Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
88-A/1998.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
IMI
IRS
IRC
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Os créditos garantidos por hipoteca prevalecem sobre os créditos que beneficiam de privilégio imobiliário geral.
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 30.01.1998 “A” instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Loures ação de execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra “B”, tendo em vista obter o pagamento da quantia de Esc. 12 000 000$00 (€ 59 855,74).
No decurso da execução em 08.6.2010 foi penhorado um imóvel pertencente à executada, penhora essa que foi registada no registo predial mediante a apresentação 3723 de 07.07.2010.
Pela apresentação 980 de 02.02.2010 estava inscrita, sobre o prédio, a favor do Banco Espírito Santo, S.A., hipoteca voluntária, para garantia do valor máximo de € 169 800,00, resultante de empréstimo, com juros remuneratórios, juros de mora e despesas.
Por apenso à execução foram reclamados os seguintes créditos:
a) Pelo Instituto de Segurança Social, I.P., contribuições à segurança social respeitantes a remunerações, referentes a março de 2003, no valor de € 1 172,81, acrescidas de juros de mora no valor, até novembro de 2010, de € 656,77;
b) Pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, € 1 866,61 a título de IRS e de IRC dos anos de 2008 e 2010 e € 586,14 a título de IMI do ano de 2010;
c) Pelo Banco Espírito Santo, S.A., a quantia de € 127 334,49, por empréstimo hipotecário concedido à executada e em dívida.
Em 05.12.2012 foi proferida sentença em que se julgaram verificados os créditos reclamados pelo Ministério Público, por estarem garantidos, sobre o imóvel penhorado, com privilégio imobiliário, o crédito reclamado pelo BES, por estar garantido por hipoteca e o crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, I.P., apenas no valor respeitante a juros de mora (€ 656,77), único não prescrito, garantido por privilégio imobiliário.
A sentença graduou os créditos, a serem pagos com o produto do bem penhorado, pela seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional;
2.º O crédito do Instituto de Segurança Social, I.P.;
3.º O crédito do BES;
4.º O crédito do exequente.
O Banco Espírito Santo, S.A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
(…).
O apelante terminou as alegações formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente por provado e, consequentemente, a douta sentença de verificação e graduação de créditos, ora recorrida, ser revogada, na parte em que graduou, os créditos reclamados, quer pela Fazenda Nacional, a título de IRS, quer pela Segurança Social, antes do crédito do Banco Espirito Santo e, consequentemente, substituída por outra, que gradue o crédito garantido/hipotecário do Banco Espírito Santo, antes e com preferência aos créditos reclamados, quer pela Fazenda Nacional, a título de IRS, quer pela Segurança Social, ocupando o crédito reclamado pelo Banco Espírito Santo, o segundo lugar, na graduação, na medida em que o mesmo, prefere àqueles, com todas as demais consequências legais, com o que será feita inteira e costumada Justiça.”
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
No que concerne à verificação dos créditos a sentença não foi impugnada. Também não foi impugnado o posicionamento relativo do crédito do exequente em relação aos outros créditos ou o posicionamento do crédito do Instituto da Segurança Social em relação aos créditos da Fazenda Pública. Objeto do recurso é, pois, tão só o lugar que caberá ao crédito do apelante face aos créditos reclamados pelo Ministério Público e pelo ISS no pagamento pelo produto do imóvel penhorado.
O crédito do apelante beneficia de um direito real de garantia, a hipoteca voluntária que incide sobre o bem penhorado nos autos. A hipoteca confere-lhe o direito de ser pago pelo valor do prédio hipotecado com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686.º do Código Civil).
O privilégio creditório é, na definição legal, “a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” (art.º 733.º do Código Civil).
Os privilégios creditórios são mobiliários ou imobiliários, conforme o bem a que se reportam (n.º 1 do art.º 735.º do Código Civil).
Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente; são especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis (n.º 2 do art.º 735.º do Código Civil).
O privilégio geral não goza de sequela, ou seja, nos termos do n.º 1 do art.º 749.º do Cód. Civil, “não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”.
À data da publicação do Código Civil os privilégios imobiliários eram sempre especiais: daí que no n.º 3 do art.º 735.º estivesse consignado que “os privilégios imobiliários são sempre especiais.” O que se coadunava com a natureza dos privilégios imobiliários previstos no Código Civil, que são especiais (cfr. artigos 743.º e 744.º do Código Civil). Assim, nos termos do art.º 744.º n.º 1 do CC, os “créditos por contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores, têm privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição.”
A específica conexão do crédito a um bem imóvel determinado e o facto de à data da publicação do Código Civil os privilégios imobiliários serem especiais explica que no art.º 751.º do Código Civil se estipulasse que “os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.”
Porém, em casos em que o legislador passou a conceder privilégio creditório imobiliário geral a determinados créditos, como as contribuições à segurança social (cfr. art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9.5) e impostos sobre o rendimento (art.º 104.º- atual art. 111.º - do CIRS e art.º 93.º - atual art.º 108.º - do CIRC), começaram a surgir decisões que aplicavam o disposto no art.º 751.º do Código Civil aos créditos garantidos por esses privilégios imobiliários gerais, os quais assim prevaleciam, v.g., sobre créditos garantidos por hipotecas registadas anteriormente à própria constituição daqueles créditos.
Essa situação deu origem à prolação do acórdão do Tribunal Constitucional referido pelo apelante, o acórdão n.º 362/2002, de 17.9.2002, publicado no D.R., I série-A, de 16.10.2002, no qual, por entender que essa interpretação da lei punha em causa o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art.º 2.º da Constituição, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do citado art.º 104.º do CIRS, “na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.” Igual juízo foi proferido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 363/2002, de 17.9.2002, publicado no D.R., I série-A, de 16.10.2002, relativamente às “normas constantes do art.º 11.º do DL 103/80, de 09.05, e do art. 2.º do DL 512/76, de 03.06, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do art.751.º do Código Civil”.
Porém, a aludida interpretação da lei, julgada inconstitucional, não era inevitável face ao direito ordinário.
E, tendo em vista clarificar o ponto, o Dec.-Lei n.º 38/2003, de 8.3, alterou a redação do art.º 751.º do Código Civil, de molde a que ficasse expresso que o mesmo só se aplica aos privilégios imobiliários especiais:
“Privilégio imobiliário especial e direitos de terceiro
Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.”
E, de molde a adequar o Código Civil à evolução legislativa ocorrida ao nível dos privilégios imobiliários, o Dec.-Lei n.º 38/83 alterou também a redação do n.º 3 do art.º 735.º do CC:
“3 – Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais”.
A dita alteração ao art.º 751.º do Código Civil tem a natureza de modificação interpretativa do regime anterior, reforçando o entendimento de que o regime deste artigo era e é inaplicável aos privilégios imobiliários gerais, aos quais, atendendo à sua natureza, se adapta o que consta no n.º 1 do art.º 749.º do Cód. Civil (neste sentido, cfr. acórdão do STJ, de 22.3.2007, processo 07A580, www.dgsi.pt).
Pelo exposto, de entre os créditos reclamados nos autos, apenas o referente a IMI prevalece sobre o crédito do apelante, pois está garantido por privilégio imobiliário especial (art. 122.º n.º 1 do CIMI, que estipula que o imposto municipal sobre imóveis goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial).
Haverá, assim, que alterar a sentença de graduação dos créditos de molde a salvaguardar a posição do credor hipotecário, nos termos supra expostos.
O que significa que o crédito do apelante deve ficar graduado a seguir ao crédito do Estado por IMI e à frente dos restantes créditos, em relação aos quais, por não impugnada, se mantém a graduação operada na sentença recorrida.
Os créditos reclamados e o do exequente deverão, assim, ser graduados pela seguinte ordem:
1.º Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI;
2.º Crédito do Banco Espírito Santo S.A.;
3.º Créditos da Fazenda Nacional referentes a IRS e IRC;
4.º Créditos do Instituto de Segurança Social, I.P.;
5.º Crédito do exequente.
Sendo certo que, como é pacífico, as custas da execução sairão precípuas do produto dos bens penhorados (art.º 455.º do CPC).

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida, na parte em que procedeu à graduação dos créditos, e em sua substituição estabelece-se que os créditos reclamados e o do exequente deverão ser pagos pelo produto do imóvel penhorado pela seguinte ordem:
1.º Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI;
2.º Crédito do Banco Espírito Santo S.A.;
3.º Créditos da Fazenda Nacional referentes a IRS e IRC;
4.º Crédito do Instituto de Segurança Social, I.P.;
5.º Crédito do exequente.
As custas da apelação são a cargo da executada.

Lisboa, 4 de Julho de 2014

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins
Decisão Texto Integral: