Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
32/14.1TBALM-A.L1-6
Relator: ANTÓNIO MARTINS
Descritores: CREDOR HIPOTECÁRIO
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Os créditos garantidos por hipoteca, constituídas anteriormente, devem ser graduados para serem pagos em primeiro lugar, relativamente a cada um dos imóveis hipotecados, prevalecendo sobre o crédito reclamado pela Fazenda Pública, respeitante a IRS.
- O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares apenas confere ao Estado um privilégio imobiliário geral, e não especial, nos termos dos art.ºs 733º, 734º, 735º nº 3 e 736º, todos do Código Civil, bem como artº 111º do Código do IRS.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

 
I- RELATÓRIO:


1. Nos presentes autos de reclamação de créditos[1], instaurados por apenso aos autos de execução sumária, em que são exequente, executada e reclamante os supra identificados, foi apresentada reclamação de créditos, pelo credor reclamante, pedindo o reconhecimento de um crédito que a Fazenda Nacional tem sobre a executada, relativa a Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) inscrito para cobrança no ano de 2013, e a sua graduação a final, com a prioridade que lhe competir.

2. A referida reclamação não foi impugnada.

3. Prosseguindo o processo os seus regulares termos, foi proferida sentença que decidiu julgar verificados o crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional e graduou-o para ser pago pelo produto da venda do bem penhorado pela seguinte ordem:
“1º -Créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional a fls. 3, emergentes do I. R. S. e respectivos juros;
2º -Crédito exequendo;”.

4. É desta decisão que, inconformado, o credor apelante veio interpor recurso de apelação, pretendendo a revogação da sentença recorrida.

Alegando, conclui:

1. Não se conforma o Recorrente com o teor da sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal a quo, que graduou o crédito da Fazenda Pública proveniente de dívidas de IRS, do ano de 2013 e inscritas para cobrança nesse mesmo ano, com preferência sobre o crédito exequendo.

2. Nos autos de execução, foi peticionado pelo ora Recorrente o pagamento coercivo dos seus créditos, no valor de € 185.661,88, acrescido dos respetivos juros, emergentes dos contratos de mútuo, garantidos por hipotecas sobre os imóveis penhorados nos presentes autos, a saber:

- Fração autónoma designada pela letra E, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 16840 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 4440; e
-Fração autónoma designada pela letra O, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1399 e inscrito na matriz predial sob o artigo 34.

3. As hipotecas encontram-se registadas através da Ap. 16 de 2008/01/07,  da  Ap.  67 de 2002/12/04, da Ap. 68 de 2002/12/04 e da Ap. 2904 de 2012/01/04.

4. Nos termos do disposto no art. 686.º do Código Civil, as hipotecas conferem ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

5. Assegurando as hipotecas os acessórios dos créditos que constem do registo - no tocante a juros o limite temporal é de três anos - art. 693.º, n.º 1 e 2 do Código Civil.

6. O Tribunal a quo na sentença recorrida apenas teve em linha de conta que a quantia exequenda beneficiava de garantia real proveniente da penhora registada sobre os referidos prédios urbanos, ignorando por completo a existência das garantias hipotecárias registadas a favor do ora Recorrente.

7. Efetivamente, a sentença recorrida não faz qualquer menção às hipotecas registadas a favor do Recorrente para garantia dos contratos de mútuo celebrados e apresentados à execução.

8. Por apenso aos autos de execução, e após a citação de credores prevista no art. 788.º do C.P.C., veio a Fazenda Pública, reclamar o pagamento dos seus créditos provenientes de dívidas de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) no valor total de € 3.180,55, constituídas em 16/10/2013 e inscritas para cobrança em 2013.

9. O crédito reconhecido relativo a IRS apenas goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário - art. 736.º, n.º 1 do Código Civil e art. 111.º do Código do IRS.

10. Do art. 111.º do Código do IRS de resulta expressamente que: "Para pagamento do IRS relativo aos últimos três anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente ".

11. Os respetivos juros de mora gozam do mesmo privilégio atribuído por lei à dívida sobre a qual recaírem - art. 8.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março.

12. Pelo que, claramente o crédito da Fazenda Pública proveniente de dívidas de IRS goza apenas de privilégio mobiliário e imobiliário geral e não de privilégio mobiliário e imobiliário especial.

13. O Tribunal Constitucional (Ac 362/2002) declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da interpretação segunda a qual o privilégio imobiliário geral conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do art. 751.º do Código Civil, por violação do princípio da confiança, ínsito no Estado de Direito - art. 2.º Constituição da Republica Portuguesa.

14. Perante o acima exposto, não deverá o crédito proveniente de IRS, reclamado pela Fazenda Pública, ser graduado à frente do credor hipotecário.

15. Deve outrossim o crédito do Recorrente prevalecer sobre o crédito reclamado pela Fazenda Pública respeitante a IRS.

16. A sentença recorrida viola o disposto nos art.ºs 686.º, n.º 1, 735.º, n.º 3, 749.º e 751.º, todos do Código Civil, e deve, por isso, ser revogada e substituída por outra que reconheça e verifique o crédito exequendo do Recorrente beneficia de garantia real proveniente das hipotecas registadas sobre as frações autónomas penhoradas nos autos de execução e os gradue com preferência sobre os créditos de IRS reclamados pela Fazenda Nacional.

4. Não foram apresentadas contra-alegações.  

5. Dispensados os vistos com a concordância das Exmªs Juízas Adjuntas, dada a natureza simples da questão a decidir, cumpre apreciar.

*

II- FUNDAMENTAÇÃO:

1. De facto:
                      
1.1. Na decisão recorrida não se procedeu à declaração dos factos provados, em fundamentação autónoma, nos termos preceituados no nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil[2], embora resulte daquela decisão que o tribunal a quo tomou em consideração que:

a) Nos autos apensos de execução sumária foram penhoradas as seguintes fracções autónomas constantes de auto de penhora datado de 22.01.14 (cfr. fls 89/90):

i)designada  pela  letra  E,  inscrita  na  matriz  sob o artigo 16840
Freguesia  da ...,  descrito  na  2ª  Conservatória  do  Registo  Predial  de ... sob o nº4440;

ii) designada pela letra O, inscrita na respetiva matriz sob o nº1399, Freguesia de ..., descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº34;
 
b) O Mº Pº, em representação da Fazenda Nacional, reclamou créditos no montante de € 3.180,55, acrescidos dos correspondentes juros de mora, provenientes de I.R.S., inscritos para cobrança no ano de 2013 em dívida pela executada;

1.2. Devem ainda tomar-se em consideração, ao abrigo do art. 607º nº 4 citado, os seguintes factos documentalmente comprovados nos autos:

a) O exequente intentou a execução sumária com vista ao pagamento coercivo dos seus créditos, no valor global de € 185.661,88 acrescidos dos respetivos juros, emergentes de contratos de mútuo;

b) Sobre os imóveis penhorados nos presentes autos, foram constituídas e registadas hipotecas, para garantia dos créditos do exequente, nos seguintes termos:

i) Sobre a fração autónoma designada pela letra E, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 16840 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 4440, mostram-se constituídas e registadas as seguintes hipotecas voluntárias:

- pela Ap. 67 de 04.12.2002, pelo montante do capital de € 39 983,83 e montante máximo de € 50 861,42;

- pela Ap. 68 de 04.12.2002, pelo montante do capital de € 29 927,87 e montante máximo de € 38 092,19;

- pela Ap. 2904 de 04.01.2012, pelo montante do capital de € 72 000,00 e montante máximo de € 107 280,00 (cfr. fls 93/95);

ii) Sobre a fração autónoma designada pela letra O, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1399 e inscrito na matriz predial sob o artigo 34, mostra-se constituída e registada, pela Ap. 16 de 07.01.2008, hipoteca voluntária pelo montante do capital de € 54 400,00 e montante máximo de € 72 243,20 (cfr. fls 91/92);

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2. De direito:

Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do CPC2013.

Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver pode equacionar-se, singelamente, da seguinte forma:

Os créditos do apelante, garantidos por hipoteca, devem ser graduados para serem pagos em primeiro lugar, relativamente aos imóveis em causa nos autos, prevalecendo sobre o crédito reclamado pela Fazenda Pública, respeitante a IRS?

Vejamos.

A decisão recorrida parece ter ignorado “por completo a existência das garantias hipotecárias registadas” (cfr. conclusão 6ª das alegações), como alega a recorrente e daí que apenas refira que “a exequente, pela penhora, adquiriu o direito de ser paga com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (artº 822º do C.C.)” - cfr. fls 15 destes autos. Por outro lado, considerou-se naquela decisão que o Estado detinha, como credor de um imposto directo, um privilégio creditório imobiliário geral e que os juros reclamados gozavam de igual garantia, invocando-se para tanto os art.ºs 736º, 733º e 734º, todos do Código Civil[3], o artº 111º do Código do IRS e, ainda, o artº 10º do Dec. Lei 49.168 de 05 de Agosto de 1969.

Ora a questão que a exequente suscita e bem, a nosso ver, é o facto de o tribunal a quo não ter tomado em consideração que os créditos exequendos estavam garantidos por hipotecas sobre os imóveis em causa, constituídas anteriormente ao crédito do Estado pela dívida do IRS.

Assim sendo, como é, em face da prova documental junta aos autos (v. nº 1.2 da fundamentação de facto), a graduação não pode ser feita atendendo apenas às penhoras de que beneficia o crédito exequendo, como se fez na decisão recorrida. Deve considerar-se antes que os créditos exequendos, beneficiando das hipotecas- e na medida desse benefício -, conferem por isso mesmo ao credor exequente “o direito a ser pago pelo valor de certas coisas imóveis…com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”, como estatui o artº 686º nº 1.

É precisamente o que ocorre com o crédito reclamado pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, já que o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares apenas confere ao Estado um privilégio imobiliário geral, e não especial, nos termos dos preceitos do Código Civil invocados na decisão recorrida e, ainda, art.ºs 735º nº 3 do mesmo diploma legal, bem como artº 111º do Código do IRS.

Com efeito, este último preceito, ao estatuir que “para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente”, não pode ser interpretado como conferindo ao Estado um privilégio imobiliário especial.

O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, através do acórdão nº 362/2002[4], da norma antecedente com o mesmo teor, o artº 104º do Código do IRS, na interpretação segundo a qual a mesma, em conjugação com o artº 751º, conferia ao Estado um privilégio imobiliário geral que preferia à hipoteca, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição.

Aliás, em conformidade com esta jurisprudência do Tribunal Constitucional o legislador veio dar uma nova redacção ao citado artº 751º através do artº 5º do DL 38/2003 de 08.03. Ao aditar a expressão “especiais”[5] aos privilégios imobiliários passou a clarificar-se que os privilégios imobiliários previstos no artº 751º são sempre e apenas os especiais previstos no Código Civil.

Note-se, porém, que o benefício concedido ao credor exequente, de ser pago preferencialmente por força das hipotecas registadas, não é global em relação ao crédito exequendo e conjuntamente em relação aos dois imóveis, como parece pretender o apelante nas alegações. Antes funciona e exerce-se, em relação a cada imóvel e na estrita medida do valor objecto da hipoteca e dos acessórios do crédito, nestes se incluindo os juros limitados a três anos por força do estatuído no art.º 693º nº 2, até ao montante máximo inscrito na hipoteca. 

Nestas circunstâncias é de concluir que a graduação de créditos efectuada na decisão recorrida não é a mais conforme aos privilégios de que gozam os créditos a graduar e à correcta interpretação dos citados textos legais.

À luz da interpretação que acima fizemos, em última análise considerando a jurisprudência do Tribunal Constitucional, e atendendo ao estatuído nos art.ºs 686º nº 1 e 749º, deste quadro jurídico decorre que os créditos reclamados e verificados devem ser assim graduados sucessivamente, em relação a cada imóvel: em primeiro lugar o crédito do exequente que esteja garantido por hipotecas, e só depois o crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional.

Neste sentido, num caso com total similitude, decidiu o STA através do acórdão de 13.01.2010 (Relator Casimiro Gonçalves)[6].

Procedem assim as conclusões das alegações do recorrente pelo que, respondendo positivamente à questão supra equacionada, se impõe revogar a decisão recorrida e graduar os créditos nos termos supra referidos. 
   
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III- DECISÃO:

Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes que integram esta 6ª Secção Cível em conceder provimento à apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, graduando os créditos nos seguintes termos:

1) Para serem pagos pelo produto da venda da Fracção O, inscrita na respetiva matriz sob o nº1399, freguesia de ..., descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº34:

a) o crédito do exequente garantido pela hipoteca registada sob a Ap. 16 de 07.01.2008, com o limite de três anos quanto aos juros;
b) o crédito reclamado pelo Mº Pº, em representação da Fazenda Nacional;
c) o remanescente do crédito do exequente;

2) Para serem pagos pelo produto da venda da Fracção E, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 16840 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 4440: 

a) os créditos do exequente garantidos pelas hipotecas registada sob as Ap. 67 de 04.12.2002, 68 de 04.12.2002 e 2904 de 04.01.2012, com o limite de três anos quanto aos juros;
b) o crédito reclamado pelo Mº Pº, em representação da Fazenda Nacional;
c) o remanescente do crédito do exequente;
Custas a cargo da executada – cfr. art.º 527º nº 1 do CPC2013.

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Lisboa, 18.06.2015


António Martins
Maria Teresa Soares
Maria de Deus Correia


[1]Proc. nº 32/14.1TBAL-A do 3º Juízo Cível de Almada e, actualmente, da Comarca de Lisboa – Almada – Instância Central - 2ª Secção de Execução – J1.
[2]Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável por força do disposto no art.º 8º da citada lei, adiante designado abreviadamente de CPC2013.
[3]Diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[4]Proferido no processo 403/2202 (relator: Maria dos Prazeres Beleza), publicado no DR - I-A, nº 239, de 16/10/2002, também acessível em www.tribunalconstitucional.pt
[5]O preceito ficou assim redigido:
“Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiriram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.
[6]Acessível em www.jusnet.pt sob o doc. nº Jusnet 49/2010