Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
303/22.3T8CSC.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
JUSTA CAUSA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
COVID-19
OBRIGAÇÃO DE USO DE MÁSCARA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A obrigatoriedade do uso da máscara de protecção no contexto de relação laboral em período declarado de pandemia provocada pela COVID-19 não viola o princípio da dignidade da pessoa nem os consequentes direitos à identidade e ao desenvolvimento da personalidade, pois o direito à saúde prevalece sobre todos eles e por isso não é inconstitucional (art.ºs 1.º, 26.º, n.º 1, 24.º e 64.º da CRP).
II. Não ocorre justa causa para resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador se o empregador lhe não permitir a prestação de trabalho sem usar máscara de protecção.
(sumário da autoria do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.
AA intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum, contra LIDL & CIA, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de €9.048,00, acrescida de juros à taxa legal de 4%, até integral pagamento, alegando, em síntese, que:
• foi admitida para trabalhar sob a autoridade e direcção da Ré no dia 5 de Maio de 2005;
• exercia as funções de Operadora especializada;
• auferia a retribuição mensal de €565,50;
• tinha horário de trabalho rotativo – por turnos;
• a entidade patronal resolveu obrigar a trabalhadora a andar mascarada no local de trabalho devido às recomendações pandémicas da DGS;
• com o pretexto de que não eram recomendações, mas sim porque 'a lei mandava'.;
• no exercício do seu trabalho a A. carregava grandes pesos fosse em caixas ou paletes, inclusivamente os trazia do armazém;
• o que foi provocando uma situação insuportável de falta de ar, tonturas e dificuldade em raciocinar, irritação na garganta e tremores, sentiu-se vexada e oprimida, desrespeitada e profundamente ofendida, nunca pensando que podia ser impedida de trabalhar e de ganhar o seu ganha-pão, devido ao uso de uma máscara que, nem sequer possui qualquer prova científica da sua eficácia;
• consubstanciando como é do conhecimento público, uma medida meramente política e contrária a qualquer ciência independente e em vigor antes da pandemia ao que, a trabalhadora, temendo por danos irreversíveis, porque se encontra bem informada sobre os prejuízos do uso de máscara teve que passar a apresentar-se diariamente ao trabalho sem máscara;
• ora, a trabalhadora informou as chefias nos dias 13 e 14 de Setembro, que já não era obrigada a usar máscara, sendo-lhe ordenado que teria que usar máscara para poder trabalhar e que estava enganada;
• sempre que se apresentou ao trabalho sem máscara, os chefes não a deixaram trabalhar e nem sequer picar o ponto, sendo impedida de trabalhar durante 11 dias pelas chefias, provocando alegadas faltas ao serviço, sem que elas na realidade ocorressem;
• assim, por falta total de interesse em iniciar conversações da entidade patronal, fosse através dos seus chefes ou através do departamento jurídico (completamente notório depois da resolução do contrato de trabalho) a trabalhadora viu-se obrigada a apresentar resolução do contrato de trabalho com justa causa (Doc.2), nos termos do disposto no n.º 1 e alínea f) do n.º 2 do artigo 394.º do Código do Trabalho, com o fundamento na continuidade da obrigação do uso de máscara durante toda a actividade laboral depois daquele uso já não ser obrigatório, tanto em espaços interiores, como exteriores, devido à extinção por decurso no tempo da Lei n.º 62-A/2020, de 27 de Outubro que, deixou de estar em vigor no dia 12 de Setembro de 2021;
• ao facto de ser ilegal a sua obrigação desde o dia 12 de Setembro, acresce os danos de saúde física e psicológica injustificados que, o uso de máscaras causa (agravados porque a trabalhadora acarta pesos) e não existir qualquer prova científica da eficácia de protecção quanto a este vírus e nem sequer foi divulgado pela DGS/MS de forma pública o que o uso de máscaras pela comunidade em geral acarretava para a saúde dos cidadãos; mais, sentiu-se ofendida na dignidade pessoal e profissional durante os 11 dias que se apresentou ao trabalho e até se fardou e picou o ponto, sendo impedida de trabalhar e ainda coagida a usar máscara como se fosse um açaime de obediência e uma forma de humilhação.
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.
Para tal notificada, a ré contestou, impugnando a versão da autora no que concerne à obrigatoriedade de uso da máscara e alegando que até à data dos factos nunca a mesma se lhe queixou do seu uso, nem juntou qualquer comprovativo médico atestando qualquer condição médica impeditiva do seu uso e concluindo pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
Proferido despacho saneador, foi julgada a instância válida e regular, fixado o objecto do processo, absteve-se de enunciar dos temas da prova, admitiu as provas arroladas pelas partes e designou data para realização da audiência de julgamento.
Realizada a audiência de julgamento, a Mma. Juíza preferiu a sentença, na qual julgou a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
Inconformada, a autora interpôs recurso, pedindo que a sentença proferida seja revogada e substituída por outra que venha a julgar a acção procedente e provado, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"I - Existe falta de pronúncia do Tribunal a quo quanto ao que foi alegado pela autora no âmbito científico, se o Tribunal não tivesse elementos necessários para apreciar a causa teria que notificar a DGS/MS como interveniente acidental ou ordenar as respectivas peritagens.
II - A resolução em conselho de Ministros 10-A/2020 e diplomas seguintes que visavam perpetuar os efeitos daquela resolução são inconstitucionais.
III - A trabalhadora não podia ter sido impedida de trabalhar sem que tal ordem fosse legitima, sendo condição dessa legitimidade o prévio esgotamento dos meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil dessa mesma ordem, ou seja, a testagem por médico para que se auferisse se a trabalhadora dispunha de alguma doença contagiosa que fosse susceptível de se propagar para os outros cidadãos e colegas.
IV - Fica patente que, a trabalhadora não desobedeceu à entidade patronal, dado que essa desobediência pressupõe a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos, o que não aconteceu.
V - Inclusivamente nunca foi aberto processo disciplinar e a trabalhadora não foi suspensa previamente no âmbito daquele.
VI - Apenas foi impedida de trabalhar pelas chefias, sem qualquer legitimidade de direito.
VII - E note-se que, de acordo com a DGS todos os colegas e clientes já se encontram seguros quanto à alegada propagação da virose com o uso de máscaras.
VIII - De acordo com os conceitos da DGS, a trabalhadora ao não usar máscara era a única que se podia contagiar por o tal vírus que viria de local desconhecido e 'a voar', dado que dos clientes e dos colegas não poderia vir porque estavam mascarados.
IX - Fica patente que, a trabalhadora não desobedeceu à entidade patronal, dado que essa desobediência pressupõe a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos, o que não aconteceu.
X - Inclusivamente nunca foi aberto processo disciplinar e a trabalhadora não foi suspensa previamente no âmbito daquele.
XI - Criar resoluções em conselho de ministros para limitar direitos e deveres constitucionais são inválidas e nulas por inconstitucionais, por violação das competências do Governo.
XII - O uso obrigatório de máscaras também é manifestamente inconstitucional (material) da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 13.º-B, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10.º-A/2020, de 13 de Março, por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade e dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados, respectivamente, nos artigos 1.º, 18.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição.
XIII - A imposição do uso de uma máscara como adereço obrigatório no contexto da actividade humana de estar e de circular em locais de acesso público, comerciais ou de prestação de serviços é uma clara afronta ao direito à identidade pessoal na sua vertente mais essencial da identidade física, bem como se traduz num mecanismo de eliminação da própria individualidade, bulindo, dessa forma, com o direito ao desenvolvimento da personalidade, colidindo, por consequência, com o princípio da dignidade da pessoa humana, que alicerça a própria República Portuguesa e de que aqueles são garantia.
XIV - No que diz respeito ao direito à identidade pessoal, nem mesmo a declaração de estado de sítio ou de estado de emergência o pode afectar (artigo 20.º, n.º 6, da Constituição), mas nos dias dos factos nem sequer existia esses estados usados a mando dos interesses externos e violadores da soberania portuguesa prevista na CRP.
XV - Também não é perceptível que gravidade e consequências resultaram dos dias dos factos pela trabalhadora não ter usado a máscara. Não sendo inteligível sequer, violando qualquer pressuposto racional e intelectual. Alguém morreu? Alguém foi contaminado pelo tal Covid-19? Impossível, porque a trabalhadora estava e está saudável! E nem nunca teve o tal vírus COVID-19.
XVI - Não obstante, o uso de máscaras ou não pela trabalhadora não trazia qualquer benefício para a sua saúde e dos outros, dado que são ineficazes na transmissão do tal COVID-19.
XVII - Como também, altamente prejudiciais para a Saúde, conforme explanado.
XVIII - Os testes RT-PCR - Zaragatoa nasal, usados incorrectamente para criar e alimentar os casos positivos e a pandemia, não têm qualquer fiabilidade para diagnosticar viroses, tendo uma margem de erros de 97%. Pelo que, nem sequer poderia ter sido declarada a pandemia e em consequência serem impostas medidas de saúde pública".
Contra-alegou a ré, sustentando que deve ser negado provimento à apelação.
A Mma. Juiz a quo sustentou não ter cometido a nulidade apontada na apelação, admitiu o recurso e determinou a sua remessa a esta Relação e aqui chegado foi com vista ao Ministério Público,1 tendo o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto sido de parecer no sentido da manutenção da sentença recorrida.
Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente e pelas questões de que se conhece ex officio,2 as quais consistem em saber se:
i. na sentença houve falta de pronúncia quanto às questões científicas alegadas pela apelante;
ii. se a obrigatoriedade do uso da máscara no contexto da relação laboral existente era inconstitucional;
iii. se ocorreu a invocada justa causa na resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador;
iv. nesse caso, se o trabalhador tem direito aos peticionados créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho bem como da indemnização por danos não patrimoniais peticionados.
***
II - Fundamentos.
1. Factos julgados provados:
"1 - A Autora foi admitida para trabalhar sob a autoridade e direcção da R. no dia 5 de Maio de 2005.
2 - Exercia as funções de Operadora especializada, na posição de operador de loja, na Loja da Ré sita na X.
3 - Auferia a retribuição mensal ilíquida de € 565,50.
4 - Tinha o seguinte horário de trabalho.
- segundas-feiras, terças-feiras, quartas-feiras e sextas-feiras das 9h00 às 13h30;
- quintas-feiras, em regra, das 14h45 às 18h15.
5 - No exercício do seu trabalho a Autora, entre outras funções que lhe cabiam desempenhar, carregava pesos fosse em caixas ou paletes, inclusivamente os trazia do armazém.
6 - No dia 20 de Setembro de 2021, a trabalhadora informou as chefias, que não iria utilizar máscara porque, segundo ela, não estava obrigada a tal, único fundamento que aduziu nesse momento.
7 - Sendo-lhe ordenado que teria que usar máscara para poder trabalhar e que estava enganada.
8 - Sempre que se apresentou ao trabalho sem máscara, os chefes não a deixaram trabalhar.
9 - O que ocorreu a partir do dia 21-09-2021.
10 - Provocando faltas ao serviço.
11 - Por carta datada de 05-10-2021, que a Ré recebeu, a Autora comunicou esta a resolução do contrato de trabalho, invocando justa causa, nos seguintes termos:



12 - A Ré tem como objecto social, Comércio de produtos alimentares e de consumo, incluindo a venda de produtos e dispositivos médicos e de produtos, materiais e livros didácticos e de educação, restauração e bebidas, bem como a prospecção, compra, venda, arrendamento, gestão de imóveis próprios, construção, remodelação e gestão de propriedades e ainda a edição, publicação e distribuição de jornais e outros produtos de imprensa, bem como a prestação de serviços de apoio ao cliente.
13 - No exercício das suas funções a Autora trabalhava em loja, em contacto directo e permanente com os clientes.
14 - A partir do momento em que, por força de lei, passou a ser obrigatório o uso de máscara nos estabelecimentos comerciais, a Ré deu instruções a todos os seus colaboradores no sentido de ser obrigatório para o desempenho das suas funções a referida utilização de máscara facial.
15 - Instrução esta que foi acolhida por todos os colaboradores da Ré, inclusive pela própria Autora que, ao longo de mais do que um ano, desempenhou todas as suas funções utilizando máscara facial de protecção.
16 - Ao longo de todo esse tempo, a Autora nunca mencionou sentir-se coagida, vexada ou oprimida por utilizar máscara,
17 - Nem nunca referiu que o uso de máscara lhe provocava danos na sua saúde física ou psicológica,
18 - Nunca referiu ou evidenciou falta de ar, tonturas, irritação na garganta e tremores.
19 - A Autora em momento algum apresentou qualquer declaração médica que atestasse que a sua condição física não se coadunava com o uso de máscara ou viseira.
20 - Ao contrário, ao longo de todo esse período, a Autora sempre desempenhou as suas funções habituais em loja, usando máscara facial, sem nunca ter mencionado, evidenciado e comprovado que tal utilização não lhe era possível.
21 - Na data referida em 6), tentou a sua chefia esclarecer a Autora que o uso de máscara continuava a ser exigido e obrigatório para todos os colaboradores e que se mantinham as instruções em vigor na Ré.
22 - Mas a Autora manteve a sua posição de não utilizar máscara, sendo que nesse dia e enquanto a chefia tentou por todos os meios esclarecer a Autora, esta exerceu funções exclusivamente em armazém, sem utilizar máscara e sem qualquer contacto com os Clientes,
23 - Naquele mesmo dia 20 de Setembro, para o esclarecimento da questão colocada pela a Autora, a sua chefia recorreu ao Departamento de Recursos Humanos e Jurídico da Ré que lhe enviou a legislação em vigor, no sentido de esclarecer a Autora.
24 - Tendo-lhe então sido apresentada toda a documentação enviada.
25 - A chefia da Autora tentou ainda explicar-lhe que era lícito à Ré dar tal instrução, mas aquela recusou-se a ler os documentos que lhe foram entregues e a ouvir qualquer explicação, reiterando a sua atitude intransigente de não utilizar máscara, por entender não estar obrigada a tal.
26 - Atitude que manteve nos dias que se seguiram.
27 - Perante a conduta da Autora de se apresentar para trabalhar sem querer utilizar máscara facial em loja, foi-lhe transmitido pela chefia que para desempenhar as suas funções teria de respeitar as normas e instruções em vigor quanto ao uso de máscara.
28 - Contudo, conhecendo as instruções em vigor na Ré, aplicadas sem excepção a todos os trabalhadores da Lidl e colegas da Autora, optou consciente e deliberadamente, por não trabalhar em cada um daqueles dias de acordo com as normas em vigor e as instruções do seu empregador por não querer trabalhar com máscara facial e, por esse motivo, não lhe foi permitido desempenhar as suas funções habituais.
29 - As instruções em vigor na Ré quanto ao uso de máscara facial pelos seus trabalhadores no local de trabalho são claras e do conhecimento de todos os trabalhadores.
30 - Tais instruções são aplicadas indistintamente a todos os trabalhadores e não só à Autora, para garantir a segurança dos próprios trabalhadores e de Clientes.
31 - A postura da Autora levou à elaboração de relatórios ocorrência.
32 - Na verdade, em 01-10-2021, BB, superior hierárquico da Autora, comunicou superiormente o seguinte:


33 - Na sequência da ocorrência relatada, CC, comunicou, em 04-10-2021, superiormente o seguinte:
34 - Procedimento disciplinar esse que não avançou por força da comunicação da Autora referida em 11), entretanto decepcionada".
2. O direito.
2.1 Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando pela de saber se a sentença é nula, por omissão de pronúncia.
E a este propósito diga-se desde logo que a apelante não qualificou em lugar algum do recurso aquilo que designou de "falta de pronúncia do Tribunal a quo quanto ao que foi alegado pela autora no âmbito científico" como nulidade, por omissão de pronúncia, tal qual prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do Código de Processo Civil, nem, consequentemente, pediu a declaração de nulidade da sentença; mas porque a falta de pronúncia não é mais que a omissão da mesma, sempre convirá abordar a temática nesta perspectiva precisamente para que depois se não acuse o acórdão deste vício.
Enfrentando então esta questão importa lembrar que sobre ela disse a Mma. Juiz a quo, fazendo o seu enquadramento na citada norma processual:
"(…)
A invocada nulidade está directamente relacionada com o comando fixado no n.º 2, do art.º 608.º, do CPCivil, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetidas à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela solução dadas às outras.
A este respeito é pacífica a jurisprudência a nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes. Cf. entre muitos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, proferido no processo n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1.
Ora, o Tribunal não deixou de se pronunciar quanto a tal questão".
Tem razão a Mma. Juiz a quo, como de resto salientaram, primeiro a apelada e depois o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
Apesar e sem prejuízo disso, em reforço do afirmado sempre se dirá que os aspectos científicos relativos ao vírus em questão respeitam à matéria de facto e sobre isso disse a sindicada sentença:
"De resto, não se logrou provar quaisquer outros factos relevantes, alegados ou não, resultantes da discussão da causa, e/ou que estivessem em oposição com os factos atrás referidos, designadamente que:
(…)
f) Inexiste prova científica da eficácia do uso de máscara como medida de prevenção de contágio e proliferação do coronavírus SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19.
(…)".
Fica assim claro que a sentença não padece da invalidade que a apelante lhe imputou pois que é seguro ter-se pronunciado expressamente sobre a cientificidade alegada pela apelante sobre a natureza daquele vírus.
Acresce dizer que sempre seria de afastar a nulidade tendo em conta os termos em que a apelante formulou a conclusão. Repare-se que a apelante sustenta-se na conclusão de que "se o Tribunal não tivesse elementos necessários para apreciar a causa teria que notificar a DGS/MS como interveniente acidental ou ordenar as respectivas peritagens", mas se o Tribunal o não fez foi seguramente porque dispôs dos elementos necessários para decidir (sendo de enfatizar o pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo considerado pela apelante, ou seja, uma mera hipótese).
Para finalizar, não deixa de ser irónico, ou mais rigorosamente, contraditório, que a apelante pretendesse que o Tribunal (caso tivesse dúvidas…) convocasse aos autos a DGS para contribuir para tudo isto esclarecer quando a incluiu, na motivação da apelação, na "seita covídiaca" a que teria aderido, quando, ainda nas suas palavras, "o Tribunal a quo não pode seguir seitas, crenças, hipocrisias do socialmente correcto, nem tendências políticas" (em grande parte disso, reconheça-se, bem andou o Tribunal em tal não fazer).
Em resumo, dir-se-á que nesta parte se não pode conceder a apelação da autora.
2.2 Apreciemos agora a segunda questão suscitada na apelação da autora, a qual, relembra-se, consistia em saber se a obrigatoriedade do uso da máscara no contexto de relações laborais executadas em estabelecimentos comerciais abertos ao público, como era a existente entre as partes, era inconstitucional; o que manifestamente resultava dos termos conjugados dos art.ºs 13.º-B do Decreto-Lei n.º n.º10-A/2020 (na redacção dada pelo Decreto Lei n.º 28.º-B/2020, de 26/06/2020), do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto Lei n.º 78-A/2021, de 29-09-2021) e do Decreto-Lei n.º 57-A/2022, de 26 de Agosto (que por fim fez tal fez cessar; note-se que os factos remontam ao período entre 21-09-2021 e 05-10-2021).
E também aqui se impõe dizer que não assiste razão à apelante autora.
Com efeito, a dignidade da pessoa e os consequentes direitos à identidade e ao desenvolvimento da personalidade são efectivamente princípios normativos constitucionalmente consagrados (art.ºs 1.º e 26.º, n.º 1 da CRP), mas também o é o direito à saúde e este, inequivocamente, prevalece sobre todos aqueles pois que anda paredes meias com o direito à vida e de ambos com propriedade se pode dizer que são verdadeiramente absolutos (art.ºs 24.º e 64.º da Constituição da República).
Em todo o caso, convém não dramatizar o uso de máscara versus direito à identidade pessoal pois que este é reconhecido pelo n.º 1 do art.º 26.º da Constituição da República tendo em vista sobretudo a efectivação do direito de todos os cidadãos a conhecer e ver reconhecido o seu nome e a sua ascendência biológica3 e é manifesto que nada disso é afectado pelo uso daquela, desde logo porque temporário; e mesmo que se entenda (como é o caso) que o direito à identidade parte da necessidade de cada um poder afirmar quem é e de assim ser conhecido e nessa medida distinguir-se das demais pessoas nas relações sociais, nas suas variadas vertentes (físico-biológica, seguramente, mas também política, ideológica, religiosa, enfim, cultural), é a todos os títulos evidente que também isso não é coarctado pelo uso de máscara imposto pela lei como melhor meio ao tempo conhecido e disponibilizado pela ciência e pela tecnologia para combater a pandemia com que o mundo então se confrontou (poderia dificultar, isso concede-se, mas não mais que isso).
Por outro lado, como bem lembrou o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, sobre esta questão já decidiu o plenário do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 196/2023, de 18-04-2023, no processo n.º 1089/2020,4 tendo então decidido arrepiar caminho face a anterior decisão e agora "não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, na interpretação segundo a qual, a violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo, concretamente, pelos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância activa, constitui crime de desobediência, punível nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e cuja aplicabilidade foi recusada na mencionada sentença, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação dos artigos 29.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa", isto porque, inter alia, "qualquer destinatário da norma penal poderia: i) face ao disposto no artigo 7.º do RESEE antecipar que os comportamentos de violação das normas de regulamentação governamental da Declaração do Estado de Emergência seriam punidos a título de desobediência; ii) face à Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18 de Março, e ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, compreender que o Governo ficou habilitado a limitar a liberdade '[…] de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional', e a impor as '[…] restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde […]'; e iii) face ao Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, estabelecer a ligação entre a sua ausência indevida do domicílio e a consequência penal", pelo que idêntica razão vale para decidir no caso sub iudicio relativamente à determinação de igual medida para o ambiente de trabalho em estabelecimentos comerciais abertos ao público resultantes dos diplomas atrás citados (vd. designadamente o art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, na redacção do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio).
Daí que também nesta parte se não concede a apelação.
2.3 Vejamos agora se, como pretende a apelante, ocorreu a invocada justa causa na resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador, sendo certo, diga-se, que o ónus da prova corria por sua conta, aqui a apelante (art.ºs 395.º, n.º 1 do Código do Trabalho e 342,º, n.º 1 do Código Civil; neste sentido, entre outros vd. o acórdão da Relação do Porto, de 24-10-2022, no processo n.º 1953/21.0T8OAZ.P1, publicado em http://www.dgsi.pt; com excepção, naturalmente, dos factos relativos à culpa pois que esta se presume ex vi dos art.ºs 344.º, n.º 1, 350.º, n.º 1 e 799.º, n.º 1 do Código Civil).
Os aspectos dogmáticos acerca da resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador são os enunciados na sentença e sobre eles não existe qualquer controvérsia nos autos, limitando-se esta ao enquadramento ali feito dos factos provados.
Sobre questão similar a esta (e que a ela conduz, deve dizer-se) já decidiu esta Relação de Lisboa, em acórdão de 18-12-2019, no processo n.º 7318/18.4T8LSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt, que "a conduta do trabalhador, que recusa prestar trabalho, num contexto de doença que exige o uso de uma máscara eficaz contra os elementos nocivos inerentes a tal trabalho, discutindo o eficácia e o uso da máscara proposta com a sua entidade patronal, não integra o conceito de justa causa de despedimento, embora seja merecedora de uma decisão disciplinar, de índole correctiva mas conservatória, verificados que estão os factos descritos sob os n.ºs 36, 34, 35 e 41 dos provado"; sendo certo que este modo de ver as coisas, agora com indiscutível e directa incidência na questão sub iudice, decidiu depois o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 07-07-2023, no processo n.º 17293/20.0T8SNT-A.L1.S2, publicado em http://www.dgsi.pt, que "constitui justa causa de despedimento a conduta de um trabalhador, sub-chefe de loja num supermercado, essencialmente consubstanciada no seguinte: i) entre Maio e Julho de 2020, desobedeceu ilegitimamente a ordens da empregadora, recusando apresentar-se em consultas de medicina do trabalho para avaliar se a sua condição de saúde era impeditiva de uso de máscara ou viseira; ii) incumprimento das regras de segurança e saúde estabelecidas na lei e no Plano de Contingência elaborado pelo empregador, ao recusar usar viseira no âmbito do seu trabalho em loja, recusa que reiterou mesmo após o médico do trabalho afirmar inexistir impedimento a esse uso; iii) faltas injustificadas, ao deixar de comparecer ao serviço quando o empregador recusou a sua prestação laboral na loja sem máscara ou viseira".
E não se diga, como a apelante, que não desobedeceu à entidade patronal por isso pressupor uma ordem formal, que tem por inexistente no caso em apreço; é que, como está bem de ver, outra coisa não resulta dos factos provados 27 a 29 que não seja precisamente essa ordem, em recta conexão com os normativos atrás citados (repisa-se, sobretudo o art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, na redacção do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio)! Assim: "27 - Perante a conduta da Autora de se apresentar para trabalhar sem querer utilizar máscara facial em loja, foi-lhe transmitido pela chefia que para desempenhar as suas funções teria de respeitar as normas e instruções em vigor quanto ao uso de máscara. "28 - Contudo, conhecendo as instruções em vigor na Ré, aplicadas sem excepção a todos os trabalhadores da Lidl e colegas da Autora, optou consciente e deliberadamente, por não trabalhar em cada um daqueles dias de acordo com as normas em vigor e as instruções do seu empregador por não querer trabalhar com máscara facial e, por esse motivo, não lhe foi permitido desempenhar as suas funções habituais. 29 - As instruções em vigor na Ré quanto ao uso de máscara facial pelos seus trabalhadores no local de trabalho são claras e do conhecimento de todos os trabalhadores".
Acresce que tratando-se de resolução do contrato de trabalho com justa causa por parte do trabalhador a prova da justa causa competia à apelante, conforme atrás referido. Ora, estando em vigor obrigação legal para o uso de máscara nos locais de trabalho e tendo-se a apelada limitado a implementar essa obrigação legal nos seus estabelecimentos, a verdade é que a apelante não logrou provar, como lhe competia, que aquela deu causa de forma ilícita e culposa à cessação do contrato de trabalho.
Daí que e porque se concorda integralmente com este modo de ver as coisas se terá que concluir pelo improvimento da apelação; e tudo isto prejudica o conhecimento da subsequente e última questão suscitada na apelação pois que consistia em saber se não fosse esse o caso, a apelante teria direito aos peticionados créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho bem como da indemnização por danos não patrimoniais peticionados, mas como não é, a questão não se põe (n.º 2 do art.º 608.º do Código de Processo Civil).
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III - Decisão.
Termos em que se acorda negar provimento à apelação e manter a sentença recorrida.
Custas pela apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
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Lisboa, 10-04-2024.
Alves Duarte
Manuela Fialho
Alda Martins
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1. Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
2. Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte.
3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-11-2018, no processo n.º 1885/16.4T8MTR.E1.S2, publicado em http://www.dgsi.pt.
4. Publicado em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230196.html.