Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
976/12.5TBALM-C.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
ADMISSÃO DO RECURSO
PRESSUPOSTOS
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: I) A Constituição não consagra, em sede não penal, o direito ao recurso, entendido como o direito pleno a um duplo grau de jurisdição.
II) A jurisprudência do Tribunal Constitucional considera, porém, a admissibilidade do recurso de decisão judicial não enquadrada na previsão do artigo 629.º, do CPC, quanto à alçada e à sucumbência, quando esteja em causa a violação de direitos fundamentais directamente pela própria decisão judicial.
III) Não basta a tal admissibilidade que no processo se decida matéria que contenda ou se relacione com direitos fundamentais.
IV) Em incidente de incumprimento da obrigação de alimentos não está em causa direito fundamental com protecção reforçada nos termos dos artigos 16.º a 18.º da Constituição.
Em incidente de incumprimento da obrigação de alimentos, a admissibilidade do recurso da decisão que fixe as quantias em que o incumprimento se exprime está sujeita à regra da sucumbência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO

A veio instaurar contra B incidente de incumprimento de regulação das responsabilidades parentais relativas ao filho de ambos C, alegando, em síntese, que o requerido não pagou a pensão de alimentos devida relativa aos meses de Novembro e Dezembro de 2016, nem a de Janeiro de 2017, não tendo ainda procedido ao pagamento de despesas várias de cariz escolar, medicamentoso, de vestuário e de prática de natação por prescrição médica, no montante global que liquida em €609,11 (seiscentos e nove euros e onze cêntimos).
As quantias parcelares peticionadas são: €50,00 de despesas escolares, €28,20 de fotocópias escolares, €23,18 de despesas medicamentosas, €50,00 de prestação semestral (Setembro de 2016) de apoio a compra de vestuário, €82,73 de despesas com a prática de natação e €375,00 das pensões de alimentos.
Notificado, o Requerido alegou que a quantia relativa a apoio na compra de vestuário se refere a acordo em conferência de 27 Setembro de 2016, não se tendo vencido nesse mês, que na conferência de Setembro em que foi alterada a regulação das responsabilidades parentais ficou declarado que inexistiam dívidas anteriores, sendo anteriores as despesas pedidas quanto a despesas escolares e, parcialmente, a medicamentos.
Mais alegou que, estando pagas as pensões de alimentos mencionadas, por descontos feitos pela segurança social por ordem judicial de penhora, aliás, em montante mensal de €250,00, ou seja, em dobro do montante fixado em Setembro de 2016 quanto à pensão de alimentos. Alegou ainda que o montante penhorado em excesso será mais do que suficiente para fazer face às restantes despesas do menor. Concluiu pela improcedência do incidente de incumprimento.
Juntou cópia do despacho judicial de 18 de Janeiro de 2017 que ordenou a cessação dos descontos.
A Requerente respondeu alegando que na audiência de julgamento (sic) ficara estabelecido que a prestação semestral relativa a vestuário desse ano de 2016, seria paga no mês de Outubro, bem como as despesas escolares, médicas e medicamentosas em falta, sendo esse compromisso o fundamento do acordo da Recorrente à alteração firmada em 27 de Setembro de 2016. Mais alega que os descontos que o Recorrido invoca terem sido feitos, quanto às pensões de alimentos, destinavam-se antes ao pagamento de uma dívida de 2013, ainda não cumprida.
Teve lugar conferência em que, na ausência de acordo, foram os pais notificados para alegarem e apresentarem prova.
Em alegações, a Recorrente invocou incumprimentos reiterados anteriores que levaram à liquidação da dívida do Recorrido no montante de €3.500,00 em 4 de Dezembro de 2015 (o agente de execução indica a data de 3 de Dezembro de 2015, o que é irrelevante no caso). A partir desta data, a Recorrente passou a receber a pensão de alimentos por via dos descontos através da segurança social, tendo recebido a última em 22 de Outubro de 2016, referente a 1 de Setembro do mesmo ano, uma vez que as prestações eram descontadas cerca do dia 20 de cada mês, para pagamento da vencida no mês anterior. Incorreu assim em erro ao peticionar apenas as prestações de Novembro de 2016 a Janeiro de 2017, uma vez que se encontrava ainda em dívida a de Outubro de 2016, no valor de €125,00, que agora peticiona.
Os descontos que a Recorrente recebeu da segurança social foram de €1.421,01, em 30 de Dezembro de 2015, e €1.250,00, em 22 de Março de 2016 (sendo €250,00 a título da pensão de alimentos de Fevereiro) do mesmo ano. A Recorrente recebeu ainda mensalmente €250,00 de Novembro de 2016 a Janeiro de 2017, no montante global de €750,00, ficando em dívida o valor de €78,99 do montante liquidado em 4 de Dezembro de 2015.
A Requerente alegou ainda que na pendência dos autos o Requerido não pagou outros valores entretanto vencidos, a saber, €71,00 relativos a despesas com natação não englobadas anteriormente, €18,14 de despesas escolares de 2017, €48,00 de anuidade de seguro de saúde, €40,00 quanto a viagem de finalista que devem considerar-se despesa escolar. Liquida o montante global em falta em €911,25.
A Requerente acrescenta ainda que na acta de 27 de Setembro de 2016 não ficaram contempladas as despesas extracurriculares, as quais devem ser incluídas enquanto responsabilidade da Requerente e do Requerido.
O Requerido reiterou que os descontos se reportaram às pensões de alimentos, sendo que a Requerente declarou na conferência de 27 de Setembro de 2016 que não existiam valores em dívida, o que aliás coincide com a informação prestada pelo agente de execução. Alegou ainda que apenas se encontram em causa os valores inicialmente peticionados e não os que entretanto foram invocados ou os valores de despesas extracurriculares agora indicados como devendo ser incluídos.
Foi proferido despacho solicitando ao agente de execução a clarificação de elementos diversos relativos à execução por alimentos até à sua extinção por insolvência do Requerido, o que o mesmo fez indicando a liquidação, em 3 de Dezembro de 2015, da quantia exequenda não paga em €3.500,00 e a sua comunicação de que deveria passar a ser feito desconto mensal do montante de €250,00 como adjudicação da pensão de alimentos, face ao que, não havendo bens passíveis de penhora, extinguiu a execução em 7 de Dezembro de 2016. Mais referiu que, notificado do despacho de 18 de Janeiro de 2017, a 24 do mesmo mês, notificou a entidade que procedia aos descontos para os cessar.
Foi ordenada a notificação do Requerido para se pronunciar sobre a ampliação do pedido, tendo o mesmo reiterado a posição anterior e alegado o pagamento das despesas de sua responsabilidade após a audiência de 18 de Outubro de 2017.
Foi junta ao processo certidão de sentença que declarou a insolvência do Requerido e emitido parecer pelo Ministério Público.
Cumprido o demais legal, foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente por provado o incidente de incumprimento e declarou encontrar-se em dívida pelo Requerido o montante de € 54,50 relativo a metade das despesas escolares e de saúde, efectuando compensação com montantes pagos.
Da decisão interpôs recurso a Requerente de cujas alegações conclui:
A sentença recorrida considera que a prática da natação não corresponde a uma necessidade de saúde mas a uma conveniência da prática de exercício físico de que a natação seria mero exemplo, inexistindo elementos nos autos dos quais tal se possa concluir, o que determina a nulidade por falta de fundamentação ou por omissão da determinação de diligências necessárias a concluir, ou não, pela necessidade de saúde a que a prática da natação responderia.
A sentença recorrida considerou não serem devidas as despesas com medicamentos ocorridas após a alteração de Setembro de 2016 por esta vincular o Requerido apenas ao pagamento de despesas extraordinárias, qualificativo que considerou inaplicável às peticionadas. Também neste particular incorre a sentença em nulidade por falta de fundamentação – inexistem elementos que retirem àquelas despesas carácter extraordinário – ou por omissão da determinação de diligências necessárias a concluir por essa sua qualidade.
Considerou a sentença que os descontos de €250,00 efectuados em cada um dos meses de Outubro de 2016 a Janeiro de 2017, ambos inclusive, se reportavam à pensão de cada um desses meses, quando a Recorrente alegou que os descontos eram sempre efectuados com um mês de atraso, do que resulta que, mesma na tese da sentença, sempre se encontraria em falta o pagamento de uma mensalidade.
Por fim, ainda quanto às pensões, não poderia ser efectuada a compensação para pagamento dos restantes valores em dívida, uma vez que consta do despacho de 18 de Janeiro de 2017 que relativamente às quantias descontadas em valor superior ao fixado em acordo de RERP deverá ser objecto de acordo entre os progenitores.
 O Ministério Público e o Recorrido alegaram defendendo o julgado.
 O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foi proferido despacho pela Relatora julgando inadmissível o recurso por a sucumbência ser inferior a metade da alçada do tribunal recorrido:
A Recorrente reclamou do despacho invocando a inconstitucionalidade da interpretação que, com base na sucumbência, veda o duplo grau de jurisdição em incidente de incumprimento de alimentos a menor.
Foi deferida a submissão à conferência e notificados a parte contrária e o Ministério Público, que nada disseram.
Corridos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

II) OBJECTO DO RECURSO

Considerando o teor da reclamação para submissão a conferência, cumpre in casu apreciar e decidir:
1) Da admissibilidade do recurso.
2) Da inconstitucionalidade da interpretação que conclua pela inadmissibilidade.

III) FUNDAMENTAÇÃO

1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos pertinentes são os seguintes:
A Recorrente impugna no recurso em apreciação a decisão judicial que concluiu pela absolvição do Recorrido quanto:
a) Ao pagamento das despesas relativas à prática da natação peticionadas no montante de € 287,00 (duzentos e oitenta e sete euros).
b) Às despesas com medicamentos ocorridas após a alteração de Setembro de 2016, peticionadas no montante de € 30,19 (trinta euros e dezanove cêntimos).
c) Às pensões em dívida quer porque efectuou compensação indevida quer porque imputou os descontos efectuados de modo não consentâneo com a realidade, sendo o montante global em causa a este respeito no valor máximo de € 1.000,00 (mil euros).
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. Da admissibilidade do recurso
2.1.1. O montante global da sucumbência, tendo em atenção os factos indicados, é, assim, no valor máximo de € 1.317,19 (mil trezentos e dezassete euros e dezanove cêntimos).
A alçada do tribunal recorrido é de € 5.000,00 - artigo 44.º, n.º 1, da Lei 62/3013 – tendo em atenção a data da instauração do incidente visto o disposto no n.º 2 da norma citada (como aliás o era já à data da instauração do processo principal – artigo 24.º, n.º 1, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, por o artigo 31.º, n.º 1, da Lei 52/2008, de 28 de Agosto, apenas ser aplicável às denominadas comarcas-piloto).
Em consequência, verifica-se a previsão do artigo 629.º, n.º 1, de a sucumbência ser inferior a metade da alçada do tribunal recorrido, que o mesmo é dizer, inferior a € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
O valor da sucumbência é desde 1985 critério complementar da admissibilidade do recurso, visando a regulação da recorribilidade em função do valor ou da sucumbência (…) compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciado por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais ou à dignificação e valorização da intervenção dos tribunais superiores (Cf. Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª edição, p.43).
2.1.2. Este regime legal é aplicável em sede de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, por se não encontrar excepcionado na norma do artigo 32.º da Lei 141/2015, de 8 de Setembro, antes da mesma norma constando remissão genérica para o regime dos recursos em matéria cível e, consequentemente, para o indicado artigo 629.º, nº. 1, do CPC.
É o seguinte o teor do citado artigo 32.º, na parte pertinente:
1 - Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.
(…)
3 - Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias. (nossos sublinhados).
Nesse sentido se pronunciaram já os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Janeiro de 2012 e de 24 de Setembro de 2015, proferidos, respectivamente, nos processos 2165/07.1TBPTM-K.E1 (RIBEIRO CARDOSO) e 1031/09.0TBPTM-B.E2 (RUI MACHADO E MOURA).
Diz-se no primeiro daqueles acórdãos que transcrevemos longamente por inteira adesão ao que nele se expõe:
Mas deverá atender-se apenas a este valor [o da acção], como defende o reclamante, ou deverá atender-se ao critério cumulativo da sucumbência como foi entendimento da decisão reclamada?
Defende o reclamante que está em causa o incumprimento das responsabilidades parentais e, por isso, o critério da sucumbência não pode funcionar.
Mas, com todo o respeito, não tem razão.
É certo que as responsabilidades parentais, envolvem um elenco complexo de deveres e direitos, uns sem tradução patrimonial e outros meramente patrimoniais ou, com uma vertente eminentemente patrimonial. Naqueles podemos adiantar como exemplo os deveres de guarda, de educação de visita, etc., e nestes o direito a alimentos e o correspondente dever de os prestar.
E se é certo, no que àqueles concerne, que o valor da sucumbência não pode funcionar como critério aferidor da admissibilidade do recurso uma vez que são insusceptíveis de tradução patrimonial e se traduzem em interesses imateriais, já quanto a estes tal critério terá que funcionar sobretudo quando em causa está exclusivamente essa vertente, ou seja, o montante dos alimentos e/ou o incumprimento da obrigação de os prestar no montante, na forma e no tempo devido.
Como se decidiu no ac. da RL de 4.11.1993, “o reconhecer não ter pago a pensão de alimentos ao menor, tal como ficara estipulado no acordo de regulação do poder paternal, não configura qualquer situação que se integre no domínio dos direitos indisponíveis, visto tratar-se de simples efeitos de natureza patrimonial” [1].
É certo que o montante de alimentos terá sido fixado em conjunto com as demais vertentes ou direitos/deveres não patrimoniais. Porém, o que aqui está em causa é saber se o ora reclamante pagou num determinado período a totalidade do montante fixado ou apenas uma parte desse valor. Por isso, apenas está em causa o valor que a requerente alegou não ter sido pago e dado como provado na decisão de que se pretende recorrer e não qualquer outro direito e vertente das responsabilidades parentais.
No que respeita à questão, já não na vertente da sucumbência, mas na do valor do incidente, que não se encontra em causa neste caso, veja-se o segundo acórdão citado e a jurisprudência nele enunciada, pois que as razões de decidir são similares às que o presente caso convoca.
Não se ignora que ambos os arestos foram tirados na vigência da legislação anterior, a do Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro. Porém, sem que um e outro regime possam considerar-se diversos quanto a este particular aspecto. Na Organização Tutelar de Menores, então ainda vigente, a análise conjugada dos artigos 159.º, 161.º e 185.º apenas excepcionava aspectos relacionados com o efeito dos recursos e, quanto aos agravos, com o tempo da sua subida, sendo no mais aplicável o regime geral do processo civil.
Ou seja, em nada divergem ambos os regimes normativos quanto à matéria que ao caso interessa[1].
2.1.3. A questão em causa nos autos de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, quando se cinge aos aspectos relacionados com o pagamento dos montantes fixados a título de alimentos, não se reveste de natureza extra-patrimonial, antes se reconduzindo a uma questão estritamente patrimonial (quando, como no caso, nada mais esteja em causa, como não está).
Verificam-se, assim, as razões de aplicação do regime de dupla qualificação da admissibilidade do recurso: valor e sucumbência.
Constitui condição de admissibilidade do recurso ordinário que é a apelação ser a sucumbência em valor superior a metade da alçada do tribunal de que se recorre – artigo 629.º, n.º 1, do CPC -, condição que não se verifica.
2.2. Da inconstitucionalidade da interpretação que conclua pela inadmissibilidade
2.2.1. A Recorrente discorda da decisão argumentando que nenhuma decisão relativa a incumprimento de prestação de alimentos conformará normalmente um valor superior a € 2.500,00, pelo que, seguindo os argumentos da decisão impugnada, estaria praticamente vedado o direito ao recurso em tais situações, exceptuados os casos em que o pedido fosse inflacionado para garantir a recorribilidade.
Por outro lado, invoca jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional no sentido de que a Constituição consagra o direito a um duplo grau de decisão nas decisões condenatórias (cremos, pelo contexto, que pretende referir as decisões condenatórias de natureza penal) e daqueles casos em que a lesão dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos é directamente imputável, em primeira linha, a uma actuação ou decisão dos tribunais.
E continua: a jurisprudência do Tribunal Constitucional sustenta que deve o art.º 629.º, n.º 3, dp CPC, ser objecto de uma interpretação conforme de modo a nele incluir todas as situações em que as decisões judiciais afectem de forma directa e imediata direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Certamente por lapso, na reclamação para a conferência, refere que a decisão presente se refere a alimentos a pagar a menor pelo Fundo de Garantia a Alimentos, o que não é o caso, sendo que a argumentação expendida não fica por tal prejudicada. Na verdade, é inteiramente perceptível que a Reclamante entende que a matéria em causa nos autos, por se referir a direito a alimentos é um direito fundamental consagrado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição, que nesta dimensão decorre do direito à vida estabelecido no artigo 24.º da Constituição, devendo ser considerado um direito de natureza análogo aos direitos, liberdades e garantias, para os efeitos do artigo 17.º da Constituição.
Assim, conclui, qualquer decisão relativa ao direito a alimentos, maxime determinativa do respectivo valor, constitui a causa primeira e directa da afectação daquele direito fundamental, pelo que, independentemente do valor fixado à causa e do valor da sucumbência, deve ser susceptível de reapreciação por instância judicial hierarquicamente superior.
2.2.2. A questão do duplo grau de jurisdição tem sido amplamente debatida na doutrina e na jurisprudência.
Desse debate dá conta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2016 proferido no processo 122702/13.5YIPRT.P1.S1 (Abrantes Geraldes) de que se transcreve trecho longo, por elucidativo[2]:
Atenta a natural escassez dos meios disponibilizados para administrar a Justiça, a necessidade da sua racionalização contende com a admissibilidade ilimitada de recursos que, aliás, não encontra sustentação no texto constitucional.
Por isso a jurisprudência constitucional vem expressando o entendimento de que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição.[5] Também tem sido assumido que tal direito não é necessariamente decorrente do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.[6]
Em suma, o direito ao recurso, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, não se apresenta com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas.[7]
(…) omissis
Sendo permitido afirmar que está vedado ao legislador suprimir em bloco a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade,[8] tal não determina, porém, que toda e qualquer restrição a um ou mais graus de jurisdição traduza violação de regras ou de princípios constitucionais.
Como refere Lopes do Rego, as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais”.[9]
Embora a este respeito não se identifique um critério formal delimitador dos poderes do legislador ordinário, pode concluir-se, com Ribeiro Mendes, que, dentro dos princípios enunciados, o legislador “poderá ampliar ou restringir os recursos civis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas”.[10]
O critério adoptado pelo legislador ordinário assenta essencialmente no valor do processo e da sucumbência, conexo com o valor da alçada da 1ª instância ou da Relação, consoante o recurso seja interposto para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.
É, pois, o valor da alçada o factor que é determinante para a recorribilidade, sendo relativamente a esse referencial que se poderá aferir se a norma que o fixa está ou não está afectada pela violação do princípio da proporcionalidade.
Do mesmo modo conclui a doutrina, aliás abundantemente citada no acórdão que transcrevemos.
A jurisprudência constitucional fixou a orientação segundo a qual a garantia de acesso aos tribunais não abrange a obrigatoriedade da previsão pelo legislador ordinário de um duplo grau de jurisdição para todas as decisões, mas apenas, em consonância com o princípio constitucional que domina o regime dos direitos fundamentais, para aquelas que respeitam a questões mais relevantes ou importantes (…)[3].
Também Amâncio Ferreira[4] aborda a questão referindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional como consagrando não poder o legislador ordinário, sob pena de retirar todo o conteúdo útil à previsão constitucional de tribunais de recurso (…) eliminar a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso.
Mas isto não significa que o legislador ordinário não possa estabelecer a inadmissibilidade de recurso quanto a certas decisões.
E, mais adiante[5], podemos concluir que o legislador ordinário tem liberdade para alterar o regime da recorribilidade das decisões e a existência de recursos, desde que não ponha em causa o sistema existente. O que ele não pode é restringir excessivamente o direito de recorrer em termos de se poder concluir que os recursos tenham sido efectivamente suprimidos, face aos limitadíssimos casos em que seriam admitidos.
José Alberto dos Reis[6], ensinando sobre a função do recurso de apelação, faz remontar a questão à Revolução Francesa que proclamou, entre outros princípios, o do duplo grau de jurisdição: para assegurar quanto possível a justiça da decisão, convém que, em regra, o pleito passe pelo exame sucessivo de dois tribunais de categoria diferente. Depois de julgada a causa por determinado tribunal importa que ela seja submetida, ainda, à consideração e apreciação de outro tribunal de categoria superior (…).
Ultrapassada a desconfiança dos revolucionários de setecentos quanto ao poder judicial, não é esse o regime seguido na generalidade dos sistemas da nossa família jurídica e não é seguramente o do nosso sistema.
2.2.3. A questão tem sido alvo de atenção constante do Tribunal Constitucional[7] (já o foi, aliás, da Comissão Constitucional), tendo vindo a ser consagrada expressamente pela reforma de 1997 no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), quanto à jurisdição penal.
Dispõe tal norma:
Artigo 32.º
(Garantias de processo criminal)
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
Pese embora, a jurisprudência constitucional vem lembrando que a exigência do duplo grau de jurisdição em matéria penal não se estende a todas as decisões proferidas num processo penal, mas tão somente abrange aquelas que envolvam restrição ou privação da liberdade ou de outros direitos fundamentais.
Por todos, no sentido que indicámos, o acórdão 101/2016, de 23 de fevereiro de 2016 (Maria de Fátima Mata-Mouros), no qual se refere, em citação livre dos seus diversos passos o mais pertinente à questão decidenda:
É muito vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o direito ao recurso em processo penal, o qual constitui uma das mais relevantes garantias de defesa expressamente consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra da garantia do recurso quanto a todas as decisões proferidas em processo penal, mas apenas no que respeita às decisões penais condenatórias e às decisões penais de privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
o núcleo essencial desta garantia constitucional coincide com o direito de recorrer de decisões condenatórias e de atos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido
o "direito de recurso", como imperativo constitucional, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, deve entender-se no quadro das "garantias de defesa" - só e quando estas garantias o exijam.
Ou seja, o Tribunal Constitucional, mesmo em sede penal, considera que a norma constitucional expressa deve ser reconduzida ao núcleo essencial das garantias de defesa de direitos fundamentais.
2.2.4. Quanto a matérias de outra natureza continua a inexistir norma constitucional que consagre a garantia do duplo grau de jurisdição.
Saber se pode extrair-se do conjunto do sistema essa consagração é a questão que nos ocupa.
Percorrendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional[8], pode concluir-se, cremos, com o devido respeito por opinião contrária, existirem duas linhas de rumo: a não consagração expressa do duplo grau de jurisdição, em matéria não penal, não obsta a que, quanto a decisões judiciais que afectem directamente os direitos fundamentais essa deva ser considerada uma garantia constitucional; a garantia do duplo grau de jurisdição em todas as matérias não é exigência constitucional, nomeadamente em decorrência do direito de acesso ao direito e aos tribunais.
O debate centra o seu início (pese embora as referências anteriores em sede de Comissão Constitucional), no voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira no acórdão 65/88, seguido no voto de vencido do Conselheiro António Vitorino no acórdão 202/90.
Pela sua relevância, nomeadamente na influência exercida na jurisprudência ulterior, transcrevemos o voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira no acórdão 65/88:
Votei a conclusão do acórdão, mas não acompanho em tudo a respectiva fundamentação. Com efeito, penso que há-de considerar-se constitucionalmente garantido — ao menos por decurso do princípio do Estado de direito democrático — o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, o que abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria penal — como se reconhece no acórdão — mas também todas as decisões judiciais que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias» (artigos 25° e seguintes da CRP).
É neste entendimento que continuo a sustentar o que noutro lugar subscrevi (Constituição da República Portuguesa Anotada, de que sou co-autor, juntamente com J. J. Gomes Canotilho), no sentido de que «o direito de recurso para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes garantias constitucionais», naturalmente quando se trata da «defesa de direitos fundamentais» (ob. cit., 2a ed., vol. 1°, p. 181, nota m ao artigo 20°).
De resto, não é por acaso que em alguns ordenamentos constitucionais estrangeiros existem específicos recursos de defesa de direitos fundamentais («recurso de amparo», Verfassungsbeschwerde), inclusive contra decisões judiciais, recurso normalmente destinado aos tribunais constitucionais, ou com funções de jurisdição constitucional. Entre nós, não existindo tal figura (cf. ob. cit., ibid.), penso que não pode deixar de considerar-se necessária ao menos a garantia de um grau de recurso (e, portanto, de um «duplo grau de jurisdição») como componente inerente ao regime constitucional das garantias dos direitos fundamentais constitucionais.
Recorde-se, de resto, que uma tal ideia de reapreciação jurisdicional das decisões (inclusive as judiciais) que afectem direitos fundamentais encontra eco mesmo no plano de direito internacional, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, através da queixa dos particulares à Comissão Europeia dos Direitos do Homem, com eventual submissão de tal queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
 Já após este citado acórdão, o acórdão 163/90, de 23 de Maio de 1990 (Messias Bento), aludindo a orientação da Comissão Constitucional enunciava deste modo a questão:
Quiseram, então, os RR. recorrer da sentença para o Tribunal da Relação do Porto, para o que invocaram a inconstitucionalidade do artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na parte em que não admite «recurso ordinário nas causas de valor não superior à alçada do tribunal de que se recorre».
O juiz, porém, não admitiu o recurso, por entender que a norma em causa, no segmento apontado, não está ferida de inconstitucionalidade.
15 — A norma que assim limita o direito de recurso será constitucionalmente legítima?
O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição prescreve:
1 — A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Este direito de acesso aos tribunais «para defesa dos seus direitos e interesses legítimos» é, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das regras da imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento do contraditório.
Este direito há-de exercer-se em condições de plena igualdade. Designadamente, a justiça não pode ser «denegada por insuficiência de meios económicos» e, no processo, as partes hão-de ser colocadas em perfeita paridade de condições no tocante à defesa dos respectivos direitos e interesses: cada uma delas — como diz Manuel de Andrade — há-de poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras» (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, p. 364). 16 — Mas terá este acesso aos tribunais que ser assegurado sempre em mais de um grau de jurisdição? Terá que haver, pelo menos, um duplo grau de jurisdição, e, assim, no mínimo, direito a um recurso?
É óbvio que, achando-se constitucionalmente garantido o direito de acesso aos tribunais e prevendo a Constituição a existência de tribunais de recurso [cfr. artigos 211.º, n.º 1, alínea a), e 212.º, n.os 1, 3, 4 e 5] daí há-de decorrer — como se acentuou no Acórdão deste Tribunal n.º 178/88 (Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de 1988) — «que o legislador não é inteiramente livre da definição de quais sejam as decisões recorríveis […]». Embora disponha de «uma larga margem de liberdade no tocante à definição das decisões susceptíveis de ser impugnadas por via de recurso […]», não pode ele — como este Tribunal também assinalou no seu Acórdão n.º 31/87 (Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1987) — «eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso», nem «inviabilizar na prática» essa faculdade.
A Constituição não impõe, porém — ainda que, só para o processo penal — que o legislador consagre a faculdade de recorrer de todo e qualquer acto do juiz.
17 — Se, no processo penal, onde está em jogo a liberdade e a honra das pessoas, não existe sempre a garantia de um duplo grau de jurisdição (não existe ao menos em termos de cobrir todos os actos judiciais do processo), muito menos essa garantia é imposta pela Constituição para valer no domínio do processo civil, onde, em geral, se discutem simples interesses materiais (económicos).
No processo civil, o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição. E, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem ele que abrir a todos também essas várias vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma, máxime para os economicamente desfavorecidos.
O princípio jurisdicional para que aponta o artigo 20.º, n.º 2 (hoje n.º 1), da Constituição [...] tem pois um alcance muito breve: imperativamente, apenas garante um patamar de jurisdição (cfr. Acórdão n.º 65/88, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Agosto de 1988).
A Comissão Constitucional [...] não entendeu, pois, que o artigo 20.º, n.º 1 […], ao assegurar a todos o acesso aos tribunais, estivesse a impor que a legislação ordinária, em qualquer hipótese, houvesse de garantir sempre aos interessados, para defesa dos seus direitos, o acesso a sucessivos graus de jurisdição. Apenas considerou que ali, onde a legislação ordinária tivesse já aberto a via de recurso para uma segunda ou mesmo terceira instância, o n.º 1 do artigo 20.º da CRP (primitiva redacção) postularia então que tal via, ao nível dos vários graus de jurisdição admitidos, fosse a todos consentida sem quaisquer discriminações de ordem económica [cfr., no mesmo sentido, Acórdão deste Tribunal n.º 359/86 (Diário da República, II Série, de 11 de Abril de 1987)]. Na doutrina, Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, IV, Coimbra, 1988, p. 258), sobre o direito de acesso aos tribunais, escreve:
[...] não parece que compreenda o direito a recurso para uma instância superior ou a um duplo ou triplo grau de jurisdição. A Constituição pressupõe-no, mas não o declara, salvo no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade ou da legalidade de normas jurídicas […]. O que, em nenhum caso, pode haver é qualquer obstáculo de natureza económica, insuperável pelos mecanismos de apoio judiciário, que inviabilize o direito de recorrer quando admitido.
Posição mantida no acórdão 202/90, de 19 de Junho de 1990 (Vítor Nunes de Almeida) que teve voto de vencido do Conselheiro António Vitorino, como já mencionado, no sentido do voto do Conselheiro Vital Moreira:
Consagra-se nesta disposição (20/2 CRP) a garantia da via judiciária ou da tutela jurisdicional, que se desdobra em dois aspectos essenciais: por um lado, o legislador ordinário terá de assegurar a todos os cidadãos, sem qualquer discriminação de fundo económico ou outro, o acesso a um grau de jurisdição, considerado como tutela jurisdicional mínima; e, por outro lado, garante-se que, sempre que o legislador ordinário estabelecer vários graus de jurisdição, deverá igualmente garantir, sem discriminações, o acesso a todos esses graus.
Tal como sucede na Constituição italiana de 1947, a nova Constituição [portuguesa] não se refere qua tale à garantia do duplo grau de jurisdição ou à previsão sequer da existência de recursos em processo civil ou penal. Nem tão-pouco o recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, da Constituição, permite integrar uma eventual lacuna sobre os contornos da garantia do duplo grau de jurisdição, que aquela Declaração não contempla tal garantia (cfr. artigos 8.º e 10.º). A garantia da via judiciária traduzida no artigo 20.º, n.º 2, da CRP consiste no direito de recorrer a um tribunal para que o mesmo se pronuncie sobre a questão jurídica relevante que lhe seja colocada, não resultando da referida norma o direito a dois graus de jurisdiçãoAssim, o artigo 20.º, n.º 2, da CRP (versão de 1982) assegura a todos o acesso aos tribunais para defender os seus direitos, em todas as instâncias ou graus de jurisdição que o legislador ordinário reconhecer, até se alcançar uma decisão definitiva.
Mas, não impõe que o legislador ordinário, em todos os casos, institua uma instância de recurso generalizada para que toda e qualquer decisão possa vir a ser reapreciada jurisdicionalmente. A circunstância de constitucionalmente se impor a estruturação, em três níveis, de certa ordem de tribunais (princípio afirmado, em primeira linha, para os tribunais judiciais e porventura aplicável, por analogia, à ordem dos tribunais administrativos) não envolve logicamente que, em qualquer hipótese, sempre haja de haver recurso até ao tribunal colocado no topo da linha hierárquica desta ou daquela ordem de tribunais. [...] inclino-me para supor que não há qualquer imposição constitucional absoluta do duplo grau de jurisdição, tendo o legislador ordinário a liberdade de alterar pontualmente as regras sobre a recorribilidade das decisões e a existência dos recursos, desde que não afecte substancialmente o sistema existente à data da entrada em vigor. O legislador ordinário não poderá, porém, ir até ao ponto de limitar de tal modo o direito de recorrer, que, na prática, se tivesse de concluir que os recursos tinham sido suprimidos.
Tem, pois, de concluir-se que a garantia do duplo grau de recurso não goza de uma protecção constitucional generalizada, não obtendo credencial constitucional nem junto do artigo 20.º, n.º 2, nem dos artigos 212.º, n.º 2, e 215.º, todos da Constituição da República Portuguesa tal não obsta a que o intérprete da Lei Fundamental e o próprio julgador da constitucionalidade dos actos normativos, máxime em sede de fiscalização concreta, formulem um entendimento (deduzido quer do princípio do Estado de direito democrático, quer da forma ampla com que o artigo 20.º da CRP consagra o direito de acesso ao direito e aos tribunais) que assegure plenamente tal tutela judicial efectiva para garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Sem uma tal meta interpretativa não se poderá deixar de concluir que, no plano das garantias jurisdicionais, a tutela dos direitos, liberdades e garantias ficaria bem aquém do especial estatuto que o artigo 18.º da Constituição expressamente lhes confere em termos de força jurídica.
Acresce que é sabido que, em certos casos (v. g., de certos direitos de participação política), a efectivação da tutela judicial dos direitos fundamentais, pelos condicionalismos processuais legalmente impostos, não é, não pode ser cabalmente garantida sem a possibilidade de suscitar com oportunidade a intervenção e a pronúncia de uma instância judicial em tempo útil, em termos que tornem efectivamente operativa a tutela jurisdicional desses direitos e, por vezes mesmo, sem que a lei possibilite a reapreciação judicial das correspondentes decisões.
Também o acórdão 328/2012, de 27 de junho de 2012 (Vítor Gomes) referia-se a esta orientação:
7. O Tribunal Constitucional tem uma vasta e uniforme jurisprudência no sentido de que o legislador ordinário goza de ampla margem de conformação do direito ao recurso em processo civil, domínio em que a Constituição não consagra o direito a um duplo grau de jurisdição (salvo, segundo algumas opiniões, em matéria de direitos, liberdades e garantias; cf., por todos, Acórdão n.º 44/2008, disponível, como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt). Todavia, com um primeiro limite decorrente da própria previsão constitucional de tribunais superiores: não é constitucionalmente tolerável que o legislador ordinário elimine pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso.
Mais especificamente, no que toca à irrecorribilidade em função da relação entre o valor da acção e a alçada dos tribunais, o Tribunal sempre entendeu que desse critério não resulta violação da Constituição, maxime, do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição). Assim, seguindo essa abundante jurisprudência já no âmbito do regime jurídico do processo de insolvência, decidiu-se no Acórdão n.º 348/2008 não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 1, do artigo 678.º, do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de que quando “o valor da acção de insolvência é inferior à alçada dos tribunais de 1.ª instância, não é admissível recurso ordinário da sentença” Porém, além daquela genérica limitação à ampla discricionariedade do legislador na conformação do regime dos recursos em processo civil, designadamente quanto às próprias condições de admissibilidade, um outro limite (um limite interno) conhece essa liberdade de conformação, que decorre desde logo do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da CRP) e, mais especificamente, do princípio da igualdade. Com efeito, como se recordou no Acórdão n.º 360/05, no processo civil, o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição. Mas, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem ele que abrir a todos também a essas vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 163/90, de 23 de maio de 1990, Boletim do Ministério da Justiça n.º 397 – junho – 1990, pág. 77). Aquela margem de discricionariedade (a ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos que deve ser reconhecida ao legislador ordinário em processo civil) tem, porém, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 202/99, de 6 de abril de 1999, Boletim do Ministério da Justiça n.º 486 - maio de 1999, pág. 49). É a esta luz – da não consagração constitucional do direito a 2.º grau de jurisdição neste domínio, por um lado, e da proibição do arbítrio no estabelecimento do critério de recorribilidade, quando o legislador opte por abrir a possibilidade de recurso, por outro – que importa analisar o critério normativo adotado para rejeitar o recurso da decisão relativa à exoneração do passivo restante.
O acórdão 561/2014, de 15 de julho de 2014 (Cura Mariano), mantém a orientação de que o legislador ordinário não está vinculado a consagrar um duplo grau de jurisdição, no que poderia denominar-se um direito constitucional ao recurso, embora não possa anular completamente o instituto dos recursos. Invoca, nomeadamente, questões relativas à organização dos tribunais e ao acesso ao direito considerado no sentido amplo de o providenciar a todos os cidadãos, ao que a multiplicidade de recursos pode obstar. Pode ler-se neste aresto:
É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema judiciário, decorrente da chegada de todas ou de uma larga maioria das ações aos diversos "patamares" de recurso.
Na verdade, no plano constitucional processual civil não se encontra expressamente consagrada qualquer norma sobre recursos. Porém, são vários os preceitos constitucionais dos quais se pode retirar uma consagração implícita do direito ao recurso, nomeadamente aqueles que se referem ao Supremo Tribunal de Justiça e aos Tribunais judiciais de primeira e segunda instância (artigos 209.º, n.º 1, a), e 210.º, n.º 1, 3, 4 e 5). Desta previsão constitucional de tribunais de diferente hierarquia resulta que o legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, na medida em que tal eliminação global dos recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos tribunais superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional.
E na definição do regime de recursos não deixa o legislador ordinário de estar limitado pelas diretrizes do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, no qual se refletirão os princípios estruturantes de um Estado de direito democrático, como sejam os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança.
Para além destas limitações, o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso em processo civil e laboral.
Assim, como já se referiu em anteriores arestos deste Tribunal (v.g. Acórdãos n.º 390/2004, 659/11, 194/12 e 399/13, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), não é necessário o recurso para um tribunal superior nos casos em que um tribunal já de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre questões que possam influir na decisão da causa ou naquelas situações em que ao proferir a decisão, incorra na violação de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da nulidade.
É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Porém, o Tribunal Constitucional vem enunciando amiudadamente, justamente na senda do mencionado voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira, ser possível configurar situações em que a defesa de direitos fundamentais implique a admissão de recurso fora das circunstâncias de alçada e sucumbência previstas no Código de Processo Civil.
Pode a respeito ver-se o acórdão 638/98, de 4 de Novembro de 1998 (Luís Nunes de Almeida) mencionando expressamente essa possibilidade em sede de direitos, liberdades e garantias, atento o regime específico concedido por aquele que é actualmente o artigo 18.º, da CRP:
A primeira questão a resolver é, então, a de determinar se a Constituição consagra, e em que extensão, tal princípio do duplo grau de jurisdição; só em caso afirmativo é que haverá, então, que apurar se a norma constante do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, tal como aplicada na decisão recorrida, importa ou não violação do mesmo.
7. O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º.
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, pág. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
(…)
9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre, necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do processo penal).
E, ao discorrer sobre a perspectiva de quem defende que em matéria de direitos, liberdades e garantias, sempre se imporia o asseguramento de um duplo grau de jurisdição, disse-se nesse mesmo aresto:-
É bem verdade que ao direito de propriedade se há-de reconhecer, numa certa dimensão, uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que lhe há-de ser aplicável, nos termos do artigo 17º da CRP, o regime para aqueles previsto, apesar de se não encontrar enunciado no título II da Parte I.
Só que essa dimensão, a merecer tratamento idêntico ao que está definido para os direitos, liberdades e garantias, é a que corresponde ao direito de ninguém ser privado da sua propriedade, designadamente garantindo-se que a expropriação só poderá ocorrer com base na lei e mediante o pagamento de uma justa indemnização (nº 2 do artigo 62º).
Ora, desde logo, a matéria em causa, a que se reporta a norma questionada, refere-se a um aspecto particular, o da alteração do valor das rendas, insusceptível de afectar esse núcleo essencial do direito de propriedade.
É esse raciocínio que, em geral, aqui se prossegue. Nem está verdadeiramente em causa o direito de propriedade, na dimensão em que é análogo aos direitos, liberdades e garantias, nem a Lei Fundamental impõe, nessa matéria, a exigência de um duplo grau de jurisdição.
Devendo mencionar-se a respeito o voto de vencido do Conselheiro Cardoso da Costa já na altura considerando inconstitucional a norma em questão, embora quanto a situação diversa da que tratamos nos autos[9] [10].
No sentido da inexistência de um direito constitucional ao recurso pronunciam-se Jorge Miranda e Rui Medeiros[11]:   
XII - A plenitude do acesso à jurisdição e os princípios da juridicidade e da igualdade postulam um sistema que assegure a protecção dos interessados contra os próprios actos jurisdicionais, incluindo um direito de recurso.
i) É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema judiciário, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos “patamares” de recurso (…).
ii) O Tribunal Constitucional reconhece, no entanto, que – por força dos artigos 27.º, 28.º, e 32.º, n.º 1 – a exigência de um duplo grau de jurisdicção (…) está constitucionalmente consagrada no âmbito do processo penal, não relativamente a todas as decisões proferidas, mas em relação às decisões condenatórias do arguido (…) bem como às decisões respeitantes à situação do arguido em face da privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais (…).
iii) Conclusão análoga – sustentada, em termos ainda assim não inteiramente coincidentes, mais por parte da doutrina do que pela jurisprudência dominante (…) deve admitir-se relativamente às decisões jurisdicionais que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias (ou, pelo menos, em face da preocupação constitucional, subjacente ao artigo 20.º, n.º 5, em assegurar a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais, em relação às decisões jurisdicionais que restrinjam tais direitos). A conclusão baseia-se na analogia com a situação consagrada em matéria de restrições à liberdade e é coerente com o princípio do carácter restritivo das restrições aos direitos, liberdades e garantias, que se extrai do artigo 18.º, n.º 2 e 3.
(…)
vi) Em contrapartida, fora desses domínios específicos, o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso (…).
O acórdão 280/2015, de 20 de maio de 2015 (Carlos Fernandes Cadilha) enuncia o percurso da questão no Tribunal Constitucional:
Direito ao recurso no processo civil
4. Contrariamente ao que sucede no processo criminal, domínio em que a Constituição, desde a revisão constitucional de 1997, consagra expressamente, como garantia de defesa do arguido, o direito ao recurso ou a um duplo grau de jurisdição (artigo 32.º, n.º 1) – direito que já antes vinha sendo reconhecido pela jurisprudência constitucional em relação à decisão final condenatória e todos os atos judiciais que tenham por efeito a privação ou restrição da liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido -, não existe na Lei Fundamental qualquer previsão expressa atributiva do correspondente direito às partes em processo civil.
Com base nesse dado jurídico-constitucional, tem o Tribunal Constitucional concluído, em jurisprudência consolidada, pela inexistência, em processo civil (e, bem assim, em processo laboral e administrativo) de um direito geral a um duplo grau de jurisdição, considerando que «o direito à tutela jurisdicional não é (…) imperativamente referenciado a sucessivos graus de jurisdição. Ali se assegura apenas em termos absolutos, e num campo de estrita horizontalidade, o acesso aos tribunais para obter a decisão definitiva de um litígio» (Acórdão n.º 65/88) ou o «direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respetivos pontos de vista (…)»(Acórdão n.º 638/98).
E embora se sustente que o legislador não pode, atenta a imposição constitucional de uma hierarquia de tribunais judiciais, eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, nem comprometer a sua viabilidade prática, tem-se-lhe reconhecido uma ampla margem de liberdade ou discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos em processo civil, embora sujeita às limitações constitucionais impostas pelo princípio da igualdade, não podendo o legislador, em caso de «abertura da via judiciária sucessiva», admiti-la em relação a uns e, sem fundamento material bastante, recusá-la em relação a outros (cfr., sobre esta temática, Lopes do Rego, «O direito de acesso aos tribunais na jurisprudência recente do Tribunal Constitucional», em Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, págs. 53 e seguintes; reconhecendo uma tal ampla margem de conformação no regime jurídico de recurso do processo de insolvência, assente na relação do valor da ação com o da alçada do tribunal, cfr. Acórdão n.º 348/2008, que não julgou inconstitucional a norma extraída do n.º 1 do artigo 678.º do CPC, quando interpretada no sentido de que «quando o valor da ação de insolvência é inferior à alçada dos tribunais de 1.ª instância, não é admissível recurso ordinário da sentença).
Mas há um aspeto do problema jurídico-constitucional subjacente a esta temática que não pode ser ignorado na ponderação do caso.
Sem colocar em causa a validade abstrata dessas asserções, afigura-se constitucionalmente exigível confrontá-las com as especificidades do caso concreto, ou da hipótese normativa em apreciação, centrando a análise, não na natureza do processo, mas no impacto ou no tipo de efeitos que se produzem na esfera jurídica da pessoa visada, por efeito da decisão judicial a que se aplica o concreto regime de recurso em avaliação constitucional.
É que, em relação às decisões judiciais que afetem direitos fundamentais, designadamente direitos, liberdades e garantias, o recurso pode apresentar-se como garantia imprescindível destes direitos, mesmo fora do âmbito penal (cfr. neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra, pág. 418). Por outro lado, a questão da imposição constitucional da recorribilidade das decisões judiciais que afetem direitos fundamentais foi já aflorada, em tese, no seio da jurisprudência do Tribunal Constitucional, em especial, nos Acórdãos n.ºs 40/2008 e 197/2009, e, mais recentemente, no Acórdão n.º 69/2014.
Ensaiando novas possibilidades de solução do problema jurídico-constitucional equacionado nas transcritas declarações de voto, o citado Acórdão n.º 40/2008 adianta um critério que se afigura especialmente pertinente no presente recurso. Sustenta-se que o direito à impugnação judicial há de ser reconhecido em todos os casos em que a afetação do direito fundamental do cidadão teve origem direta nos próprios atos dos tribunais, sejam eles decisões judiciais ou atuações materiais. E explica-se porquê: «sendo constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer atos lesivos dos direitos dos cidadãos (máxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses atos provenientes de particulares ou órgãos do Estado», uma tal garantia constitucional não pode deixar de operar «quando uma atuação de um tribunal, por si mesma, afeta, de forma direta, um direito fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal».

2.2.5. Com o citado acórdão 280/2015, que recolhe as posições do Tribunal Constitucional desde o voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira, cremos ser de concluir que em relação às decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, designadamente direitos, liberdades e garantias, o recurso pode apresentar-se como garantia imprescindível destes direitos, mesmo fora do âmbito penal.
Em suma, pode configurar-se uma situação (que parece ainda não se ter configurado em concreto ao Tribunal Constitucional) em que a violação do direito fundamental ocorra directamente por via de decisão judicial irrecorrível nos termos ordinários determinados pela aplicação da norma do artigo 629.º do CPC. Em tal caso, a aplicação do regime específico da força jurídica dos direitos liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) poderá impor a admissão de recurso, fora das regras da alçada e da sucumbência.
Cremos ser esse aliás o sentido da referência ao recurso ao instituto do amparo[12] constante do voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira.
Ou seja, constituindo garantia imprescindível de defesa contra decisão judicial que afecte directamente direitos fundamentais, deve entender-se admissível outro grau de jurisdição[13]. Mas importa saber como devem interpretar-se os dois requisitos cumulativos, a saber, (i) a natureza dos direitos em causa, ou seja, o que deve entender-se para o caso por direitos fundamentais, e (ii) a afectação directa desses direitos pela decisão.
2.2.6. Sem postergar a dificuldade da delimitação do que deva entender-se por direitos fundamentais, um primeiro critério normativo assenta na consagração constitucional específica assumida no artigo 18.º, da CRP, que os refere aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias enquanto o artigo 17.º estatui que o regime respectivo se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga. Tendo-se presente o âmbito alargado indicado no artigo 16.º da CRP que constitui uma autêntica cláusula aberta de direitos fundamentais[14].
Jorge Reis Novais[15], atendendo à materialidade do conteúdo dos direitos no contexto da protecção acrescida a que alude a norma constitucional citada, refere, que o princípio da dignidade humana acaba, assim, por constituir o fundamento material da concepção dos direitos como trunfos[16], porque é dessa igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um conformar autonomamente a sua existência. Ou, mais adiante, a respeito de teses em confronto, em nosso entender, é ainda com base naquela associação fundamental da teoria dos direitos como trunfos à dignidade da pessoa humana que podemos encontrar a resposta [referindo-se à antinomia valor reforçado dos direitos fundamentais e decisão democrática da maioria].
Não se oferecerá dúvida em integrar como direitos fundamentais pelo menos os do título II, capítulo I, da CRP. A Recorrente invoca como violado o direito a alimentos e, em consequência deste, o direito à vida e ao desenvolvimento da personalidade.
Mesmo concedendo uma relação directa entre o direito a alimentos e o direito à vida, o que está em causa neste processo e por isso na decisão impugnada não é o direito a alimentos que foi já apreciado na sua concretização no contexto da criança.
Aliás, a própria Recorrente refere que deve considerar-se como referente a direitos fundamentais qualquer decisão determinativa do direito a alimentos, máxime do respectivo montante.
Ora, num estrito incidente de incumprimento das prestações patrimoniais estabelecidas, não está em causa a determinação do direito a alimentos, sequer quanto ao seu montante, mas apenas a avaliação do cumprimento da obrigação previamente estabelecida.
O que está no caso em causa é averiguar se as violações ao estabelecido quanto a alimentos, que a Recorrente imputa ao Recorrido, se verificam e, verificando-se, em que medida assim acontece. Sob pena de desvalorização do que deve valorizar-se – os direitos fundamentais – não pode considerar-se que estes se encontram envolvidos na questão de saber se o pagamento da despesa com a natação está ou não incluído no determinado quanto a alimentos a prestar pelo Pai. Ou que a averiguação sobre os montantes que em concreto se encontram em dívida e sua medida seja uma questão de direitos fundamentais com o peso e sentido a que acima se aludiu.
Logo por esse primeiro motivo improcederia a excepcionalidade invocada quanto à admissibilidade do recurso.
2.2.7. Mas, admita-se que nos encontrávamos em sede de direitos fundamentais. Teria sido a decisão recorrida a violá-los?
É que não podemos esquecer o segundo requisito da excepcional admissão de recurso que aproxima do tradicional amparo: a violação decorrer directamente da decisão judicial[17].
Tenha-se presente que a fiscalização da constitucionalidade atribuída ao Tribunal Constitucional Português, é uma fiscalização de normas e não de decisões. Nesse sentido, refere Jorge Reis Novais[18]:
(…) no nosso caso o Tribunal Constitucional só está habilitado a proteger os direitos fundamentais dos cidadãos contra intervenções normativas, não contra a acção dos poderes constituídos que se desenvolva por via não normativa. Sem prejuízo da jurisprudência do Tribunal Constitucional, continua o mesmo Autor, alargar esse âmbito de tal modo que não se limita a fiscalizar a constitucionalidade das normas ordinárias quando consideradas objectivamente e em abstracto na sua relação com a norma constitucional, mas arroga-se a competência para fiscalizar a constitucionalidade das normas na concreta interpretação que delas supostamente fez o juiz comum[19].
No caso, o que se invoca não é que a decisão recorrida seja ela própria violadora de direitos fundamentais. O que a Recorrente entende é que a decisão recorrida se insere num processo em que estão em causa direitos fundamentais, ficando sujeita à admissibilidade de recurso por essa razão.
Prescindindo das situações em que a situação viole outros princípios como o da igualdade ou da confiança, situação que não se verifica in casu, a jurisprudência do Tribunal Constitucional amplamente exposta, apenas considera a exigência de duplo grau (fora das situações de recurso não enquadradas no artigo 629.º do CPC), quando a afectação de direitos fundamentais decorre directamente da própria decisão.
Ora, não é essa a situação dos autos. Eventual afectação de direitos fundamentais, considerada apenas em sede argumentativa, não decorreria da decisão, mas de a mesma decidir no sentido propugnado pelo alegado infractor desses direitos.
Nem se argumente com a norma do artigo 18.º na parte em que se refere à vinculação de entidades privadas com possíveis efeitos reflexos na decisão que alegadamente não atenderia a essa vinculação. Por um lado, porque não se verifica o requisito de afectação directa, por outro, porque não é sentido admissível para a vinculação de entidades privadas o da vinculação directa em termos similares aos dos órgãos do poder público. Por outro ainda, porque o dissêndio não é sobre o direito fundamental, mas sobre a integração de determinadas quantias entre aquelas consideradas na decisão que fixou a obrigação de alimentos.
Veja-se o mesmo Autor[20] quando refere que esta questão convoca a de saber qual o enquadramento dogmático mais adequado para a resolução dos conflitos jurídicos entre particulares que envolvem o acesso a bens jusfundamentalmente protegidos (…) qual o tipo e natureza das garantias jurídicas de que os particulares aí devem dispor para se defenderem de ameaças ou lesões de outros particulares.
Pese embora, qualquer que seja a posição assumida, qualquer das teses em confronto não prescinde da mediação de apreciação jurisdicional, remetendo para o carácter mediato da alegada ofensa efectuada pela decisão judicial.  
Com o que se conclui que não se encontra verificado nenhum dos requisitos que poderiam autorizar o afastamento do regime do artigo 629.º, mesmo admitindo as situações consideradas pelo Tribunal Constitucional como de exigência constitucional de duplo grau de jurisdição.
Assim, deve ser mantida a decisão da Relatora e rejeitado o recurso por inadmissível – artigo 655.º, n.º 1, do CPC.

VI) DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em conferência em indeferir a reclamação apresentada, confirmando a decisão singular, e em rejeitar o recurso por inadmissibilidade, em razão da sucumbência.
Custas pelo Reclamante.
*
Lisboa, 10 de Outubro de 2019

Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves

[1] Cf. Tomé Ramião, in Organização Tutelar de Menores anotada e comentada, Quid júris, 3,ª edição, em anotação à normas citadas quanto ao regime aplicável que não quanto à matéria que centralmente nos ocupa.
[2] Embora esteja em causa o acesso ao STJ, as razões de decidir são idênticas.
[3] Cf. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa 1997,  p. 377-378.
[4] Cf. in Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.ª edição, Almedina, 2002, p. 69.
[5] Idem, p. 70.
[6] In Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra Editora, 1984, p. 375.
[7] A jurisprudência do Tribunal Constitucional que é citada foi consultada no respectivo site, tendo ainda em atenção o DRE de publicação.
[8] Referindo, por ser de justiça, o recurso a pesquisa do Ex.mo Juiz de Direito Nuno de Lemos Jorge quanto a alguns items.
[9] Tratava-se de saber a do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, na redacção do Decreto Regulamentar nº 1/86, na parte em que excluía absolutamente o direito ao recurso, independentemente do valor da causa e da natureza (de conteúdo puramente jurídico) da controvérsia entre as partes, para discussão da questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária.
[10] Em recurso do acórdão 695/98 por contradição com o 638/98, o Tribunal Constitucional fixou jurisprudência no sentido da não inconstitucionalidade, quanto à norma em causa.
[11] In Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, 2017, p. 200.
[12] Sobre o amparo e o Tribunal Constitucional cf. José de Melo Alexandrino in Sim ou não ao recurso de amparo?, Julgar n.º 11, 2010, p. 41 e ss, ou Catarina Santos Botelho in Quod vadis doutrina da margem nacional de apreciação in Estudos em Homenagem ao Professor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Direito e Justiça, Universidade Católica Portuguesa, 2011.
[13] Que poderá justificar recurso para o STJ quando a decisão em causa tenha sido proferida por um Tribunal de Relação.
[14] Cf. Joaquim de Sousa Ribeiro in Encontros e Desencontros entre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a jurisprudência nacional, RLJ, ano 148, Jan-Fev 2019, p. 149.
[15] In Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, AAFDL, 2007, p.  53.
[16] Seguindo o enunciado de Dworking, apud Taking rights seriously, London, 1977 (nota 44 a p. 43 da obra citada de Reis Novais.
[17] Assim na providência de habeas corpus que tem na sua raiz as considerações do amparo.
[18] In Sistema Português de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade, AAFDL, 2007, p.  88.
[19] Idem, p. 132.
[20] In Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares: do dever de protecção à proibição do défice, Almedina, 2018, p. 181.