Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3082/2007-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
FUSÃO DE EMPRESAS
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – A cessão da posição contratual implica a existência de dois contratos: o contrato-base e o contrato-instrumento da cessão, que é o realizado para transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base. E envolve três sujeitos: o contraente que transmite a sua posição (cedente); o terceiro que adquire a posição transmitida (cessionário); e a contraparte do cedente no contrato originário, que passa a ser contraparte do cessionário (contraente cedido ou, simplesmente, o cedido). A relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário”.
II - A fusão de sociedades, prevista no nº 1 do artigo 97º do Código das Sociedades Comerciais e que permite que duas ou mais sociedades, ainda que de tipo diverso, possam fundir-se mediante a reunião numa só, pode realizar-se, nos termos do nº 4 deste preceito, mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para outra (fusão por incorporação) ou mediante a constituição de uma nova sociedade (fusão por constituição de nova sociedade).
III - Tendo presente esta realidade, previu-se no artigo 5º do Código das Sociedades Comerciais que as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras.
IV - Face ao disposto no artigo 112º do daquele código, com a inscrição da fusão no registo comercial extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade (alínea a).
FG
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
            1. Relatório:
            W Lda, intentou, em 14 de Julho de 2004, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B, Crédito S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 138.264,18, bem como juros vincendos à taxa de juro comercial sobre a quantia de € 102.657,50 desde 16/07/04 até efectivo pagamento, com fundamento no incumprimento de um protocolo de colaboração com a autora, que tinha em vista a financiar os alunos desta e esteve em vigor até Julho de 2001, por força do qual a autora tinha direito a um rappel de 3,5% sobre o valor dos cursos facturados objecto de financiamento, caso este ultrapassasse o valor de € 2.493.989,49, sendo que a autora ministrou cursos financiados pela ré no período de Setembro de 2000 a Maio de 2001 no montante total de 2.506.900,85.
A ré contestou, alegando, em síntese, que qualquer protocolo terá sido celebrado com o Banco e vigorou até Agosto de 2000, e não com a ré, tendo a B S.A., adquirido uma carteira de contratos ao Banco S.A., celebrados e em vigor, e o referido B financiado alguns cursos ministrados pela autora no período de Novembro de 2000 até Maio de 2001, não prevendo estas operações de financiamento qualquer comissão ou "rappel" à autora. Mais alegou que nunca pagou qualquer comissão ou rappel à autora, pelo que a sua pretensão deverá improceder.
Finalizou, pedindo a condenação da autora em multa e indemnização por litigância de má fé.
Na réplica a autora respondeu à matéria de excepção e peticionou, igualmente, a condenação da ré como litigante de má fé.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora o montante de € 68.195,45, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre o capital em divida à taxa legal de 12% desde 31/07/01 até 30/09/04, 9,01% até 31/12/04, 9,09% até 30/06/05, 9,05% até 21/12/05 e 9,25%, absolvendo-a do demais peticionado.
Foram ainda autora e ré absolvidas dos pedidos de condenação por litigância de má fé.

Inconformada apelou a ré.
Alegou e formulou, em resumo, a seguinte síntese conclusiva:
1ª Quanto à MATÉRIA DE FACTO, a análise conscienciosa da prova constante dos autos e produzida em sede de audiência de julgamento, conforme se demonstrará, impunha uma decisão distinta quanto aos factos considerados provados, designadamente, sob os pontos 9., 10. e 11. da Sentença (correspondentes aos números 1, 2, 4 [e 5] da Base Instrutória),
            2ª Antes da revisão da matéria de facto propriamente dita, importa fazer notar que a Ré e o Banco, S.A. são entidades jurídicas absolutamente distintas, sem qualquer ligação entre si. A Ré integrou por fusão uma outra sociedade  que havia adquirido em 30.11.2000 uma carteira de contratos de crédito e de leasing do Banco, S.A., não existindo qualquer outra ligação entre ambas as entidades.
            3ª Foi o Banco S.A (e não a Ré) que emitiu o documento/protocolo junto como doc. 1 da petição inicial, denominado "Protocolo para Set/99 a Ago/2000". A cessão da carteira de créditos do Banco, S.A. para a E… (aqui Ré) teve lugar em 30 de Novembro de 2000 e abrangeu exclusivamente a cessão da posição de mutuante/locadora em todos os contratos de crédito e locação financeira em vigor (i.e. contratos com consumidores/clientes finais já celebrados e em curso – cfr. contrato junto como doc. 2 com a Contestação).
            4ª Da análise crítica do documento junto como doc. 1 da Contestação (que atesta a data em que se realizou a compra dos créditos pela Ré ao Banco, S.A., 30-11-2000), da prova testemunhal produzida (todas as testemunhas ouvidas confirmam a compra dos créditos naquela data e que foi apenas a partir daqui - Dezembro de 2000 - que a Ré começou a realizar financiamentos), e dos documentos juntos a fls. 176 a 180 (mapas dos financiamentos realizados a partir de Dezembro de 2000), não poderá razoavelmente decorrer outra resposta ao Quesito 1º da Base Instrutória que não "Provado apenas para o valor de € 1.575.849,56" e a alteração do Facto Provado 9 para "A A. ministrou cursos financiados pela R., no período decorrente entre Setembro de 2000 (ou melhor dizendo, Dezembro de 2000) e Maio de 2001 que totalizam a quantia de Euros: 1.575.849,56)".
Este erro do Tribunal a quo veio a resultar na inusitada e absurda condenação da Ré no pagamento de "rappel" por cursos que nem sequer financiou.
            5ª A Ré sucedeu ao Banco, S.A. em parcerias comerciais com diversos fornecedores, mas, em nenhum caso, se tratou de uma "cessão de posição contratual" nos termos do artigo 424º nº 1 do Código Civil, não só porque não houve qualquer acordo/contrato entre a Ré e o Banco, SA e/ou algum “fornecedor” nesse sentido, mas também porque a Ré nunca assumiu, nem pretendeu assumir, quaisquer obrigações contratuais anteriormente estabelecidas, e eventualmente existentes, entre o Banco e os seus "fornecedores", (conforme depoimentos das testemunhas L e M - transcritos à margem do ponto 52).
            6ª Neste contexto, nunca a Ré celebrou um protocolo com a A., designadamente envolvendo o pagamento de rappel àquela, ou sequer aderiu ao protocolo que em tempo havia vigorado com o Banco, e que previa tal pagamento, conforme resulta da prova produzida e dos elementos existentes nos autos.
            7ª Pela análise ponderada de todas as circunstâncias, factos e elementos de prova descritos, deveria o douto Tribunal a quo ter considerado não provados os factos 2º e 6º da Base Instrutória, e, no mesmo sentido, ter dado como provado o facto 5º daquela peça processual.
            8ª Dando por reproduzido o que, a propósito dos mapas juntos a fls. 176 a 180 e do contexto do seu envio, foi já mencionado nos pontos antecedentes, é evidente que os mesmos não foram remetidos para efeito do cálculo de rappel, razão pela qual nos termos em que vem formulado o facto 5º da Base Instrutória, a resposta ao mesmo deveria ter sido "não provado".
9ª Quanto à APLICAÇÃO DO DIREITO, esta surge na douta sentença a quo, obviamente condicionada pelos factos indevidamente dados como provados pelo que, nesta medida, o recurso quanto à matéria de direito está indissociavelmente ligado ao recurso quanto à matéria de facto.
            10ª Alguns conceitos da Base Instrutória, como o da "manutenção em vigor" do protocolo (Factos 2º e 5º da BI) pressupõem já uma determinada conceptualização jurídica que vai para além de uma exclusiva ponderação de factos, mas a sua integração com determinados conceitos jurídicos (v.g. de "representante legal", "declaração contratual", "vinculação"), ou dito de outra forma, um enquadramento jurídico dos factos.
            11ª Por essa razão a Ré/Apelante antecipou para o momento de recurso da matéria de facto, uma análise crítica a determinados aspectos de índole jurídica, nomeadamente, a circunstância de que todos os actos (expressos ou tácitos) apontados à Ré na douta sentença a quo no sentido da adesão/vinculação ao dito protocolo, serem sempre praticados por colaboradores sem poderes de vinculação da empresa (gestora de conta e director comercial).
12ª Estando em causa a imputação à Ré de uma pretensa responsabilidade contratual, a vinculação desta ao suposto "contrato", que deveria ter lugar nos termos do artigo 409º do Código das Sociedades Comerciais, é pressuposto sine qua non para a procedência do pedido.
            13ª O próprio Tribunal a quo reconhece que tal vinculação nunca ocorreu, ao não dar como provado que as partes tenham acordado a renovação do protocolo (cfr. resposta "negativa" dada ao facto 6º da Base Instrutória), no entanto, considera, "inexplicavelmente" a Ré "obrigada" ao protocolo celebrado entre a A. e o Banco em 25-10-1999, sem que conste da matéria de facto provada que a Ré celebrou/aderiu a esse mesmo protocolo e em que termos.
14ª Tratando-se de responsabilidade contratual, não pode a A. demitir-se de alegar e provar, enquanto elemento constitutivo do seu direito "quando" e "como"            terá a Ré celebrado /acordado no contrato/protocolo que constitui o essencial da causa de pedir, sob pena de violação do disposto no artigo 342º nº 1 do Código Civil, do mesmo modo que não pode o douto Tribunal condenar a Ré ao cumprimento de uma pretensa obrigação contratual sem que conste de forma clara e inequívoca da matéria de facto provada como, em que termos e desde quando a Ré passou a estar vinculada a tal obrigação.
            15ª De outro modo, a sentença a quo limita-se a condenar a Ré ao cumprimento de uma obrigação própria do Banco, S.A. no âmbito do protocolo de 25-10-1999, e, nesta medida, é ilegal porque viola os artigos 5º e 6º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais e representa a desconsideração da personalidade e individualidade jurídicas, quer do Banco, S.A., quer da sociedade Ré.
            16ª Faltando, como faltam, elementos consubstanciadores da celebração/adesão da Ré ao "protocolo referido", independentemente do recurso quanto à matéria de facto e considerando apenas os factos efectivamente dados como provados pelo Tribunal a quo, continua a não existir fundamento para a condenação da Ré nos termos constantes da decisão recorrida.
Termos em que, corrigida a resposta à matéria de facto, deve a douta sentença a quo ser revogada e substituída por outra que determine a absolvição da Ré do pedido.

Na contra-alegação a autora pugnou pela manutenção do julgado.
Colhidos os vistos legais,
Cumpre decidir.

            2. Fundamentos:
2.1. De facto:
Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
1- A A. é uma sociedade comercial cuja actividade é o ensino da língua inglesa.
2- Alguns alunos têm necessidade de obter crédito para pagarem os cursos que pretendem frequentar na A.
3- Por documento escrito datado de 25/10/99, pelo Banco S.A., foi declarado à A. que:
"No seguimento dos contactos anteriores, vimos actualizar o nosso protocolo de colaboração para 1999/2000 nos seguintes aspectos:
1-Produtos oferecidos
2-Acompanhamento por Gestor de Conta
3-Programa de Incentivos
1-Produtos oferecidos
Crédito Mútuo, o Banco continuará a fornecer tabelas de coeficientes e impressos de contratos personalizados.
2- Acompanhamento por Gestores de Contas.
O nosso Gestor de Conta estará disponível para acompanhar e apoiar a estrutura comercial.
3-Programa de Incentivos para as equipas de vendas
Atribuiremos um incentivo, visando dinamizar as vendas e a utilização dos nossos produtos de financiamento, de um Rappel de 1,5% sobre o total facturado, se ultrapassado 150.000.000$00;
- + 0,5% se ultrapassar 200.000.000$00
- +0,5% se ultrapassar 250.000.000$00
- +0,5% se ultrapassar 350.000.000$00
- +0,5% se ultrapassar 500.000.000$00"
4- A A. emitiu um aviso de lançamento n° 0044 datado de 31 de Julho de 2001, dirigido a E… Crédito S.A., com sede na Av. de Berna, 1°, no montante de Esc.20.580.999$00 (incluído o IVA à taxa de 17%), dele constando "Rappel s/ Financiamento de cursos W referente ao período Set. 2000 a Maio 2001, conforme cálculos anexos.
5- Pela A. foi emitido à R. este aviso que a R. recebeu.
6- Por documento escrito denominado "Contrato referente à Cessão de Posições Contratuais em Contratos de Crédito ao Consumo e à venda de Certos Activos", datado de 30/11/00, pelo Banco E S.A. foi declarado que pretendia ceder a sua posição contratual de mutuante em todos os contratos de crédito ao consumo descritos e identificados no Anexo 1, nos termos e condições constantes do seu clausulado e que se dão por reproduzidas.
7- O B Portugal S.A., o F S.A. e o Banco constituíram uma sociedade financeira denominada E… S.A.
8- Por escritura pública de 1 de Agosto de 2003 a B, S.A., foi incorporada, por fusão, na sociedade B S.A., que em consequência passou a denominar-se B S.A.
9- A autora ministrou cursos financiados pelo Banco E, SA, entre Setembro e 30 de Novembro de 2000 e pela E, SA, entre 1 de Dezembro de 2000 e Maio de 2001, que totalizaram a quantia de € 2.273.181,60[1]
10- [2]
11- A E, SA, escreveu à autora uma carta datada de 10 de Julho de 2001, cuja cópia se encontra a fls. 67, com o seguinte teor:
Conforme já tivemos oportunidade de alertar, os elevados níveis de incumprimento que temos vindo a detectar nos contratos com origem nos Vossos Centros obrigam-nos a uma interrupção no tratamento das Vossas propostas de financiamento. De facto, os valores atingidos ultrapassam em muito os que foram inicialmente previstos quando discutimos as condições gerais deste negócio e não se coadunam com as taxas de juro implícitas nos respectivos contratos.data em que a R. considerou terminada a colaboração entre ambas.
(…)”.[3]
12- Os valores de financiamento para cálculo do Rappel referidos no ponto 4 foram fornecidos pela E.
13- A Efisa Financiamento S.A., alterou a sua denominação para B Crédito S.A., registada mediante a AP.39/20010810 da Conservatória de Registo Comercial de Lisboa (doc. junto a fls. 1660 e segs.).

2.2. De direito:
2.2.1. Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação da ré, ora apelante, delas emerge como primeira questão decidir saber se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada no sentido pretendido pela mesma.
O nosso ordenamento jurídico consagrou o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (artigo 655º do Código de Processo Civil), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Segundo este princípio, que se opõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.
Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais  -, vigoram ainda os princípios da imediação, da oralidade e da concentração,  pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº 180/96, de 25 de Setembro, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
A decisão sobre a matéria de facto, por princípio inalterável pela Relação, pode, à luz do disposto no artigo 712º nº 1 do Código de Processo Civil, ser, nomeadamente, alterada em sede de recurso se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida (al. a)).
No caso vertente, a ré pugna pela modificação das respostas dadas aos artigos 1º, 2º, 4º e 5º da base instrutória, invocando errada apreciação da prova testemunhal e documental produzida pelas partes.
Vejamos.
Perguntava-se no artigo 1º da base instrutória se “A A. ministrou cursos financiados pela R. no período decorrente entre Setembro de 2000 e Maio de 2001 que totalizam a quantia de Euros: 2.273.181,60”, tendo sido respondido “Provado apenas para o valor de € 2.273.181,60”.
            Esta resposta não traduz com rigor a realidade evidenciada pela prova produzida, principalmente, a prova documental.
            Com efeito, decorre do contrato junto a fls. 37/45 dos autos, não impugnado, denominado “Contrato referente à Cessão de Posições Contratuais em Contratos de Crédito ao Consumo e à Venda de Certos Activos”, que em 28 de Julho de 2000 o Banco B (Portugal), SA, o F, SA, e o Banco E, SA, acordaram constituir uma sociedade financeira, à qual o Banco E, SA, cederia a sua carteira de contratos ao consumo, sociedade que seria posteriormente adquirida pelo Banco (Portugal), SA, e pelo F, SA. (cfr. als. E) e F) da matéria de facto assente).
Constituída tal sociedade, denominada E, SA, concretizou-se, em 30 de Novembro de 2000, a operação de compra por esta ao Banco E, SA, da sua carteira de contratos ao consumo, pelo que antes desta data não pode, rigorosamente, considerar-se que a autora ministrou cursos financiados pela ré, sendo, no tocante ao valor dos mesmos, de considerar o que consta dos documentos juntos a fls. 176 a 180, que não foram impugnados e cuja autoria a ré expressamente aceitou.
Assim, a resposta ao artigo 1º da base instrutória passa a ser a seguinte:
“Provado que a autora ministrou cursos financiados pelo Banco E, SA, entre Setembro e 30 de Novembro de 2000 e pela E, SA, entre 1 de Dezembro de 2000 e Maio de 2001, que totalizaram a quantia de € 2.273.181,60”.
No artigo 2º da base instrutória perguntava-se se "O protocolo referido em C) esteve em vigor até Julho de 2001” e no artigo 5º perguntava-se se “O protocolo referido em C) vigorou apenas até Agosto de 2000”.
Foi julgada provada a matéria do artigo 2º e, consequentemente, não provada a inserta no artigo 5º, contra tal se insurgindo a ré, que defende solução inversa.
Desde já se adianta que esta questão – período de vigência do protocolo – constitui o cerne do litígio, pois que da interpretação que for feita depende a sorte desta acção. Essa questão não constitui, assim, uma mera questão de facto, antes uma conclusão a extrair de factos materiais que lhe servem de suporte e da interpretação da vontade negocial das partes expressa nos documentos que estão juntos ao processo a realizar ulteriormente quando se proceder à aplicação do direito aos factos.
Conforme salienta Alberto dos Reis[4], a distinção entre conceito de direito e facto é um dos problemas mais delicados do direito processual civil, embora, do ponto de vista teórico, se mostre fácil de enunciar os critérios gerais de orientação para a delimitação de tais conceitos[5].   
Em termos práticos, porém, proceder a tal distinção revela-se tarefa difícil, especialmente, porque a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida da estrutura da norma aplicável e dos termos da causa.
Nesta perspectiva afigura-se que se mostra de particular utilidade prática o entendimento que considera facto “tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, se o apuramento dessas realidades se realiza à margem da aplicação directa da lei, ou seja, tratando-se de averiguar factos cuja existência não dependa da interpretação a dar a qualquer norma jurídica”[6] 
Por conseguinte e reportando-nos ao caso concreto, cumpre salientar que estando em litígio saber se os financiamentos dos cursos ministrados após Agosto de 2000 estão sujeitos às regras do questionado protocolo, nomeadamente ao pagamento do rappel nele previsto, daí decorrendo (ou não) o direito ao pagamento peticionado pela autora, tem de considerar-se que aqueles artigos da base instrutória envolvem matéria de direito.
E tal inviabiliza a sua fixação como facto material da causa já que tal proposição contém, de modo implícito, a resolução do objecto da acção, permitindo, por isso, a cominação do artigo 646º n.º4 do Código de Processo Civil, o que tem como consequência considerarem-se como não escritas as respostas dadas aos referidos artigos 2º e 5º e, bem assim, ao artigo 6º da base instrutória, em relação ao qual foi julgado apenas provado o teor da resposta dada ao artigo 2º, ou seja, que “o protocolo referido em C) esteve em vigor até Julho de 2001”.
E eliminada a resposta dada ao artigo 6º pelas razões aduzidas, há que julgá-lo não provado, como decorre da resposta restritiva que lhe fora dada, pois que da globalidade da prova produzida não resultou demonstrado que tivesse havido acordo expresso no sentido da renovação do protocolo em causa e é isso, precisamente, que está questionado.

Finalmente, foi dada resposta afirmativa à matéria do artigo 4º da base instrutória no qual se perguntava se “os valores de financiamento para cálculo do Rappel referidos na alínea D) foram fornecidos pela E”.
A prova produzida foi inequívoca no sentido de que os valores foram fornecidos pela ré à autora, conforme documentos juntos a fls. 176 a 180, reconhecendo a própria ré esse facto a fls. 206 dos autos e sendo claramente nesse sentido o depoimento da testemunha M, funcionária da ré e, nessa qualidade, gestora de conta da autora naquela durante sete anos e até Julho de 2001.
Esses documentos (fls. 176/180), mapas elaborados pelos serviços da ré e por esta remetidos à autora, contêm os valores totais e parciais dos contratos de crédito relativos a cursos ministrados nos diversos centros da autora nos meses de Setembro, Novembro e Dezembro de 2000 e de Janeiro a Maio de 2001 e, segundo as testemunhas Maria Ivone Preto, técnica de contabilidade da autora, Rui Preto, economista responsável pelos serviços de tesouraria da autora desde Março de 2000, e Ana Sequeira, directora financeira da autora desde 1999, visaram o cálculo do rappel, tendo sido com base neles que a autora emitiu o aviso de lançamento nº 0044, de 31 de Julho de 2001, referido na alínea D) dos factos assentes.
E, apesar da discordância da ré, que pugna desenvolvidamente pela resposta de não provado, não pode deixar de aderir-se à análise crítica da prova feita na motivação da decisão sobre a matéria de facto quanto aos depoimentos das testemunhas, nos quais a ré faz assentar, essencialmente, a sua divergência. Com efeito, como ali se escreveu, “ambos negaram tal função dos referidos mapas, mas falharam na oferta de uma explicação cabal para os mesmos. Concretamente, não faz sentido argumentar que a sede [da autora] pretendia com tal relação controlar os restantes centros, quando a facturação derivada de concessão de crédito é apenas parcial, e, principalmente, os referidos mapas continham também a activação dos contratos relativos a cursos da própria sede (Centro de Lisboa)”.
Deve manter-se, por conseguinte a resposta de provado ao artigo 4º da base instrutória.

2.2.2. Fixada a matéria de facto, coloca-se, em seguida, como questão essencial a decidir neste recurso saber se a autora tem direito ao pagamento do rappel que peticiona ao abrigo do protocolo que havia celebrado com o Banco E, SA.
Para tal não é demais lembrar que, como decorre do contrato, cuja cópia está junta a fls. 37/45 dos autos, denominado “Contrato referente à Cessão de Posições Contratuais em Contratos de Crédito ao Consumo e à Venda de Certos Activos”, o Banco (Portugal), SA, o F SA, e o Banco SA, acordaram, em 28 de Julho de 2000, constituir uma sociedade financeira, à qual o Banco, SA, cederia a sua carteira de contratos ao consumo, sociedade que seria posteriormente adquirida pelo Banco B), SA, e pelo F, SA. (cfr. als. E) e F) da matéria de facto assente).
Constituída tal sociedade, denominada E…Crédito, SA, concretizou-se, em 30 de Novembro de 2000, a operação de compra por esta ao Banco SA, da sua carteira de contratos ao consumo, que englobou os contratos respeitantes aos alunos dos cursos ministrados pela autora financiados pelo Banco, SA.
Esta operação consubstanciou uma cessão da posição contratual, que, em relação aos mutuários, as partes quiseram expressamente subordinar ao regime previsto no artigo 424º nº 2 do Código Civil (cfr. cláusula quinta daquele contrato).
Como ensinam P. Lima e A. Varela[7], “A cessão da posição contratual implica a existência de dois contratos: o contrato-base e o contrato-instrumento da cessão, que é o realizado para transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base. E envolve três sujeitos: o contraente que transmite a sua posição (cedente); o terceiro que adquire a posição transmitida (cessionário); e a contraparte do cedente no contrato originário, que passa a ser contraparte do cessionário (contraente cedido ou, simplesmente, o cedido). A relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário”. 
No caso em apreço, aquele contrato - o contrato-instrumento - que operou a transmissão da posição contratual do Banco, SA, para a E Crédito, SA, formalizado em 30 de Novembro de 2000, não alterou os chamados contrato-base, que subsistiram, tendo a E Financiamento adquirido “…de forma incondicional e definitiva todos os direitos e obrigações inerentes à posição de mutuante nos contratos, designadamente, e sem restrições, o direito a receber todos os montantes devidos ao mutuante pelos mutuários dos referidos contratos a título de prestações vencidas e não pagas, prestações vincendas e quaisquer outros montantes que, em virtude destes, devam ser pagos pelo mutuário ao mutuante” (cfr. ponto 2.2. da cláusula terceira do aludido contrato).
Ora, decorre da dinâmica das relações negociais desenvolvidas entre o Banco, SA, e a autora, que estas, perspectivando na procura dos cursos ministrados por esta um nicho de mercado vantajoso para ambas, conjugaram esforços propiciando aos potenciais alunos da segunda o acesso ao crédito para financiamento dos mesmos cursos a conceder pelo Banco, SA.
Sendo a autora alheia aos contratos de mútuo, que apenas diziam respeito e vinculavam aquele banco e os alunos que recorriam ao seu crédito, regularam, então, as suas relações através dum «protocolo de colaboração», que, no seguimento de contactos anteriores, foi actualizado por carta datada de 25 de Outubro de 1999, dirigida à autora pelo Banco, SA, na qual este declarou “…vimos actualizar o nosso protocolo de colaboração para 1999/2000 nos seguintes aspectos:
 “1-Produtos oferecidos
2-Acompanhamento por Gestor de Conta
3-Programa de Incentivos
1-Produtos oferecidos
Crédito Mútuo, o Banco continuará a fornecer tabelas de coeficientes e impressos de contratos personalizados.
2- Acompanhamento por Gestores de Contas.
O nosso Gestor de Conta estará disponível para acompanhar e apoiar a estrutura comercial.
3-Programa de Incentivos para as equipas de vendas
Atribuiremos um incentivo, visando dinamizar as vendas e a utilização dos nossos produtos de financiamento, de um Rappel de 1,5% sobre o total facturado, se ultrapassado 150.000.000$00;
- + 0,5% se ultrapassar 200.000.000$00
- +0,5% se ultrapassar 250.000.000$00
- +0,5% se ultrapassar 350.000.000$00
- +0,5% se ultrapassar 500.000.000$00".
À primeira vista, poderia pensar-se, como defende a ré, que o protocolo deixou de vincular as partes, em primeira linha a E Crédito, SA, por estar já esgotado o período previsto na “actualização” do mesmo protocolo quando se formalizou, em 30 de Novembro de 2000, a operação de compra da carteira de contratos ao consumo ao Banco, SA, que englobava, como se viu, os contratos respeitantes aos alunos dos cursos ministrados pela autora financiados pelo Banco SA.
Não se acolhe, porém, tal entendimento.
 Em primeiro lugar, porque os autos mostram claramente que o protocolo invocado consubstanciou apenas uma actualização do «protocolo de colaboração» anteriormente celebrado entre o Banco SA, e a autora, que constituía a matriz reguladora do relacionamento estabelecido entre ambas e se não se esgotou com o decurso do período visado pela dita actualização (1999/2000), não revestindo este a natureza de um prazo de vigência do protocolo inicial que foi actualizado.
Em segundo lugar, porque os autos evidenciam que a autora continuou a ministrar cursos financiados no período que decorreu entre Setembro de 2000 e Maio de 2001, sendo os compreendidos entre 1 de Dezembro de 2000 e Maio de 2001 já financiados pela E Crédito, SA, a qual só por carta datada de 10 de Julho de 2001, cuja cópia se encontra a fls. 67, pôs termo ao relacionamento que o Banco, SA, havia iniciado com a autora e que se manteve após a transmissão da posição contratual deste para aquela.
 Nessa carta a E Crédito, SA, escreveu, além do mais, o seguinte: “Conforme já tivemos oportunidade de alertar, os elevados níveis de incumprimento que temos vindo a detectar nos contratos com origem nos Vossos Centros obrigam-nos a uma interrupção no tratamento das Vossas propostas de financiamento. De facto, os valores atingidos ultrapassam em muito os que foram inicialmente previstos quando discutimos as condições gerais deste negócio e não se coadunam com as taxas de juro implícitas nos respectivos contratos.”
Ora, a alusão feita às “condições gerais deste negócio” só pode querer reportar-se às condições estabelecidas no «protocolo de colaboração» gizado entre a autora e o Banco SA, com a actualização feita em 25 de Outubro de 1999, visto que não resultou provado que outras tivessem sido estabelecidas para regular os financiamentos que persistiram até que a E Crédito, SA, pôs termos às relações negociais com a autora em Julho de 2001.
Este seria o sentido que um declaratário “normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde podia conhecer”[8] – artigo 236º do Código Civil.
Como ensina Menezes Cordeiro, “A doutrina actual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objectivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo”[9].
E só assim se compreende o envio dos mapas elaborados pela ré juntos a fls. 176 a 180, que se não demonstrou que tivessem outra finalidade que não fosse o cálculo do rappel acordado no protocolo.
Nesta conformidade, tem de concluir-se que o aludido protocolo se manteve em vigor, com a actualização efectuada em 25 de Outubro de 1999, havendo, por conseguinte, lugar ao pagamento do peticionado rappel pela ré.
Efectivamente, os autos mostram que a E a Crédito, SA, cuja denominação foi alterada para B Crédito, SA, foi, por escritura pública de 1 de Agosto de 2003, incorporada por fusão na B Financeira, SA, a qual, por sua vez, passou a denominar-se B Crédito, SA, ora ré e apelante.
A fusão de sociedades, prevista no nº 1 do artigo 97º do Código das Sociedades Comerciais e que permite que duas ou mais sociedades, ainda que de tipo diverso, possam fundir-se mediante a reunião numa só, pode realizar-se, nos termos do nº 4 deste preceito, mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para outra (fusão por incorporação) ou mediante a constituição de uma nova sociedade (fusão por constituição de nova sociedade).
Tendo presente esta realidade, previu-se no artigo 5º do Código das Sociedades Comerciais que as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras, ressalva que se compreende uma vez que, face ao disposto no artigo 112º do daquele código, com a inscrição da fusão no registo comercial extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade (alínea a).
Assim, independentemente de se considerar que se está perante uma verdadeira extinção ou uma mera transformação dessas sociedades, o certo é que a fusão, por incorporação, da E Crédito, SA, posteriormente denominada B Crédito, SA, na B Financeira, SA, que, por sua vez, passou a denominar-se B Crédito, SA, transmitiu para esta a obrigação de pagamento do quantitativo peticionado pela autora a título de rappel.
Pelo que não merece censura a condenação no seu pagamento nos moldes em que foi proferida na sentença recorrida, improcedendo as conclusões da alegação da apelante.
3. Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
15 de Maio de 2008
(Fernanda Isabel Pereira)
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
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[1] Alterada a resposta ao artigo 1º da base instrutória: “A A. ministrou cursos financiados pela R., no período decorrente entre Setembro de 2000 e Maio de 2001 que totalizam a quantia de € 2.273.181,60”, conforme se decidirá infra.
[2] Suprimida, conforme se decidirá infra, a matéria que aqui constava - “O protocolo referido no ponto 3, esteve em vigor até Julho de 2001” -, e que constituía a resposta ao artigo 2º da base instrutória considerada não escrita por envolver, no caso concreto, matéria de direito.
[3] Facto relevante para a decisão da causa aditado ao abrigo do disposto no artigo 712º do Código de Processo Civil.
[4] In Código de Processo Civil anotado, III volume, pág. 206.
5 Segundo o mesmo autor, “É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudança operadas no mundo exterior. É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei”, obra citada, pág. 206/207.
6Acórdão do STJ de 02-12-1992, processo n.º 3400.
[7] In Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 400 e 401.
[8] Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, págs. 447 e 448.
[9] In Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, págs. 478, 479 e 483.