Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7512/2004-6
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: O transporte marítimo cujo conhecimento de carga foi emitido em Itália regula-se pela Convenção de Bruxelas de 25-8-1924.
O prazo de caducidade conta-se a partir da data da entrega da mercadoria e não do conhecimento da causa da deterioração da mercadoria transportada.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório.
(H), empresário em nome individual, com sede na Rua Nossa Senhora da Agonia, nº 353, Sobra, Barreira, Leiria, intentou no Tribunal Marítimo de Lisboa, acção com processo ordinário contra Marvani, S.p.A., com sede e Vila s. Brígida, 29, 80133, Nápoles, Itália, e Axa Portugal, Companhia de Seguros, SA, com sede na Rua Gonçalo Sampaio, 39, Porto, pedindo:
A condenação das RR a pagarem-lhe a quantia de 19.612.158$00, com o limite de 16.711.748$00 no que respeita à 2ª Ré, e ainda o que se vier a apurar em execução de sentença, acrescida de juros vencidos e vincendos, alegando, para tanto e em síntese, o seguinte:
O Autor, comerciante de vinhos e derivados, tendo adquirido em Itália 165.000 litros de vinho que destinava a comercializar em Portugal, contratou com a 1ª Ré o seu transporte para Portugal, num navio propriedade desta. Para cobrir os riscos do transporte celebrou com a 2ª Ré um contrato de seguro de transporte marítimo de mercadorias, com o capital seguro de 16.711.748$00. Sucede que no decurso da viagem para Portugal o vinho se deteriorou devido ao contacto com resíduos de detergente existentes nos porões do navio onde o vinho foi transportado, o que causou à Autora prejuízos patrimoniais no valor supra referido de que pretende ser ressarcida pelas RR.
Contestaram as RR, separadamente, no sentido da improcedência da acção alegando, em síntese:
A Marvani invocou a caducidade do direito da Autora, por a acção ter sido intentada depois de decorrido o prazo de um ano que a Autora dispunha para accionar judicialmente o direito que invoca; impugnou ainda os fundamentos do pedido, não aceitando qualquer responsabilidade na alegada deterioração do vinho.
A Companhia de Seguros AXA impugnou os fundamentos do pedido da Autora, acrescentando que esta não lhe comunicou tempestivamente, como lhe impunham as condições da apólice, a ocorrência dos factos, impedindo-a de fazer qualquer investigação ou controle do caso.
Respondeu a Autora para contrariar o alegado pelas RR nas respectivas contestações, mantendo a posição expressa no articulado inicial.

No despacho saneador, depois de se afirmar a validade da instância, julgou-se procedente a excepção de caducidade e em consequência absolveu-se do pedido a Ré Marvani. Condensou-se a matéria de facto, com especificação da já assente e elaboração da base instrutória.
Inconformados com a decisão que julgou procedente a excepção de caducidade e que absolveu a Ré Marvani, apelaram o Autor e a Ré AXA, tendo ambos os recursos sido admitidos para subirem a final.
Realizada a audiência de discussão e julgamento e dirimida, sem censura, a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.
Inconformado com o decidido o Autor apelou.
(...)
(...)

Fundamentação de facto.
A sentença recorrida deu como provado o seguinte acervo factual:
I - O Autor dedica-se ao comércio por grosso e a retalho de vinhos e derivados, aguardentes, licores e outras bebidas alcoólicas.
II - Em 1 de Dezembro de 1998, o Autor, através da firma “Asta Régia – Vinhos de Portugal, SA., concretizou um negócio de importação de 165.000 litros de vinho tinto proveniente de Itália, adquirido à firma “Nature, SRL.”, com sede em Itália.
III- Como o Autor, outros comerciantes, em circunstâncias idênticas, encomendaram vinho ao mesmo fornecedor, que em conjunto foi transportado no mesmo navio da Marvani.
IV - Antes do embarque o vinho foi analisado pelo “Laboratori per il controllo di qualitá” da Unione Italiana Vini, com os seguintes resultados:
Aciditá totale in acido tartarico: 12 g/litre;
Aciditá volatile in ac. acetico corr. Della SO2: 0,60g/litre;
Aciditá volatile in ac. acetico: 0,43 g/litre;
Aciditá totali in acido tartarico: 5,70 g/litre.
V - O vinho destinado ao Autor foi carregado no porto de Galhipoli no navio Praiano, de que é armadora a Ré Marvani S.p.A., tendo sido descarregado no porto de Aveiro e entregue ao Autor em inícios de Dezembro de 1998.
VI - O transporte do vinho por mar foi efectuado a coberto do conhecimento de embarque cuja cópia consta de fls. 14.
VII - O Autor celebrou com a Ré AXA um contrato de seguro de transporte de mercadorias destinado a cobrir os riscos do transporte por mar de 150.000 litros de vinho tinto, do porto de Galhipoli para o de Aveiro, até ao limite do capital seguro de esc. 16.711.748$00, nos termos da apólice nº 201223, cujas condições gerais e particulares constam de fls. 37 a 55.
VIII - Recebida a mercadoria, o Autor efectuou o transporte da carga que lhe pertencia para as suas instalações.
IX - Nas suas instalações, o Autor procedeu ao engarrafamento em garrafas e garrafões nos quais foi posto um rótulo com identificação.
X - O Autor vem utilizando essas marcas nos produtos que vende a comerciantes armazenistas que, por sua vez, vendem a retalho para o consumidor final e para outros pequenos comerciantes.
XI - Depois de embalado e colocado no mercado o vinho importado de Itália através da venda a todos os seus clientes, o vinho veio a ser objecto de várias reclamações.
XII - Os clientes do Autor transmitiram-lhe que o vinho apresentava um sabor estranho.
XIII - Tal sabor, após a ingestão de um ou mais tragos desse vinho, causava uma reacção de profundo desagrado e rejeição a quem o consumia.
XIV - Por isso, o vinho que foi para o mercado foi devolvido pelos clientes do Autor.
XV - E tendo o mesmo sucedido aos outros comerciantes que, como o Autor, importaram o referido vinho.
XVI - Perante estes acontecimentos, o Autor através do representante da firma ASTA RÉGIA, contactou o fornecedor do vinho e a transportadora, transmitindo-lhe as reclamações que recebeu.
XVII – O Autor recebeu em 13.07.99 o fax cuja cópia consta de fls. 18 e 19.
XVIII – Por fax datado de 07.10.99, cuja cópia consta de fls. 21, a transportadora Marvani, mercê da confiança comercial que lhe merecia a ASTA RÉGIA, admitiu, perante a sua agente Giuseppe Rallo, que os destinatários do vinho dos autos tivessem sofrido prejuízos na comercialização do mesmo, admitindo, ainda, a possibilidade de efectuar descontos nos fretes de futuros transportes a contratar com a ASTA RÉGIA, por forma a ajudar a atenuar aqueles prejuízos.
XIX - O Autor não recebeu qualquer indemnização.
XX – Apesar de ter conseguido recolher parte do vinho que tinha colocado no mercado, porque algum dele foi inutilizado no momento em que se iniciava o consumo, o Autor teve de receber garrafas e garrafões apenas com parte do seu conteúdo.
XXI – O Autor vendia o vinho a 128$00 o litro.
XXII – A imagem comercial do Autor foi prejudicada pela distribuição do vinho dos autos e o Autor sofreu uma diminuição do volume de vendas nos anos de 2000 e 2001, por referência aos anos de 1998 e 1999.
XXIII – Os resultados líquidos do Autor passaram de 4.304.602$00 em 1998 para o valor de 452.732$00 no ano de 1999.
XXIV – O Autor desenvolve a sua actividade desde 1983.
XXV - Em meados de Julho de 1999, o Dr. António Gama, em representação da ASTA RÉGIA, deslocou-se às instalações da Ré AXA, no Porto, onde trocou impressões com um funcionário desta sobre os procedimentos a adoptar quanto aos problemas havidos com o transporte do vinho dos autos.
XXVI - A Ré AXA apenas foi informada da alegada contaminação do vinho transportado em 26.11.99.

Fundamentação de direito.
As questões objecto dos recursos – delimitadas, como se sabe, pelas conclusões das alegações dos apelantes (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil) – são, essencialmente, as seguintes:
- se ocorreu a caducidade do direito da Autora;
- se os factos provados ou que resultam dos autos permitem imputar às condições do transporte marítimo a deterioração do vinho adquirido pelo Autor.
Abordemos tais questões.
Com a presente acção o Autor pretende ser ressarcido dos danos que sofreu em consequência da deterioração de vinho que adquiriu em Itália, responsabilizando a Ré Marvani encarregue do seu transporte para Portugal em navio, alegando que a causa da deterioração do vinho foi o deficiente cumprimento pela Ré do contrato de transporte.
No despacho saneador julgou-se procedente a excepção de caducidade da acção invocada pela Ré Marvani, por a acção ter sido intentada para além do prazo de um ano previsto no art. 3º, nº 6, da Convenção de Bruxelas.
Contra o assim decidido apelou o Autor.
Nas conclusões 1ª e 2ª, o Apelante sustenta que só muito depois da descarga do vinho teve conhecimento da natureza e origem da avaria verificada, pelo que só a partir desse momento começou a correr o prazo de que dispunha para accionar os responsáveis. Ao não decidir assim, a sentença violou o disposto no art. 329º do Cód. Civil.
Questiona também o Autor a aplicação ao caso do art. 6º, nº 3 da Convenção de Bruxelas, pois a mesma só deve ser aplicável em Portugal no caso do conhecimento de carga ter sido emitido em território português, o que não ocorreu.
Que dizer?
Estamos perante um contrato de transporte marítimo de mercadorias, o qual tem como elemento essencial a obrigação assumida por uma parte (o transportador) de deslocar por mar determinada mercadoria e entregá-la ao destinatário, pontualmente, mediante retribuição (cf. Costeira da Rocha, “O contrato de transporte marítimo de mercadorias, 1996, pág. 52).
Este contrato tem a documentá-lo o conhecimento de carga, conhecido pela designação bill of landing, documento emitido pelo transportador e que reveste, designadamente, a função de recibo de entrega das mercadorias ao transportador, bem como do respectivo embarque.
No caso dos autos, foi convencionado o transporte de vinho por mar, de Itália para Portugal, conforme conhecimento de embarque cuja cópia constitui fls. 14 e 15 dos autos, e do qual resulta que o mesmo foi emitido em Gallipoli, Itália.
É aplicável ao caso dos autos a Convenção de Bruxelas de 25.08.1924?
A disciplina jurídica do transporte de mercadorias por mar consta do DL nº 352/86 de 21 de Outubro, o qual, depois de dar a noção do contrato no art. 1º, estatui no art. 2º, sob a epígrafe direito aplicável: “este contrato é disciplinado pelos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente pelas disposições do presente diploma.”
Significa isto, pois, a primazia dos tratados internacionais sobre a legislação de cada país em matéria de direito marítimo, a qual tem quase sempre funções de suprimento ou de complemento do direito internacional convencional (cf. o Ac. da Relação de Lisboa de 19.03.96, CJ ano XXI, tomo 2, pag. 84, que a este propósito citou a lição de Mário Raposo, e o Ac. do STJ de 20.01.94, CJ AcSTJ, ano II, tomo 1, pag.49).
Portugal aderiu à Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924 através da carta publicada no DG de 02.06.32, cujos artigos 1º a 8ª foram integrados na ordem jurídica portuguesa pelo Dec. Nº 37.748 de 1 de Fevereiro de 1950, o mesmo acontecendo com a Itália que também aderiu à Convenção de Bruxelas, como refere a douta sentença recorrida.
Segundo dispõe o art. 10º da referida Convenção, “as disposições da mesma são aplicáveis a todo o conhecimento criado num dos Estados contratantes”, pelo que, tendo o conhecimento de carga ocorrido em Itália, país contratante, a mesma é de aplicar ao caso dos autos, sendo infundada a alegação do Apelante em sentido contrário.
Neste sentido decidiu o Ac. do STJ de 23 de Setembro de 1997, BMJ 469/598: “Ao contrato de transporte de mercadorias por mar, sujeito ao regime do DL 352/86 de 21 de Outubro, aplica-se, imperativamente, a Convenção de Bruxelas de 25.08.1924, quer se trate de transporte internacional quer de transporte interno.”
A questão da caducidade.
O art. 3º, nº 6 da mencionada Convenção Bruxelas dispõe que “em todos os casos o armador e o navio ficarão libertados de toda a responsabilidade por perdas e danos, não sendo instaurada a respectiva acção no prazo de um ano a contar da entrega das mercadorias ou da data em que estas deveriam ser entregues.”
O Apelante aceita que a acção foi proposta depois de decorrido o prazo de caducidade referido. Alega, no entanto, que como só teve conhecimento da natureza e origem da avaria em momento posterior ao descarga, só a partir da data do conhecimento deve iniciar-se o prazo para ser intentada a acção.
A caducidade, como se sabe, “é estabelecida com o fim de dentro de certo prazo se tornar certa, se consolidar, se esclarecer determinada situação jurídica”, (Vaz Serra, RLJ ano 107, pag. 24).
Nos termos do art. 329º do Cód. Civil, o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.
No caso dos autos, a lei fixa uma data a partir da qual o direito deve ser exercido: um ano contado sobre a data da entrega da mercadoria (cf. os Acórdãos desta Relação de 12 de Junho de 1996 e de 05.02.2004, CJ ano 1996, tomo 3, pag. 116 e ano 2004, tomo 1, pag. 100).
Assim, e porque a lei fixa o termo inicial do prazo, não releva a circunstância de o Autor só posteriormente à entrega da mercadoria ter tomado conhecimento da causa da deterioração do vinho. Se se considerasse como termo inicial do prazo de caducidade a data referida pelo Autor, estar-se-ia não só a ir contra o que a lei claramente prescreve como a criar uma situação de insegurança e instabilidade na definição das relações jurídicas, justamente o que o fixação de prazos de caducidade procura evitar.
Acresce ainda este facto: considerando que a mercadoria foi entregue ao Autor em princípios de Dezembro de 1998 a acção podia ter sido intentada, tempestivamente, até princípios de Dezembro de 1999, o que o Autor poderia ter feito uma vez que, conforme alegou, tomou conhecimento da causa da deterioração do vinho em 13.07.99, com o relatório que atribuía a deterioração daquele a “resíduos de detergente existente nos porões do navio”.
Mas terá a Ré Marvani reconhecido a sua responsabilidade, em termos de impedir a consumação do prazo de caducidade?
A este propósito, dispõe o art. 331º do Cód. Civil, sob a epígrafe causas impeditivas da caducidade:
1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deve ser exercido.
Segundo Vaz Serra, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado, vol. I, 4ª edição, pag. 296, “se se trata do prazo de propositura de uma acção judicial, o reconhecimento deve ser tal que torne o direito certo e faça as vezes da sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido”. No mesmo sentido, o Ac. da Relação do Porto de 25.06.87, CJ ano XII, tomo 3, pag. 212, decidiu que “o reconhecimento do direito, referido no art. 313º do Cód. Civil, não é a simples admissão genérica de um direito de crédito, mas um reconhecimento concreto, preciso, sem ambiguidades ou de natureza vaga ou genérica.”
Alega o Apelante ter a Ré Marvani reconhecido a sua responsabilidade pelo fax datado de 07.10.99, que constitui fls. 21.
Todavia, sem razão.
Embora tal documento não se encontre traduzido para português, estando redigido em italiano e com tradução em língua inglesa, dele se retira não o reconhecimento pela Marvani de qualquer responsabilidade na alegada deterioração do vinho, mas, apenas, a aceitação de que algo anormal terá ocorrido com o vinho e a disponibilidade para encarar descontos em futuros fretes para minorar os prejuízos do Autor.
Em suma: o Autor intentou a acção de indemnização para além do prazo de 1 ano referido no art. 3º, nº 6, da Convenção de Bruxelas, que é aplicável ao caso do autos, pelo que bem decidiu o tribunal recorrido ao julgar verificada a caducidade.
Em consequência, improcedem todas as conclusões do recurso interposto do despacho sanedor, na parte em que julgou procedente a execepção de caducidade.
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No recurso interposto da sentença basicamente trata-se de saber se os factos provados e o que consta do processo permitem concluir que a causa da deterioração do vinho foi o seu contacto com detergente existentes nos porões do navio.
O Autor fundamentou o seu pedido de indemnização num defeituoso cumprimento do contrato de transporte pela Ré.
O cumprimento defeituoso de um contrato, que é uma forma de incumprimento, tem como consequência mais importante a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor (art. 798º do Cód. Civil).
Conforme ensina Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II vol. Pag. 90, são os seguintes os pressupostos da responsabilidade civil contratual:
a) O facto do não cumprimento (por acção ou omissão); b) a ilicitude; c) a culpa; d) o prejuízo sofrido pelo credor; e) o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
A ilicitude resulta, neste domínio da responsabilidade contratual, da desconformidade entre o comportamento devido (a prestação debitória) e o comportamento assumido (Antunes Varela, obra citada, pag. 91).
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta ser censurável, ou reprovável. Ou seja: perante as circunstâncias concretas do caso, o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo.
Segundo o Autor, o comportamento ilícito do transportador resultou de, estando obrigado a transportar o vinho para Portugal, ter permitido que o mesmo se degradasse pelo contacto com detergentes nos porões do navio.
E terá agido com culpa na medida em que seja possível formular-lhe um juízo de censura, por não ter agido com a diligência exigível para impedir o contacto do vinho com o detergente.
Das regras relativas ao ónus da prova, emergem para o caso vertente as seguintes consequências:
Ao Autor incumbia a prova do facto ilícito do cumprimento defeituoso, ou seja a a prova do defeito verificado, como elemento constitutivo do seu direito à indemnização; ao transportador a prova que o cumprimento defeituoso da obrigação – ou seja, a degradação do vinho durante a viagem – não procede de culpa sua (art. 799º do Cód. Civil).
É altura de reverter ao caso dos autos.
Relativamente ao alegado pelo Autor quanto à causa da contaminação do vinho, interessa atentar no teor dos quesitos 15º e 16º da base instrutória e respectivas respostas: “Tais análises foram realizadas na instituição mais credenciada existente em Itália, escolhida por acordo entre o transportador e o fornecedor de vinho? (Qtº 15º);
“Estas análises concluíram que o vinho fornecido havia sofrido alteração durante o transporte, cuja causa foi atribuída a resíduos de detergente existente nos porões do navio onde havia sido transportada a mercadoria?” (Qtº 16º).
A ambos os quesitos o tribunal respondeu não provado, justificando assim a sua decisão:
“Em 1º lugar importa referir que apenas foi suficientemente provado a recolha de amostras antes da carga do vinho no navio em Itália. Todas as demais recolhas não passaram de mero plano da alegação, mal se compreendendo que as mesmas, a terem existido, não se mostrem documentadas nos autos.
Acresce que a recolha do detergente alegadamente utilizado na lavagem dos tanques do navio Praiano ocorreu algum tempo depois da apresentação das primeiras reclamações ou, melhor dizendo, cerca de 3 meses após a viagem marítima controversa.
Por outro lado, o Autor não logrou provar que o fornecedor e o transportador do vinho tivessem dado o seu acordo às alegadas análises a recolhas de amostras. A Unione Italiana Vini analisou as amostras que o Autor e os outros compradores de vinho italiano entenderam submeter-lhe à revelia dos demais interessados.
Finalmente, o INETI (Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial) – Laboratório de Química Analítica ), foi solicitado a intervir e não detectou – segundo relatório de fls. 173 a 195 – quaisquer indícios da presença química de detergente, isto é dos seus componentes, nas amostras, ficando, assim, por perceber como puderam os clientes do Autor ter detectado tal presença por meios meramente sensoriais.”
Contra este entendimento, e no sentido de que a deterioração do vinho necessariamente ocorreu durante a viagem, o Autor esgrime os seguintes argumentos:
- a adulteração do vinho foi constada pelos outros comerciantes que também importaram o vinho, o que só pode significar que aquela ocorreu antes da sua descarga no porto de Aveiro;
- O relatório da Unione Italiana Vini segundo o qual o vinho após o transporte marítimo revela a presença de sabor a detergente, ao contrário do que se passa com a amostra recolhida antes do embarque que não revelava qualquer sabor anormal;
Afigura-se-nos, todavia, que estes argumentos não são suficientes para permitirem uma resposta positiva ao quesito 16º, na valoração da restante prova produzida, designadamente, o relatório do INETI com o peso que não pode deixar de se lhe reconhecer.
O facto de os outros comerciantes que também importaram o vinho terem recebido queixas contra a qualidade do vinho, não significa necessariamente que a deterioração tivesse ocorrido devido ao contacto com o detergente durante a viagem. É possível que o vinho, por qualquer razão (designadamente as suas características específicas), se tenha deteriorado rapidamente.
Por outro lado, não se pode reconhecer ao relatório elaborado pela Unione Italiana Vini a força probatória que o Apelante lhe atribui, uma vez que se trata de uma diligência realizada fora do processo, em condições que se desconhecem e feito à revelia dos Réus. Acresce o facto de as análises efectuadas pelo INETI não terem detectado a presença química de detergente no vinho, o que abala seriamente a alegação do Autor quanto à causa da deterioração do vinho.
Concluímos, assim, inexistiram motivos para alterar a resposta de não provado ao quesito 16º, com o que mantemos a decisão do tribunal recorrido.
Como assim, e por não provado um dos pressupostos da responsabilidade contratual – o cumprimento defeituoso do contrato de transporte – impunha-se julgar a acção improcedente e absolver o Réu do pedido, como bem decidiu a sentença.
Improcedem, em consequência, todas as conclusões do recurso, que está votado ao insucesso.
Decisão.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedentes as apelações e consequentemente confirma-se o despacho saneador e a sentença recorridos.
Custas pelo Apelante.

Lisboa, 04.11.25

Ferreira Lopes
Manuel Gonçalves
Aguiar Pereira