Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
314/17.0YHLSB.L1-8
Relator: ISOLETA COSTA
Descritores: INCOMPETÊNCIA FUNCIONAL
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
DISTRIBUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO TOMA CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Sumário: Enquanto não for definida a Secção a quem competirá a competência específica, fixada no  artigo 54º nº 2 e 111º da lei 62/2013 de 26.08,  as causas que virão a ser da sua competência, mantêm-se na esfera de  competência das Secções Cíveis.
Nessa situação viola a proibição de desaforamento constante do artigo 39º da lei 61/2013 de 26.08,  o despacho do Relator que ordenou a remessa dos autos, provenientes do Tribunal da Propriedade Intelectual,   a nova distribuição.
A competência material, pode estar, ordenada e delimitada no que respeita ao desenvolvimento do processo dentro de cada instância, mediante competências diversas conforme as fases da promoção e desenvolvimento processual: é o que se designa por competência funcional.
Verifica-se a incompetência funcional, do Colectivo de Juízes a quem foi redistribuído o processo, para conhecer do objecto do recurso sub iudice artigo 39º da LOSTJ e 213º do CPC
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

Os presentes autos, são provenientes do Tribunal da Propriedade Intelectual tendo sido distribuídos ao Exmo Relator Juíz Desembargador da 1ª Secção
Por decisão singular, o Exmo Relator, decidiu não tomar conhecimento do recurso, com fundamento no facto de não ser aquela Secção de competência especializada nos termos do disposto no artº 74º nº1, 54º nº 2 e 111º da  LOSJ
Após trânsito da referida decisão, veio o mesmo Exmo Relator, a determinar a remessa dos autos à Secção Central «para distribuição pela Secção a quem viesse a ser atribuída a referida competência específica».
Os autos foram redistribuídos desta, feita, tendo sido atribuídos a esta Secção.
Esta Secção Cível não tem atribuída qualquer competência específica.
 Neste Tribunal não está atribuída a competência específica a que alude o normativo em causa, a qualquer Secção.
Aqui, foi lavrado, o despacho liminar que consta dos autos, a entender que o despacho proferido, pelo Exmo Relator, transitado obsta ao conhecimento do recurso nos termos conjugados do disposto nos artigos 652º h) e 620º do cpc.
 Deste despacho houve reclamação para a conferência, com o fundamento que uma tal decisão é contrária ao artigo 20º da CRP
Conhecendo:
“A Jurisdição é um poder do Estado que compreende a função exercida por todos os tribunais englobados numa única esfera de actuação (principio da unidade de jurisdição)[ Conf Victor Fairen Guillen “Doctrina General del Derecho Procesal” Libreria Bosch Barcelona 1990, pag 247 in nota 3 ao AUJ 32/14.1JBLSB-P.L1-A.S1 de 9.02.2017 dgsi].Tal função (a jurisdição), que pertence ao conjunto dos tribunais previstos na Constituição e na lei, está distribuída entre os vários tribunais de acordo com regras, e critérios, que definem para cada tribunal os limites, ou o âmbito, da sua jurisdição, isto é, a competência, a qual se reparte pelos tribunais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território - artigo 37º, nº 1 da LOS.” AUJ citado.
Conforme se constata pela análise do Anexo I a que se refere o artigo 32.º, n.º 1, da lei n.º 62/2013, a área de competência do Tribunal da Relação de Lisboa abrange todos os tribunais de competência territorial alargada, cuja área de competência coincide com o território nacional, designadamente o Tribunal da Propriedade Intelectual, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, o Tribunal Marítimo e Tribunal Central de Instrução Criminal (cfr. arts. 32.º, n.º 1, 83.º, 111.º e ss., Anexo I a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º e Anexo III a que se refere o n.º 4 do artigo 83.º, todos da lei n.º 62/2013).
Decorre da análise dos preceitos invocados que, ressalvado o respeito por opinião diversa, enquanto não for definida a Secção a quem competirá aquela competência específica, as causas que virão a ser da sua competência, mantêm-se na esfera de  competência das Secções Cíveis, sob pena, de assim não sendo ser violado o artigo 20º nº  1 da CRP, que  traduz prima facie o direito de recurso a um tribunal para obter dele uma decisão sobre a pretensão perante o mesmo deduzida.
Do exposto decorre, que a procedência da argumentação expressa na decisão singular que ordenou a remessa dos autos a nova distribuição tem como consequência a violação da proibição de desaforamento constante do artigo 39º da lei 61/2013 de 26.08, (doravante LOSJ), que sob a epígrafe «Proibição de desaforamento» dispõe que: «Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal ou juízo competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei» e bem assim do artº 32º nº 9 da CRP segundo o qual, «nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior».
Muito embora, este princípio do juiz natural encontra-se consagrado na Constituição especificamente em sede de «garantias de processo criminal» (artigo 32.º da Lei Fundamental), estas materializando já uma densificação das próprias exigências do processo justo ou equitativo, o certo é que como se esclarece no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 82/2014, o «princípio do juiz natural como dimensão resultante do princípio geral da independência que vale para toda e qualquer instância judicial, independentemente da matéria em causa – nos termos do artigo 203.º da Constituição» (veja-se J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 415),
E, realçam os mesmos Autores o (In: Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, cit., p. 525): «O princípio do juiz legal (…) consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente ab initio. A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjetivos.»
Conforme se disse, no caso dos autos, está em causa o princípio do juiz natural na sua «vertente negativa» que, nas palavras do Acórdão do TC n.º 614/2003, (publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 85, de 10 de abril de 2004): consiste na proibição de afastamento «do conjunto das regras, gerais e abstractas mas suficientemente precisas, que permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo».
A ideia subjacente a esta dimensão do princípio do juiz natural é, conforme se afirma no mencionado acórdão, «a de perpetuatio jurisdictionis, com “proibição do desaforamento” depois da atribuição do processo a um tribunal, quer a proibição de tribunais ad hoc ou ex post facto, especiais ou excepcionais».
Sobre o princípio em questão, concretamente, tal como transparece no citado Acórdão n.º 614/2003 «a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou dos juízes chamados a dizer o direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto.»
«A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma atividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).»
Atento ainda, a abertura da constituição para com o direito internacional dos direitos humanos ( artigo 16.º) convoca-se finalmente,  a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) em torno do artigo 6.º da CEDH, principiando pela exigência de um tribunal “estabelecido pela lei”, observa-se que tal requisito abrange não apenas a base jurídica da própria existência do tribunal, mas também o respeito pelo tribunal das regras que o regem. (Cour Européenne des Droits de l’Homme, Guide sur l’article 6: Droit à un procès équitable (volet civil), Conseil de l’Europe, 2013, pp. 25- 26).
Ainda a jurisprudência do TEDH, referente ao n.º 1, do artigo 6.º, da CEDH encara a matéria da atribuição de um processo a determinado juiz ou tribunal como relevando da margem de apreciação das autoridades nacionais (o que se reflete, no patamar do ordenamento jurídico interno, na liberdade de conformação do legislador na concretização, dentro dos parâmetros constitucionais, das regras para a determinação do juiz da causa e da distribuição de processos), assumindo que lhe pertence verificar, ante um situação de (re)afetação, se esta configura uma medida compatível com o n.º 1, do artigo 6.º, e, em particular, com os seus requisitos de independência e de imparcialidade objetiva (veja-se TEDH, Bochan v. Ucrânia, Acórdão de 3 de maio de 2007, § 71).
Finalmente, a competência material, pode estar, ordenada e delimitada no que respeita ao desenvolvimento do processo dentro de cada instância, mediante competências diversas conforme as fases da promoção e desenvolvimento processual: é o que se designa por competência funcional.
Destarte verifica-se que a incompetência funcional, face à violação do disposto no artº 213º do CPC e 39º da LOSTJ desta Secção e Tribunal Colectivo, para conhecer do objecto do recurso sub iudice.

Segue deliberação:
Decreta-se a incompetência funcional dos presentes Juízes para os presentes autos a qual compete àqueles a quem foi primeiramente distribuído o processo nos termos do disposto no artº 213º do CPC e 39º da LOSTJ 

Sem custas.
Notifique e aguarde a resolução do conflito negativo.