Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3422/15.9T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
GESTÃO PROCESSUAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.A conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa omissão que não resulta de facto de terceiro (estranho à parte) ou de força maior que impeça o demandante de praticar o ato.
II.A decisão que declara a deserção da instância tem efeito declarativo e não constitutivo.
III.De modo que, após a ocorrência da deserção (inércia de seis meses e um dia) e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais praticados, de forma espontânea, pela parte anteriormente relapsa são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico, sendo inidóneos a precludir a declaração da deserção.
IV.Em decorrência dos princípios da gestão processual, cooperação processual e dever de prevenção emergente daqueles, deve o juiz sinalizar por despacho que a omissão da prática do ato devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do Artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil .
V.A omissão de tal despacho integra nulidade que deve ser arguida pela parte sob pena de não ser, posteriormente, passível de recurso por inexistência de despacho a sancionar a nulidade.
VI.No intuito de aquilatar se a imposição de ónus processuais e respetivas sanções pela sua inobservância colide com o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, haverá que efetuar um juízo de proporcionalidade tendo em consideração três vetores essenciais: a justificação da exigência processual em causa; a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


1-Em 4.2.2015, Deco- Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor intentou esta ação contra vinte e sete Réus (dos quais cinco com residência no estrangeiro), formulando o seguinte pedido: condenação dos Réus a, solidariamente, indemnizar os pequenos acionistas – cada um deles – no montante correspondente à diferença entre o valor atual das ações que detêm (0,0 euros), ou o preço pelo qual tiverem alienado as ações após o aumento de capital de 2014, e o valor (€ 0,65) a que as ações do BES foram vendidas aquando desse aumento de capital.

2-A fls. 1058 consta a seguinte:
“ CONCLUSÃO - 26-02-2015
Informando V. Exa que não se procedeu à citação dos 5º, 21º, 24º, 27º Réus atento o facto de os mesmos serem de nacionalidade francesa e domiciliados em França e pelo Autor não ter sido junta traduções da petição inicial e documentos, motivo pelo qual vão os presentes conclusos para que ordene o que tiver por conveniente.
(Termo eletrónico elaborado por Escrivão Auxiliar Paulo José ...s R Veríssimo) ”, seguindo-se o seguinte despacho: «Face à informação supra, notifique a autora para juntar os elementos em falta, ou requerer o que tiver por conveniente, em 15 dias.»

3-A Autora respondeu a esta notificação em 06.03.2015, nos seguintes termos:
“Com o devido respeito por opinião contrária, entende a A. que nem a p.i. nem os documentos que a acompanham carecem, nesta fase processual, de ser traduzidos para a língua francesa, a fim de ser efetuada a citação dos Réus de nacionalidade francesa residentes em França.
O artigo 239.º do Código de Processo Civil (CPC) trata da citação do residente no estrangeiro, mandando observar “o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais.”
O CPC não regula, em lugar algum, a língua em que se devem encontrar os atos a citar ou notificar a estrangeiros. Apenas dizendo que nos atos judiciais em geral – incluindo assim os atos das partes – se usa a língua portuguesa (cf. artigo 133.º CPC).
Quanto aos instrumentos internacionais, aplica-se ao caso o Regulamento (CE) n.º 1393/2007 de 13 de Novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros («citação e notificação de atos»), que revogou o Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho. O Regulamento revogado continha norma muito semelhante quanto à língua dos atos).
Por facilidade, transcreve-se o artigo relevante do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 de 13 de Novembro de 2007 quanto à língua a empregar:
[…]
Do artigo transcrito retira-se que a citação pode ser feita na língua dos autos, desacompanhada de tradução, cabendo ao destinatário a faculdade de, se assim o entender, recusar a receção do ato com fundamento em não compreender a língua em que o mesmo se encontra redigido.
Este entendimento é sufragado, de modo, ao que pensamos, unânime, pela jurisprudência nacional.
Sendo que, quer ao abrigo do regulamento comunitário em questão, quer ao abrigo do regulamento comunitário que o precedeu nesta matéria, quer ainda ao abrigo da Convenção de Haia de 15 de Novembro de 1965, que regula o mesmo tema entre os Estados contratantes, de que Portugal faz parte, sempre foi entendido pelos Tribunais nacionais que a petição e os documentos que a acompanham não têm de ser traduzidos para a língua do destinatário do ato, pelo menos num momento inicial.” (fls. 1097-1101).

4-Sobre este requerimento recaiu despacho em 10.03.2015, do seguinte teor:
“Tendo em conta o que é alegado no requerimento agora apresentado, bem como o disposto nos artigos 5º e 8º do Regulamento (CE) nº 1393/2007, de 13/11, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros, proceda-se à citação dos réus de nacionalidade francesa domiciliados em França tal como se requer, incluindo-se a menção na citação de que os réus podem recusar a receção, e notificando-se a autora do ofício de citação para que o traduza.” (fls. 1106).

5-Em 16.3.2015, a Autora foi notificada pela secretaria da frustração da citação do Réu Pedro Mosqueira em virtude da devolução de carta com aviso de receção (fls. 1147).
6-Em 10.4.2015, a Autora requereu a realização de diligências pelo tribunal tendentes à averiguação da morada de tal Réu (fls. 1206).

7-Em 27.03.2015, a Autora procedeu à junção da tradução das cartas de citação para os referidos três Réus, após o que, em 31.3.2015, foram expedidas as cartas (fls. 1176-1184 e 1187).

8-Em 20.04.2015, a Autora foi notificada nos seguintes termos:
“Fica deste modo V. Ex.ª notificado, na qualidade de mandatário, relativamente ao processo supra identificado, da junção do requerimento /e-mail de fls. 1218 e 1219 de que se junta cópia.” ( fls. 1652).
Dos anexos a esta notificação consta email (em língua francesa) em que o Réu Marc Openheim dá conta de pretender ser citado em Francês (fls. 1652, 1218 e 1219).

9-Em 13.05.2015 a Autora foi notificada nos seguintes termos:
“Assunto: Devolução da Carta Registada c/ AR
Fica V. Ex.ª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado, da devolução da carta registada com Aviso de Receção para citação de:
Réu: Bruno ... Marie ... de ... de ..., Endereço: 10 Quai Des Carnes, 49100 Angers – França com a seguinte indicação: N'HABITE PLUS L'ADRESSE INDIQUÉ (NPAI) ” (fls. 1729).
10- Em 19.06.2015, a Autora recebeu a seguinte notificação:
“Fica V. Ex.ª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado, da devolução da carta registada com Aviso de Receção para citação de: Réu: Stanislas ... Marie ... ..., Endereço: 3 Rue Du ………, Saint Germainenlaye 78100 França com a seguinte indicação: NÃO RECLAMADO” (fls. 1773).

11-No que tange ao Réu Aníbal ………….., a Autora, por requerimento de 29.04.2015,informou os autos do falecimento (fls. 1723-1726). A Autora peticionou ainda noutro requerimento:
“Apesar de ter procurado obter essa informação, a Autora desconhece a existência/identidade de sucessores de Aníbal da Costa Reis de Oliveira, e não dispõe de meios para obter tais informações.
Deste modo, requer-se a V. Exa., nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e n.º 4 do artigo 7.º, ambos do CPC, seja ordenada a realização de diligências tendentes à identificação dos sucessores de Aníbal da Costa Reis de Oliveira, a fim de proceder à sua habilitação.” (fls. 1702-1705).

12-Sobre este requerimento recaiu, em 30.04.2015, despacho do seguinte teor:
“Da certidão de óbito apresentada pela autora, depreende-se que o réu Aníbal da Costa Reis de Oliveira faleceu antes da propositura da ação, o que chegou ao conhecimento da parte só em momento posterior.
A autora pretende promover a habilitação dos herdeiros deste réu para prosseguirem no seu lugar os termos da demanda, o que é facultado no nº 2 do artigo 351º do C.P.Civil, dispondo que pode requerer-se a habilitação dos sucessores do réu, ainda que o óbito seja anterior à proposição da ação.
Incumbe porém à autora, na sua qualidade de parte, indicar que tipo de diligências pretende sejam realizadas para tal efeito, o que se aguardará.» ( fls. 1730).

13-Tal despacho foi notificado à Autora em 15.5.2015 (fls. 1731).
14-Em 26.02.2015, foi tentada a citação do Réu R. ………. ……………. via carta precatória dirigida ao Consulado de Portugal em São Paulo (fls. 1057).
15-Em 07.04.2015, a Autora foi notificada de resposta do Consulado Português em São Paulo do seguinte teor [excerto]:
“Com referência ao ofício supra citado, tenho a honra de junto reenviar a V. Ex.ª cópia do art. 31º da Tabela de Emolumentos Consulares, onde consta para realização do ato, ser necessário pagamento em moeda local (reais) correspondente ao total de R$ 210,00 (duzentos e dez reais).” ( fls. 1188).
16-A Autora procedeu ao referido pagamento. O Réu Pedro ………. foi citado pelo Consulado Geral de Portugal, em Dusseldorf, em 21.5.2015 (fls. 1757).
17-Em 13.5.2015, a Autora foi notificada pela Secretaria da devolução da carta com aviso de receção para citação do Réu Bruno ………………… (fls. 1729).
18-Em 19.6.2015, a Autora foi notificada pela Secretaria da devolução da carta com aviso de receção para citação do Réu Stanilslas ………….. ... (fls. 1773).
19-Em 06.08.2015, a Autora foi notificada de despacho com o seguinte teor:
«“Fica V. Exª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado, da junção do e-mail do Consulado do Brasil de fls. 2630 a 2633 de que se junta cópia.» ( fls. 2634). Desse email constava que o Réu “foi convocado a comparecer ou entrar em contacto com este Consulado Geral e não se manifestou até ao presente momento”.

20-Em 21.09.2015, a secretaria insistiu pela citação, mediante ofício do seguinte teor:
“Assunto: Insistência / Pedido de Informação
Por ordem da Mmª Juiz de Direito, não tendo até ao momento sido satisfeito o solicitado no n/ofício, cuja cópia (refª 332517148) se remete para melhor esclarecimento, vimos novamente junto de V. Exª solicitar no sentido de, tão urgente quanto possível, ser satisfeita a nossa pretensão.” ( fls. 2645).

21-Em 03.11.2015, a secretaria insistiu novamente:
“Por ordem da Mmª Juiz de Direito, não tendo até ao momento sido satisfeito o solicitado no n/ofício, de refª 332517148, vimos novamente junto de V. Exª solicitar no sentido de, tão urgente quanto possível, ser satisfeita a nossa pretensão.” (fls. 3203).

22-Em 11.12.2015, a autora foi notificada nos seguintes termos:
“Assunto: Frustração da Citação
Fica V. Ex.ª notificado, relativamente ao processo supra identificado, das diligências efetuadas para citação do Réu R. ... ... ... Silva e dos motivos da não realização do ato, constantes da cópia de fls. 3204 a 3206 que se juntam.” (fls. 3207).

23-Entre as datas referidas em 13, 17, 18 e 22 e 19.5.2016, a Autora nada requereu no processo quanto à citação dos Réus Bruno ... Maria ... de ... de ..., Stanislas ... Maria ... ... e R. ... ... ... Silva, nenhuma diligência tendo requerido também na sequência do referido em 12 e 13. A Autora também não apresentou qualquer tradução na sequência da notificação referida em 8. (fls. 3207 a 3901).
24-Em 5.5.2016, o Réu Rui Manuel ... Sousa da ... formulou o requerimento de fls. 3888-3890 em que peticionou ao Tribunal que fosse declarada a deserção da instância, invocando – para tal efeito – que a Autora não impulsionou o processo desde 11.5.2015 tendo em vista a habilitação dos sucessores do Réu Aníbal da Costa Reis Oliveira, não tendo também a Autora nada requerido - durante mais de seis meses - quanto à citação dos Réus residentes no estrangeiro, Bruno ... Maria ... de ... de ..., Stanislas ... Maria ... ... e R. ... ... ... Silva.
25-Em 19.5.2016, a Autora veio pronunciar-se sobre o requerimento do Réu Rui Manuel nos termos de fls. 3901-3906, formulando os seguintes pedidos: a) que seja julgado improcedente o requerimento do Réu Rui Manuel, não sendo declarada a extinção da instância por deserção;  b) que seja ordenada a notificação de Maria Alexandra ……………, alegadamente filha do falecido Réu Aníbal da …….., para vir esclarecer nos autos se é filha deste bem como informar se existem outros herdeiros; c) que seja oficiado à Administração Tributária para informar se existe participação do falecimento de Aníbal Oliveira e, na afirmativa, quem são os herdeiros e cabeça-de-casal.
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26-Em 16.6.2016, a Mma. Juíza a quo proferiu o seguinte despacho [decisão impugnada]:
«A autora, DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, com sede em Lisboa, instaurou a presente ação popular sob a forma declarativa com processo comum contra o BANCO ... ... DE INVESTIMENTO, S.A., a KPMG & ASSOCIADOS – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, S.A. e vinte e cinco réus, pessoas singulares, na qualidade de ex-membros do Conselho de Administração do BES e da Comissão de Auditoria, todos devidamente identificados nos autos.
A autora formula pedido de condenação, solidária, dos réus a indemnizar os pequenos acionistas do BES – cada um deles – no montante correspondente à diferença entre o valor atual das ações que detêm (0,0 euros), ou o preço pelo qual tiverem alienado as ações após o aumento de capital de 2014, e o valor - € 0,65 – a que as ações do BES foram vendidas aquando desse aumento de capital.
Para averiguar da eventual deserção da instância por falta de impulso processual, importa atender no seguinte:
- Em 30.04.2015, a autora foi notificada do requerimento do réu Marc Oppenheim de fls. 1695 a 1700, residente no estrangeiro, fazendo apelo ao disposto no artigo 8º do Regulamento (CE) 1393/2007;
- Em 14.05.2015, a autora foi notificada do despacho que a incumbiu de indicar quais as diligências pretendidas com vista a requerer a habilitação do réu Aníbal da Costa Reis de Oliveira, falecido antes da propositura da presente ação;
- Em 13 de Maio e 19 de Junho de 2015, a autora foi notificada da devolução das cartas registadas com aviso de receção para citação dos réus Bruno ... Marie ... de ... de ... e Stanislas ...  Marie ... ... residentes no estrangeiro;
- Em 11 de Dezembro de 2015, a autora foi notificada da frustração da citação do réu R. ... ... ... Silva por intermédio do consulado português;
- Em 19.05.2016, e no seguimento do requerimento do réu RUI MANUEL ... (de 05.05.2016), a autora vem requerer a realização de uma série de diligências destinadas a averiguar os eventuais herdeiros de Aníbal da C.R.O..
A regra geral consagrada no artigo 226º nº 1 do C.P.C. é a de que incumbe à secretaria promover oficiosamente, sem necessidade de despacho prévio, as diligências que se mostrem adequadas à efetivação da regular citação pessoal do réu, devendo dar conta das diligências realizadas ao autor, nos termos do nº 2º, e abrir conclusão no prazo de trinta dias, nos termos do nº 3.
Relativamente à citação do réu residente no estrangeiro, o artigo 239º do C.P.C. prevê a sua realização sob diversas formas, que estão sempre dependentes do requerimento do autor.
Por força do princípio geral consagrado no artigo 6º nº 1 do C.P.C., cumpre ao tribunal, sem prejuízo do ónus especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e promover o seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação.
No caso das diligências de citação de réu residente no estrangeiro, a sua realização depende sempre da iniciativa da parte a quem incumbe o impulso processual, por força do disposto no já citado artigo 239º.
A autora, desde pelo menos Dezembro de 2015, deixou de promover qualquer tipo de diligência destinada à citação de vários réus residentes no estrangeiro, apesar de ter sido devidamente notificada da frustração das diligências efetuadas, e também não veio desistir da instância ou requerer o que tivesse por conveniente.
Convidada a diligenciar pela eventual habilitação do réu, falecido antes da propositura da ação, a autora nada requereu desde 14.05.2015, tendo vindo agora fazê-lo ao abrigo do princípio da colaboração processual, depois do réu suscitar a questão da eventual falta de impulso processual pela parte que instaurou a presente ação.
Dos factos enunciados, resulta que os autos estão a aguardar o impulso processual da autora no tocante às diligências de citação dos réus, residentes no estrangeiro, por período superior a seis meses, o que acarreta a deserção da instância nos termos do nº 1 do artigo 281º do C.P. Civil.
Face ao exposto, indefiro o requerido pela autora e declaro a deserção da instância
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Não se conformando com a decisão, dela apelou a DECO, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1.-Nos termos do art. 281.º do CPC, “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
2.-Nenhum dos pressupostos desta causa de extinção da instância se encontra preenchido no caso sub judice.
3.-A ação encontra-se ainda na fase da citação, fase esta que, nos termos do art. 226.º, n.º 1, do CPC, obedece à regra da oficiosidade. Por maioria de razão, se as diligências de citação não dependem de despacho judicial, muito menos dependem de requerimento do autor.
4.-Ainda que se entendesse que o processo se encontra parado (o que não é verdade, pois sempre existiu atividade processual relativamente aos demais réus), não se pode afirmar tal é consequência de falta de atividade da autora, pois os atos a praticar para dar continuação a ação são atos que devem ser praticados pela secretaria.
5.-A afirmação constante do despacho recorrido segundo a qual no “caso das diligências de citação de réu residente no estrangeiro, a sua realização depende sempre da iniciativa da parte a quem incumbe o impulso processual, por força do disposto no já citado artigo 239º” ´é incorreta, pois nem da letra nem do ... da norma em causa se pode extrair semelhante conclusão. Quando muito, aquele artigo, no seu n.º 4, manda ouvir o autor quanto à possibilidade de se efetuar a citação por carta rogatória, mas nunca a Recorrente foi notificada para se pronunciar quanto a tal modalidade de citação.~
6.-A Recorrente nunca notificada para tomar posição quanto a qualquer questão relativa à citação dos Réus.
7.-Ainda que se considere que a secretaria se encontra inativa a aguardar “instruções” da parte, seria ainda necessário que tal inatividade da Autora fosse resultado de negligência desta em promover o andamento dos autos, revelando assim desinteresse pela sorte da ação, sendo que a Recorrente não se desinteressou da ação, tendo, sempre que lhe foi possível, respondido às solicitações do tribunal.
8.-Os atos que se encontram por praticar não são atos que se possa razoavelmente exigir que pratique, pois a Recorrente não tem meios para descobrir o paradeiro dos citandos ou a identidade dos herdeiros e, quanto à tradução, a Autora chegou a pedir orçamentos para o respetivo custo, e obteve resultados na ordem das dezenas de milhares de euros, pelo que a demora ou hesitação na apresentação de tal tradução não se pode imputar a negligência, mas sim a cautela na gestão dos seus meios financeiros.
9.-Falta pois verificar-se o pressuposto da negligência.
10.-Também não se encontra preenchido o requisito do prazo, pois entre a última notificação que recebeu do tribunal – a 11.12.2105 – e o requerimento de diligências que seguidamente apresentou -a 19.05.2106 – não decorreram seis meses.
11.-A interpretação que o tribunal fez do art. 281.º, n.º 1., do CPC, no sentido de ser de decretar a deserção da instância sem convite prévio à parte para se pronunciar quanto à existência de negligência, e também quando a inatividade da parte, tendo durado seis meses a dado momento do processo, se tenha posteriormente interrompido mediante prática de ato posterior, é inconstitucional por violação do princípio do acesso à justiça previsto na constituição e do princípio da confiança decorrente do art. 2.º, que prevê o estado de Direito Democrático.
12.-Dispõe o art. 35.º do CPC que, “no litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes”.
13.-A falta de impulso processual que se discute nos autos não respeita a todos os Réus – no total de 27 – mas apenas a 5 deles (um por falta de habilitação de herdeiros e os restantes 4 por falta de citação), nenhum obstáculo existindo quanto à prossecução dos autos em relação aos restantes 23 Réus.
Termos em que deverá ser revogado o despacho recorrido e consequentemente; ser substituído por decisão que
a) Ordene o prosseguimento dos autos, com a realização das diligências requeridas pela Autora no seu req. de 19.05.2016 e com as diligências necessárias à citação dos réus residentes no estrangeiro;
b) Subsidiariamente, ordene a notificação da Autora para se pronunciar sobre a falta de impulso processual, quanto aos 5 réus em relação aos quais essa falta se verifica, ordenando a prossecução dos autos quanto aos demais réus.
c) Subsidiariamente ainda, caso se mantenha a decisão de deserção da instância quanto aos 5 réus em causa, ordene o prosseguimento dos autos quanto aos 22 Réus não afetados pela falta de impulso processual.»

Contra-alegaram os Réus Rui Manuel ... Sousa da ... ( fls. 3972-3981), Vincent Pacaudi ( fls. 3998—4010), Manuel Fernando Moniz Galvão ... ...s Silva ( fls. 4018-4043) e KPMG, SA ( fls. 4050-4061) pugnando pela improcedência da apelação, arguindo ainda o primeiro a intempestividade do recurso.

QUESTÕES A DECIDIR.
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.Tempestividade do recurso;
ii.Verificar se ocorreu a deserção da instância;
iii.Aferir da constitucionalidade da decisão que decretou a deserção da instância;
iv.Aquilatar da admissibilidade da deserção parcial da instância.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os consignados no relatório, que aqui se dá por reproduzido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Tempestividade do recurso.
O Réu Rui Manuel ... arguiu a intempestividade do recurso, sustentando que o recurso deveria ter sido interposto no prazo de quinze dias nos termos do Artigo 644º, nº2, alínea e), segunda parte, do Código de Processo Civil.
Todavia, sem razão.
O despacho impugnado declarou deserta a instância nos termos do Artigo 281º do Código de Processo Civil. Trata-se, assim, de um despacho que pôs termo à causa subsumindo-se à previsão do Artigo 644º, nº1, alínea a), do Código de Processo Civil. Só há que aquilatar da existência de apelação autónoma imediata (nº 2 do Artigo 644º do Código de Processo Civil) quando não se preenche a previsão do nº1 do Artigo 644º do Código de Processo Civil, sendo este o caso.

A deserção da instância.
A decisão sob impugnação declarou a deserção da instância pela Autora considerando que a Autora, pelo menos desde dezembro de 2015, deixou de promover qualquer diligência destinada à citação de vários Réus residentes no estrangeiro, nada tendo ainda requerido, desde 14.5.2015, tendo em vista a habilitação dos herdeiros do Réu Aníbal Oliveira.
A apelante insurge-se contra tal decisão, pugnando pela sua revogação.

Apreciando:

Nos termos do Artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

A deserção da instância é uma causa de extinção da instância (Artigo 277º, alínea c), do Código de Processo Civil).

Na explicitação de Paulo Ramos de Faria, O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa,Breve Roteiro Jurisprudencial, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESER%C3%87%C3%83O-DA-INST%C3%82NCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf, a conduta negligente consubstancia-se na omissão que não resulta de facto de terceiro (estranho à parte) ou de força maior que impede o demandante de praticar o ato. Deste modo, a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência. Tal conduta omissiva e negligente só «cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática.» - Ibidem, p. 6.

A decisão que declara a deserção da instância tem efeito declarativo e não constitutivo. Conforme refere Ramos de Faria, Ibidem, pp. 13-14,
«A circunstância de a lei estabelecer que determinado facto deve ser judicialmente declarado, isto é, julgado verificado, não converte este julgamento na causa dos efeitos que, na verdade, são produzidos pelo facto declarado. Ou seja, concretizando na deserção da instância, o julgamento desta, isto é, o seu reconhecimento não é, óbvia e logicamente, um seu pressuposto. Os pressupostos da deserção são a paragem do processo, por inércia das partes, e o decurso do tempo; o seu efeito (não o efeito do seu julgamento) é a extinção da instância (art. 277.º, al. c)).

O julgamento da deserção traduz-se no reconhecimento judicial da verificação do seu primeiro requisito – paragem do processo por inércia das partes – por seis meses e um dia. É aqui que ocorre a deserção; é aqui que os seus pressupostos constitutivos se reúnem. O juízo exigido pela norma contida no n.º 4 do art. 281.º é, neste sentido,meramente declarativo.O facto jurídico processual
extintivo da instância não é interpretado (praticado) pelo juiz, ao contrário do que ocorre com o julgamento (art. 277.º, al. a)), resultando tal extinção, sim, diretamente da deserção declarada pelo tribunal – isto é, da deserção julgada verificada, por verificados estarem os seus pressupostos de facto. Confrontando os enunciados das als. a) e c) do art. 277.º, nota-se que a lei não estabelece que a instância se extingue por força do julgamento da deserção, embora ele seja necessário para que esta tenha repercussões processuais.

Desta asserção, que, em boa verdade, nos parece apodítica, retira-se que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Tais atos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância. A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono) – presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato.»

Atenta a gravidade dos efeitos da deserção da instância e visando o atual processo civil dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais (cf. Artigo 278º, nº3, do Código de Processo Civil), deve o juiz atuar de forma preventiva de molde a que o processo não sucumba por deserção, sem prejuízo do princípio da autorresponsabilidade das partes. Com efeito, nos termos do dever de gestão processual consagrado no Artigo 6º, nº1, do Código de Processo Civil, «Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (…)». De acordo com o princípio da cooperação, deve também o juiz cooperar com as partes, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio – Artigo 7º, nº1, do Código de Processo Civil.

Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, 2000, pp. 56-57, assinala que, do ponto de vista do tribunal, o princípio da cooperação impõe deveres de esclarecimento, de prevenção, de consulta das partes e de auxílio das partes. O dever de prevenção «é um dever do tribunal perante as partes com uma finalidade assistencial, pelo que não implica qualquer dever recíproco das partes perante o tribunal.» - Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 66. Tal dever «(…) vale genericamente para todas as situações em que o êxito da ação a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo. São quatro as áreas fundamentais em que a chamada de atenção decorrente do dever de prevenção de justifica: a explicitação de pedidos pouco claros, o caráter lacunar da exposição dos factos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação concreta e a sugestão de uma certa atuação.» (sublinhado nosso). Face à consagração ampla do dever de gestão processual, entendemos que – atualmente – o dever de prevenção radica, em primeira linha, no dever de gestão processual ( «providenciar pelo seu andamento célere») e só em segunda linha no dever de cooperação.

Revertendo a aplicação destes princípios e do dever de prevenção à situação de negligência das partes em impulsionar o processo, cremos que o juiz deve sinalizar – de forma clara – à parte que a respetiva inércia no que tange a um concreto impulso processual poderá desembocar na extinção da instância por deserção. Assim, por exemplo, caso ocorra o óbito de um dos Réus, como foi o caso, deve o juiz sinalizar em despacho que os autos aguardam que seja suscitado o necessário incidente de habilitação “sem prejuízo do disposto no Artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil “. Essa advertência era tão mais necessária quanto é certo que existem nestes autos ___ réus, dos quais ____ réus residentes no estrangeiro, atingindo o processo mais de quatro mil folhas sem que ainda se mostrem citados todos os Réus.

Ora, da matéria de facto apurada não resulta que a Mma. Juíza a quo tenha atuado o dever de gestão processual e conexo dever de prevenção nos termos explicitados, quer quanto à habilitação de herdeiros quer quanto à citação dos Réus residentes no estrangeiro. A omissão do dever de gestão por parte do juiz integra uma nulidade que deve ser arguida nos termos do Artigo 195º, nº1 do Código de Processo Civil, quando estiverem preenchidos os requisitos aí consignados. «Todavia, não sendo reclamada oportunamente a putativa nulidade, não poderá vir a ser interposto recurso da sentença com fundamento na omissão daquele despacho tido por devido. A sentença não sancionar, apenas pelo facto de ter sido proferida, as nulidades pretéritas, não se pronunciando implicitamente sobre elas, nem “ratificando” o processado – o que, a acontecer, permitiria que dela se recorresse com esse fundamento -, sob pena de as nulidades deixaram de dever ser reclamadas nos prazos legais, reservando-se a parte para o recurso (com esse fundamento) do despacho subsequente ou, mesmo, da sentença final, em aberta afronta ao princípio da preclusão e à máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se (tempestivamente).» - Paulo Ramos de Faria, Primeiras Notas do Novo Código de Processo Civil, 2013, I Vol., p. 56.

Com efeito, mantém-se a atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se. Conforme explicava Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 507, «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.»
Na explicitação de Luís Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, p. 52,

 «A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se, portanto, de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação.
Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.

Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.»

Também Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 372, afirma que «(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão.»[3]

Daqui resulta que, não tendo a Autora reclamado da nulidade emergente da falta de sinalização no sentido de que a inércia da Autora quanto à habilitação de herdeiros e citação de Réus no estrangeiro poderia desembocar na deserção da instância, não pode agora a Autora recorrer com tal fundamento. De todo o modo, sempre haverá que referir que os recursos quanto a decisões que versem sobre a arguição de nulidades estão sujeitos aos limites do Artigo 630º, nº2, do Código de Processo Civil.

Em suma, não pode este tribunal ad quem retirar qualquer consequência prática da omissão do dever de prevenção por parte do tribunal a quo.

Assim, há que aquilatar se a Autora incorreu em negligência por omissão determinante da extinção da instância por deserção, consoante foi decidido.

Quanto à densificação do regime do Artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil, além do que já ficou dito supra, acolhemos o ensinamento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.9.2016, José Rainho, 1742/09, de que extratamos a seguinte passagem:
«(…) contrariamente à ideia que a Recorrente quer fazer passar, continua a vigorar no processo civil atual o princípio da autorresponsabilização das partes (estreitamente ligado ao princípio da preclusão). Como se diz no acórdão da Relação de Guimarães de 2 de fevereiro de 2015 (processo nº 990/14.6T8BRG.G1) em caso paralelo ao vertente, “Atribui-se (…) ao juiz o poder de direção do processo, deferindo-lhe a competência para, em superação da omissão da parte, providenciar pelo suprimento dos pressuposto processuais suscetíveis de sanação e convidar as partes a praticar os atos necessários à modificação subjetiva da instância, quando isso se torne necessário, reforçando-se o princípio do dispositivo. Não obstante, nem por isso se eliminou o princípio da autorresponsabilidade das partes”. A inércia processual das partes (seja por inépcia ou impreparação sua em termos técnico-processuais, seja intencionalmente em função de uma certa interpretação do direito aplicável) produz consequências negativas (desvantagens ou perda de vantagens) para elas, só havendo lugar à desvalorização do princípio da sua autorresponsabilização mediante a intervenção tutelar, assistencial ou corretiva do tribunal quando a lei o preveja, e não é o caso. E como nos diz ainda Lebre de Freitas (ob. cit., p. 183), em asserção em torno precisamente dos princípios da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, a omissão continuada da atividade da parte, quando a esta cabe um ónus especial de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância. De igual forma, António Júlio Cunha (ob. cit., p. 89) aduz que “As partes, em regra, não se encontram obrigadas a adotar certos comportamentos, mas se o não fizer não obterão determinadas vantagens ou daí poderá decorrer um prejuízo. Mas se assim é (…) são as mesmas que respondem pelos resultados negativos (para os seus próprios interesses) da sua conduta”.
Do que fica dito resulta que a Autora incumpriu o seu dever de promoção processual, sendo-lhe por isso imputáveis, e não ao tribunal, as respetivas consequências. Se o fez, prevenida ou desprevenidamente, por esta ou aquela razão, sibi imputet.
(…)

Claro que a deserção não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo. Pelo contrário, demanda também uma decisão judicial e um juízo acerca da existência de negligência da parte.

Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência.

De outro lado, em sítio algum estabelece a lei qualquer “audição” das partes (seja ou não a expensas do princípio do contraditório) em ordem à formulação de um juízo sobre essa negligência (aliás, mais do que ouvir as partes ou atuar o contraditório, tratar-se-ia então de um autêntico “incidente”, por isso que, dentro da lógica subjacente, as partes teriam que ser admitidas a demonstrar as razões que as levaram a não promover o andamento do processo, isto é, a sua não negligência). Ao invés, à parte onerada com o impulso processual é que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência. O que a lei pretende é que a parte ativa no processo não seja penalizada em termos de extinção da instância quando a razão do não andamento da causa lhe não seja imputável. E, repete-se, o nº 3 do art. 3º do CPCivil não importa ao caso, visto que não se trata aqui do direito de influenciar a decisão (em termos de factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto dialético da causa, nem tão-pouco é configurável uma decisão-surpresa, antes trata-se simplesmente de fazer atuar uma consequência processual diretamente associada na lei à omissão negligente da parte tal como retratada objetivamente no processo.

Tem assim razão o acórdão recorrido aí onde aduz que “Ao interessado no prosseguimento do processo cabe deduzir o incidente de habilitação (…). E das duas uma: ou deduz esse incidente, porque nele tem interesse, ou não deduz, optando por manter o processo suspenso. A escolha é da parte mas acarta as respetivas consequências.
Se a parte não quer impulsionar o processo, se a parte deixa decorrer o prazo da suspensão sem que deduza o incidente obrigatório para o prosseguimento do processo - que se pode chamar a isto senão negligência em impulsionar os autos? (…)
Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, se «a habilitação não tiver lugar, por não ser requerida ou ser julgada improcedente, observa-se o art.º 281-1 (deserção da instância)» (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 681).”

Acresce dizer que o pretendido contraditório tendente a aquilatar da negligência ou não negligência da ora Recorrente não faria in casu qualquer sentido, resolvendo-se num ato claramente inútil ou dilatório (e, como tal, proibido: art. 130º do CPCivil). Pois que, como se logra inferir do teor da alegação do recurso, a falta do impulso processual em causa (habilitação dos sucessores) não foi motivada por qualquer razão impeditiva da prática desse ato, mas sim por se ter representado que a simples junção do documento de habilitação notarial de herdeiros seria suscetível de cumprir esse impulso. Portanto, do que se trata não é de qualquer escolho compreensivelmente impeditivo do ato, mas sim de uma opção de direito (sem dúvida muito respeitável, mas que não merece acolhimento). Opção de direito essa que, para o bem e para o mal, terá as suas consequências. Ora, não sendo a perspetiva de direito defendida pela Autora validada ou sufragada pelo tribunal, é apodítico que fica então constituída uma situação de injustificada inação imputável à Autora, que assim não poderá deixar de arcar com as inerentes consequências processuais. Consequências que são precisamente a deserção da instância.»

Em primeiro lugar, há que consignar que não ocorreu in casu qualquer violação do princípio do contraditório porquanto, após a formulação do requerimento suscitando a questão da deserção da instância pelo Réu Rui Silva em 5.5.2016, a Autora veio pronunciar-se sobre o mesmo, o que fez nos termos de fls. 3901-3906, datando a decisão impugnada de 16.6.2016. Ou seja, foi facultado à Autora o contraditório e o mesmo foi, efetivamente, exercido. Mesmo que ocorresse a nulidade consistente na omissão do contraditório prévio, tal nulidade seria sanada por este Tribunal da Relação nos termos do Artigo 665º, nº1, do Código de Processo Civil, com o conhecimento do objeto da apelação – cf. Acórdão da Relação do Porto de 28.10.2015, Eusébio Almeida, 2248/05, www.colectaneadejurisprudencia.com.

Em segundo lugar, atentos os pontos 12, 13 e 23 dos factos provados no relatório, incumbia à Autora requerer em seis meses, ou seja  até ao dia 19 de novembro de 2015 ( cf. Artigos 138º, nº1, 248º do Código de Processo Civil e 279º, alínea c) do Código Civil), diligências concretas ao Tribunal tendo em vista a dedução do incidente de habilitação de herdeiros do Réu Aníbal Oliveira. Todavia, a Autora não requereu ao tribunal a realização de qualquer diligência nesse sentido, vindo só a fazê-lo em 19.5.2016 quando exerceu o contraditório sobre o requerimento do Réu Rui .... Todavia, conforme já foi explicitado supra, a deserção já tinha ocorrido em 20 de novembro de 2015, não tendo o requerimento formulado em 19.5.2016 a virtualidade de interromper um prazo de deserção que já estava consumado.

No que tange à citação dos Réus residentes no estrangeiro , verifica-se que incumbia à Autora impulsionar as diligências com vista à respetiva citação:  até 18.11.2015 quanto ao Réu Bruno ... ( factos 17 e 23; Artigos 138º, nº1, 248º , 281º, nº1, do Código de Processo Civil e 279º, alínea c) do Código Civil);  até 23.12.2015 quanto ao Réu Stanislas ... ( factos 18 e 23; Artigos 138º, nº1, 248º , 281º, nº1, do Código de Processo Civil e 279º, alínea c) do Código Civil); até 15.6.2016 quanto ao Réu R. Silva ( factos 22 e 23; mesmos artigos referidos anteriormente). Ou seja, ocorreu também deserção no que tange ao impulso processual devido quanto à citação dos Réus Bruno ... ( em 19.11.2015) e quanto ao Réu Stanislas ... ( em 24.12.2015).

Acresce que, no caso do Réu Marck Openheim e atento o provado sob 8, cabia à Autora proceder à tradução da petição e documentos, no prazo de seis meses, a contar da notificação expedida em 20.4.2015 (Artigo 8º, nº3, do Regulamento nº 1393/2007; acórdão da Relação de Guimarães de 15.10.2013, Rosa Tching, 3450/12 e da Relação de Évora de 24.9.2015, Mata Ribeiro, 448/11), o que a Autora também não fez.

Destarte, ocorreram quatro vicissitudes processuais determinantes da deserção da instância por inércia da Autora.

Ao contrário do que afirma a apelante, a citação de réu residente no estrangeiro  não é totalmente oficiosa. Que a citação de Réu no estrangeiro requer a iniciativa da parte, resulta de forma acabada do  Artigo 8º, nº3, do Regulamento nº 1393/2007, como foi o caso.

Com efeito e em caso de frustração da citação postal, a parte pode e deve diligenciar pela obtenção de domicílio atualizado de réu residente no estrangeiro, não estando a secretaria habilitada a obter tal morada, ao contrário do que sucede com os Réus residentes em território nacional ( cf. Artigo  236º, nº1, do Código de Processo Civil ). Note-se que, prosseguindo a ação com revelia de réu,  a nulidade da citação ou a falta desta constituem fundamentos de revisão (Artigo  696º, alínea e) do Código de Processo Civil ) pelo que o demandante tem interesse na consecução de citação pessoal e regular.  Caso a parte não logre obter tal nova morada atualizada , cabe-lhe informar disso mesmo o tribunal e requerer que, em última instância , o processo avance com a citação edital ( cf. Artigo  239º, nº4, do Código de Processo Civil ).

Em suma, cabia à Autora impulsionar o processo nos termos sobreditos, o que não fez, determinando a ocorrência da deserção. Se a inércia da Autora adveio de estratégia processual no sentido de aferir da bondade da desistência do pedido quanto a algum Réu ou pelos custos elevados da tradução, trata-se de questões atinentes à esfera da Autora mas que não relevam como causa de interrupção do prazo da deserção, tanto mais que nem sequer foram veiculadas no processo.

Da constitucionalidade da decisão que declarou a deserção da instância.
Sustenta a apelante que: «A interpretação que o tribunal fez do art. 281.º, n.º 1., do CPC, no sentido de ser de decretar a deserção da instância sem convite prévio à parte para se pronunciar quanto à existência de negligência, e também quando a inatividade da parte, tendo durado seis meses a dado momento do processo, se tenha posteriormente interrompido mediante prática de ato posterior, é inconstitucional por violação do princípio do acesso à justiça previsto na constituição e do princípio da confiança decorrente do art. 2.º,que prevê o estado de Direito Democrático

No que tange à questão do contraditório prévio, a questão suscitada já foi apreciada supra, não sendo pertinente a arguição porquanto – como vimos - a Autora exerceu o contraditório sobre a requerida deserção da instância antes de ter sido proferida decisão que declarou a deserção.

Nesta medida, a questão suscitada é a de saber se o incumprimento do ónus processual de impulsionar o processo, sancionado com a deserção da instância, colide com os princípios de acesso à justiça e da confiança, consagrados na Constituição.

Nesta sede, no Acórdão nº 462/2016 de 14.7.2016, relatado por João Cura Mariano, o Tribunal Constitucional fez uma análise exaustiva do princípio de acesso à justiça e sua articulação com os ónus processuais consagrados no processo civil. Extratamos, por brevidade, as seguintes passagens de tal acórdão:
«O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a ga­rantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94, acessível na internet em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordãos/, assim como os restantes acórdãos adiante referidos sem outra menção expressa).

Como resulta também da vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o direito de ação ou direito de agir em juízo, efetivado através de um processo equitativo, entendido num sentido amplo, significa não apenas que o processo deverá ser justo na sua conformação legislativa, mas também que deverá ser um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva.

Neste mesmo sentido, a doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios:
(1)direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias;
(2)o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas;
(3)direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso;
(4)direito à fundamentação das decisões;
(5)direito à decisão em tempo razoável;
(6)direito ao conhecimento dos dados processuais;
(7)direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas. (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416).

Por outro lado, conforme tem sido entendimento do Tribunal Constitucional, se é certo que a exigência de um processo equitativo não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impõe, contudo, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

A questão em causa nos autos enquadra-se num conjunto vasto de casos, que o Tribunal já foi chamado a apreciar, em que é imposto um ónus processual às partes e em que a lei prevê uma determinada cominação ou consequência processual para o incumprimento de tal ónus.

Ora, a respeito das exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, quando estejam em causa normas que impõem ónus processuais, o Tribunal tem afirmado que tal garantia não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, não sendo incompatível com a imposição de ónus processuais às partes (cf., neste sentido, entre outros, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 122/02 e 46/05).

No entanto, com também tem sido salientado pelo Tribunal, a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cf., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional).

O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
-a justificação da exigência processual em causa;
-a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
-e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cf., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).»

Ora, o dever de impulsionar o processo, no que tange à habilitação de herdeiros e citação de Réus residentes no estrangeiro, constitui consequência direta do princípio do dispositivo, segundo o qual o processo se encontra na disponibilidade das partes, tendo estas a liberdade e a responsabilidade de definir o “se” e o “como” da tutela dos seus próprios interesses – cf. Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, pp. 58-59. A este dever de diligência das partes, acresce mesmo a circunstância de a parte poder e dever indagar de motu proprio sobre o paradeiro dos Réus e sobre a existência de herdeiros de uma parte falecida, assistindo-lhe ainda o direito de – simplesmente – desistir do pedido quanto a tais Réus. Em virtude de relações prévias à propositura da ação, as partes normalmente têm outras fontes de informação sobre o que ocorreu, entretanto, com o paradeiro da contraparte, cabendo-lhe carrear tal informação para o processo ou requerer a intervenção do tribunal para suprir o défice de informação (cf. Artigos 7º, nº4, 417º, 418º, 432º do Código de Processo Civil).

A satisfação de tal ónus não é onerosa para a Autora porquanto, consoante se acaba de ver, a Autora podia solicitar a intervenção do tribunal para demover obstáculos ou dificuldades na obtenção de informações tendo em vista a habilitação ou a citação. Em última instância, a habilitação pode ser instaurada contra desconhecidos e a citação pode ser edital – cf. Artigos 355º, nº1 e 240º, nº1, do Código de Processo Civil.

Finalmente, a sanção para o incumprimento do ónus não é desproporcionalmente gravosa porquanto a Autora pode repropor a ação contra os réus uma vez que a deserção da instância não forma caso julgado material (Artigos 620º, nº1 e 285º, nº1, do Código de Processo Civil), ou seja, o efeito é transitório e não necessariamente definitivo.

Infere-se do exposto que não ocorrem os pressupostos necessários para que a sanção correspondente à inobservância do ónus processual integra uma ofensa ao princípio constitucional de acesso à justiça.

Também não ocorre violação do princípio constitucional da confiança.

Com efeito, a parte que suscita a intervenção do tribunal tem – ela própria – que diligenciar para que se obtenha uma decisão em tempo útil, tanto mais que – consoante bem refere o Réu Vincent Pacaud – constituiria uma ofensa ao estado de direito conferir a uma parte a possibilidade de, pela sua inação, estar a condicionar a vida dos Réus e a própria celeridade da justiça, protelando o andamento e conclusão do processo. Do princípio da confiança não resulta que a parte ativa tenha o direito de ter pendente um processo mesmo quando a sua inação é o fator impeditivo da sua marcha normal.

A este propósito, refere-se pertinentemente no Acórdão nº 122/2002 do Tribunal Constitucional, Bravo Serra, DR, II de 29.5.2002, que:
«O direito processual constitui um encadeamento de atos com vista à consecução de um determinado objetivo, qual seja o de se obter uma decisão judicial que componha determinado litígio o que, consequentemente, impõe, por um lado, que as «partes» assumam posições equiparadas para desfrutarem de igualdade processual para discretear sobre as razões de facto e de direito apresentadas por uma e outra (cf., sobre o ponto, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil I, 364 e 365, e Acórdão deste Tribunal no 223/95, publicado na 2ª Série do Diário da República de 27 de Junho de 1995); e, por outro lado para se alcançar uma justa e equitativa decisão, mister é que haja determinada disciplina para, além do mais, se conseguir que a composição do litígio se não «perca» por razões ligadas a um livre alvedrio das mesmas «partes» , alvedrio esse que, no limite, poderia conduzir a uma «eternização» de atos com repercussão na não razoabilidade da tomada de decisão em tempo útil.

Daí que o processo, todo o processo - aqui se incluindo obviamente, o processo civil -, para além de dever ser um due process of law (vejam-se, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 249/97 e 514/98, publicados na 2ª Série do jornal oficial de, respetivamente, 17 de Maio de 1997 e 10 de Novembro de 1998), tenha de obedecer a determinadas formalidades que, elas mesmas não podem deixar de ser consideradas, numa certa perspetiva, como constituindo, inclusivamente, fatores ou meios de segurança, quer para as «partes», quer para o próprio tribunal.

As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, requisitos de apresentação das peças processuais e efeitos cominatórios, são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é, porém, que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vai representar um excesso ou uma intolerável desproporção que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo nº1 do artigo 20° da Constituição.

Afora casos como esse, a exigência das formalidades processuais não poderá, desta arte, ser vista como a prescrição de obstáculos à livre e desmedida atuação processual das «partes»» (sublinhado nosso).

No que tange aos princípios da segurança e confiança jurídicas, temos por lapidar o ensinamento de tal Tribunal colhido no Acórdão nº 556/2003, Gil Galvão, DR, II Série, 7.1.2004, pp. 171-177, em que se afirma:
«Segundo a jurisprudência abundante do Tribunal Constitucional, no princípio do Estado de direito democrático contido no art. 2° da CR, está «entre o mais, postulada uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» [4][1]

Ainda segundo o Tribunal Constitucional, há dois critérios, que se completam, para determinar se ocorre uma afetação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas jurídicas:
«a) Afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dele constantes não possam contar, e ainda,
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º2 do art.º18° da CR, desde a 1ª revisão)»[5][2].
Mas «aqueles dois critérios, atinentes à existência de uma afetação de expectativas constitucionalmente inadmissível, por ser arbitrária ou demasiadamente onerosa, assentam justamente num pressuposto: o pressuposto da consistência das expectativas sobre que incide a controvertida alteração legislativa. Sem expectativas consistentes desqualifica-se o problema da proteção da confiança. Então impõe-se a liberdade do legislador e a auto-revisibilidade que lhe vai ligada.»[6][3]
É que,«(..) não há um direito à não frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. (..). As medidas legislativas de política económica conjuntural poderão ser alteradas, em frustração de expectativas, se a conjuntura económica mudar em consequência da mudança de governo constitucionalmente previsível. Nada dispensa a ponderação na hipótese do interesse público na alteração da lei em confronto com as expectativas sacrificadas»[7][4].

Vemos, assim, que não basta a frustração de expectativas jurídicas para que, automaticamente, se considere violado o referido princípio da confiança jurídica. É necessário, por um lado, que essas expectativas sejam consistentes de modo a justificar a proteção da confiança e, por outro, que na ponderação dos interesses público e particular em confronto, aquele tenha de ceder perante o interesse individual sacrificado, o que acontecerá sempre que as alterações não forem motivadas por interesse público suficientemente relevante face à Constituição (cf. art° 18°, nº 2 e 3), caso em que deve considerar-se arbitrário o sacrifício excessivo da frustração de expectativas.»

No caso em apreço, inexiste factualidade relevante que estribe uma expetativa da Autora no sentido de que poderia impulsionar o processo a seu bel-prazer sem sujeição à cominação temporal do Artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil.

Termos em que improcede a arguição da inconstitucionalidade material.

Inadmissibilidade da deserção parcial da instância.

Finalmente, argui a apelante que a falta de impulso processual não respeita a todos os réus mas apenas a cinco, nenhum obstáculo existentes quanto à prossecução dos autos em relação aos restantes 23 Réus. Invoca ainda que existe um litisconsórcio voluntário passivo.

Todavia, a instância é única de modo que a deserção da instância é uma causa de extinção total da instância (Artigo 277º, alínea c)), não prevendo a lei a figura da deserção parcial da instância. A tese da apelante, pugnando pela existência da figura da deserção parcial, convolaria a deserção da instância numa espécie de desistência não definitiva do pedido quanto a alguns Réus. Ora, a desistência do pedido constitui uma realidade totalmente distinta da deserção da instância (cf. Artigo 285º, nº1 do Código de Processo Civil) e a lei processual não admite a desistência não definitiva do pedido.

Cabia à apelante, querendo e agindo com devida diligência, ter desistido oportunamente do pedido quanto a alguns dos Réus em causa (cf. Artigo 288º, nº1, do Código de Processo Civil).

Termos em que, também aqui, improcede a argumentação aduzida pela apelante.

DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 20.12.2016


                                  
(Luís Filipe Pires de Sousa)
(Carla Câmara)                                  
(Maria do Rosário Morgado)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas ...s, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3]Cf. no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4.6.2009, Ondina Alves, 67/00.