Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
600/12.6TBBBR-D.L1-1
Relator: JOÃO RAMOS DE SOUSA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
NOÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não há tradição nem detenção do imóvel se o promitente vendedor apenas autorizou o promitente comprador a circular livremente nas instalações, partilhando-as com este, mas continuando a servir-se delas como anteriormente.

2. E consequentemente, este utilizador não exclusivo não goza do direito de retenção nos termos do art. 755.1.f do Código Civil.

(Sumário do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório

Por sentença de 2014.03…, o Tribunal Judicial do B… julgou improcedente a impugnação da credora RO, Lda., na insolvência de M – Venda…, Lda., em que alegara gozar o seu crédito do privilégio decorrente do direito de retenção.

Recorreu pedindo que se corrija o valor atribuído ao recurso e se revogue a sentença, reconhecendo-se aos seus créditos aquele direito de retenção e graduando-os em conformidade.

A massa insolvente, bem como as reclamantes P S.A. e o MºPº pronunciaram-se pela confirmação da sentença, por improcedência do recurso. 

Corridos os vistos, cumpre decidir se a recorrente goza ou não do pretendido direito de retenção.

Fundamentos

Factos

Provaram-se os seguintes factos, apurados pelo Tribunal a quo:


1) Por sentença proferida em …/03/2013 e devidamente transitada em julgado foi declarada a insolvência de M, LDA., sociedade por quotas, com sede no …, …, …-… …, com o NIPC ….
2) Por sentença proferida em …/12/2012 no âmbito dos autos de processo ordinário com o número … que correram termos neste Tribunal em que foi Autora RO, Lda. e Ré M, Lda. decidiu-se o seguinte:
“ a) declaro resolvido o contrato de promessa de compra e venda celebrado em 20 de Outubro de 2010, entre a Autora RO, LDA. – que assumiu, por via da cessão da posição contratual por si celebrada, a posição de promitente compradora – e Ré M, LDA., e que tem como objecto o prédio urbano, correspondente ao rés-do-chão e 1º andar, situado no lote 1 do lugar de …, denominado Casal da .., da freguesia do C…, concelho do ... descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número … da dita freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …;
b) condeno a Ré M, LDA. a pagar à Autora RO, LDA a quantia de € 491.581,18 (quatrocentos e noventa e um mi, quinhentos e oitenta e um euro, e dezoito cêntimos).”
3) Do denominado “contrato de promessa de compra e venda”, datado de 20 de Outubro de 2010 em que constam como promitente vendedora “M Lda.”e como promitente comprador JL, constante de fls. 486 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais resulta, nomeadamente o seguinte:
Ca) “M Lda.”declarou prometer vender a JL, o prédio urbano, correspondente ao rés-do-chão e 1º andar, situado no lote 1 do lugar de Sobral de Parelhão, denominado …, da freguesia do …, concelho do ... descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número … da dita freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo … (cláusula primeira)
Cb) As partes declararam acordar que o preço da venda prometida era de € 631.000,00 e o sinal prestado era de € 245.790,59 (cláusula segunda)
Cc) As partes declararam acordar que o remanescente do preço seria pago na data da outorga da escritura de compra e venda;
Cd) As partes declararam acordar que a escritura de compra e venda deveria ocorrer num prazo máximo de sessenta dias, podendo o promitente-comprador prorrogar tal prazo por mais trinta dias (nº 1 da cláusula quarta e cláusula quinta);
(...)
Ce) JL declarou que pelo presente contrato toma posse do imóvel prometido, podendo usar e gozar do imóvel e introduzir benfeitorias e melhorias que considere necessárias.
Cf) As partes declararam que o imóvel objecto do presente contrato é entregue e recebido mediante prévia vistoria ao imóvel, livre de arrendamentos e totalmente desocupado, sendo entregues à promitente compradora as chaves de acesso ao mesmo.
(...)
4) Por acordo escrito denominado por “contrato de cedência da posição contratual”, datado de 25 de Novembro de 2010 (em que constam como primeiro contratante JL, como segundo contratante RO, Lda e como terceira contratante “M, Lda.”, junto aos autos a fls. 494 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais), o promitente comprador, JL, declarou ceder à RO, Lda a posição que detinha no contrato de promessa de compra e venda celebrado em … de Outubro de 2010, que declarou aceitar, tendo ainda a terceira contratante declarado aceitar a cessão da posição contratual.
5) Desde finais de 2010 que RO, Lda. passou a circular, livremente e sem qualquer restrição no imóvel referido em Ca), a par da M, Lda. que lá mantinha as suas instalações e seus pertences.
6) Aí colocou algumas paletes de rações para animais, onde os seus clientes se dirigiam esporadicamente para as levantar.
7) Fixou no seu exterior logotipo identificativo da empresa.

O Tribunal julgou não provado o seguinte:


A) Desde 20 de Outubro de 2010 que a RO, Lda. passou a ocupar o imóvel referido em Ca).
B) Desde 20 de Outubro de 2010 que a RO, Lda instalou no imóvel os seus pertences, designadamente secretárias, computadores e documentação geral necessária à prossecução da respectiva actividade.
C) Desde 20 de Outubro de 2010 que passou nele a desenvolver a actividade de comércio de alimentos compostos para animais.
D) Desde 20 de Outubro de 2010 que a RO se comporta como verdadeira dona das instalações, com o conhecimento de todos os demais sujeitos e até à presente data.


Questão prévia: o valor da causa
Em questão prévia, o recorrente alega o seguinte:

I. Em sede de despacho saneador foi fixado, para a presente acção, o valor de €1.121.641,00 (que correspondia à soma da totalidade dos créditos reclamados nos presentes autos), contudo, o pedido da autora resumia-se a impugnar a qualificação que havia sido conferida ao seu crédito e não os restantes créditos reconhecidos nessa mesma lista.
II. A ora Recorrente atribuiu à presente acção o valor de € 500.167,02 (quinhentos mil, cento e sessenta e sete euros e dois cêntimos), que corresponde ao valor global do seu crédito.
III. Determina o art. 297 do CPCivil “se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício
IV. Desta forma, requer-se que seja rectificado o valor atribuído em Primeira Instância à presente acção para a quantia de € 500.167,02.

Conforme estabelece o art. 12.2 do Regulamento das Custas Processuais (Lei 7/2012, de 13 de fevereiro), “nos recursos, o valor é o da sucumbência, quando esta for determinável, devendo o recorrente indicar o respetivo valor no requerimento de interposição do recurso; nos restantes casos, prevalece o valor da ação”.

O recorrente pretende que o seu crédito de € 500.167,02 seja graduado com privilégio decorrente do direito de retenção. Esta graduação, se for procedente, afetará a ordem de graduação dos restantes créditos reclamados. O valor em causa não é pois unicamente o do seu crédito, mas sim o da totalidade dos créditos reclamados:  € 1.121.641,00.  E assim, não sendo por ora determinável o valor da sucumbência, prevalece o valor da ação, conforme estabelecido na parte final daquele artigo 12.2.

Manifestamente, a recorrente não tem razão quanto a esta questão.

Ao citar o art. 297.1 do CPC, esquece o nº 2 deste artigo: “cumulando-se na ação vários pedidos” (a totalidade dos créditos reclamados nos autos), “o valor é a quantia correspondentes à soma dos valores de todos eles”. Não é só o seu pedido (o valor do seu crédito) que aqui é tido em conta, mas sim o total dos créditos reclamados. É este o critério usado para determinar o valor da causa em todas as ações, como resulta deste art. 297.2 do CPC.  Mas esclareça-se que, embora o valor da causa seja o da soma de todos os pedidos, se a parte decair no pedido que apresenta, apenas será condenada em custas correspondentes ao montante em que decaiu (ao seu pedido) – art. 527.2 do CPC.

Assim, não há que retificar o valor da causa – art. 12.2 do Regulamento das Custas Processuais.


Recurso da matéria de facto
Quanto à matéria de facto apurada pela 1ª Instância, a recorrente objecta o seguinte:

V. A decisão recorrida não só cometeu um erro de julgamento ao não considerar como provado que tivesse ocorrido a tradição e a detenção do imóvel em causa nos autos, por parte da Recorrente como também violou o disposto nos arts. 754.o e, em especial, 755°, n°1, al. f) do Código Civil ao interpretar o mesmo de forma a apenas reconhecer o direito de retenção aos consumidores finais.
VI. No caso  concreto, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos previstos na lei, conforme sucede no caso sub iudice, deverá ser reconhecido à Recorrente o direito de retenção por si invocado
VII. Em concreto, a sentença a quo, decidiu erradamente no que tange a não ter dado como provado que a Recorrente estava na posse do imóvel, desde pelo menos, 2010, designadamente, não dando como provado que “passou a ocupar o imóvel, nele instalando os seus pertences, designadamente secretárias, computadores e documentação geral necessária à prossecução da respectiva actividade. De igual modo, não provou que passou nele a desenvolver a actividade de comércio de alimentos compostos para animais.”
VIII.    Refere, a este respeito, a douta sentença recorrida que “quanto a este aspecto, apenas se provou que passou a circular livremente no imóvel, colocando no seu interior algumas paletes de rações para animais, onde os seus clientes se dirigiam esporadicamente para levantar rações. Na verdade, do depoimento das testemunhas não resultou que a RO tenha instalado no local os seus escritórios e que nele passasse a desenvolver a actividade de comércio de alimentos compostos para animais
IX. Na óptica da Recorrente, a resposta aos quesitos em causa deveria ter sido diferente da decisão proferida, em particular face ao teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas JM (dia …/02/2014, ficheiro informática CD: …) e JB (dia …/02/2014, ficheiro informática CD:…).
X. A testemunha JM, em resposta à pergunta sobre se sabia desde que data é que a R- rente, a empresa RO, estava a ocupar as instalações em causa nos autos, esclareceu que entre Outubro e Novembro de 2010 a ora Recorrente passou a usar as instalações para o desenvolvimento da respetiva actividade, designadamente para armazém e posto de venda de rações - Cfr depoimento prestado aos 01:45s.
XI. Explicou ainda que o seu conhecimento sobre esse facto advinha da circunstância de ter transportado para lá não apenas os bens que constituem o objecto da actividade da Recorrente (rações para animais), mas também secretárias e outro material – Cfr depoimento aos 02:15s
XII. Sendo que para o efeito estava na posse de um comando que permitia acionar o mecanismo de abertura do portão da entrada das instalações – Cfr depoimento prestado aos 21:08s
XIII. E e sede das instâncias da mandatária da P, essa mesma testemunha esclareceu que pese embora a Recorrente se dedique ao fabrico e venda de rações, neste imóvel apenas procede à venda – Cfr depoimento prestado aos 05:00s
XIV. Em particular (agora já a instâncias da Mma Juiz), esclareceu que as instalações serviam como armazém para abastecer alguns clientes, que, residindo na zona do ..., apenas adquiriam pequenas quantidades de ração, pelo que não se justificava realizar entregas com viaturas da Recorrente. – Cfr. depoimento prestado aos 23:13s
XV. Mais aclarou a testemunha JM, novamente em resposta à pergunta da mandatária da Par- valorem sobre quantas pessoas é que, normalmente, estão no local, que isso depende do serviço a realizar, mas que habitualmente é ele quem está no armazém, excepto quando tem de sair para realizar entregas ou outros serviços –Cfr. depoimento prestado aos 05:06s
XVI. Acrescentou ainda que pese embora a Recorrente utilizasse todo o armazém, tinha a sua actividade concentrada numa determinada zona do armazém, dado que não precisava de mais área – Cfr. depoimento prestado aos 06:59
XVII. Por último, agora a instâncias do mandatário da Massa da Insolvência, informou que nunca exis- tiam no local armazenadas grandes quantidades de produto, aproximadamente 150 sacas de ração, que correspondem a 6 paletes, dado que o prazo de validade das rações é relativamente curto: 60 dias – Cfr depoimento prestado aos 29:08s
XVIII. É ainda possível concluir do depoimento desta testemunha que as instalações eram usadas pela Recorrente como entreposto, servindo não apenas como ponto de venda de rações directamente a clientes, mas também como armazém onde as viaturas da Recorrente iam abastecer-se para entregar a clientes – Cfr depoimento prestado aos 03:35s
XIX. A testemunha JB (dia 21/03/2014, ficheiro informática CD:…), cliente da Recorrente há mais de 15 anos, também corroborou os factos relatados pela testemunha JM.
XX. Em resposta às perguntas que lhe foram sendo realizadas, esclareceu que é cliente da Recorrente e que regularmente vai buscar ração às instalações em causa nos autos, designadamente, que, quando precisa de pequenas quantidades para os seus vitelos, na ordem dos 10-15 sacos, desloca-se pessoalmente ao armazém em causa nos autos para se abastecer - Cfr depoimento prestado aos 00:45s, aos 02:19s e aos 9:44s
XXI. Elucidou ainda que, nessas alturas, liga para a Recorrente a perguntar se têm aquele tipo de ração, depois vai ao armazém sito no ..., encontrando-se lá um funcionário que lhe abre o portão e carrega a quantidade de ração pretendida – Cfr depoimento prestado aos 02:37s
XXII.  Sendo que desde 2010 ( “hà mais ou menos três anos”) que vai carregar ração ao imóvel em causa nos autos – Cfr depoimento prestado aos 02:56s
XXIII. E que, tal como havia referido a testemunha JM, confirmou que costumava encontrar-se no local, pelo menos, um empregado da Recorrente – Cfr depoimento prestado aos 06:39s
XXIV. Mais assegurou que por várias vezes subiu ao 1º andar, encontrando-se no local secretárias e computadores pertencentes à Recorrente – Cfr depoimento prestado aos 07:24s
XXV. Este ponto, aliás, foi confirmado pelo depoimento da testemunha PS (dia 27/02/2014, ficheiro informática CD: …) que, conforme é referido na sentença recorrida, “numa das vezes viu no local uma carrinha da RO e que aquando do inventário o representante legal da M lhe disse para não inventariar os sacos de rações existentes nas instalações, bem como o material de escritório existente numa sala do primeiro andar e uma carrinha que lá se encontrava, porquanto não lhe pertenciam, mas sim à RO”
XXVI. Ambas as testemunhas foram peremptórias em afirmar que nunca tiveram quaisquer dúvidas em considerar as instalações como pertencentes à Recorrente, que a mesma usa, de forma habitual, intei- ramente livre e sem qualquer forma de restrição ou condicionante o imóvel para o normal exercício da sua actividade e ainda que utiliza o armazém em questão, desde finais de 2010, de forma ininterrupta, até à presente data
XXVII. Ora, no contexto destes dois depoimentos – e salvo o devido respeito pela opinião oposta -, afi- gura-se-nos que, conforme supra referido, deveria ter sido dado como provado que, pelo menos, desde finais de 2010 a RO, Lda. passou a ocupar o imóvel em causa nos autos, nele tendo instalado os seus pertences, designadamente secretárias, computadores e documentação geral necessária à prossecução da respectiva actividade, passando a desenvolver a actividade de comércio de alimentos compostos para animais e comportando-se como verdadeira dona das instalações, com o conhecimento de todos os demais sujeitos e até à presente data.
XXVIII. De resto, constitui sinal evidente da posse pública, continuada e de boa-fé que a Recorrente pas- sou a desenvolver em relação ao imóvel, o facto de ter afixado à entrada (no portão exterior de entrada, para ser mais preciso) uma placa contendo o logotipo identificativo da empresa.
XXIX. Assim como é a circunstância de qualquer uma das duas testemunhas, ter referido que a utilização do armazém por parte da Recorrente, era do conhecimento de várias pessoas..
XXX. As demais testemunhas que depuseram sobre estes factos, em especial os dois funcionários da empresa leiloeira, apenas referiram que, por meia dúzia de vezes, se deslocaram ao local nas últimas semanas, não tendo visto no local qualquer funcionário da Recorrente, apenas as sacas de rações e algum equipamento de escritório.
XXXI. Contudo estes esclarecimentos, manifestamente, não nos parecem suficientes para afastar ou descredibilizar o depoimento das duas únicas testemunhas que, tendo prestado declarações em sede de julgamento, têm, com regularidade, frequentado o local ao longo dos últimos 3 anos, não só porque a testemunha JM referiu que nem sempre o mesmos estava no local, dado que por vezes era necessário realizar transportes para outros clientes, mas também porque não ficou demonstrado em que dias ou horários realizaram essas deslocações ao local, designadamente se o fizeram em dias de semana, durante os horários de trabalho da Recorrente.
XXXII. Em resultado dos depoimentos supra identificados, parece-nos que deveria ter sido dado como provado que a Recorrente tem vindo a comportar-se como verdadeira proprietária das instalações, com conhecimento de todos os demais sujeitos, sendo-lhe reconhecido estar na posse quer do corpus possessório, que do animus possidendi !


Análise jurídica

Considerações do Tribunal recorrido

O Tribunal a quo fundamentou-se, em resumo, nas seguintes considerações jurídicas:


Ao contrato em causa nos autos não foi atribuída eficácia real, sendo pois um contrato de eficácia meramente obrigacional.
Importa assim, à luz do estatuído no artigo 755 nº 1 alínea f) do Código Civil, indagar acerca do estatuto legal do promitente-comprador que obteve a traditio.
A este propósito cumpre referir que a entrega antecipada do imóvel na vigência do contrato-promessa, não é um efeito do contrato, mas resulta de uma convenção de natureza obrigacional entre o promitente-vendedor – [dono da coisa] e o promitente-comprador. Assim, e em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário – artigo 1253 do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – artigo 1251 do Código Civil.
Cumpre também referir que a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa – não sendo necessário, para esse efeito, uma posse. Por outras palavras: a posse não constitui requisito daquela garantia real.

No caso dos autos, apurou-se que a RO passou a circular livremente no imóvel, nele colocando alguns sacos de rações, que entregava, esporadicamente a clientes que lá se dirigiam. Porém, não se apurou que a RO tenha instalado no local os seus pertences necessários à prossecução da sua actividade. De facto, entendemos que para tal não basta a colocação de uns sacos de ração, uma mesa de apoio e a circunstância de um funcionário, com funções de motorista, se deslocar ao local de vez em quando. Para além disso, não se apurou que a RO tenha passado a ocupar com exclusividade o imóvel em causa nos autos, nem que este tenha sido abandonado pela M. É que demonstrado ficou que a RO e a M partilhavam o imóvel, tendo resultado com clareza do depoimento prestado pelo representante legal da M que ficou acordado entre a RO e a M que esta última continuaria nas instalações até à outorga do contrato definitivo, tendo ainda referido que em Dezembro de 2013 a M ainda laborava nas instalações. E assim sendo, estamos em crer não existir uma verdadeira tradição e detenção da coisa, mas antes uma utilização partilhada da mesma.
Para além disso e não tendo ficado provado que a RO desde 20 de Outubro de 2010 se comporta como verdadeira dona das instalações, com o conhecimento de todos os demais sujeitos e até à presente data, cumpre concluir que a RO não adquiriu nem o corpus possessório, nem o animus possidendi.
Ora, o direito de retenção é um direito de garantia que “consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” – “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, pág.722.
E sendo pressupostos do direito de retenção previstos no artigo 755, n° 1, al. f) do Código Civil, a tradição e a detenção da coisa, verifica-se no caso concreto, que não estão preenchidos todos os pressupostos do direito de retenção.
Mas mesmo que assim não se entendesse, sempre teríamos que considerar o seguinte:  (…)
(…) o reconhecimento do direito de retenção surge, como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado como parte débil do contrato, na medida em que, não dispondo de qualquer meio eficaz para fazer cumprir a promessa, a sua posição no âmbito do mecanismo contratual se vê muito fragilizada.
Na verdade, o legislador optou por consagrar a atribuição deste direito ao promitente-comprador, em prejuízo dos interesses dos credores hipotecários – mas sempre, sublinhe-se, tendo como alvo subjectivo um credor específico – o consumidor.
(…)
No caso em apreço, a promitente-compradora, sendo uma sociedade por quotas, não é um consumidor, tal como este é definido no art. 2º, nº 1, da Lei no 24/96 de 31 de Julho, sendo que a opção legislativa foi a de conferir, como já referido, primazia à tutela dos interesses dos consumidores na protecção da confiança na consolidação de negócios jurídicos, no confronto com os direitos das instituições de crédito e inerente confiança do registo predial.
Face ao exposto e com os fundamentos supra exposto, entendemos não ter a reclamante RO, Lda. direito de retenção, devendo o seu crédito ser graduado como crédito comum (...)




Conclusões da recorrente
A  isto, opõe a recorrente as seguintes conclusões:

XXIII. Acontece que, ainda que se entenda que no caso sub iudice efectivamente a Recorrente não se encontrava na posse efectiva do imóvel (situação que não se admite, mas apenas concede por mera cautela de patrocínio) sempre há que referir que, conforme decorre do teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 25/03/2014 (relator Azevedo Ramos), “radicando o direito de retenção num contrato-promessa, não é necessário que o beneficiário da promessa tenha a posse da coisa objecto do contrato prometido. É suficiente que a detenha, por simples tradição”
XXIV. Conforme refere o Aresto em causa, são três os pressupostos que marcam o direito de retenção:
a) a existência de um crédito emergente de promessa de transmissão ou constituição de um direito real, que pode não coincidir com o direito de propriedade;
b) a entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa;
c) o incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor.
XXXV. A tradição de que fala a alínea f), do nº1, do art.755 do CC não se confunde com a posse e pode existir sem esta, conforme também destaca o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/2001 (publicado na R.L.J. nº 133-367 e segs, com Anotação favorável do Prof. Calvão da Silva, na mesma R.L.J. Ano 133 - pág. 370 e Ano 134 - pág. 21).
XXXVI. No caso sub iudice, face aos factos provados é de considerar verificados os necessários pressu- postos da tradição da coisa, dado que o acesso ao interior do armazém, por parte da Recorrentes, fazendo uso do comando do portão e dispondo do seu interior sem qualquer condiconante, não pode ser interpretado como um simples acto de passagem ou de visita, mas antes como a expressão possível de domínio material sobre o espaço de implantação do armazém.
XXXVII.         O que está em causa é a detenção da coisa, nas circunstâncias possíveis e não a sua posse, bem como a garantia do pagamento de um crédito, e não o uso da coisa, segundo a funcionalidade a que esta se destina.
XXXVIII. Aplicando ao caso concreto a disciplina que vingou no Acórdão do STJ de 25/03/2014, tradição do armazém, ainda que meramente simbólica, efectuada a favor da Recorrente, é válida e eficaz, inte- grando o direito de retenção destes, previsto no art. 755, no1, al. f), do C.C.
XXXIX.          Mas a ora Recorrida também não pode acompanhar a aplicação do direito, realizada pelo Tribunal a quo, ao caso concreto, em particular, com a interpretação que foi conferida por parte do tribunal a quo ao disposto nos artigos 754.o e 755o, no 1, f) do Código Civil, designadamente, considerando que o direito de retenção deverá ser atribuído apenas quando o promitente-comprador é um consumidor.
XL. Em particular, porque entende que a mesmo integrou uma interpretação e aplicação incorreta do disposto em sede do artigo 755, n°1, al. f) do Código Civil do Código Civil
XLI. O direito de retenção mostra-se consagrado na lei como um verdadeiro direito real de garantia, conferindo ao credor que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela com preferência sobre os demais credores.
XLII.   É, portanto, um direito de garantia atribuído ao credor que lhe permite deter certa coisa
XLIII. Contra quem deve a sua restituição, desde que entre os dois créditos haja uma relação de conexão relacionada com despesas feitas por causa dessa coisa ou de danos por ela causados.
XLIV. Ao contrário do direito de retenção comum, consagrado no art. 754 do CC, o direito de retenção estatuído na alínea f), do nº 1, do art. 755 do CC, é profunda e qualitativamente diferente.
XLV. Conforme decorre do teor do Acórdão proferido em 15/01/2012, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o contrato promessa é o contrato pelo qual as partes, ou uma delas, se obriga a celebrar novo contrato – o contrato definitivo (art. 410 nº 1 do Código Civil).
XLVI. Havendo sinal e o promitente fiel for o adquirente, e este não opte pela execução específica ou esta não seja já possível, assiste-lhe o direito de exigir o dobro do que prestou, ou caso, tenha havido tradição da coisa objecto do contrato definitivo prometido, o valor desta, objectivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (art. 442 nºs 1 e 2, 2ª parte, e 3 do Código Civil).
XLVII. A lei disponibiliza para estes créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela particularmente enérgica: o direito de retenção (art. 755 nº 1 f) do Código Civil).
XLVIII. Como pressupostos do direito de retenção a favor do beneficiário da promessa, apontamos os seguintes (Cfr. Ac. do STJ de 24.06.2001, Revista nº 1776/04-2.a Secção, citado por COSTA, Salvador, O concurso de credores – Sobre as várias Espécies de Concursos de Credores e de Garantias Creditícias, 4ª ed., Coimbra, 2009, p. 219.):
- A tradição da coisa objecto do contrato prometido;
- O não cumprimento definitivo imputável ao promitente da alienação;
- A existência do crédito do beneficiário resultante do não cumprimento definitivo.
XLIX. No que respeita ao primeiro requisito, decorre do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/01/2013 que particularmente espinhosa é a questão de saber se o promitente comprador, beneficiário da tradição da coisa objecto mediato do contrato definitivo prometido, pode ou não considerar-se possuidor, se tem a posse daquela coisa.
L. O contrato promessa não é causal da transmissão de qualquer direito real, como não o é, em regra, da entrega da coisa objecto mediato do contrato definitivo, pelo que a entrega dessa coisa tem de ser imputada a um segundo acordo (art. 405 do Código Civil).
LI. Não havendo qualquer tipicidade de contratos constitutivos ou translativos de direito reais, não há, igualmente, qualquer tipicidade de contratos com eficácia possessória, nada obstando, portanto, à inclusão, logo no contrato promessa, de uma cláusula autorizando a tradição da coisa, ou à conclusão, paralelamente ao contrato promessa, de um segundo acordo, que tenha por objecto específico a traditio da coisa.
LII. Nestas condições, a questão de saber se o promitente adquirente que viu traditada para si a coisa objecto do contrato definitivo prometido é ou não possuidor dela não é susceptível de uma resposta de valor universal – mas de uma resposta diferenciada: tudo dependerá da vontade das partes, que poderá obter-se, por exemplo, através da interpretação do acordo à luz do qual a tradição operou, e da natureza dos concretos poderes de facto exercidos pelo beneficiário dela, sobre aquela coisa corpórea.
LIII. Concluindo-se, v.g., que a traditio visou antecipar a realização das prestações objecto do contrato definitivo, o que sucederá, por exemplo, quando o preço está pago na totalidade ou em grande parte, e o promitente adquirente exerce sobre a coisa poderes de facto correspondentes ao direito real de propriedade, haverá posse nos termos deste último direito real.
LIV. Ainda de acordo com o Aresto em análise, a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa – não sendo necessário, para esse efeito, uma posse. Por outras palavras: a posse não constitui requisito daquela garantia real.
LV. Deste modo, os pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente são apenas estes: a traditio da coisa ou coisas, objecto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito.
LVI.    E para a constituição da retenção não se exige sequer a declaração de incumprimento: é suficiente a tradição da coisa prometida vender, conjugada com a titularidade, pelo promitente adquirente de um direito de crédito relativamente à contraparte.
LVII. Mesmo para quem entenda que o facto da mera entrega das chaves do prédio ou da fracção ao promitente-comprador, não é suficiente para que se dê por verificada a tradição para efeitos de invocação do direito de retenção, contudo, quando combinado com outros de que decorra a posterior apreensão material da coisa, cumpre esse desiderato, e no caso concreto dos autos esses outros elementos existem de facto: o desenvolvimento no local de uma actividade, a instalação de placas identificativas da empresa, etc
LVIII. Acontece porém que a decisão ora recorrida entendeu que “no caso em apreço, a promitente- compradora, sendo uma sociedade por quotas, não é um consumidor, tal como este é definido no art. 2º, nº 1, da Lei no 24/96 de 31 de Julho, sendo que a opção legislativa foi a de conferir, como já referido, primazia à tutela dos interesses dos consumidores na protecção da confiança na consolidação de negócios jurídicos, no confronto com os direitos das instituições de crédito e inerente confiança do registo predial
LIX. A alteração à redacção do art. 755 do Código Civil (por via da inclusão do direito de retenção, criado pelo anterior DL nº 236/80, como nova alínea f), no elenco constante do art. 755, nº 1 do CC) foi operado pela da publicação do DL no 379/86, em Novembro de 1986.
LX. Como escreve Pedro Sameiro (SAMEIRO, Pedro, “O direito de retenção e a situação do credor hipotecário”, in Revista da Banca, Lisboa, 1993, p. 90.), um “credor particular está até desprovido de mais meios de defesa que o promitente comprador, porque este pode conhecer da hipoteca pelo registo predial, enquanto que o primeiro não tem fonte a que se dirija para poder conhecer da existência de contratos de promessa”.
LXI. E continua afirmando, “que se as instituições de crédito se apercebem naturalmente das dificul- dades de solvência dos seus devedores, [a verdade é que] não têm quaisquer meios para controlar a celebração de contratos de promessa relativos às construções financiadas, nem tão pouco para averiguar da existência de tradição das coisas prometidas vender, tanto mais que a aquisição da posse é susceptível de realizar-se com um mínimo de manifestações objectivamente perceptíveis”.
LXII. Conforme justamente assinala Maria Coelho (in “O Crédito Hipotecário face ao Direito de Reten- ção”, www.verbojuridico.com) “dificilmente conseguiremos alcançar o móbil do legislador, ao estabe- lecer uma protecção mais ampla ao promitente da promessa de transmissão ou constituição, em relação ao titular do bem ou do direito.
LXIII. Já para Lebre de Freitas (FREITAS, Lebre de,“Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, II, 2006, p. 588.), “ (...) consegue-se compreender, embora já com alguma dificuldade, que, em zona próxima da exceptio non adimpleti contractus, mas que com ela não se confunde, seja conferido o direito (real) de retenção em determinados casos em que, no esquema da execução dum contrato, haja inadimplemento do contraente que tem direito à entrega da coisa; é o que acontece nos casos de mandato, depósito e comodato e que a lei igualmente estende ao de gestão de negócios (art. 755.o, nº1, alíneas c), d) e e) do CC)”.
LXIV. Ou seja, o legislador de 1980 e 1986, ao conferir um direito de retenção especial atribuído ao promitente adquirente, com o intuito de reequilibrar a situação que o desfavorecia, veio criar um novo desequilíbrio, desta feita à custa de um terceiro – o credor hipotecário –, que adveio do facto do art. 759, nº 2 do CC, não fazer qualquer distinção quanto à modalidade de direito de retenção que deve prevalecer em absoluto sobre a hipoteca.
LXV.   Em crítica ao DL nº 379/86, de 11/11, que manteve o direito de retenção, transferindo o do nº 3, do art. 442, para a alínea f), do nº 1, do art. 755, ambos do CC, e prevendo situações como as acima referidas, Antunes Varela refere o seguinte:“ Se o promitente-vendedor, perto do termo da construção do imóvel, verificar (como tantas vezes sucede) que não tem condições para solver o crédito da financiadora garantida (com hipoteca) e quiser ser útil e agradável aos promitentes-compradores, nada mais fácil do que permitir a ocupação dos apartamentos em vias de acabamento pelos promitentes compradores, para que o crédito destes, resultante do não cumprimento da promessa, prevaleça sobre a garantia anterior da instituição creditícia. Mesmo que a entidade financiadora se aperceba da intenção das partes, nada mais lhe restará do que (passe a expressão) benzer se com a canhota!”
LXVI. Por último, importa referir que a interpretação que o tribunal a quo conferiu ao disposto no art. 755, n°1, al. f) do Código Civil, configura uma inconstitucionalidade material por violação do Principio da Igualdade, consagrado no art. 13 da Constituição da República Portuguesa, dado que obsta que as Pessoas Colectivas possam beneficiarem do disposto nesse preceito, pela simples circunstância de não integrarem o conceito (não prevista nesse artigo) de consumidores finais, ainda que se comportem materialmente como tal.




Conclusões dos recorridos
A Massa Insolvente recorrida reafirma a matéria de facto apurada –  e concluiu que, não existindo uma verdadeira tradição e detenção da coisa mas antes uma utilização partilhada, nem se comportando a recorrente como verdadeira dona das instalações, não tem direito de retenção; nem poderia gozar do direito de retenção porque não é consumidora que dele possa beneficiar.
No mesmo sentido se pronunciou a recorrida P, S.A.
Também o MºPº concluiu que o Tribunal fez correta apreciação da prova dos autos.  E igualmente correta aplicação do direito ao considerar que que a recorrente não gozava do direito de retenção, por não estarem verificados todos os pressupostos desse direito – não tendo ocorrido uma verdadeira tradição da coisa mas antes uma utilização partilhada da mesma, não se comportando a recorrente como verdadeira dona das instalações. E, finalmente, a sociedade por quotas recorrente não é um consumidor, pelo que não poderia beneficiar do direito de retenção.


Não há razão para alterar a matéria de facto
A recorrente pede que se dê como provado que, “pelo menos, desde finais de 2010 a RO - , Lda. passou a ocupar o imóvel em causa nos autos, nele tendo instalado os seus pertences, designadamente secretárias, computadores e documentação geral necessária à prossecução da respectiva actividade, passando a desenvolver a actividade de comércio de alimentos compostos para animais e comportando-se como verdadeira dona das instalações, com o conhecimento de todos os demais sujeitos e até à presente data” – conclusão XXVII.
Sem razão.
A 1ª instância examinou detalhadamente os depoimentos prestados pelas testemunhas que a recorrente refere (JM, JB, PS), e conjugou-os com os depoimentos de outras testemunhas (JS, WM, JSS, CF). E a conclusão a que chegou, como chegou agora também este Tribunal da Relação em face da audição da prova gravada, foi apenas que “Desde finais de 2010 que RO, Lda. passou a circular, livremente e sem qualquer restrição no imóvel referido em Ca), a par da M, Lda. que lá mantinha as suas instalações e seus pertences. E que “aí colocou algumas paletes de rações para animais, onde os seus clientes se dirigiam esporadicamente para as levantar” – factos 5 e 6.
De igual modo, aqueles depoimentos só confirmam a decisão do Tribunal que deu como não provados os factos referidos nas alíneas A) a D).
Mas circular livremente e sem restrições nas instalações é uma coisa, e outra coisa é comportar-  -se como verdadeira dona delas, já que apenas as partilhava com a M Lda (que lá mantinha as suas instalações e os seus pertences), aí colocando algumas paletes de rações para animais, onde os seus clientes se dirigiam esporadicamente para as levantar – factos 5 e 6. Tanto mais que, como notou o Tribunal recorrido, à data da declaração de insolvência, a M ainda laborava nas instalações, tendo lá peças de carne a que foi necessário dar destino. Por exemplo, a testemunha JS (colaborador do Administrador da Insolvência) foi ao local cerca de 7 vezes desde abril de 2013, e sempre lá encontrou o representante legal da M, que foi quem lhe abriu a porta; no mesmo sentido foram os depoimentos de PS, CF e RC.
Quanto ao logotipo, é procedimento habitual dos comerciantes para dar credibilidade ao seu negócio, mas não significa que a RO fosse detentor (exclusivo) das instalações.
Assim, não há razão para alterar a matéria de facto, como a recorrente pretende.


E assim, não se apura que houvesse detenção da coisa em resultado de qualquer tradição
Para haver tradição, e consequente detenção do imóvel, necessário era que a M Lda. tivesse deixado de utilizar as instalações e que a RO Lda. as tivesse recebido para seu uso exclusivo. Mas o que houve foi uma partilha das instalações, partilha decorrente de uma relação de confiança entre a insolvente e a recorrente, mas sem exclusividade, verificando-se assim indícios de que ao fim e ao cabo a detenção das instalações nunca deixou de pertencer à insolvente, embora esta tivesse autorizado a recorrente a utilizá-las parcialmente.
E é claro que, sem essa tradição e detenção, não há aqui direito de retenção – art. 755.1.f do Cód.Civ.


Não há qualquer inconstitucionalidade a apreciar
Fica assim prejudicada a apreciação da questão de saber se o direito de retenção tutela em exclusivo a posição dos consumidores, sendo certo que a recorrente não é consumidora, pois é uma sociedade por quotas que se dedica ao comércio de rações para animais. E, ficando prejudicada essa questão, não se põe  a questão de inconstitucionalidade invocada na conclusão LXVI do recurso.


Decisão

Assim, e pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, na proporção da sucumbência, confirmando-se o valor da causa já fixado em primeira instância.

Lisboa, 2014.07.14
João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Brighton