Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
449/10.0TTLRS.L1-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
LIBERDADE DE RELIGIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. A interpretação dada às alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 14º da LLR, que estabelecem os requisitos da flexibilidade do horário de trabalho e da compensação integral do período de suspensão, no sentido de que o primeiro se refere às situações em que seja estabelecido pela entidade empregadora um regime com variação da hora de entrada e saída dos trabalhadores e o segundo só é possível verificado o primeiro, determina uma compressão desrazoável e excessiva da liberdade religiosa, em moldes não consentidos pelo princípio da proporcionalidade, garantidos pela Constituição;

2. Estando provado que a trabalhadora se converteu à fé cristã e integra a Igreja Adventista do Sétimo Dia, que o seu “período de guarda vai desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado”, e sabendo a entidade empregadora que aquela, por essa razão, não estava disponível para prestar trabalho, nesse período, impunha-se que a mesma procurasse uma solução gestionária de organização do trabalho que lhe acautelasse o exercício do direito à liberdade religiosa, já que a configuração rotativa e variável do regime de horário por turnos, em que a mesma estava inserida, habilita soluções que vão ao encontro da letra e do espírito das alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 14º da LLR, com vista à criação, sempre que possível, das condições favoráveis ao exercício da liberdade religiosa dos trabalhadores, pelo que, diversamente dos limitados termos da interpretação normativa feita pela entidade empregadora, não se pode considerar o regime de turnos rotativos excluído da previsão daquela norma.

3. Aquelas alíneas devem, portanto, ser interpretadas no sentido de incluírem também o trabalho prestado em regime de turnos rotativos.

4. A referida trabalhadora tinha, assim, o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho, a partir do pôr-do-sol de sexta-feira até ao termo do seu turno, uma vez que se verificavam, cumulativamente, os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 14º da LLR, designadamente, o de trabalhar em regime de flexibilidade de horário e poder haver compensação integral do respectivo período de trabalho.

5. As faltas dadas ao serviço pela mencionada trabalhadora, nesse período, não podem, por isso, ser consideradas injustificadas e as ordens que lhe eram dadas pelos seus superiores hierárquicos no sentido de permanecer no serviço, nesse período, devem ser consideradas ilegítimas.

6. Também não se pode invocar, para agravar a responsabilidade da trabalhadora, os quatro processos disciplinares que a empregadora, anteriormente, lhe tinha instaurado, e que culminaram com a aplicação de sanções correctivas progressivamente mais gravosas, já que também esses processos e essas sanções tiveram por fundamento faltas dadas ao serviço, no seu “dia de guarda”.
         (Elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

            I. RELATÓRIO

AA instaurou, no Tribunal do Trabalho de Loures, a presente acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, com processo especial, contra

BB, S.A, através do formulário a que se alude no art. 98º, n.º 1, do CPT, na versão do DL 295/2009, de 13/10, pedindo que fosse declarada a ilicitude do despedimento decretado por esta, com as consequências prescritas nos arts. 389º a 391º do Código do Trabalho.

Frustrada a tentativa de conciliação realizada em audiência das partes, a Ré apresentou articulado de motivação do despedimento, no qual, e tal como consta da sentença recorrida, alegou:

A Autora, à data do seu despedimento, desempenhava as funções inerentes à montagem e embalagem de sistemas médicos, estando inserida numa “linha de montagem”, na fase da embalagem.

A “linha de montagem” funciona de uma forma sequencial, dependendo o seu normal funcionamento do trabalho de todas as trabalhadoras que integram essa linha de montagem.

No sector de produção, ao qual se encontrava adstrita a Autora, a Ré tem instituído, desde 20 de Agosto de 2007, um regime de trabalho por turnos rotativos, os quais, em 2009, até 31 de Agosto, eram das 07h00 às 15h00 ou das 15h00 às 23h00; e, a partir de 1 de Setembro de 2009, passaram a ser 07h30 às 15h30 ou das 15h30 às 23h30.

No ano de 2009, a Autora faltou ao serviço, durante 66h e 17m, o que equivale a oito dias e mais 2h e 17m.

Todas estas faltas, com excepção dos dias 26 de Fevereiro (14 minutos) e 07 de Maio (10 minutos), foram dadas às sextas-feiras, quando se encontrava adstrita ao turno com início às 15h30, abandonando o seu posto de trabalho com a jornada de trabalho a decorrer e sem que para isso estivesse autorizada pelos seus superiores hierárquicos.

Com efeito, às sextas-feiras, quando se encontrava escalada no segundo turno, assim que atingia a hora do pôr-do-sol, a Autora abandonava o seu posto de trabalho, bem sabendo que não estava autorizada para o fazer e consciente que o não podia fazer, por inúmeras vezes tendo sido chamada à atenção pelos seus superiores hierárquicos de que não podia abandonar o seu posto de trabalho.

Não obstante, a Autora continuou a ignorar tais chamadas de atenção, manifestando total desinteresse pelo cumprimento dos deveres a que se encontrava adstrita no âmbito do seu contrato de trabalho e um total desrespeito pelas ordens legítimas que lhe eram transmitidas.

O processo disciplinar que conduziu ao seu despedimento foi o quinto processo disciplinar instaurado à Autora pelas mesmas razões, ou seja, faltas injustificadas por abandonar o seu posto de trabalho no decurso do seu período normal de trabalho.

Na sequência dos anteriores processos disciplinares foram-lhe aplicadas, respectivamente, as sanções de repreensão registada e 2, 15 e 30 dias de suspensão do trabalho, com perda de retribuição e de antiguidade.

O processo disciplinar anterior ao que veio a conduzir ao seu despedimento já havia sido instaurado com intenção de despedimento, tendo tal sanção sido convolada numa sanção de 30 dias de suspensão e alertada a Autora que a empresa lhe estava a dar uma última oportunidade.

A Autora manteve-se irredutível no seu comportamento, continuando a abandonar, reiteradamente, o seu posto de trabalho no decorrer da jornada de trabalho sem a autorização ou o consentimento dos seus superiores hierárquicos e consciente de que não o podia fazer.

Nem mesmo após ter sido proferida, em Julho de 2009, decisão judicial que indeferiu a pretensão da Autora de ver suspensa a aplicação da sanção de suspensão aplicada pela Ré e, bem assim, de que a Ré fosse “intimada a reconhecer o seu direito a observar o seu dia de guarda, desde o pôr do sol de sexta feira até ao pôr do sol de sábado”, considerando as faltas dadas pela A. como injustificadas, esta alterou o seu comportamento.

A Autora estava ciente das graves consequências que tal comportamento acarretava para a organização dos serviços em que se encontrava inserida.

Verifica-se, assim, que a Autora assumiu um comportamento reiterado de faltas injustificadas ao trabalho, consubstanciando o seu comportamento uma clara e inaceitável afronta à sua entidade empregadora, traduzida na violação reiterada dos deveres que para si decorriam do seu contrato de trabalho.

O comportamento da Autora, atendendo à sua natureza reiterada e no contexto atrás descrito, é revelador de um total desrespeito pelo poder de direcção da sua entidade empregadora, abalando gravemente a disciplina no local de trabalho e pondo reiteradamente em causa a organização e o normal funcionamento dos serviços em que estava inserida, dado que o normal funcionamento da linha de montagem sequencial pressupõe que todos os trabalhadores que a integram prestem normalmente o seu trabalho.

Pelo que ao abandonar o seu posto de trabalho, a Autora afectava a execução do trabalho e originava, necessariamente, um decréscimo na produção da empresa.

A Autora não trabalhava em regime de trabalho flexível, mas sim em regime de turnos rotativos, estando perfeitamente determinada a hora de início e termo do período normal de trabalho diário, a qual apenas variava em função da rotação do turno.

Estando a actividade da empresa organizada por turnos, usando o sábado para trabalho suplementar - dia em que a Autora pretende não prestar trabalho - e estando a empresa encerrada ao domingo, não é possível a compensação integral do respectivo período de trabalho em falta, por impossibilidade manifesta de a empresa receber tal compensação.

Assim, não se verificam cumulativamente os requisitos referidos no art. 14° da Lei 16/2001, de 22 de Junho (Lei da Liberdade Religiosa), na medida em que a Autora não tinha flexibilidade de horário nem era possível a compensação integral do respectivo período de ausência, pelo que não poderia haver dispensa de prestação de trabalho.

Constituindo o comportamento assumido pela Autora justa causa de despedimento, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 3 e nas alíneas a), d) e g) do n.º 2 do art. 351º do Código do Trabalho.

Em 14 de Abril de 2010, foi proferida decisão final do processo disciplinar que culminou com o despedimento da Autora sem qualquer indemnização ou compensação.

Conclui, defendendo que deverá considerar-se que a Autora foi despedida com justa causa, sendo lícito o despedimento, em consequência improcedendo a acção e sendo a Ré absolvida do pedido.

A Autora apresentou contestação/reconvenção, alegando:

No dia 12 do mês de Agosto do ano de 1995, converteu-se à fé cristã tendo integrado a Igreja Adventista do Sétimo Dia.

A Bíblia, entre outras doutrinas adoptadas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, e observadas pelos seus membros, apresenta como dia de guarda o sábado, que se observa desde o pôr-do-sol de Sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado.

A Autora, logo que se converteu à fé que agora professa, ou seja no ano de 1995, deu conhecimento de tal à Ré através da sua superior hierárquica, que não estaria disponível para realizar trabalho no dia de Sábado.

Essa mesma informação foi constante e periodicamente confirmada sempre que a Autora era solicitada para realizar trabalho em dia de sábado, tendo sido dispensada sempre que o solicitava.

Era do conhecimento da Ré que a Autora, especialmente desde o ano de 1995, nunca realizou trabalho em dia de sábado, tendo sido sempre dispensada, fazendo, como sempre faz e agora se disponibiliza, compensar em dia de domingo ou em outro feriado desde que estes feriados não coincidissem em dia de sábado, a fim de poder ter livre o seu dia de guarda da sua convicção religiosa.

Entretanto a Ré estabeleceu um novo regime de laboração por turnos, primeiramente das 07.00 às 15.00 e das 15.00 às 23.00 horas, para serem alterados em Setembro de 2009, para das 07.30 às 15.30, e das 15.30 ás 23.30 horas.

Aqueles turnos passaram a coincidir e a colidir com o dia de guarda da Autora.

O contrato de trabalho assinado entre as aqui partes prevê a laboração da Autora em turnos, mas o art. 41° da Constituição da República Portuguesa confere-lhe a liberdade religiosa para, no âmbito desta, praticar os ritos que a sua convicção religiosa lhe indica, bem como celebrar as festividades no(s) dia(s) sagrado(s) da confissão que professa.

Ao forçar a Autora a apresentar-se ou a manter-se no posto de trabalho em período considerado como o dia de guarda da sua convicção, está a Ré a violar as normas legais que assistem à Autora de observá-lo e a contribuir para que desenvolva um problema de consciência que só pode afastar ou evitar ao não apresentar-se no posto de trabalho ou ausentar-se do mesmo quando aquele período começa.

A Ré não reconhece os direitos daquela nem reconhece a lei que confere o direito a liberdade religiosa da Autora, perseguindo-a, periodicamente, instaurando-lhe processos disciplinares com acentuada coacção moral e pressão à objecção de consciência ao referir e repetir que "que a empresa lhe estava a dar uma última oportunidade" com o intuito que aquela viole a sua consciência e que trabalhe em dia da festividade da sua convicção religiosa.

A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável, conforme prescrevem o artigo 41º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o artigo 1º da Lei da Liberdade Religiosa (Lei 16/2001 de 22 de Junho).

Este direito fundamental constitucionalmente previsto é alvo, desde logo, de consagração internacional no artigo 9º° da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 18º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e artigo 6º, alínea h), da Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de intolerância ou discriminação fundadas sobre a religião ou convicção da ONU de 1981.

Estes diplomas de direito internacional vinculam o Estado português por força do artigo 8º, n.º 1 da CRP, para além de que sempre seriam invocáveis nos termos do artigo 16º, n.º 1, da CRP caso não houvesse previsão constitucional expressa.

O direito em causa vem ainda desenvolvido na Lei da Liberdade Religiosa, regulamentando o art. 14º a dispensa do trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que sejam prescritos pela confissão que os trabalhadores professam nas condições aí especificadas.

Na medida em que o normativo legal a que se aludiu concretiza, como se viu, um direito fundamental constitucionalmente consagrado, a sua interpretação tem de ser feita em conformidade com a constituição.

Os requisitos de que a LLR faz depender o exercício desse direito fundamental nos termos do seu artigo 14º, n.º 1 carecem de concretização legal, deixando espaço para uma concretização efectiva que se verte em dificuldades de interpretação.

Os limites aos direitos fundamentais só são permitidos nos termos do artigo 18º da CRP.

Na medida em que os requisitos previstos no artigo 14º da LLR constituem restrições e condicionamentos para o exercício de um direito fundamental de um cidadão, têm de ser interpretados de acordo com a CRP, pelo que relativamente às alíneas a) e c), estas só podem ser interpretadas no sentido do funcionário prestar trabalho efectivo, isto atendendo a que a lei laboral não fala em regime de flexibilidade de horário, e a compensação deste trabalho ter uma duração e/ou penosidade semelhantes, podendo mesmo traduzir-se numa soma pecuniária cuja aplicação não pode estar na dependência de um juízo da entidade empregadora sob pena de esvaziamento completo da norma.

Quanto à alínea b), desrespeita o princípio da proporcionalidade, ao ser excessivo, por o artigo 35º da LLR já exigir uma comunicação a efectuar para o registo nacional de pessoas colectivas, o qual é público, não ser claro quanto ao membro do governo competente para se enviar a declaração em causa e por ser excessivo ao exigir o envio de uma nova declaração que já foi enviada para o registo das pessoas colectivas religiosas, sendo inconstitucional por infracção do princípio da proporcionalidade, que tem de ser respeitado na limitação de um direito fundamental, conforme prescreve o artigo 18º, n.º 2 CRP.

E por os requisitos do n.º 1 do artigo 14º da LLR serem cumulativos, todos são afectados por esta inconstitucionalidade da alínea b), logo esse n.º 1 deve ser considerado inconstitucional in totum.

Assim a Ré nunca poderia instaurar processo disciplinar à Autora por questões religiosas, ou seja, por esta faltar e ausentar-se do posto de trabalho no dia da sua festividade religiosa, nem impor-lhe sanções disciplinares, como o fez anteriormente, nem esta última sanção, o despedimento com justa causa, pois tais sanções violam a norma do art. 41º da CRP.

Conclui, pedindo que a acção seja julgada procedente, sendo declarada a ilicitude do seu despedimento, condenando-se a Ré na sua reintegração, bem como a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 14 de Abril de 2010 até ao trânsito em julgado da sentença, acrescidas dos respectivos juros de mora à taxa legal. Pediu também que seja julgado inconstitucional o n.º 1 do art. 14º da Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, Lei da Liberdade Religiosa, inconstitucional com todas as legais consequências.

Saneada, instruída e julgada a causa, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré do pedido.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para esta Relação, tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes alegações:

(…)

A Ré, na sua contra-alegação, pugnou pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.

Por acórdão de 15/12/2011, exarado a fls. 417 a 440, esta Relação negou provimento ao recurso interposto pela autora e confirmou a sentença recorrida.

Irresignada, a autora interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo a declaração da inconstitucionalidade do art. 14º, n.º 1, als. a) e c)  da LLR, na interpretação que lhe foi dada pela sentença da 1ª instância e pelo acórdão desta Relação.

Por acórdão de 15/07/2014, exarado a fls. 560 a 632, o Tribunal Constitucional decidiu:

a) Interpretar, ao abrigo do disposto no art. 80º, n.º 3 da LTC, as normas do art. 14º, n.º 1, alíneas a) e c), da Lei da Liberdade Religiosa, no sentido de que incluem também o trabalho prestado em regime de turnos;

b) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido para que seja reformado de modo a aplicar as referidas normas com aquele sentido interpretativo.

É isso que vamos fazer de seguida.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

A. A Autora trabalha por conta da Ré, em Odivelas, na sede desta, sob a direcção e fiscalização, desde o dia 11 de Setembro de 1989.

B. À data do seu despedimento tinha a categoria de operadora de montagem de sistemas médicos semi-especializada e desempenhava as funções inerentes à montagem e embalagem de sistemas médicos, auferindo a remuneração mensal base de € 538,00.

C. No desempenho das suas funções de operadora, a A. estava inserida numa “linha de montagem”, na fase da embalagem.

D. Essa “linha de montagem” funciona de uma forma sequencial pelo que o seu normal funcionamento depende do trabalho de todas as trabalhadoras que integram essa linha de montagem.

E. No sector de produção, ao qual se encontrava adstrita a Autora, a Ré tem instituído, desde 20 de Agosto de 2007, um regime de trabalho por turnos rotativos.

F. Em 2009, até 31 de Agosto, os turnos a que a Autora se encontrava adstrita eram os das 07h00 às 15h00 ou, das 15h00 às 23h00.

G. A partir de 1 de Setembro de 2009, os turnos a que a A. estava adstrita passaram a ser das 07h30 às 15h30 ou das 15h30 às 23h30.

H. Desde 1 de Janeiro até 31 de Agosto de 2009, quando se encontrava adstrita ao turno das 15h00 às 23h00, a Autora faltou ao serviço nos dias e horas seguintes:

1) 16/01/2009, das 17h47m às 23h00, perfazendo a sua ausência 5h13m;

2) 30/01/2009, das 17h56m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 5h04m;

3) 13/02/2009, das 18h10m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 4h50m;

4) 26/02/2009, das 15h30m às 15h44m, perfazendo a sua ausência 14m;

5) 13/03/2009, das 18h40m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 4h20m;

6) 27/03/2009, das 18h46m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 4h14m;

7) 07/05/2009, das 15h30m às 15h40m, perfazendo a sua ausência 10m;

8) 08/05/2009, das 21h00 às 23h00m, perfazendo a sua ausência 2h00;

9) 03/07/2009, das 15h00m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 8h00;

10) 17/07/2009, das 21h00m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 2h00;

11) 31/07/2009, das 21h00m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 2h00;

12) 28/08/2009, das 20h16m às 23h00m, perfazendo a sua ausência 3h44m.

I. E, após 1 de Setembro de 2009, quando se encontrava adstrita ao turno das 15h30 às 23h30, a Autora faltou ao serviço nos dias e horas seguintes:

1) 25/09/2009, das 19h36m às 23h30m, perfazendo a sua ausência 3h54m;

2) 09/10/2009m, das 19h07m às 23h30m, perfazendo a sua ausência 4h23m;

3) 23/10/2009, das 18h45m às 23h30m, perfazendo a sua ausência 4h45m;

4) 06/11/2009, das 17h33m às 23h30m, perfazendo a sua ausência 5h57m;

5) 04/12/2009, das 17h15m às 23h30m, perfazendo a sua ausência 6h15m;

6) 18/12/2009, das 17h16m às 23h30m, perfazendo a sua ausência 6h14m;

J. O total dos períodos em falta no ano de 2009, acima referidos, perfaz 66h e 17m, equivalendo a oito dias e mais 2h e 17m.

K. Todas estas faltas, com excepção das dadas nos dias 26 de Fevereiro (14 minutos) e 07 de Maio (10 minutos), correspondem a períodos de trabalho às sextas-feiras.

L. Nessas sextas-feiras, a Autora abandonou o seu do posto de trabalho com a jornada de trabalho a decorrer e sem que para isso estivesse autorizada pelos seus superiores hierárquicos.

M. Nessas sextas-feiras, encontrando-se escalada no segundo turno, assim que atingia a hora do por do sol, a A. abandonava o seu posto de trabalho, bem sabendo que não estava autorizada para o fazer e consciente que o não podia fazer.

N. O processo disciplinar que conduziu ao seu despedimento foi o quinto processo disciplinar instaurado à Autora, com fundamento em faltas injustificadas por abandonar o seu posto de trabalho no decurso do seu período normal de trabalho.

O. Na sequência dos anteriores processos disciplinares foram-lhe aplicadas, respectivamente, as sanções de repreensão registada e 2, 15 e 30 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade.

P. O último processo disciplinar, anterior a este que conduziu ao seu despedimento, já havia sido instaurado com intenção de despedimento, tendo tal sanção sido convolada numa sanção de 30 dias de suspensão e alertada a A. que a empresa lhe estava a dar uma última oportunidade.

Q. Em Julho de 2009, foi proferida decisão judicial no âmbito do procedimento cautelar que correu termos no 2° Juízo do Tribunal do Trabalho de Loures, sob o n.° 486/09.8TTLRS, a qual indeferiu a pretensão da A. de ver suspensa a aplicação da sanção de suspensão aplicada pela R. e, bem assim, de que a R. fosse “intimada a reconhecer o seu direito a observar o seu dia de guarda, desde o pôr do sol de sexta feira até ao pôr do sol de sábado”, considerando as faltas dadas pela Autora como injustificadas.

R. A Administração da Ré decidiu, em 18 de Fevereiro de 2010, a instauração do presente processo disciplinar à Autora.

S. Foi remetida à Autora nota de culpa com a descrição do factualismo que lhe era imputado e com a comunicação de que era intenção da Ré proceder ao seu despedimento caso ficasse provado esse mesmo factualismo.

T. A Autora apresentou resposta à nota de culpa, datada de 4 de Março e recebida em 05 de Março de 2010.

U. Na resposta à nota de culpa, a Autora requereu a produção de prova testemunhal, arrolando para o efeito testemunhas.

V. Posteriormente, a Autora requereu a substituição das testemunhas, o que foi aceite.

W. No dia 17 de Março de 2010, foram ouvidas as testemunhas arroladas pela A., na presença do seu Mandatário, Dr. MV.

X. A actividade da empresa está organizada por turnos, usando o sábado para trabalho suplementar, estando a empresa encerrada ao Domingo.

Y. A Autora não pretende prestar trabalho aos sábados.

Z. Em 14 de Abril de 2010, foi proferida decisão final do processo disciplinar que culminou com o despedimento da Autora sem qualquer indemnização ou compensação.

AA. O contrato de trabalho assinado entre as aqui partes, prevê a laboração da Autora em turnos.

AB. A partir de 2007, por mais do que uma vez, a Autora foi chamada à atenção, nomeadamente pela responsável pelos recursos humanos da R. e pela chefe de produção da R, suas superiores hierárquicas, de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho.

AC. A falta da Autora no decurso do seu período normal de trabalho e na linha de montagem onde está colocada, afectava a execução do trabalho, interrompendo a sequência de tarefas, originando um decréscimo na produção.

AD. No mês de Agosto do ano de 1995, a Autora converteu-se à fé cristã tendo integrado a Igreja Adventista do Sétimo Dia.

AE. Entre outras doutrinas adoptadas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, e observadas pelos seus membros, o dia de guarda é ao Sábado, considerando-se o período desde o pôr-do-sol de Sexta-feira até ao pôr-do-sol de Sábado.

AF. Quando era solicitada para realizar trabalho em dia de Sábado, a A. informava a chefe de produção de que não estaria disponível para realizar trabalho nesse dia, por professar religião cujo período de descanso era desde o pôr-do-sol de Sexta-feira até ao pôr-do-sol de Sábado, o que a impedia de trabalhar naquele período.

AG. Nas vezes em que foi chamada à atenção pela responsável de recursos humanos e pela chefe de produção, no sentido de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho, a Autora invocava professar religião cujo período de descanso era desde o pôr-do-sol de Sexta-feira até ao pôr-do-sol de Sábado, o que a impedia de trabalhar naquele período dias e períodos referidos em H e I excepto nos dias 26 de Fevereiro (14 minutos) e 7 de Maio (10 minutos).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

As questões fulcrais que se suscitam nas alegações da recorrente são as seguintes:

a) Saber se o art. 14º, n.º 1 da Lei da liberdade Religiosa, na interpretação que lhe foi dada pela sentença da 1ª instância, deve considerar-se inconstitucional;

b) Saber se as faltas dadas ao serviço pela Autora, no período compreendido entre 1/01/2009 e 18/12/2009, constituem, ou não, justa causa de despedimento.

No seu acórdão de 15/12/2011, exarado a fls. 417 a 440, esta Relação pronunciou-se sobre cada uma desta questões, nos termos seguintes:

“Entende a Autora/apelante que o art. 14º da Lei da Liberdade Religiosa é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade.

Estamos, como é natural, perante uma questão essencial para a apreciação da justa causa de despedimento, já que foi precisamente com base na não verificação dos pressupostos estabelecidos na mesma disposição legal que a Ré considerou as ausências ao serviço da Autora a partir do pôr-do-sol de sexta-feira como faltas injustificadas e como desobediência a ordens expressas a não prestação de trabalho ao sábado.

A Ré entendeu que não se verificavam os requisitos cumulativos previstos nesse citado art. 14° da Lei 16/2011 (que passaremos a designar por LLR), já que a Autora não tinha flexibilidade de horário nem era possível a compensação integral do respectivo período de ausência, pelo que não poderia haver dispensa de prestação de trabalho.

Ao que a Autora contrapôs, logo na contestação ao articulado de motivação, a inconstitucionalidade dessa norma legal, posição que continua a sustentar no presente recurso.

Vejamos:

O direito à liberdade religiosa está expressamente consagrado no art. 41° da Constituição:

“1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.

2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.

3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.

(...)”.

Assim, a todo o cidadão deverá ser reconhecida a faculdade de ter ou não ter religião, professar esta ou aquela, mudar de crença, praticá-la só ou acompanhado de outras pessoas, agrupar-se com outros crentes formando confissões ou associações de carácter religioso, etc. Nessa sua faculdade deverá estar ausente todo o tipo de coacção, injustificada, exercida por qualquer pessoa ou autoridade pública.

E se o culto pode ser meramente interno, quando se confina ao pensamento e à vontade de cada indivíduo - e que tornará mais difícil, para não dizer impossível, a sua restrição de ordem externa, precisamente por dizer respeito ao for intimo do ser humano -, o que nos interessa para aqui será o culto externo, aquele que se manifesta externamente pelas formas mais variadas. Culto esse que poderá ser particular ou privado, quando celebrado pelos indivíduos, sós ou acompanhados, em nome próprio, ou público ou oficial, quando realizado em nome da comunidade e por ela, geralmente com a intervenção de ministro autorizado.

Por esse art. 41° da CRP dizer respeito aos direitos, liberdades e garantias, ele é directamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas (n.º 1 do art. 18º da CRP), só podendo a sua restrição ser feita através de lei, limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não podendo diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial daquele preceito (n.ºs 2 e 3 do mesmo art. 18º).

Pese embora a consagração, logo em 1976, na nossa Constituição, só com a designada Lei da Liberdade Religiosa - Lei 16/2001, de 22 de Junho - é que o legislador veio concretizar, em termos de lei ordinária, estes princípios de opção religiosa, bem como os critérios de organização e funcionamento.

Entre esses princípios encontra-se, como não poderia deixar de ser, o da liberdade de religião e de culto, o qual compreende, além do mais, o direito de adesão à igreja ou comunidade religiosa que se escolher e o direito de participar na vida interna e nos ritos religiosos.

Daí o art. 10º da LLR dispor o seguinte:

“A liberdade de religião e de culto compreende o direito de, de acordo com os respectivos ministros do culto e segundo as normas da igreja ou comunidade religiosa escolhida:

a) Aderir à igreja ou comunidade religiosa que escolher, participar na vida interna e nos ritos religiosos praticados em comum e receber a assistência religiosa que pedir;

b) Celebrar casamento e ser sepultado com os ritos da própria religião;

c) Comemorar publicamente as festividades religiosas da própria religião".

Mas ainda que a Constituição o não refira expressamente, parece-nos manifesto e indiscutível, tal como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto, de 19/2/2008, in www.dgsi.pt. que a liberdade religiosa e de culto terá necessariamente de ter limites impostos pela ordem jurídica e constitucional vigentes numa comunidade civilizacional e pelos valores fundamentais nela consagrados e defendidos, como sejam - na comunidade em que nos inserimos - a liberdade, os direitos alheios, a ordem pública e a realização da justiça. Valores e objectivos estes que não podem ser violados ou impedidos por motivos de cariz religioso. Na verdade, os fundamentos ético-jurídicos de cariz humanista e racional em que a nossa comunidade de cidadãos se alicerça não podem ser postergados por princípios e práticas religiosos/as, como sejam, vg., a admissão de certas mutilações físicas ou da poligamia - cfr. António Leite, A Religião no Direito Constitucional Português in Estudos sobre a Constituição, 1978, 2°, p.265 e segs. Nesta vertente ao Estado já assiste o poder/dever de, através da função jurisdicional, garantir protecção jurídica a todo aquele que vir os seus direitos ou interesses juridicamente relevantes questionados ou violados por opções, atitudes ou cultos religiosos iníquos e intoleráveis, de forma a preveni-los ou repará-los, constituindo este um direito fundamental com assento constitucional - art. 20°, n° 1, da CRP.

Ou seja, não estamos, contrariamente ao que acontece com o direito à vida, perante um direito absoluto, podendo e devendo, se for o caso e dentro dos limites constitucionais, ser objecto de restrições.

É o que decorre não só do n.º 2 do art. 18º da CRP, mas também do art. 6º da LLR, onde expressamente se salvaguardou que a liberdade de religião e de culto “(..) admite as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” - n.°1 desse art. 6ª.

No particular campo das relações laborais, e com vista a encontrar o necessário equilíbrio e proporcionalidade entre esse direito de liberdade religiosa e outros com consagração constitucional, veio reger o art. 14° da LRR, nos seguintes termos e que para aqui relevam:

“1- Os funcionários e agentes do estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias de festividade e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:

a) Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;

b) Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso;

c) Haver compensação integral do respectivo período de trabalho (...).”

Como decorre da exposição de motivos (desta Lei), ao procurar salvaguardar e assegurar o direito de liberdade de consciência, de religião e de culto, a que se refere o art. 1º, articulando-o com o princípio da igualdade, este consagrado no art. 2, o legislador procurou nesta matéria alcançar uma solução equilibrada, no sentido de conseguir compatibilizar os direitos potencialmente em conflito, ou seja, de um lado, os do trabalhador que professa determinada religião e pretende observar o “descanso semanal”, os “dias das festividades” e os “períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”; e, de outro lado, os da entidade empregadora, desde logo, ao livre exercício da iniciativa económica privada “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” [n.º 1 do art. 61º CRP], bem como de “Liberdade de (..) organização empresarial” [art. 80.° al. d), da CRP], a que acrescem, como expressão daqueles, os poderes que a lei ordinária lhe confere, nessa qualidade de empregador, de “estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem” [art. 97º do CT], e, para além de outros, os de “determinar o horário de trabalho do trabalhador, dentro dos limites da lei [n.º 1 do art. 212.° do CT]”.

Como corolário do seu poder de direcção, ínsito à celebração do contrato de trabalho, cabe à entidade empregadora, dentro dos limites legais e da regulamentação colectiva em vigor, estabelecer o horário de trabalho, como um dos instrumentos ao seu alcance com vista a uma correcta organização técnico-produtiva, objectivo este que só numa análise muito simplista pode ser encarado como sendo do interesse exclusivo da entidade empregadora: é que uma correcta gestão terá como uma das facetas decisivas a manutenção do emprego dos seus trabalhadores e a optimização das suas condições de trabalho.

O próprio estabelecimento de um horário de trabalho acarreta inegáveis vantagens do ponto de vista do trabalhador: para além de tal determinação ser uma exigência da protecção da vida e da integridade física e psíquica do trabalhador, definindo os espaços de repouso e lazer necessários à salvaguarda da sua integração familiar e social, permite-lhe, conhecendo-o antecipadamente, orientar a sua própria vida pessoal e familiar de harmonia com o mesmo.

E chegados aqui a resposta à questão que nos ocupa terá de ser necessariamente negativa: não se verifica a inconstitucionalidade invocada - o direito à liberdade religiosa não é um direito absoluto, estando sujeito, com já vimos, “às restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.º 1 do art.  6º da CRP).

E um dos interesses constitucionalmente protegidos é a “liberdade de (…) organização empresarial” [art. 80.°, ai. d), da CRP], interesse esse que não se limita, como aflorámos, ao ponto de vista do empregador - o sucesso da empresa acarretará, em condições normais, a manutenção dos contratos de trabalho dos seus trabalhadores e das condições de laboração destes e contribuirá, certamente, para o desenvolvimento da economia de um país. Por isso se entende que na base desta consagração constitucional não esteve, exclusivamente, a preocupação da salvaguarda dos interesses económicos do empregador.

(…)

É certo que nem sempre será fácil encontrar um ponto de equilíbrio entre o direito à liberdade religiosa e os interesses tutelados da entidade empregadora. Mas certamente que o critério não poderá residir, única e exclusivamente, na circunstância de o primeiro ser um direito de carácter pessoal, como defende a apelante.

Em nosso modesto entendimento o referido art. 14° da LLR não estabelece uma desproporção entre os interesses em potencial conflito. Como refere Paula Meiro Lourenço, in Os Deveres de Informação no Contrato de Trabalho, REDS 2003, Ano XLIV, n°s 1 e 2, pags. 29 e segs. (citada, e relacionando esse ensinamento com o art. 14° da LLR, por Júlio Gomes, ob. cit., pág. 299, nota 803) “a actuação dos dois direitos fundamentais no direito privado não pode legitimar situações de incumprimento de obrigações, necessitando de se compaginar com a autonomia privada”.

Tal disposição veio criar digamos uma solução de compromisso - que não se nos afigura desequilibrada - entre o direito do trabalhador em obedecer às suas convicções religiosas e em praticar o respectivo culto e o interesse empresarial do empregador, estabelecendo as 3 condições cumulativas para que se verifique a suspensão do contrato de trabalho.

Mas se é certo que, como refere Júlio Gomes, ob. cit, pag. 300, “a liberdade religiosa tem custos e que um crente tem consciência de que uma fé digna desse nome comporta sacrifícios”, também o é que haverá casos em que, dentro do respeito pela boa-fé que deve nortear os contratos, incluindo, naturalmente, o contrato de trabalho, será possível harmonizar os interesses em conflito, designada, mas não exclusivamente, através de um acordo entre o trabalhador e o empregador, no sentido do estabelecer de um regime de trabalho a tempo parcial, que exclua o período destinado ao culto.

(…)”

A existência de infracção disciplinar e a justa causa

A justa causa de despedimento está definida no art. 351°, n.º 1, do CT como o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

(…)

A justa causa de despedimento, pressupõe, portanto, a existência de uma determinada acção ou omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, violadora de deveres emergentes do vínculo contratual estabelecido entre si e o empregador e que pela sua gravidade e consequências torne imediata e praticamente impossível a manutenção desse vínculo.

Como tal, importa desde já averiguar da existência de infracção disciplinar que possa ser assacada à Autora, tal como concluiu a Ré e a sentença recorrida confirmou.

Quanto a isto, e contrariamente ao que a Autora/apelante aflora, por diversas vezes, ao longo da sua alegação de recurso, é bom que se esclareça que nada indicia que o despedimento tenha ocorrido unicamente por motivos religiosos, em razão da crença religiosa adoptada pela trabalhadora. Fosse esse o caso, e quedar-nos-íamos por aqui, considerando, sem mais, o despedimento como ilícito.

O que a Ré imputou à Autora, e a sentença considerou como tal, foi a existência de faltas injustificadas da Autora - desde o pôr-do-sol até ao termo do turno de sexta-feira - e desobediência a ordens legítimas, que lhe impunham a prestação de trabalho suplementar ao sábado.

Ficou provado, com relevância para esta matéria:

- No sector de produção, ao qual se encontrava adstrita a Autora, a Ré tem instituído, desde 20 de Agosto de 2007, um regime de trabalho por turnos rotativos;

- Em 2009, até 31 de Agosto, os turnos a que a Autora se encontrava adstrita eram os das 07h00 às 15h00, ou das 15h00 às 23h00;

- A partir de 1 de Setembro de 2009, os turnos a que a Autora estava adstrita passaram a ser das 07h30 às 15h30 ou das 15h30às 23h30;

- Desde 01 de Janeiro até 31 de Agosto de 2009, quando se encontrava adstrita ao turno das 15h00 às 23h00, a Autora faltou ao serviço nos dias e horas discriminados no ponto H. e l., num total de 66h e 17m, equivalendo a oito dias e mais 2h e 17m;

- Todas estas faltas, com excepção das dadas nos dias 26 de Fevereiro (14 minutos) e 7 de Maio (10 minutos), correspondem a períodos de trabalho às sextas-feiras;

- Nessas sextas-feiras, encontrando-se escalada no segundo turno, assim que atingia a hora do pôr-do-sol, a Autora abandonava o seu posto de trabalho, bem sabendo que não estava autorizada para o fazer e consciente que o não podia fazer;

- O processo disciplinar que conduziu ao seu despedimento foi o quinto processo disciplinar instaurado à Autora com fundamento em faltas injustificadas, por abandonar o seu posto de trabalho no decurso do seu período normal de trabalho;

- Na sequência dos anteriores processos disciplinares foram-lhe aplicadas, respectivamente, as sanções de repreensão registada de 2, 15 e 30 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade.

- O último processo disciplinar, anterior a este que conduziu ao seu despedimento, já havia sido instaurado com intenção de despedimento, tendo tal sanção sido convolada numa sanção de 30 dias de suspensão e alertada a Autora que a empresa lhe estava a dar uma última oportunidade;

- A actividade da empresa está organizada por turnos, usando o sábado para trabalho suplementar, estando a empresa encerrada ao domingo;

- A Autora não pretende prestar trabalho aos sábados;

- A partir de 2007, por mais do que uma vez, a Autora foi chamada à atenção, nomeadamente pela responsável pelos recursos humanos da Ré e pela chefe de produção da Ré, suas superiores hierárquicas, de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho;

- A falta da Autora no decurso do seu período normal de trabalho, e na linha de montagem onde está colocada, afectava a execução do trabalho, interrompendo a sequência de tarefas, originando um decréscimo na produção;

- No mês de Agosto do ano de 1995, a Autora converteu-se à fé cristã, tendo integrado a Igreja Adventista do Sétimo Dia;

- Entre outras doutrinas adoptadas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, e observadas pelos seus membros, o dia de guarda é ao sábado, considerando-se o período desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado;

- Quando era solicitada para realizar trabalho em dia de sábado, a Autora informava a chefe de produção de que não estaria disponível para realizar trabalho nesse dia, por professar religião cujo período de descanso era desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado, o que a impedia de trabalhar naquele período;

- Nas vezes em que foi chamada à atenção pela responsável de recursos humanos e pela chefe de produção, no sentido de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho, a Autora invocava professar religião cujo período de descanso era desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado, o que a impedia de trabalhar naquele período.

O que está aqui em causa é se tal comportamento da Autora foi justificado, à luz do referido n.º 1 do art. 14° da LLR.

Já vimos que esta norma estabelece requisitos cumulativos, de modo a poder considerar-se suspenso o contrato de trabalho, designadamente para a prática do culto inerente à religião professada pelo trabalhador.

Salientando, e bem, que tal ausência, permitida por essa norma, consubstancia um suspensão do contrato de trabalho, e não qualquer situação de faltas justificadas, a sentença recorrida enuncia, mais uma vez acertadamente, as condições cumulativas para o exercício pela Autora do direito consagrado no art. 14° da LLR:

a) Ser a A. membro de igreja ou comunidade religiosa inscrita;

b) Que esta tenha feito a comunicação a que se refere a al. b), do n.° 1, indicando os dias de festividade e períodos horários que sejam prescritos pela sua confissão, cuja observância colida com o horário definido para a prestação de trabalho;

c) Que previamente apresente pedido junto da entidade empregadora para suspensão da prestação de trabalho, naqueles dias de festividade ou/e nos períodos horários que sejam prescritos pela sua confissão e cuja observância colida com o seu horário de trabalho;

d) Que trabalhe em regime de flexibilidade de horário de trabalho;

e) Que seja possível a compensação integral do respectivo período de trabalho e que a tal se disponha.

Estando verificada essa primeira condição, e não tendo a Ré levantado qualquer objecção quanto a uma eventual comunicação nos termos da al. b), que aliás, e como já dissemos, ficou provada na providência cautelar, temos que, pese embora não tivesse ficado provado que a Autora o tenha invocado sempre, para as suas ausências, dúvidas não há, face ao conjunto do circunstancialismo provado e ao próprio fundamento dos processos disciplinares anteriormente movidos contra a Autora, e que resultaram, na sua totalidade, em sanções disciplinares, que a Ré tinha a perfeita noção de que as ausências da Autora à sexta-feira e a recusa em prestar trabalho ao sábado estavam relacionadas com a observância, por parte da trabalhadora, como dia de guarda, do sábado, compreendendo-se o período desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado.

As dificuldades residem em saber o que quis o legislador da LLR dizer com a adopção do conceito de horário de trabalho flexível, a que se refere a alínea d) do n. 1 do art. 14° de tal Lei. É que este diploma legal nada diz a esse respeito.

Relembrando tudo quanto já se disse a propósito da alegada inconstitucionalidade daquela disposição legal, o que se pretendeu com esta foi harmonizar dois direitos potencialmente em conflito: o direito do trabalhador à liberdade religiosa e o direito do empregador à correcta gestão dos meios humanos ao seu dispor. Sempre com a preocupação que o exercício do direito do trabalhador não acarrete, para um empregador, um prejuízo injustificado e desproporcionado.

Procurando a melhor interpretação para esse “regime de flexibilidade”, em relação ao qual o CT de 2009 também nada define expressamente, o Sr. Juiz socorre-se do que neste Código se estabelece quanto à duração e organização do tempo de trabalho, constante dos arts. 197° a 231°, e conclui que o legislador “não tinha em mente um determinado esquema preciso de distribuição das horas do período normal de trabalho, antes querendo deixar um conceito aberto, de modo a abranger qualquer regime de trabalho que se distancie dos esquemas em que a característica seja a fixidez. Essa solução impôs-se como uma necessidade para possibilitar a condição a que se refere a al. c), ou seja, a compensação integral do respectivo período de trabalho durante o qual ocorra a suspensão, para exercício do direito de liberdade religiosa. Na verdade, não se descortina a possibilidade prática de assegurar a compensação por parte de alguém que trabalhe diariamente sujeito a um horário fixo”.

Concordamos em absoluto com tal asserção, tanto mais que ela vai de encontro ao que Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 12a edição, pág. 336, define como “horário flexível”: “em que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador, mas podendo este, com respeito por esses períodos, escolher, dentro de certas margens, as horas de entrada e saída do trabalho, e modo a cumprir o PNT (...) a que está obrigado (ex: o PNT é de 40 horas semanais; o período de presença obrigatória diária é das 10 h às 12h.30m. e das 15 h às 17h.30m; o trabalhador pode, em cada dia, entrar ao serviço entre as 8 e as 10h, interromper para almoço entre as 12h30m e as 15h, e escolhera hora de saída entre as 17h 30m. e as 19h. 30m; mas terá de cumprir as 40 horas de trabalho por semana)”.

E devendo compatibilizar-se esse regime de trabalho flexível com a possibilidade de compensação prevista na al. c) do n.º 1 do art. 14°, facilmente se compreende que neste exemplo dado por aquele Ilustre Autor seja mais do que viável o trabalhador compensar o período de ausência para a prática do culto religioso.

Também a sentença recorrida dá dois exemplos felizes de situações de flexibilidade de horário (os assistentes de bordo e os delegados de propagando médica). E refere que "Assim, o trabalhador prestará a sua actividade em regime de flexibilidade de horário quando, no interesse da entidade empregadora - radicado na organização do seu funcionamento, porque desse modo proporciona a obtenção da utilidade da força de trabalho à disposição daquela - tenha sido estabelecido um esquema em que aquela prestação, contendo-se nos limites legais do período normal de trabalho, possa ter hora variável de entrada e saída, dependendo tal de determinadas circunstâncias ou condições ou sendo gerido pelo trabalhador, em qualquer caso tendo em vista uma melhor eficácia da sua prestação".

Concluindo, temos que o trabalhador, em ordem a ver observado o direito consagrado no art. 14º da LLR, e assim poder professar, com toda a sua amplitude, a sua confissão religiosa, terá que estar sujeito a um regime de flexibilidade de horário [al. a)], exigindo-se, cumulativamente, que proceda à "compensação integral do respectivo período de trabalho" [al. b)] que deixou de prestar para poder comemorar as festividades ou observar o período de culto prescritos por aquela confissão.

No caso que nos ocupa, ficou provado que, a partir de 20 de Agosto de 2007, a Ré organizou o funcionamento do sector de produção onde a Autora exercia funções em regime de turnos rotativos; até 31 de Agosto de 2009, os turnos a que a Autora se encontrava adstrita eram das 07h00 às 15h00 ou das 15h00 às 23h00; e, a partir de 1 de Setembro de 2009, passaram a ser das 07h30 às 15h30 ou das 15h30 às 23h30.

De acordo com a conceitualização que se considerou adequada do “regime de trabalho flexível”, temos por certo que não era esse o caso da prestação do trabalho da Autora.

Com efeito, não é por trabalhar em regime de turnos que se verifica essa flexibilidade. As horas de início e termo do período normal diário estavam perfeitamente determinados e eram fixos, apenas alternando em função da rotação do turno. E esse carácter fixo é precisamente o oposto de flexibilidade de horário.

Por outro lado, não era de todo possível a "compensação": estando o regime de trabalho organizado por turnos, utilizando-se o sábado -precisamente o dia em que a Autora estava "impedida" pela sua opção religiosa - para trabalho suplementar e não laborando a Ré ao domingo, não haveria qualquer hipótese de a Autora trabalhar em outro qualquer período. E a compensação, como adverte o Sr. Juiz, não pressupõe apenas que o trabalhador se disponibilize ou a ela fique obrigado, mas também que seja possível à entidade empregadora receber essa compensação, sem prejuízo da sua normal organização de recursos.

Não se verificam assim, esses requisitos das als. a) e c), por forma a conferir à Autora o direito, por virtude da sua confissão religiosa, de se ausentar do trabalho à sexta-feira, a partir do pôr-do-sol, e de se recusar a prestar trabalho suplementar ao sábado.

A conclusão idêntica se chegaria mesmo que se considerasse - e não é o caso, reafirma-se - que o regime de trabalho por turnos cabia dentro daquele conceito de flexibilidade de horário.

Segundo Júlio Gomes, ob. cit., pag. 299, que não reporta este seu entendimento ao regime legal da LLR, a solução ideal de compatibilizar os interesses em conflito, em situações como a que nos ocupa seria a seguinte: "(...) a boa-fé pode impor ao empregador que faça um esforço razoável para adaptar o funcionamento da empresa às necessidades religiosas dos seus trabalhadores, atendendo ao caso concreto e evitando fazer ao empregador exigências excessivas. Queremos, com isto, destacar que numa pequena empresa, com um número reduzido de trabalhadores, pode revelar-se muito difícil - e não exigível - garantir a um trabalhador judeu ou adventista que não trabalhe ao sábado, mas o mesmo poderá não ser verdade numa empresa com centenas de trabalhadores”.

Ou seja, poder-se-ia equacionar, no caso concreto, a possibilidade de troca do segundo turno (que terminava às 23 horas e, a partir de Setembro de 2009, às 23,30 horas) da sexta-feira, quando a Autora para ele estivesse escalada, com outro trabalhador, e a dispensa sistemática da Autora do trabalho suplementar ao sábado, para assim dar satisfação ao seu direito de observar o período de culto da sua religião.

Isso mesmo é defendido pela apelante quando invoca o disposto no artigo 570º do Cod. Civil, para avaliação da responsabilidade disciplinar da Autora, sustentando que a culpa da Ré existiria, concorrendo com a dela, já que a Ré sempre teve turnos que podia ter atribuído à Autora que não a impediriam de cumprir o período de guarda religiosamente ditado, ou seja, os turnos das 07h às 15h, entre 2007 e 2009 e os turnos das 07h30 às 15h30min, a partir de 2009.

Só que, nestas hipóteses, estaríamos perante um clara violação do princípio constitucional da igualdade: com efeito, a troca de turnos implicaria que fosse afectado um qualquer outro trabalhador, onerando-o com obrigatoriedade de prestar trabalho nesse período em que a Autora seria dispensada.

Como é sabido, existe uma especial penosidade no regime de trabalho por turnos, que mais se acentua quando o turno coincide com período nocturno. Daí que, no regime de turnos rotativos do género do que observava a Ré, a entidade empregadora proceda a uma alternância entre os seus trabalhadores, normalmente semanal, por forma a que, em cada semana, o trabalhador preste serviço num primeiro turno e na semana seguinte no outro turno. Atender a pretensão da Autora implicaria que um qualquer outro trabalhador que na sexta-feira anterior tivesse prestado trabalho no último turno tivesse que o fazer novamente na sexta-feira seguinte.

E conceder a dispensa do trabalho suplementar ao sábado à Autora implicaria que a Ré adoptasse uma regra em contrário dos demais, que a ele estavam obrigados.

Estaríamos claramente perante uma discriminação negativa, em que o trabalhador que professasse religião diferente ou não professasse religião alguma era inequivocamente penalizado por confronto com a situação da Autora. E não é difícil descortinar, porque vulgares, situações em que o trabalhador, professando a religião católica, presta trabalho suplementar ao domingo, que é dia de culto de tal religião, já para não falar dos feriados de carácter religioso.

Também não tem razão a Autora quando invoca (nada dizendo em termos de o fundamentar juridicamente) que a Ré ignorou um “direito adquirido”, já que, e segundo ela, durante onze dos dezoito anos de relação laboral com a Ré, isto é, entre 1995 e 2007, a Autora nunca trabalhou ao serviço da Ré em horário de trabalho que entrasse em confronto com a observância do dia de guarda da sua religião, à qual se converteu em 1995, e, durante todo esse tempo, nunca foi levantada pela Ré qualquer questão de ordem técnica ou disciplinar que estivesse relacionada com a observação do dia de guarda da religião por si professada.

Esquece-se, todavia, a Autora que só a partir de 20 de Agosto de 2007 é que a Ré instituiu, no sector de produção, ao qual se encontrava adstrita a Autora, um regime de trabalho por turnos rotativos. Assim, mesmo que a Ré tivesse mostrado, antes dessa data, alguma tolerância em permitir que a Autora saísse mais cedo, antes do pôr-do-sol de sexta-feira, tal nunca poderia constitui uma expectativa juridicamente tutelada, precisamente porque as condições de trabalho, no que respeito ao período de prestação do mesmo, se alteraram substancialmente.

Finalmente, e no que respeita à alegação do conflito de interesses, dando a lei civil preferência aos valores pessoais sobre os patrimoniais, estribando-se a Autora no disposto no art. 335° do Código Civil, limitamo-nos a remeter para o que já foi dito, a esse respeito, aquando da abordagem da inconstitucionalidade invocada.

Chegados aqui, não podem restar dúvidas da existência de infracção disciplinar por banda da Autora.

Entre os deveres impostos ao trabalhador, e elencados no art. 128° do CT, estão os de “Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade" [al. b) do n.° 1], de “Realizar o trabalho com zelo e diligência” [al. c) do n.° 1] e de “Cumpriras ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina do trabalho (..) que não sejam contrárias aos seus direitos e garantias” [al. e) do n.°1].

Por outro lado, estabelece o art. 227°, n.º 3, que “o trabalhador é obrigado a realizar a prestação de trabalho suplementar, salvo quando, havendo motivos atendíveis, expressamente solicite dispensa”.

Como resultou provado, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2009 e 31 de Dezembro de 2009, quando o turno às sextas-feiras se iniciava à tarde e tinha o seu termo à noite, a Autora ausentava-se do trabalho, assim que atingia a hora do pôr-do-sol, perfazendo o somatório dos períodos de ausência de cada um desses dias o total de 65 horas e 53 minutos.

Sendo que, em relação à situação da Autora, está, como vimos, excluída a possibilidade de aplicação do regime previsto no art. 14º da Lei de Liberdade Religiosa, essas ausências, não autorizada nem justificadas, constituem faltas injustificadas, com a inerente violação dos deveres de assiduidade e pontualidade.

E não tendo apresentado, nem existindo, motivo atendível para a recusa de prestação de trabalho suplementar, verifica-se a violação, por parte da Autora e reiteradamente, do dever de obediência, sendo que desde 2007 que vinha sendo chamada à atenção pelas suas superiores hierárquicas por recusar prestar trabalho suplementar ao sábado - prestação a que estava obrigada - e que lhe foram movidos quatro processos disciplinares e aplicadas sanções sucessivamente mais graves.

Mas como se disse, não basta a singela existência de uma infracção disciplinar por banda do trabalhador para que se possa concluir pela impossibilidade prática e imediata da subsistência do contrato, que consubstancia a justa causa de despedimento.

Sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que a actuação do trabalhador integre justa causa é ainda necessário que seja grave em si mesma e nas suas consequências.

O comportamento culposo do trabalhador só integrará justa causa de despedimento quando determine a impossibilidade prática da subsistência da relação de trabalho, o que acontecerá sempre que a ruptura seja irremediável, isto é, sempre que nenhuma outra sanção seja susceptível de sanar a crise contratual grave aberta com aquele comportamento.

Daí que não basta que o comportamento se integre numa das hipóteses exemplificativas do n.º 2 desse art. 351º, não basta a prova da materialidade dos factos, sendo necessário que os mesmos, pela sua gravidade e consequências, tornem imediata e praticamente impossível a relação de trabalho.

Quanto à impossibilidade prática de subsistência da relação laboral e citando, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2003, Proc. n.° 02S568, disponível em www.dgsi.pt. a mesma verifica-se “quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral”.

Ainda de acordo com o mesmo aresto, citando, aliás, Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11a Edição, pág. 540-541., “Não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença - fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo (...). Basicamente preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiam tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”.

Acresce ainda que, sendo o despedimento a sanção disciplinar mais grave, a mesma só deve ser aplicada nos casos de real gravidade, isto é, quando o comportamento culposo do trabalhador for de tal forma grave em si e pelas suas consequências que se revele inadequada para o caso a adopção de uma sanção correctiva ou conservatória da relação laboral.

E porque não basta um comportamento culposo, sendo também necessário que ele seja grave em si mesmo e nas suas consequências, gravidade que deverá ser apreciada em termos objectivos e concretos, no âmbito da organização e ambiente da empresa, e não com base naquilo que o empresário subjectivamente considere como tal, é que o n.º 3 do art. 351º do CT determina que: “Na apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”.

Para além desta ideia básica de justa causa, o art. 351º do CT consagra um elenco exemplificativo de justas causas típicas, no seu n.º 2, mas em que os diversos termos nele compreendidos devem, todavia, preencher os requisitos subjacentes à ideia básica de justa causa a que alude o seu n.º 1.

Entre os comportamentos do trabalhador susceptíveis de integrar o conceito de justa causa temos a “Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores”, o “Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou do posto de trabalho a que está afecto” e as “Faltas não justificadas ao trabalho que determinem directamente prejuízos ou riscos graves para a empresa” - als. a), d) e g) do n.º 2 do art.º 351°. Posto é, contudo, e como se disse, que tais práticas tornem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, não bastando a verificação de um desses comportamentos, pois esse n.º 2 apenas se reporta ao primeiro elemento (comportamento culposo), sendo necessário que se verifiquem os restantes pressupostos referidos no n.º 1 para que se conclua pela existência de justa causa de despedimento.

Não esquecendo que, como já se referiu, a justa causa postula sempre uma infracção, ou seja, uma acção ou omissão, de deveres legais ou contratuais. Esse acto ilícito culposo, que pode assentar em acção ou omissão do prestador de trabalho, será necessariamente derivado da violação de deveres obrigacionais principais, secundários ou de deveres acessórios de conduta, relacionados com a boa fé no cumprimento do contrato.

E o que é certo é que, no caso concreto, e como se decidiu na sentença, a factualidade provada é no sentido de concluir que a conduta da Autora abriu tal crise contratual grave.

Como se disse, assumiu um comportamento reiterado de ausência ao trabalho, a partir do pôr-do-sol da sexta-feira em que teria de cumprir o turno que terminava às 23 ou às 23,30 horas, e de desobediência a ordens legítimas da entidade empregadora de prestar trabalho ao sábado, sendo que a justificação apresentada não tem acolhimento legal no citado art. 14°, n.º 1,da LLR.

A partir de 2007, por mais do que uma vez, a Autora foi chamada à atenção, nomeadamente pela responsável pelos recursos humanos e pela chefe de produção da Ré, suas superiores hierárquicas, de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho.

A Autora estava inserida numa linha de montagem, na fase de embalagem, a qual funcionava de uma forma sequencial, e cujo normal funcionamento depende do trabalho de todas as trabalhadoras que a integram. A falta da Autora no decurso do seu período normal de trabalho e na linha de montagem onde estava colocada afectava a execução do trabalho, interrompendo a sequência de tarefas, originando um decréscimo na produção, causando, assim, um claro prejuízo à Ré, circunstâncias que a Autora bem conhecia.

Pelos mesmos motivos, havia já sido alvo de 4 anteriores processos disciplinares, que culminaram com sanções progressivamente mais gravosas. Apesar disso, não se coibiu de continuar esse seu comportamento de faltas injustificadas e de desobediência.

Não se tratou, pois, de uma conduta pontual, antes se repetindo, sendo certo que a Autora bem sabia que não estava autorizada a agir assim.

Sendo que o comportamento do trabalhador tem de ser analisado na perspectiva da sua projecção sobre o vínculo laboral em atenção às funções que ele exerce e à possibilidade de estas subsistirem sem lesão irremediável dos deveres fundamentais inerentes, não era exigível à Ré, face ao passado disciplinar da Autora e às circunstâncias de facto, exactamente as mesmas em que fundou o despedimento, que estiveram na base dos procedimentos disciplinares anteriores, que optasse por sanção conservatória do vínculo laboral.”

Temos, assim, de concluir pela existência de justa causa e pela licitude do despedimento da Autora.”

O Tribunal Constitucional, porém, tem uma interpretação do art. 14º, n.º 1, alíneas a) e c) da LLR, completamente diferente daquela que lhe foi dada pela 1ª instância e por esta Relação, tendo no seu acórdão, de 15/07/2014, exarado a fls. 560 a 632, concluído o seguinte:

“A interpretação conferida aos requisitos cumulativos previstos no n.º 1 do artigo 14º, da Lei da Liberdade Religiosa, contidos nas alíneas a) e c), que estabelecem os requisitos da flexibilidade do horário de trabalho e da compensação integral do período de suspensão, aquele reportado às situações em que seja estabelecido pela entidade empregadora um regime com variação da hora de entrada e saída dos trabalhadores, este só possível se verificado o primeiro, determinaria uma compressão desrazoável e excessiva da liberdade de religião (prevista e tutelada pelo artigo 41º, n.º 1 da Constituição), em moldes não consentidos pelo princípio da proporcionalidade, também da Constituição.

Nesta sequência, é de ponderar, no âmbito do programa constitucional amplo de protecção da liberdade religiosa, que não pode decorrer da interpretação da alínea a) do artigo 14º da Lei da Liberdade Religiosa, ao referir-se a «flexibilidade de horário», a consideração tão só de uma modalidade de «horário flexível» (como previsto no Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto ou, muito limitadamente, no artigo 56º do Código do Trabalho), que, ao permitir uma variação nas horas de entrada e saída do trabalhador, se toma por paradigma de um regime com flexibilidade de horário, não se compaginando o valor constitucional que informa o direito previsto no artigo 14º da Lei da Liberdade Religiosa com as definições ou regimes estabelecidos no plano infraconstitucional pelo legislador ordinário - de aplicação limitada ou circunscrita -, para mais prosseguindo estes, as mais das vezes, direitos e interesses diversos (como, designadamente, a maternidade, as responsabilidades familiares, a educação e formação do trabalhador) dos protegidos no artigo 41º da Constituição portuguesa.

É que uma interpretação da lei consentânea com a Constituição — que protege, nos termos expostos, a liberdade religiosa dos indivíduos - não pode deixar de considerar incluídas no conceito de flexibilidade de horário (salvaguardada a possibilidade de compensação do trabalho não prestado em certo período) todas as situações em que seja possível compatibilizar a duração do   trabalho  com  a  dispensa  do  trabalhador  para  fins  religiosos,  operando-se,  assim,  a acomodação dos direitos fundamentais do trabalhador.

Nesta abertura da leitura da norma legal em causa, em linha com a ampla protecção conferida pelo legislador constitucional ao direito de liberdade religiosa, não pode deixar de se compreender a organização do trabalho em turnos, que, pela sua configuração rotativa e variável designadamente quanto à afectação de trabalhadores a cada turno, possibilitaria, in casu, a acomodação das práticas religiosas dos trabalhadores para efeitos da dispensa do trabalho em certos períodos ou dias ditados pelas crenças professadas, sem prejuízo da compensação devida (por via da prestação efectiva do trabalho). É que a configuração rotativa e variável do regime de horário por turnos (e, assim, «flexível») habilita soluções que vão ao encontro da letra e do espírito da lei, com vista à criação, sempre que possível, das condições favoráveis ao exercício da liberdade religiosa dos trabalhadores, pelo que, diversamente dos limitados termos da interpretação normativa feita no aresto recorrido, não se considera aquele regime excluído da previsão da norma.

Outros regimes poder-se-iam considerar abrangidos por aquela previsão legal, designadamente, os regimes de horários desfasados, de tempo parcial, de jornada contínua ou de isenção de horário, previstos no Decreto-Lei n.° 259/98, de 18 de Agosto, para a Administração Pública, ou, no âmbito das relações jurídico-laborais privadas, o trabalho a tempo parcial para os trabalhadores com responsabilidades familiares (artigo 55.°, do Código do Trabalho) ou o regime de isenção de horário previsto no artigo 218.° (também do Código do Trabalho), não se esgotando nestes exemplos.

Uma interpretação constitucionalmente conforme da Lei da Liberdade Religiosa, quanto ao seu artigo 14º, para mais propiciada pela falta de uma definição rígida e fechada do conceito de flexibilidade de horário, em face da liberdade fundamental prevista no artigo 41º da Constituição, não pode deixar de apontar para uma mais elevada protecção deste direito fundamental, irradiando o seu efeito para as relações laborais, de modo a entender-se caber também aos empregadores a procura de soluções gestionárias de organização laboral que acautelem o exercício de direitos fundamentais pelos trabalhadores, neste caso, o direito à liberdade religiosa. Aliás, também noutras situações previu o legislador o dever de a entidade empregadora proceder à acomodação de outros direitos fundamentais dos trabalhadores, como ilustrado com a previsão específica de obrigação de ajustamento do horário dos trabalhadores estudantes (artigo 90.° do Código do Trabalho), ou com a formulação mais genérica por via da obrigação de ponderação de direitos dos trabalhadores e de circunstâncias relevantes aquando da fixação dos horários de trabalho, nos termos cometidos ao empregador pelo artigo 212,°, n.º 2, do Código do Trabalho ou aos dirigentes (da Administração Pública) pelo artigo 22º do citado Decreto-Lei n.º 259/98.

Entende-se decorrer da ampla protecção constitucional da liberdade de religião que, no presente caso, o «regime de horário flexível» não deixe de incluir os horários por turnos, habilitando a compatibilização do horário de trabalho (e da sua compensação devida) com o exercício da liberdade religiosa do trabalhador, sendo essa interpretação - e não a interpretação restritiva seguida pelo Tribunal a quo quanto às alíneas a) e c) do n.º 1, do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa (a primeira interpretada no sentido de o regime de flexibilidade de horário se reportar apenas a regimes de organização do tempo do trabalho em que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador e a possibilidade de escolha por este, dentro de certas margens, das horas de entrada e de saída, e a segunda interpretada no sentido de a compensação do período de trabalho apenas se verificar em regime de flexibilidade de horário com aquele sentido) - a que se mostra adequada a fazer respeitar a nossa Constituição.

Assim, por que não seria constitucionalmente admissível a interpretação normativa conferida às alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 14º da Lei da Liberdade Religiosa, ao consubstanciar uma compressão desproporcionada da liberdade de religião consagrada no artigo 41º da Constituição da República Portuguesa, justifica-se proferir uma decisão interpretativa, ao abrigo do disposto no artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, devendo o Tribunal recorrido adoptar a interpretação que se julgou conforme à Constituição e, assim, reformular em conformidade a solução encontrada para o caso concreto ali em julgamento nos termos da legislação aplicável. (…)

Pelo exposto, decide-se:

a) Interpretar, ao abrigo do disposto no artigo 80º, n.º 3, da LTC as normas do artigo 14º, n.º 1, alíneas a) e c), da Lei da Liberdade Religiosa, no sentido de que incluem também o trabalho prestado em regime de turnos;

b) Conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogar o acórdão recorrido para que seja reformado de modo a aplicar as referidas normas com aquele sentido interpretativo.”

Perante esta interpretação dada ao art. 14º, n.º 1, alíneas a) e c) da LLR pelo Tribunal Constitucional, temos necessariamente de concluir pela inconstitucionalidade daquele preceito, na interpretação que lhe foi dada pela sentença da 1ª instância e pelo direito da autora de, a seu pedido, suspender o trabalho, a partir do pôr do sol de sexta-feira até ao termo do seu turno, uma vez que se verificavam, cumulativamente, os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 14º da LLR, designadamente, o de trabalhar em regime de flexibilidade de horário e poder haver compensação integral do respectivo período de trabalho.

Assim, estando provado que, em Agosto de 1995, a Autora se converteu à fé cristã, tendo integrado a Igreja Adventista do Sétimo Dia e que o seu “período de guarda ia desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de sábado”, e sabendo a Ré que aquela, por essa razão, não estaria disponível para prestar trabalho, nesse período, impunha-se que esta procurasse uma solução gestionária de organização do trabalho que lhe acautelasse o exercício do direito à liberdade religiosa, já que a configuração rotativa e variável do regime de horário por turnos, em que a trabalhadora estava inserida, habilita soluções que vão ao encontro da letra e do espírito do art. 14º, n.º 1 da LLR, com vista à criação, sempre que possível, das condições favoráveis ao exercício da liberdade religiosa dos trabalhadores, pelo que, diversamente dos limitados termos da interpretação normativa feita na sentença recorrida, não se pode considerar o regime de turnos rotativos (em que a recorrente estava inserida) excluído da previsão daquela norma.

Os superiores hierárquicos da recorrente não tinham, portanto, qualquer razão quando a chamavam a atenção e lhe comunicavam que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho. Em vez dessas chamadas de atenção e dessas instruções, deviam procurar uma solução, dentro do seu horário, que lhe permitisse assegurar o seu “dia de guarda”,

Quer isto dizer que as horas em que a Autora esteve ausente do serviço, nos dias mencionados nas alíneas H) e I) da matéria de facto provada, não podem ser consideradas injustificadas - excepto os 14 minutos de ausência, do dia 26/2/2009 (5ª feira), os 10 minutos de ausência do dia 7/05/2009 (5ª feira) e as 6 horas iniciais (das 15 às 21horas) do turno do dia 3/07/2009, por nada terem a ver com a liberdade religiosa da autora, nem com o seu “dia de guarda”.

Não faz também qualquer sentido falar-se, neste caso, em desobediência ilegítima reiterada, já que as ordens dadas à autora pelos superiores hierárquicos, para não abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, ao pôr-do-sol, se devem considerar ilegítimas.

Também não faz qualquer sentido invocar, para agravar a responsabilidade da recorrente, os quatro processos disciplinares que a ré lhe instaurou, antes destes factos, e que culminaram com sanções correctivas progressivamente mais gravosas, já que também esses processos tiveram por fundamento faltas dadas ao serviço, no seu “período de guarda”.

Assim, totalizando os períodos de ausência injustificada apenas 6h 24m (menos de um dia de trabalho), temos obviamente de concluir que a conduta da recorrente não foi objectivamente grave em si mesma e nas suas consequências nem tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho que a vinculava à apelada.

Constituindo o despedimento uma saída de recurso para as mais graves crises de disciplina - justamente aquelas que, pela sua agudeza, se convertem em crises do próprio contrato – isso implica que o uso de tal medida seja balanceado, face a cada caso concreto, com as restantes reacções disciplinares disponíveis. Ou seja, o recurso a sanção expulsiva ou rescisória do contrato de trabalho, que o despedimento representa, apenas se justifica quando se revelarem totalmente inadequadas para o caso as medidas conservatórias ou correctivas. No caso em apreço, porém, atentas as circunstâncias em que tudo ocorreu, a aplicação de uma dessas medidas seria, em nosso entender, perfeitamente adequada para sanar a crise contratual aberta com o comportamento atrás descrito. A opção pela sanção mais severa, ou seja, pela expulsão da trabalhadora do seio da empresa, onde trabalhava há cerca de 21 anos, afigura-se-nos precipitada e manifestamente desproporcionada.

Deve, assim, tal sanção ser declarada ilícita.

Sendo ilícito o despedimento, a recorrente tem direito a ser reintegrada na empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, bem como a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde a data do seu despedimento (14/04/2010) até à data do trânsito em julgado deste acórdão, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma dessas retribuições até integral pagamento, devendo deduzir-se ao montante global dessas retribuições os rendimentos por aquela auferidos em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento, bem como o subsídio de desemprego por ela (eventualmente) recebido nesse período, devendo a ré, nesse caso, entregar à Segurança Social a quantia deduzida a esse título (arts. 389º, n.º 1, al. b), 390º, n.ºs 1 e 2 do CT, 804º, 805º, n.º 2, al. b), 806º, n.ºs 1 e 2) e comprovar nos autos essa entrega.

Como se desconhecem as retribuições que a trabalhadora/recorrente normalmente auferiria no decurso do referido período, se não tivesse sido despedida, bem como os rendimentos que terá eventualmente auferido em actividades iniciadas após o despedimento e o subsídio de desemprego que terá eventualmente recebido, relega-se o apuramento das retribuições e demais verbas para incidente de liquidação de sentença, nos termos do art. 609º, n.º 2 do CPC.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, decide-se:

1. Revogar a sentença recorrida;

2. Considerar inconstitucional o art. 14º, n.º 1 da Lei n.º 16/2001, de 22/06, na interpretação que lhe foi dada pela sentença da 1ª instância;

3. Declarar ilícito o despedimento da recorrente;

4. Condenar a recorrida a reintegrar a recorrente na empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, bem como a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde a data do seu despedimento (14/04/2010) até à data do trânsito em julgado deste acórdão, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma dessas retribuições até integral pagamento, devendo deduzir-se ao montante global dessas retribuições os rendimentos por aquela auferidos em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento, bem como o subsídio de desemprego por ela (eventualmente) recebido nesse período, devendo a ré, nesse caso, entregar à Segurança Social a quantia deduzida a esse título e comprovar nos autos essa entrega, relegando-se o apuramento daquelas e destes para incidente de liquidação de sentença.

5. Condenar a recorrida nas custas do recurso.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2014

Ferreira Marques

Maria João Romba

Paula Sá Fernandes

Decisão Texto Integral: