Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5655/2006-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: COMPENSAÇÃO
JUROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- Os juros constituem crédito com existência autónoma (artigo 561º do Código Civil) e, por isso, a partir do momento em que são reconhecidos por decisão transitada em julgada, a sua inicial iliquidez não obsta à compensação (artigo 847º/3 do Código Civil).
II- A compensação do aludido crédito de juros dos exequentes com o crédito dos executados efectiva-se com a declaração de compensação realizada com a notificação dos embargos, onde os embargantes invocam o crédito a compensar (artigo 854º do Código Civil), o que significa que até esse momento não cessa a contabilização dos juros que se vinham vencendo desde a citação da acção declarativa que reconheceu o crédito exequendo.
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

JOSÉ.[…] deduziu embargos de executado por apenso aos autos de execução contra si movidos por H.[…], alegando, em síntese, que quaisquer créditos que a Exequente eventualmente possuísse sobre si estavam pagos por compensação de créditos, tendo em conta que a mesma é sua devedora no montante de 157.620,14 euros.

Notificada, a Embargada/Exequente pronunciou-se no sentido do indeferimento dos embargos, invocando um credito superior ao da Embargante, após a realização da competente compensação, nos termos das decisões judiciais proferidas e transitadas em julgado.

Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferindo despacho saneador, no qual, dada a simplicidade da matéria controvertida, foi também dispensada a selecção da matéria de facto.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, tendo o tribunal considerado os embargos procedentes e, consequentemente, extinta a execução de que os embargos eram dependência.

Inconformada com esta decisão, a Embargada/Exequente interpôs recurso no âmbito do qual apresentou as seguintes conclusões:

a) A douta decisão sob recurso é nula, pois viola o disposto na alínea d) do n° 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, uma vez que conhece de questão de que não podia tomar conhecimento, contrariando, ademais, decisões judiciais já transitadas em julgado.

b) Na verdade, ao julgar procedentes os embargos de executado alegando não haver lugar à contagem de juros de mora, o Tribunal a quo está a tomar posição sobre uma questão que está fora da sua jurisdição, porquanto a mesma já foi objecto de decisões definitivas e exequíveis.

c) Com efeito, a condenação do Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de PTE. 19.200.000$00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento, consta da sentença, transitada em julgado, proferida pela 1ª Instância em sede de acção declarativa. Tendo o Recorrido sido, ademais, condenado a pagar também PTE. 4.000.000$00, igualmente acrescidos de juros moratórios contados da citação, por força do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, igualmente transitado em julgado.

d) Acresce que os créditos só se terão tornado compensáveis - sem conceder -, com a notificação da sentença proferida pela 1ª Instância (quanto aos PTE. 19.200.000$00) e com a notificação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (quanto aos PTE. 4.000.000$00), pelo que os embargos nunca poderiam ter sido julgados totalmente procedentes.

e) A douta decisão sob recurso é, pois, também por este motivo, merecedora de censura, na medida em que viola o disposto nos artigos 804°, 805°, n° 1, 848° e 854° do Código Civil.

Conclui, assim pela nulidade da sentença proferida e pela sua consequente substituição por outra que julgue os embargos improcedentes.

Em contra-alegações o Recorrido sustentou a manutenção da sentença proferida.

II. FACTOS PROVADOS

1. A Exequente/Embargada prometeu comprar ao Executado/Embargante uma moradia unifamiliar destinada a habitação, a construir por este (artigo 9º da petição de embargos).

2. O preço acordado foi de PTE. 79.000.000$00, correspondente a 394.050, 34 euros (artigo 10º da petição de embargos).

3. Do preço acordado a Exequente pagou o valor de 236.430,00 euros, ficando por pagar a quantia de 157.620,14 euros (artigo 10º da petição de embargos).

4. H.[…] moveu uma acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo a condenação de José […] e mulher […]
- na execução específica do contrato-promessa identificado nos autos de acção declarativa, declarando-se vendido a favor da Autora o prédio urbano sito no lote 40, da urbanização da Igreja de São Gonçalo, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 3184;
- no pagamento imediato à Autora da quantia de PTE. 14.000.000$00, a título de cláusula penal;
- no pagamento imediato à Autora de uma indemnização por perdas e danos no valor de PTE. 19.000.000$00, resultante da compensação entre o valor de PTE. 51.500.000$00 a pagar pelo Réu à Autora, e o valor de PTE. 31.600.000$00 a pagar pela Autora ao Réu, acrescida da quantia que se liquidar em execução de sentença;
- no pagamento de juros de mora, contados desde a citação até integral pagamento (cf. fls.1 a 8 do processo declarativo).

5. José […] e mulher contestaram a acção e reconviram pedindo a condenação da referida H.[…] no pagamento da quantia de PTE. 35.138.000$00, acrescido de juros de mora (cf. fls. 22 a 28 do processo declarativo).

6. Por sentença proferida na 1 ª instância:
a) deu-se como provado que o preço do negócio foi estipulado em PTE. 79.000.000$00, que a Autora pagou a quantia global de PTE. 47.400.000$00 (ponto 14 dos factos provados); que aquela depositou a quantia de PTE. 31.600.000$00 relativa ao preço em falta (ponto 46 dos factos provados) e que os defeitos da construção diminuem em PTE. 19.200.000$00 o valor da moradia (ponto 38 dos factos provados);
b) e decidiu-se julgar a acção parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção e, consequentemente:
-declarar vendido a favor da Autora o prédio urbano sito no lote 40 da urbanização da Igreja de São Gonçalo, inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 3184, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 558/900424;
c) condenar o Réu marido a pagar à Autora a quantia de PTE. 19.200.000$00, acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo pagamento, a título de indemnização pelo cumprimento defeituoso do contrato;
- declarar compensados a favor da Autora o montante de PTE. 19.200.000$00, acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, e ordenar a devolução a esta desta quantia (cf. fls. 573 a 585 do processo declarativo).

7. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa […] foi decidido condenar ainda os RR. no pagamento da quantia de PTE. 4.000.000$00, acrescida de juros moratórios, a contar da citação, confirmando-se o teor da al. b) da decisão (2 ponto da al. b) do nº 3) (cf. fls. 656 a 669 do processo declarativo).

8. O acórdão proferido pelo STJ, manteve a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa (cf. fls. 706 a 718 do processo declarativo).

9. H.[…] moveu acção executiva de sentença, para pagamento coercivo da quantia de 20.511,11 euros, relativo ao valor ainda em dívida, tendo em conta que o executado foi condenado a pagar-lhe as quantias de PTE. 19.200.000$00 e de PTE. 4.000.000$00, acrescido de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento e ainda da taxa de 5%, referente à sanção pecuniária compulsória.

Encontram-se ainda provados, face aos elementos juntos aos autos, os seguintes factos:

- O montante de PTE. 31.600.000$00 (157.620,14 euros), inicialmente prestado pela A./Exequente nos autos de acção declarativa foram substituídos pela prestação de uma caução por intermédio de garantia bancária (fls. 29 e 30 do Apenso A))

- A A./Exequente apresentou requerimento executivo, de que os presentes embargos são apenso, a 29 de Janeiro de 2003.

- Os embargos de executado por parte do Réu./Embargante foram apresentados no dia 07 de Maio de 2004 e a notificação dos mesmos à A./Embargada ocorreu no dia 25 de Junho de 2004.

O Apelado apresentou contra-alegações em que conclui pela manutenção da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.


III. FUNDAMENTAÇÃO

As questões colocadas neste recurso, por parte da Apelante/Exequente/Embargada prendem-se, por um lado, com a verificação da nulidade prevista no art. 668º/1/d do CPC por o Tribunal ter decidido, no âmbito dos embargos, em sentido contrário ao anteriormente determinado por decisões transitadas em julgado que consideraram haver lugar à contagem de juros sobre as quantias em que os Embargantes/Executados foram condenados a pagar à Exequente/Embargada, contados desde a citação e, por outro lado, com o facto de ter procedido à compensação de créditos retroactivamente, ou seja, tendo em consideração um período temporal anterior às notificações das decisões dos Tribunais que sobre estas questões se pronunciaram, com o que violou também o disposto nos arts. 804º, 805º/1, 848º e 854º do CC.

Da matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 3 e 6 podemos concluir que as partes celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda, com empreitada respeitante à construção de uma vivenda a ser realizada pelo ora Apelado a favor da Apelante.

Por razões ligadas ao incumprimento do contrato e defeito de obras na respectiva execução, foi instaurada uma acção declarativa por parte da Apelante contra o Apelado e mulher que veio a ser decidida, no que ora interessa, condenando estes últimos a pagarem à primeira a quantia de PTE. 19.200.000$00, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo pagamento (decisão de 1ª instância, proferida em 16 de Fevereiro de 2001), dando-se como compensada a importância de PTE. 19.200.000$00 a deduzir do depósito efectuado, bem como a condenação de ambos os RR. no pagamento da quantia de PTE. 4.000.000$00, acrescida de juros moratórios, a contar da citação (decisão do Tribunal da Relação, proferida em 24 de Janeiro de 2002), decisões estas confirmadas pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Na decisão proferida em sede de embargos, que os julgou procedentes e determinou a extinção da acção executiva, foi considerado que havia lugar à compensação entre os créditos do Embargante e Embargada e que esta compensação deveria reportar-se à data em que os mesmo se tornaram compensáveis, no caso, com a citação do Embargante/Executado para a acção declarativa concluindo, assim, não haver lugar à contabilização dos juros de mora e entendendo haver lugar à compensação de créditos sem a contabilização de tais juros, entendeu também que não havia lugar a qualquer contra prestação por parte dos Embargantes, que detinham um crédito superior ao do Embargado, determinando assim a extinção da execução.

Ora, salvo o devido respeito, considera-se que a interpretação dos factos dados como provados leva-nos a uma realidade distinta tendo em conta não só o instituto da compensação mas também, a sua conjugação com o trânsito em julgado formado pelas decisões proferidas em relação à existência de juros e ao momento da sua constituição.

Com efeito, conforme resulta provado da matéria de facto dada como provada, a Embargada/Exequente depositou, no âmbito da acção declarativa, a quantia de PTE. 31.600.000$00 (157.620,14 euros – que inicialmente era de PTE. 35.00.000$00 – fls. 563, 570 e 572 dos autos de acção declarativa), em relação à qual foi considerado que seria objecto de dedução e devolução àquela, por compensação, da quantia de PTE. 19.200.000$00 (Ponto 6, alíneas b) e c), parte final, dos Factos Provados).

Foram ainda os RR./Executados condenados a pagar à A./Exequente os juros legais desde a citação e até integral pagamento sobre a mencionada quantia de PTE. 19.200.000$00 (Ponto 6, alínea c), primeira parte, dos Factos Provados).

Em sede de recurso foram ainda os RR./Executados condenados a pagar à A. a quantia de PTE. 4.000.000$00 acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento (Ponto 7 dos Factos Provados).

O pedido reconvencional deduzido pelos Embargantes/RR. na acção declarativa foi considerado totalmente improcedente – Ponto 6, alínea b) dos Factos Provados.

Procedendo à análise destes factos e à sua competente qualificação em termos de direito, chegamos a conclusões distintas daquelas que foram encontradas pela decisão em apreciação.

Assim, no âmbito da acção declarativa os RR. deduziram um pedido reconvencional, que foi julgado totalmente improcedente, conforme acima já se deixou expresso, não tendo sido equacionada por estes a possibilidade de procederem a qualquer compensação entre os seus créditos e os reclamados pela A.

Apenas com a sentença proferida em 1ª Instância, e na sequência de pedido formulado pela A., é que o Tribunal determinou a compensação da quantia de PTE. 19.200.000$00, devida a esta a título de indemnização por perdas e danos na sequência de incumprimento contratual dos RR., a ser deduzida no depósito efectuado no processo a favor dos mesmos (referente à parte do preço em falta devido aos RR.), sem que aí tenham sido considerados os juros devidos desde a citação, situação que a que a sentença faz expressa referência sem que tenha sido objecto de qualquer recurso por parte dos RR.

Esta primeira decisão relativa a juros devidos sobre o indicado montante de PTE. 19.200.000$00 e contados desde a citação, transitou assim em julgado não podendo, nessa medida, ser objecto de nova reapreciação.

Estes juros constituem, assim, um crédito com existência autónoma, conforme decorre do disposto no art. 561º do CC (neste sentido, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 8ª ed., 2000, Coimbra, Almedina, fls. 687/ss).

Com a condenação dos RR., a favor da A., em acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no montante de PTE. 4.000.000$00 e respectivos juros legais devidos desde a citação e até integral pagamento, e em que não é determinada qualquer compensação, surge uma nova decisão quanto a este ponto, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, também ela transitada em julgado e que não foi objecto de qualquer recurso por parte dos RR.

Chegados a este ponto temos que da quantia inicialmente devida aos Embargantes, no montante de PTE. 31.600.000$00 (157.620,16 euros), há a deduzir a quantia de PTE. 19.200.000$00, conforme determinado por decisão transitada em julgado.

Em relação ao excedente deste montante verificamos que o Embargante surge pela primeira vez, no âmbito do processo executivo com a dedução de embargos de executado, apresentados a 07 de Maio de 2004, com um pedido de compensação de créditos, instituto que apenas pode ser considerado como eficaz quando chega ao conhecimento do seu destinatário, no caso, a ora Embargada, nos termos do art. 224º do CC (neste sentido, ALMEIDA COSTA, ob. cit., pág. 1021/ss).

Assim, apenas com a notificação de tais embargos, ocorrida a 25 de Junho de 2004, é que se poderá proceder à compensação da quantia de PTE. 4.000.000$00 em que os RR. foram condenados a favor da A./Embargada e considerar-se cessada a contabilização dos juros que se vinham vencendo desde a citação sobre os dois mencionados montantes (de PTE. 19.200.000$00 e PTE. 4.000.000$00) nos termos das decisões judiciais proferidas e transitadas em julgado, em conformidade, aliás, com o disposto no art. 854º do CC (neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 10.Fev.1998, Proc. 97B882, em http://www.dgsi.pt/jstj).

Os créditos apenas se tornaram compensáveis, contrariamente ao afirmado pelos Embargantes, com o conhecimento da declaração de compensação que estes dirigiram à Embargada, nesse sentido devendo ser interpretado o disposto no citado art. 854º do CC que preceitua o princípio da retroactividade, sob pena de violação do caso julgado material formado no processo relativamente à natureza e momento da constituição dos juros em apreciação.

Assim, os juros a serem considerados sobre as quantias de PTE. 19.200.000$00 e PTE. 4.000.000$00 devem abranger o período temporal decorrente entre a citação dos RR. na acção principal e a notificação da Exequente/Embargada no âmbito dos embargos de executado apresentados.

O facto deste crédito de juros ser inicialmente ilíquido, não impede a respectiva compensação, conforme decorre expressamente do disposto no art. 847º/3 do CC.  Por outro lado, a verdade é que a Exequente quantificou-os, indicando-os na petição executiva como sendo de 62.410,44 euros liquidação esta que não foi objecto de impugnação e, como tal, deve ser aceite.

Chegados a este momento temos que, sobre a quantia inicial de 157.620,14 euros (devidas aos Embargantes a título de pagamento final do preço), deve proceder-se à dedução da quantia de 115.721,11 euros (correspondente a PTE. 23.200.000$00, montante resultante da soma de PTE. 19.200.000$00 e PTE. 4.000.000$00) e aos juros vencidos, já acima mencionados e que ascendem ao montante de 62.410,44 euros pelo que, verifica-se a existência de um crédito a favor da Embargada no montante de 20.511,11 euros que é exactamente aquele que a mesma peticionou na respectiva acção executiva.

Entende-se, assim, não assistir qualquer razão aos Embargantes.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, dando-se provimento ao recurso de apelação, julgam-se improcedentes os Embargos de Executado apresentados por JOSÉ TOMÉ RIBEIRO.

Custas pelo Embargante/Executado.

  Lisboa, 26 de Setembro de 2006.

(Dina Monteiro)
(Luís Espírito Santo)
(Isabel Salgado)