Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
129/10.7TBFUN.L1-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O que está em causa neste processo é a transmissão do arrendamento habitacional, a favor da filha, por morte daquela a quem o mesmo já tinha sido transmitido (cônjuge do primitivo arrendatário).
II - O RAU (art.85º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo para quem houvesse sido transmitido o direito ao arrendamento, para os descendentes que com ele convivessem há mais de 1 ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.
III - O NRAU (art.57º) alterou tal regime, já que, passou a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%.
IV - Mas para os contratos que lhe são posteriores, o novo regime do C.Civil (art.1106º) liberalizou a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário e fê-lo deliberadamente, certamente por ter tido em consideração que nestes novos contratos o prolongamento da relação contratual já não pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário.
V - O que bem se compreende, pois que, tendo findado o sistema de renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, deixaram de se justificar as limitações que antes eram impostas à transmissão do arrendamento.
VI - Mas como na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto for esse a vontade do arrendatário, considerou-se justificado diminuir, em algumas circunstâncias, a possibilidade de transmissão do arrendamento.
VII - A norma contida no art.57º, nº1, al.d), do NRAU, quando interpretada no sentido referido na sentença recorrida, não viola o disposto nos arts.1º, 13º, 18º e 65º, da CRP.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.
No 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial do Funchal, A…, na qualidade de cabeça de casal dos bens deixados por óbito de seus pais, B… e C…, intentou acção sumária contra D… e marido E…, alegando que, por escritura pública celebrada no dia 29/9/1969, o pai do autor deu de arrendamento a F… o prédio urbano sito à Rua do … nº2…, da cidade do Funchal, destinando-se o rés-do-chão a comércio e o 1º andar a habitação.
Mais alega que o referido F… e mulher viveram no 1º andar durante muitos anos, mas que, no dia 9/11/1979, aquele faleceu, tendo o arrendamento passado para a esposa G…, que, entretanto, também veio a falecer, no dia 26/9/2009.
Alega, ainda, que, por óbito desta, caducou o direito ao arrendamento, no entanto, os réus, filha e genro da falecida, recusam-se a entregar ao autor, enquanto cabeça de casal, o referido 1º andar.
Conclui, assim, que deve ser declarada a caducidade do arrendamento respeitante ao 1º andar e os réus condenados a entregá-lo ao autor, na invocada qualidade, livre de pessoas e bens.
Os réus contestaram, alegando, essencialmente, que o disposto no art.57º, nº1, al.d), da Lei nº6/2006, de 27/2, que aprovou o NRAU, é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que não contempla, a título de excepção para a caducidade do arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário, a situação do filho maior de idade, que com aquele vivesse há mais de um ano, independentemente de ser portador de qualquer deficiência, mas não dispondo de qualquer habitação alternativa e encontrando-se na situação de carência de meios, como é o caso dos réus.
Concluem, deste modo, pela improcedência da acção.
O autor replicou, alegando que inconstitucional era obrigar os senhorios a ter como inquilinos pessoas que desconheciam e que vivem com desafogo, como acontece com os réus.
Seguidamente, foi proferido despacho saneador, tendo-se seleccionado a matéria de facto relevante considerada assente e a que passou a constituir a base instrutória da causa.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, após decisão da matéria de facto, proferida sentença, julgando a acção procedente e, em consequência, declarando a caducidade do contrato de arrendamento relativo ao primeiro andar do prédio urbano situado à Rua do …, n.°s …, da cidade do Funchal, e condenando os réus a entregar esse andar ao A. (e à herança que este representa), livre de pessoas e bens.
Inconformados, os réus interpuseram recurso de apelação daquela sentença.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública celebrada no dia … de … de mil novecentos e …, exarada a folhas … e seguintes do livro número … A do … cartório notarial do Funchal, B… deu de arrendamento a F… o "prédio urbano, à rua do …, número … da freguesia de ..., da cidade do Funchal, inscrito na matriz sob o artigo número …".(al A) da mfa)
2. O contrato de arrendamento englobou todo o prédio e foi celebrado pelo prazo de um ano e teve início no dia 01 de Outubro de 1969. (al. B) da MFA)
3. O rés-do-chão do prédio destinou-se a comércio de bebidas e pastelaria, enquanto os altos ou primeiro andar, do mesmo, ficou destinado a habitação. (al. C) da MFA)
4. Para a parte destinada a habitação ou seja, para os altos ou o primeiro andar, do prédio referido em A) da MFA, ficou combinada a renda mensal de mil escudos, correspondente a nove euros e quarenta e oito cêntimos. ( al. D) da MFA)
5. F… e a respectiva consorte, G…, durante muitos anos, viveram no primeiro andar, ou seja, nos altos do prédio acima identificado. (al. E) da MFA)
6. Em 09 de Novembro de 1979 faleceu F…, no estado de casado com G…. (al. F) da MFA)
7. Por óbito de F…, o direito ao arrendamento de que este era titular, sobre o primeiro andar ou os altos do prédio identificado em A) da MFA, passou para a sua esposa, G…. (al.G) da MFA)
8. Com os óbitos dos primitivos senhorios e ainda do primitivo inquilino, durante alguns anos, as relações do contrato de arrendamento acima referido, passaram a decorrer entre os herdeiros de B…, enquanto proprietários e G…, como inquilina. (al. H) da mfa)
9. Em 26 de Setembro de 2009 faleceu G…. (al. I) da mfa)
10. H… e I…, filha e genro da falecida G…, recusam-se a entregar aos herdeiros de B… o primeiro andar ou os altos, do prédio identificado em A) da MFA. (al. J) da MFA)
11. O Autor é o cabeça-de-casal da herança aberta pelo óbito B…. (al. D da mfa)
12. O Autor recebeu dos RR. a renda, relativo ao mês de Outubro de 2009, entregando-lhes o respectivo recibo, conforme cópia que se mostra junta aos autos a fls. 80, no qual se refere que recebeu de F… a quantia de cinquenta e um euros e oitenta cêntimos, pelo arrendamento do prédio sito na Rua do …o. (al. M) da mfa)
13. Os Réus vivem há largos anos no imóvel acima identificado em A) da MFA., ali residindo com G… até à morte desta. (resposta ao art°l.° da BI)
14. Quando recebeu a renda do mês de Outubro de 2010, em 01.10.2009, o A. desconhecia que a inquilina G… tinha falecido. (resposta ao art.°3.° da BI)
15. Logo que confirmou o óbito da inquilina G… o Autor recusou-se a receber a renda, (resposta ao art.º 4º da BI)
2.2. Os recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões:

Caducando o arrendamento por mero efeito da lei, verifica-se que a acção própria para o Autor fazer valer o seu direito por os Réus se recusarem a lhe entregar a fracção em causa no prazo legal não é a acção de despejo, mas sim a acção de reivindicação de propriedade (neste sentido, Soares Machado e outro, in Arrendamento Urbano, Novo Regime do Arrendamento Urbano Comentado e Anotado, Livraria Petrony - Editores, nota 11 ao artigo 1051°, pág. 53).

A acção de despejo e a acção de reivindicação são distintas, não já actualmente por qualquer distinção de forma processual, mas sim pela respectiva causa de pedir, sendo que, no caso da acção de despejo, a causa de pedir integra a invocação da extinção da relação de arrendamento a ser declarada por via judicial, e, no caso da acção de reivindicação, a causa de pedir integra a invocação de uma aquisição, preferencialmente até a título originário (cfr. Ac. do S.T.J. supra citado).

Ou seja, acolhida a tese do Autor quanto à caducidade do contrato de arrendamento, sendo a mesma ope legis, impunha-se a invocação e prova pelo mesmo da respectiva aquisição, o que não aconteceu no caso vertente, daí decorrendo necessariamente a improcedência da presente acção, sob pena de violação do disposto no art. 264° do CPC.

Por outro lado, o Tribunal a quo não apreciou a questão de constitucionalidade concretamente invocada pelos Réus sob o art. 17°, e designadamente em face da matéria de facto para tanto alegada, e que sumariamente correspondente à carência de meios para o custear de habitação aos preços de mercado, e ao facto de não ter sido ainda proporcionada habitação social, não obstante a inscrição para o efeito no serviço competente.

A não apreciação de tal concreta questão suscitada pelos Réus configura nulidade nos termos do disposto no art. 668°, n° l, alínea d), do CPC, nulidade esta que expressamente se invoca para todos os efeitos.

Do mesmo modo se invoca a nulidade da douta Sentença recorrida, ao abrigo do mesmo normativo, pela não consideração da matéria de facto invocada pelos Réus sob os arts. 4° a 8° da respectiva Contestação, matéria de facto esta necessária para a apreciação da concreta questão de constitucionalidade colocada, e sendo esta uma das soluções de direito configuráveis.

Na verdade, e como bem sabido, a selecção da matéria de facto deve ser feita de forma certamente precisa e não repetitiva, mas contemplando toda a factualidade que possa importar para a boa decisão da causa, à luz das várias soluções de direito configuráveis, incluindo, se necessário ou conveniente, a consideração de factos instrumentais.

Finalmente, reitera-se, para todos os efeitos, a expressa invocação da questão de constitucionalidade já colocada na Contestação, e, concretamente, mantém-se que o disposto no art. 57°, n° l, alínea d), da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), se afigura inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1°, 13°, 18° e 65° da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de que não contempla, a título de excepção para a caducidade do arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário, a situação do filho maior de idade, que com aquele vivesse há mais de um ano, independentemente de ser portador de qualquer deficiência, mas não dispondo de qualquer habitação alternativa, encontrando-se em situação de carência de meios para custear habitação aos preços correntes de mercado, e não lhe tendo sido ainda proporcionada habitação social, não obstante se mostrar inscrito para o efeito no serviço competente.
2.3. O recorrido contra-alegou, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.
2.4. São as seguintes as questões que importa apreciar no presente recurso:
1ª - saber se, no caso, a acção própria para o autor fazer valer o seu direito não é a acção de despejo, mas sim a acção de reivindicação de propriedade;
- saber se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no art.668º, nº1, al.d), do C.P.C.;
- saber se a norma contida no art.57º, nº1, al.d), do NRAU, é inconstitucional, quando interpretada no sentido referido na sentença recorrida, por violação do disposto nos arts.1º, 3º, 18º e 65º, da CRP.
2.4.1. A 1ª questão atrás referida foi suscitada pela primeira vez pelos réus, ora recorrentes, em sede de alegações do recurso que interpuseram da sentença final.
Ora, como é sabido, é jurisprudência uniforme a de que os recursos visam, apenas, modificar as decisões recorridas e não apreciar questões não decididas pelo tribunal a quo, a não ser que se trate de matéria sujeita a conhecimento oficioso.
No caso, a alegação dos recorrentes traduz a invocação do erro na forma de processo, que é uma nulidade prevista no art.199º, do C.P.C., a qual, apesar de poder ser conhecida oficiosamente, só o poderá ser, quando muito, até à sentença final (arts.199º, 202º e 206º, nº2, do C.P.C.).
Não estamos, pois, perante matéria que este Tribunal de recurso possa conhecer oficiosamente, pelo que, não tem que ser aqui apreciada.
2.4.2. Entendem os recorrentes que a sentença é nula, nos termos do art.668º, nº1, al.d), do C.P.C., em virtude de, por um lado, não ter apreciado a questão da constitucionalidade concretamente invocada, e, por outro lado, por não ter considerado a matéria de facto invocada pelos réus nos arts.4º a 8º da contestação, que era necessária para a apreciação daquela questão.
Mas não têm razão. Assim, por um lado, é manifesto que tal questão foi apreciada naquela sentença, conforme se pode verificar através do que aí se escreve, a fls.149 e 150:
«Por fim, e no que respeita do regime transitório previsto para a transmissão do arrendamento, designadamente do art.° 57.°, n.° 2, al. d) do NRAU, não vislumbramos a existência da violação de qualquer disposição constitucional.
O art.° 65.° da nossa Lei Fundamental, considera a habitação como um direito que assiste a todos os portugueses. "Em consequência cabe ao Governo criar todas as condições, tomar medidas, utilizar todas as políticas programadas e meios que permitam que aquele preceito se torne uma realidade concreta" (Pais de Sousa, Anotações ao regime do RAU, 6.° ed. pág. 34).
Acontece, porém, que ao lado da garantia do direito à habitação, a constituição também garante o direito à propriedade privada, sendo entre estes dois polos que é balizado a protecção dada ao inquilino e seus sucessores.
Importa notar que o arrendamento é contrato mediante o qual, uma das partes se obriga a proporcionar à outra, o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição. Sendo o gozo temporário é apodíctico que o contrato há-de ter um fim.
Como se escreveu no Ac. da RP de 4/1/2011 (consultado em www.dgsi.pt) " (...) a Lei 6/2006 através do seu art.° 57.° fixou a solução das hipóteses que se colocam entre a lei antiga-RAU- e a lei nova- NRAU-, ou seja, fixou um regime transitório. Regime transitório esta que, como dito, atende aos factos produzidos na sua vigência(...)", como é o caso dos autos.
Citando o Ac. do TC de 16/6/2009 (in DR. 2a Série) explica que "(...) dada a natureza do direito em causa( transmissão por morte do direito de gozo) o mesmo está fora do núcleo de protecção do direito fundamental à propriedade privada, não sendo equiparável à categoria dos direitos, liberdades e garantias".
A restrição do direito de transmissão de arrendamento operada pela norma transitória, não viola qualquer direito fundamental da 1.° R., por que antes da morte da arrendatária, sua mãe (falecida na vigência da NRAU), não possuía qualquer direito à transmissão do arrendamento, mas apenas uma expectativa e não um direito constituído.
Concluímos, assim, que não se mostra violada qualquer disposição da nossa Lei Fundamental».
Por outro lado, quanto à não inclusão da alegada matéria de facto na base instrutória, podiam os recorrentes ter reclamado contra a selecção feita com fundamento em deficiência (art.511º, nº2, do C.P.C.), mas não justifica, de modo nenhum, a arguição de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. Na verdade, esta nulidade só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, estando, pois, em correspondência directa com a 1ª parte, do nº2, do art.660º, do C.P.C.. Ora, é evidente que a agora alegada deficiência da base instrutória não constituía questão que devesse ser apreciada pelo julgador na sentença que proferiu.
Haverá, deste modo, que concluir que a sentença recorrida não é nula, nos termos do disposto no art.668º, nº1, al.d), do C.P.C..
2.4.3. O autor propôs a presente acção sumária com base na caducidade do arrendamento para habitação, por morte do cônjuge do arrendatário, contra aqueles que se arrogam ter a qualidade de sucessores daquela, porque o pretendem ser com fundamento na transmissão ex lege (cfr. o art.57º, do NRAU).
Não é posto em dúvida que se está perante um contrato de arrendamento para habitação, celebrado no dia 29/9/1969, ou seja, muito antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL nº321-B/90, de 15/10. Logo, têm aplicação ao caso as normas do capítulo II, do Título II, da Lei nº6/2006, de 27/2, que aprovou o NRAU, designadamente, o disposto no art.57º, respeitante à transmissão por morte no arrendamento para habitação. Na verdade, por força do disposto nos arts.26º, nºs 1 e 2, 27º e 28º, da citada Lei, o regime constante do citado art.57º aplica-se aos contratos de arrendamento para fim habitacional existentes à data da entrada em vigor daquela Lei, celebrados antes ou durante a vigência do RAU.
Nos termos do art.57º, nº1, al.d), do NRAU, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11º ano ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior.
Por força da al.e), do nº1, do mesmo artigo, o arrendamento também se transmite quando ao primitivo arrendatário sobreviva filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de 1 ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
De harmonia com o disposto no nº4, do mesmo art.57º, a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento, nos termos das als.a), b) e c), do nº1.
Como se refere na sentença recorrida, no caso dos autos, a última beneficiária da transmissão do arrendamento foi G…, mãe da 1ª ré e viúva do primitivo arrendatário, o que sucedeu em 1979. Mas como aquela faleceu em 26/9/09, já na vigência do NRAU, aplica-se o regime transitório previsto no citado art.57º, que apenas permite a transmissão do arrendamento a filhos nos casos previstos nas als.d) e e), do nº1. Sendo que, a 1ª ré nem sequer alega qualquer das circunstâncias previstas naquelas alíneas. Logo, a lei não lhe confere o direito de transmissão do arrendamento em causa, que, por isso, caducou. Daí que, naquela sentença, tenha sido declarada a caducidade do contrato de arrendamento relativo ao referido 1º andar e os réus condenados a entregá-lo ao autor.
Segundo os recorrentes, o disposto no art.57º, nº1, al.d), é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1°, 13°, 18° e 65° da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de que não contempla, a título de excepção para a caducidade do arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário, a situação do filho maior de idade, que com aquele vivesse há mais de um ano, independentemente de ser portador de qualquer deficiência, mas não dispondo de qualquer habitação alternativa, encontrando-se em situação de carência de meios para custear habitação aos preços correntes de mercado, e não lhe tendo sido ainda proporcionada habitação social, não obstante se mostrar inscrito para o efeito no serviço competente.
Vejamos.
O Tribunal Constitucional já verificou a constitucionalidade do art.57º do «Novo Regime do Arrendamento Urbano» (NRAU), aprovado pela Lei nº6/2006, de 27 de Fevereiro, com o sentido de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei nº321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), quando a morte do arrendatário tenha ocorrido posteriormente à entrada em vigor do NRAU, não abrangendo a transmissão para os descendentes que convivessem com o arrendatário há mais de 1 ano mas, à data do falecimento deste, tenham mais de 26 anos de idade e não sejam portadores de incapacidade superior a 60% (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº190/2010, de 12/5/2010, Processo nº1030/09, publicado no D.R., 2ª Série, Nº115, de 16/6/2010).
É certo que, no caso dos presentes autos, o contrato em questão foi celebrado anteriormente à entrada em vigor do RAU. No entanto, como já vimos, o art.28º do NRAU determina também a aplicação aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados anteriormente ao RAU das normas transitórias previstas para os contratos outorgados na vigência do RAU, designadamente, o disposto no art.57º, pelo que, os termos em que foi decidida a questão da constitucionalidade no citado Acórdão do Tribunal Constitucional são perfeitamente transponíveis para o caso sub judice. Razão pela qual seguiremos muito de perto a argumentação expendida naquele Acórdão, onde se concluiu que a interpretação normativa questionada não viola qualquer parâmetro constitucional.
O que está em causa neste processo é a transmissão do arrendamento habitacional, a favor da filha, por morte daquela a quem o mesmo já tinha sido transmitido (cônjuge do primitivo arrendatário).
O art.85º, do RAU, apenas exigia que o filho vivesse no arrendado com o cônjuge sobrevivo do arrendatário há mais de 1 ano à data da sua morte, ou que tivesse menos de 1 ano de idade (nºs 1, al.b) e 4).
O art.1106º, do C.Civil, introduzido pelo art.3º, da Lei nº6/2006, de 27/2, apenas aplicável aos novos contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor do NRAU (27/6/2006), além de continuar a exigir que o filho do arrendatário vivesse com este no arrendado há mais de 1 ano, à data da sua morte, passou a exigir que essa convivência se desenrolasse numa situação de economia comum (al.b), do nº1).
O art.57º, do NRAU, aplicável aos contratos anteriores à sua entrada em vigor, apenas admite a transmissão do arrendamento para filho do arrendatário ou do cônjuge deste, para quem haja sido transmitido o direito ao arrendamento, desde que tenha menos de 1 ano de idade ou com ele convivesse há mais de 1 ano e fosse menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequentasse o 11º ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior ou, sendo maior de idade, com ele convivesse há mais de 1 ano e fosse portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (nºs 1, als.a), d) e e) e 4).
Constata-se, deste modo, que o RAU (art.85º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo para quem houvesse sido transmitido o direito ao arrendamento, para os descendentes que com ele convivessem há mais de 1 ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade. O NRAU (art.57º) alterou tal regime, já que, passou a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%. Mas para os contratos que lhe são posteriores, o novo regime do C.Civil (art.1106º) liberalizou a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário e fê-lo deliberadamente, certamente por ter tido em consideração que nestes novos contratos o prolongamento da relação contratual já não pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário (o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado – arts.1096, nº2 e 1097º, do C.Civil – ou, não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos – art.1101º, al.c), do C.Civil).
O que bem se compreende, pois que, tendo findado o sistema de renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, deixaram de se justificar as limitações que antes eram impostas à transmissão do arrendamento. Mas como na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto for esse a vontade do arrendatário, considerou-se justificado diminuir, em algumas circunstâncias, a possibilidade de transmissão do arrendamento.
Como se refere no citado Acórdão do TC, «Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-se somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento».
Entendem os recorrentes que o disposto no art.57º, nº1, al.d), do NRAU, é inconstitucional, por violação do disposto nos arts.1º, 13º, 18º e 65º, da CRP, mas sem que desenvolvam as razões de tal entendimento.
O citado art.1º, que baseia a República Portuguesa, além do mais, na dignidade da pessoa humana, tem, no caso, que ser conjugado com o direito à habitação a que alude o citado art.65º. Na verdade, a dignidade da pessoa humana é que legitima e justifica, designadamente, a garantia de condições dignas de existência, que, por seu turno, é indissociável do direito à habitação. É certo que este implica determinadas obrigações positivas do Estado (nºs 2, 3 e 4, do citado art.65º), embora não confira um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação. Todavia, o incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das referidas obrigações constitucionais constitui uma omissão constitucional. É igualmente certo que o direito à habitação também pode ser realizado por via do direito de arrendamento, cumprindo ao Estado, além do mais, fomentar a oferta de casas para arrendar. No entanto, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., págs.836 e 837, « … o direito à habitação não preclude o funcionamento de um mercado de arrendamento, através da possibilidade de despejos em casos justificados e da liberdade de fixação de rendas. O direito à habitação justifica seguramente limitações à propriedade no caso de prédios arrendados e não só (…). Mas essas limitações devem obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade». E acrescentam aqueles autores, in ob. e loc. cits., «Os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios».
Deste modo, atento o que atrás se expôs, nomeadamente, a razão de ser do regime introduzido pelo art.57º, nº1, al.d), do NRAU, e as situações a que o mesmo é aplicável, não se vê que, por via da sua aplicação ao caso dos autos, tenham sido postos em causa a dignidade da pessoa humana e o direito à habitação, a que se referem os arts.1º e 65º, da CRP.
E o mesmo se diga relativamente aos arts.13º e 18º, da CRP. Assim, apesar da existência de regimes diferentes a operar sincronicamente – art.1106º, do C.Civil, por um lado, e art.57º, do NRAU, por outro – o que é certo é que, como já se referiu, tal diferença tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio, ao contrário do que acontece na maioria dos contratos anteriores ao NRAU. O que significa que existe um suporte material bastante para aquele tratamento desigual. Logo, a distinção operada não viola o princípio da igualdade plasmado no citado art.13º.
No que respeita ao citado art.18º, partindo do princípio de que os recorrentes se pretendem referir à proibição de retroactividade das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias, a que alude o nº3, do mesmo artigo, dir-se-á, como no citado Acórdão do TC, que nunca a interpretação normativa sindicada poderia estar sob o alcance da proibição contida naquele nº3. Isto porque, como se diz naquele Acórdão, sendo o direito à propriedade privada um dos direitos fundamentais de natureza análoga (cfr, o art.17º, da CRP) e abrangendo o conceito constitucional de propriedade também o direito ao arrendamento, não beneficia, porém, do regime dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente, das limitações impostas às leis restritivas pelo art.18º, em toda a sua extensão, mas apenas no seu núcleo essencial. Para, depois, se aduzir que «Ora, se o Tribunal Constitucional já afirmou que a liberdade genérica de transmissão do direito de propriedade, sem condicionamentos, não constitui uma dimensão do direito de propriedade à qual se aplique o regime dos direitos, liberdades e garantias (Acórdãos nº187/2001, em ATC, vol.50º, pág.29, e nº425/2000, em ATC, vol.48º, pág.255), seguramente que a transmissão por morte de um direito de gozo com um cunho pessoal tão acentuado como é o do arrendatário habitacional, está fora do núcleo essencial de protecção do direito fundamental à propriedade privada, não sendo equiparável à categoria dos direitos, liberdades e garantias.
Além disso sempre seria questionável o efeito retroactivo da norma em causa, uma vez que estamos perante um caso de retrospectividade».
Haverá, assim, que concluir que a norma contida no art.57º, nº1, al.d), do NRAU, quando interpretada no sentido referido na sentença recorrida, não viola o disposto nos arts.1º, 13º, 18º e 65º, da CRP.
Dir-se-á, por último, no que respeita ao alegado pelos recorrentes relativamente à deficiência da matéria de facto, por não conter a constante dos arts.4º a 8º da contestação (modestos recursos económicos, pedido já feito de concessão de habitação social, ausência de local onde viver), que não há que considerar indispensável a sua ampliação, ao abrigo do disposto no art.712º, nº4, do C.P.C., dada a caducidade do contrato de arrendamento operada com a morte do cônjuge do arrendatário e a constatação de que os factos aí alegados não integram qualquer motivo socialmente atendível do ponto de vista constitucional.
Improcedem, deste modo, as conclusões da alegação dos recorrentes, não merecendo, pois, qualquer censura a sentença recorrida.

3 – Decisão.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2011

Roque Nogueira
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes