Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5726-2006-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
DÍVIDA
HOSPITAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A competência material dos julgados de paz é exclusiva.
Os julgados de paz são materialmente competentes para apreciar e decidir as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual, nos termos da al. h) do n.º 1 do art.º 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, mesmo que o credor seja uma pessoa colectiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

C… instaurou, em 28 de Dezembro de 2004, no 12.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, contra L…, acção declarativa, sob a forma de processo sumaríssimo, pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 133,46, acrescida dos juros de mora vencidos, no valor de € 25,36, e dos vincendos, por ter prestado cuidados de saúde, em consequência de acidente de viação, cuja responsabilidade civil, por efeito de contrato de seguro, cabe à R.
A R. contestou, arguindo a sua ilegitimidade, e concluiu pela sua absolvição da instância.
Suscitada, oficiosamente, a questão da competência em razão da matéria, pronunciou-se o A., no sentido de os julgados de paz não serem competentes para julgar a acção.
Prosseguindo a acção, foi proferido despacho, que, considerando os julgados de paz competentes, materialmente e de forma exclusiva, para decidir este tipo de acção, declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo a R. da instância.
Desse despacho, recorreram o Ministério Público e o Autor, os quais, alegando, concluíram pela competência material, para a acção, do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa.
Não foram apresentadas contra-alegações.
A decisão recorrida foi sustentada, por despacho tabelar.

Cumpre apreciar e decidir.

A questão a decidir, comum a ambos os agravos, é a de saber se o tribunal competente para a acção declarativa de responsabilidade civil extracontratual é a pequena instância cível ou o julgado de paz.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa conhecer do objecto dos recursos, cuja questão jurídica emergente se reporta unicamente à competência material, nos termos antes enunciados.
Decorre do art.º 66.º do Código de Processo Civil (CPC) que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A competência material dos tribunais comuns é fixada, assim, em termos residuais.
Na acção instaurada, com o valor de € 158,82, pretende-se a condenação da agravada, uma seguradora, pelos cuidados de saúde prestados, na sequência de um acidente de viação. Trata-se, pois, de uma acção declarativa para a efectivação da responsabilidade civil extracontratual.
Nos termos da al. h) do n.º 1 do art.º 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, os julgados de paz são materialmente competentes para apreciar e decidir as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual.
Naquele diploma legal, procedeu-se à regulação da organização, competência e funcionamento dos julgados de paz, consagrados na Constituição, nomeadamente, no capítulo subordinado à organização dos tribunais (art.º 209.º, n.º 2).
Em termos gerais, a actuação dos julgados de paz foi prevista de forma a permitir a participação cívica dos interessados e a estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes, sendo os respectivos procedimentos concebidos e orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (art.º 2.º).
A competência material dos julgados de paz, exclusivamente reservada a acções declarativas cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1.ª instância, encontra-se delimitada pelo art.º 9.º da Lei n.º 78/2001.
A lei não especifica se a competência material dos julgados de paz é exclusiva ou alternativa.
Omitindo-se tal especificação, tem de se entender que a competência material é exclusiva, porquanto é desse modo que o legislador se expressa, quando atribui a competência material a outras entidades, subtraindo-a directamente da jurisdição dos tribunais judiciais. Se a competência material fosse alternativa, em desvio à regra, então é que se justificaria que o legislador não deixasse de prevenir para a mera faculdade do uso dos julgados de paz.
Levando, porém, em consideração os fins pretendidos e os princípios orientadores e caracterizadores dessa jurisdição e também ainda, de certo, a intenção de procurar aliviar a jurisdição comum das acções de menor valor e de maior simplicidade, somos levados a concluir que o propósito do legislador não foi facultar uma competência material alternativa. Para isso contribui também a norma transitória do art.º 67.º, ao estabelecer que as acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas, o que seria incompreensível, no caso da competência material alternativa, por inexistência de fundamento para o desaforamento.
Por outro lado, o carácter experimental dos primeiros julgados de paz não é incompatível com a sua competência material exclusiva, na medida em que a competência material dos tribunais judiciais, sendo residual, pode variar de abrangência na respectiva circunscrição territorial, conforme a existência de tribunais especializados ou de outras entidades jurisdicionais.
No sentido da competência exclusiva dos julgados de paz, pronunciaram-se, designadamente, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Maio de 2006 (Recurso n.º 4.081/06-6 http://www.dgsi.pt) e de 22 de Junho de 2006 (Recurso n.º 4.929/06-6), e do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Novembro de 2005 (http://www.dgsi.pt).

Invoca-se ainda, para afastar a competência material dos julgados de paz, a circunstância da acção se destinar a efectivar o cumprimento de obrigação que tem por objecto prestação pecuniária de que é credor uma pessoa colectiva, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 9.º da Lei n.º 78/2001.
Com esta norma, o legislador terá querido acautelar que os julgados de paz fossem submersos de acções propostas por certas pessoas colectivas, que, em grande escala, recorrem à cobrança judicial de pequenas dívidas, com a finalidade de não comprometer a eficiência dessa nova forma de administração da justiça.
Essa motivação, todavia, já não colhe relativamente às acções emergentes da responsabilidade civil contratual e extracontratual.
Com efeito, o recurso à cobrança judicial, nomeadamente das dívidas hospitalares, embora podendo ser expressivo, está longe de atingir a escala que antes se referiu. Por outro lado, trata-se de matéria propícia a uma justa composição do litígio por acordo das partes, que o legislador, como se aludiu, quis estimular com a criação dos julgados de paz.
Deste modo, no caso da efectivação da responsabilidade civil, não obstante o objecto da acção poder respeitar a uma prestação pecuniária tendo como credor uma pessoa colectiva, não se justifica a limitação prevista na parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 9.º da Lei n.º 78/2001, não se surpreendendo, por isso, qualquer desarmonia entre aquela norma e a da alínea h) do mesmo artigo, entre as quais não existe qualquer relação de subordinação ou de dependência.
Se a intenção legislativa, nesse caso, fosse de excluir as pessoas colectivas com a qualidade de credor, o legislador ter-se-ia exprimido de outra forma, designadamente, à semelhança do que dispôs, expressamente, no art.º 37.º da mesma lei, a propósito da representação das pessoas colectivas.

Nestas condições, concluindo-se que a competência material para a acção está atribuída aos julgados de paz, não se violou qualquer disposição legal, ao declarar-se a incompetência para a acção, em razão da matéria, da pequena instância cível, sendo de manter, por isso, a decisão recorrida.

2.2. O agravante/autor, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC, estando o Ministério Público isento, nos termos do art.º 2.º, n.º 1, al. a), do CCJ.

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

Negar provimento a ambos os recursos, confirmando a decisão recorrida.
Condenar o agravante/autor no pagamento das custas.

Lisboa, 29 de Junho de 2006


(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.) - VENCIDA
(Fátima Galante)


Voto de vencida:
1. Está em causa nos autos a questão jurídica de saber qual é o Tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção: se os Julgados de Paz, se a Pequena Instância Cível.

Tal questão, por sua vez, desdobra-se em duas vertentes:
1ª - A de saber se os Julgados de Paz possuem competência exclusiva em razão da matéria para decidir as acções a que o legislador, através da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, lhes atribuiu competência, delimitando-as às situações aí previstas, e subtraindo-a directamente da jurisdição dos Tribunais Judiciais, ou se essa competência é optativa ou residual, o que justificaria que as acções previstas em tal diploma pudessem também ser instauradas nos Tribunais Judiciais competentes, cabendo ao próprio demandante a faculdade de optar entre o Julgado de Paz e o Tribunal Judicial;
2ª - Saber se a presente acção declarativa de responsabilidade extracontratual para cobrança de dívidas hospitalares ou prestação de cuidados de saúde, está abrangida pela citada Lei nº 78/2001, de 13 de Julho.

Quanto à primeira questão, subscrevemos, na íntegra, as considerações tecidas no presente Acórdão, porquanto consideramos que a competência que deriva de tal diploma legal é exclusiva dos Julgados de Paz pelas razões explanadas no presente Acórdão que, nesta parte, acompanhamos.

Já quanto à segunda questão, defendemos entendimento diverso, pois consideramos que a competência para as acções de cobrança de dívidas hospitalares, de valor inferior à alçada do Tribunal de 1ª instância, cabe aos Tribunais de Pequena Instância Cível e não os Julgados de Paz.
Vejamos porquê:

2. A presente acção destina-se a obter o pagamento de dívidas resultantes de prestação de cuidados de saúde.
Nesta matéria, o legislador estabeleceu um regime especial para a respectiva cobrança dessas dívidas hospitalares, referentes aos cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, conforme decorre do Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho.

Por sua vez a Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, que regula a competência, organização e funcionamento dos Julgados de Paz e a tramitação dos processos da sua competência, estabelece, no seu art. 9º, a competência em razão da matéria dos Julgados de Paz, elencando as acções para as quais os mesmos são competentes para decidir.

Donde, é possível extrair as seguintes conclusões:
- Todas as acções cuja competência não se encontre expressamente contemplada nessa lei especial, e ainda que o seu valor seja inferior à alçada do Tribunal de 1ª instância, serão da competência dos Tribunais de Pequena Instância Cível – cf. arts. 8º e 9º da Lei nº 78/2001.
- Tal como serão, naturalmente, da competência daqueles Tribunais, as acções que a Lei da criação dos Julgados de Paz decidiu excluir da sua própria competência.

3. Da análise do art. 9º da Lei nº 78/2001 constata-se que, a alínea a), do seu nº 1, estipula que: os Julgados de Paz são competentes para decidir as acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva.
Prevendo-se, na alínea h), que têm competência para decidir as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual.
Ora, não obstante na alínea h) não se fazer qualquer ressalva às pessoas colectivas, temos para nós que em face da consignada excepção, na alínea a), das acções em que seja credor originário uma pessoa colectiva, aquele segmento normativo – da alínea h) - tem de se harmonizar com este - da alínea a).
Devendo, pois, ser interpretado nos seguintes termos: só são abarcadas pela competência material dos Julgados de Paz as acções que respeitem à responsabilidade contratual e extracontratual mas que não tenham por objecto prestação pecuniária de que seja credora pessoa colectiva.
Uma interpretação com este sentido e alcance é aquela que, quanto a nós, melhor se harmoniza com o princípio da unidade do sistema jurídico e à presunção de que o legislador consagrou na lei as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – cf. art. 9, nºs 1 e 3 do CC. (1)

4. Ora, no caso sub judice, está em causa uma acção para cobrança de dívida hospitalar.
E, de acordo com o Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho, neste tipo de acções incumbe ao credor a alegação e prova do facto gerador da responsabilidade pelos encargos – cf. seu art. 5º -, podendo ser exigido das seguradoras o pagamento dos encargos decorrentes dos cuidados prestados a vítimas de acidentes de viação – cf. seu art. 9.
Está-se, pois, perante uma acção que respeita ao cumprimento de obrigações, que tem por objecto prestação pecuniária e de que é credora pessoa colectiva.
Acção cuja causa de pedir é complexa: para além de fazer apelo à responsabilidade civil extracontratual e, por vezes, à vigência de um contrato de seguro, para justificar a responsabilidade dos demandados, pretende obter o custo da prestação de cuidados de saúde e destina-se a efectivar o cumprimento de uma obrigação, que tem por objecto uma prestação pecuniária de que é credora uma pessoa colectiva.
Logo, com um fundamento desta natureza, e porque é simultaneamente integrável nas alíneas a) e h), do art. 9º, da Lei nº 78/2001, tem-se por excluída da competência dos Julgados de Paz, por força do referido segmento normativo.
É esta a interpretação que, em nosso entender, mais se coaduna com o preceituado no art. 9º da Lei nº 78/2001, de 13/7, conjugado com os dispositivos legais inseridos no Decreto-Lei nº 218/99, de 15/06.

5. Como ressalta do que antecede, não nos move, na interpretação que efectuámos, preocupações relacionadas com a necessidade de impedir que os Julgados de Paz sejam submersos em acções propostas por pessoas colectivas, que recorrem de amiúde e “em grande escala” aos Tribunais Judiciais com a finalidade de obter a cobrança de pequenas dívidas.
Embora essa realidade tivesse então constituído a ratio determinadora da necessidade de se enveredar por uma solução legislativa com este cariz, não podemos, contudo, também perder de vista que, um dos objectivos visados pelo diploma de criação dos Julgados de Paz foi o de dirimir, de uma forma mais expedita, a litigiosidade, através da participação activa e cívica dos cidadãos interessados, nas causas de pequeno valor, estimulando-se, por esta via, a justa composição dos litígios por obtenção de acordo das partes – cf. artº 2º, nº 1, da Lei nº 78/2001.
Ora, nas acções como as dos autos, de cobrança de dívidas hospitalares das pessoas colectivas, os interesses que lhe subjazem não se esgotam nesse objectivo, mas inserem-se na necessidade mais ampla, à qual não é estranho o próprio interesse público, de cobrança efectiva de créditos indispensáveis à manutenção e racionalização de meios económicos do sistema que integra o Serviço Nacional de Saúde.
6. Assim sendo, entendo que, in casu, a competência para as acções de cobrança de dívidas hospitalares, de valor inferior à alçada do Tribunal de 1ª instância, cabe ao Tribunal de Pequena Instância Cível e não aos Julgados de Paz.
E por tal facto, não posso subscrever a tese sufragada no presente Acórdão e votei vencida.
Lisboa, 29 de Junho de 2006.
Ana Luísa de Passos Geraldes

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1.-Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação do Porto, de 16 de Fevereiro de 2006, proferido no âmbito do Proc. Nº 0537138, in www.dgsi.pt. Cf. também o Acórdão da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2006, proferido no âmbito do Proc. Nº 0620256.