Outro entendimento que não o perfilhado é pôr a cargo da parte sobreviva uma exigência de diligência desproporcionadamente onerosa (senão mesmo impossível) atentatória do seu direito de acesso à justiça.

O facto, porém, de se ter por admissível a instauração de habilitação contra sucessores incertos não quer dizer que o juiz tenha, desde logo de ordenar a citação edital dos mesmos.
Desde logo porquanto, sendo a citação edital uma forma excepcional de notificação, que deve ser ordenada pelo juiz, e tendo esse mesmo juiz a obrigação de prestar colaboração às partes no sentido de remover os obstáculos por esta sentidos (que foram alegados pela invocação do desconhecimento da identidade de eventuais sucessores) e de ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade a justa composição do litígio e a regularização da instância (artigos 265º e 266º do CPC), deve promover as diligências que se mostrem úteis (embora não acessíveis ao requerente) à eventual identificação dos sucessores.
Não tendo essas diligências qualquer resultado, dessa forma se confirmando a incerteza das pessoas, haverá de avançar com a citação edital; identificados os sucessores haverá lugar a reformulação do requerimento inicial por parte do requerente ou, caso o não faça, agora sim, a indeferimento da habilitação por ilegitimidade dos requeridos.
E quais são as diligências a realizar? Isso compete ao Mmº juiz a quo definir, mas sempre se referirá, a título exemplificativo, a notificação do cônjuge sobrevivo para indicar os sucessores (artº 519º do CPC) ou a solicitação de tal informação a autoridades administrativas, designadamente a administração fiscal (artº 64º, nº 2, al. d), da Lei Geral Tributária).

V – Conclusões
Do exposto podem extrair-se as seguintes conclusões:
- Em face dos dados da experiência comum de vida, é suficiente para se intentar uma habilitação de herdeiros incertos a alegação de se desconhecer se o falecido deixou sucessores;
- Nesse caso deve o juiz, antes de ordenar a citação edital, determinar a realização de diligências úteis à identificação dos sucessores.

VI – Decisão
Termos em que, dando provimento ao agravo, se revoga a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra compatível com a posição adoptada.

Sem custas.
Lisboa, 26SET2006
(Rijo Ferreira)
(Carlos Moreira)
(Rosário Gonçalves)



_________________________________
1.-Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86).

2.-Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141.

3.-Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247.

4.-cf. acórdãos do Tribunal Constitucional 122/2002 (DR, II, 29MAI2002) [“… Ponto é, porém, que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vai representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo nº 1 do artigo 20º da Constituição.”] e 403/2002 (DR, II, 16DEZ2002).