Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
297/12.3TYLSB-B.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.A redação do Artigo 233º, nº2, alínea b), do CIRE, resultante da alteração legislativa efetuada pelo Decreto-lei nº 200/2004, de 18.8., não é clara quanto à sorte do apenso de verificação e graduação de créditos, no qual ainda não tenha sido proferida sentença, quando ocorre o encerramento do processo de insolvência após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência.
II.Na interpretação da lei releva o elemento sistemático, que se expressa (i) na vertente da relação de contexto horizontal, devendo atender-se a outros preceitos do CIRE (contexto intratextual) e (ii) na vertente do princípio da consistência, segundo o qual “deve ser dada preferência a uma interpretação que seja compatível com o maior número possível de regras do mesmo sistema jurídico».
III.Do elemento sistemático da interpretação dos Artigos 233º, nº2, alínea b), 209º, nº3 e 218º, nº3, todos do CIRE, decorre que o trânsito em julgado da sentença que homologou o plano de insolvência não determina a extinção do apenso de reclamação de créditos, sobretudo se neste ocorreu – como é o caso – impugnação de créditos.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

RELATÓRIO:

Nesta reclamação de reclamação de créditos, que corre por apenso aos autos principais de insolvência de ... – Sociedade de Administração de Propriedades, Lda., o Sr. Administrador da Insolvência apresentou, em 17.8.2012, a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos (Artigo 129º do CIRE; fls. 2-14).

A insolvente impugnou tal relação nos termos do Artigo 130º, nº1, do CIRE (fls. 17-28), tendo a mesma também sido impugnada pelos credores C… B… Canalização e Climatização, Unipessoal, Lda. (fls. 70-74).

O Fundo de Garantia Salarial veio, ao abrigo do artigo 322º da Lei nº 35/2004, de 29.7., reclamar os seus créditos para efeitos de sub-rogação (fls. 108-112).

Em 28.10.2015, nos autos principais, foi proferida a sentença de fls. 617-618, cujo dispositivo é o seguinte: «Homologo por sentença, nos termos dos arts. 214º e 215º, a deliberação da Assembleia de Credores que aprovou, nos seus precisos termos o plano de insolvência contendo providências com incidência no passivo da devedora ... – Sociedade de Administração de Propriedades, Lda. (…)».

Neste apenso de reclamação de créditos, em 26.4.2016, foi proferida a sentença de fls. 144 com o seguinte teor: «Face à decisão proferida a fls. 617/618 dos autos principais, em que foi declarado encerrado, por trânsito em julgado da decisão que homologou o plano de insolvência, nos termos do disposto nos artigos 230º, nº1, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o processo em que foi declarada insolvente ... – Sociedade de Administração de Propriedades, SA e tendo em conta o disposto no artigo 233º, nº2, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (neste sentido ver Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, 2009, págs. 771 a 773, anotações 10 e 11), declaro extinta a instância do presente processo

Não se conformando com esta sentença, dela apelou a requerente/insolvente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

«I. Não se pode manter o despacho de encerramento do presente apenso de reclamação de créditos.

II.O encerramento do presente apenso não pode ocorrer na medida em que a lista de créditos e de credores existente é provisória, importando acautelar os créditos que foram objeto de impugnação, sendo que existem impugnações de créditos por decidir.

III.Existindo esta provisoriedade relativamente à lista de créditos e de credores, impõe-se que seja proferida sentença de verificação e graduação de créditos, até para que com tal sentença possa a Insolvente, de uma forma mais segura e assertiva, proceder aos pagamentos em cumprimento do plano de insolvência já homologado nos autos.

IV.Em reforço do que vem sendo exposto, reitera-se a necessidade de existência de sentença de verificação e graduação de créditos de forma a ser estabilizado o passivo da Recorrente, facto que irá permitir o integral cumprimento do plano de insolvência.

V.Impõe-se, igualmente, ao Tribunal “a quo” a necessidade de decidir as impugnações de créditos apresentadas, pois sem tal decisão não fica o presente processo, e mormente a Recorrente, devidamente elucidados sobre o que realmente deve ser liquidado sobre cada crédito.

VI.O objetivo último do apenso da reclamação de créditos é a estabilização do passivo da Insolvente, devendo a sentença de verificação e graduação de créditos estabelecer a ordem pela qual os pagamentos serão efetuados por parte da Insolvente, em cumprimento do plano homologado.

VII.Na sentença de verificação e graduação de créditos o Tribunal “a quo” vai hierarquizar os créditos em conformidade com o legalmente determinado, estabelecendo e clarificando os créditos que se afiguram ser privilegiados, garantidos, comuns ou subordinados, sendo que é apenas o Tribunal “a quo” o órgão com competência para efetuar tal graduação.

VIII.Nada no CIRE desaconselha o prosseguimento do apenso da reclamação de créditos até que seja proferida, a final, a competente sentença de verificação e graduação de créditos, prevista no artigo 140.º, do CIRE.

IX.Na esteira do exposto, já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 611/07.3TYVNG-A.P1, que decidiu determinar que o processo em apreço prosseguisse os seus termos, nomeadamente com prolação de sentença de verificação de créditos e a sua respetiva qualificação, não obstante o seu encerramento, em circunstância semelhantes às do presente processo.

X.Em sentido semelhante igualmente já se pronunciou o Tribunal da relação de Coimbra, no processo n.º 1145/11.7TBVNO, proferido em 25 de Setembro de 2012, tendo determinado o seguinte: ”Incidindo as medidas necessárias à recuperação da empresa, no passivo e no capital próprio da mesma, importa para a sua execução apurar os créditos reconhecidos, não bastando aqueles que o foram nos termos do art. 129.º. tendo os credores reclamado os seus créditos, há que proceder à sua verificação e graduação, e depois ao pagamento, sendo nesta fase final relevante a classificação dos créditos (“créditos sobre a massa insolvente” e “créditos sobre a insolvência”) e dos credores, que serão pagos quando estiverem verificados por sentença transitada (art. 173.º)

Por conseguinte há que aguardar a prolação da sentença de verificação, atento o conteúdo do plano já aprovado, cuja decisão homologatória não pode, por si só e como se entendeu, determinar o encerramento do processo.”.

XI.Deve a decisão proferida ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, designadamente, o prosseguimento do apenso de reclamação de créditos, devendo, a final, ser proferida a respetiva sentença de verificação e graduação de créditos.

XII.O Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do disposto dos artigos 230.º, n.º 1, b) e 233.º, n.º 2, ambos do CIRE.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida que decidiu determinar o encerramento do presente apenso, devendo ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, designadamente do apenso de reclamação de créditos, devendo, a final, ser proferida a competente sentença de verificação e graduação de créditos.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR.

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, a questão a decidir consiste em determinar se o trânsito em julgado da sentença que homologou o plano de insolvência determina a extinção da instância do apenso de reclamação de créditos.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.


Com relevância para a decisão do recurso, além dos factos já referidos no relatório, estão provados os seguintes factos:

1-A proposta do plano de insolvência mostra-se junta a fls. 153 a 258 do processo principal, dela constando:
«Créditos Comuns:  479.936,29 Euros
Plano de regularização: propõe-se o pagamento de 65% do capital em dívida, o que se estima em 311.958,59 euros, em 96 prestações mensais e sucessivas, com taxas de amortização crescentes, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, com perdão de juros vencidos e vincendos.
(…)
Créditos Privilegiados:  3.230,85 Euros
Plano de Regularização: propõe-se o pagamento da totalidade da dívida, em 2 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no primeiro dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, com perdão de juros vencidos e vincendos.»
 
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Para a dilucidação da questão a decidir, importa convocar as normas do CIRE e a sua evolução.

Nos termos do Artigo 230º, nº1, alínea b) do CIRE, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste. Nesta ressalva cabe, designadamente, a situação em que o plano preveja que a sua execução consista numa forma de liquidação da massa, ou parte dela, que, não se regendo exatamente pelas regras gerais do CIRE, implique o prosseguimento do processo – cf. Ana Prata et al, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, p. 634.

Na redação originária do Artigo 233º, nº2, alínea b), do CIRE (Decreto-lei nº 53/2004, de 18.3.), dispunha-se que:

2-O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina:
(…)

b)A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, exceto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as ações cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias».

Tal redação foi alterada pelo Decreto-lei nº 200/2004, de 18.8., passando a redação do mesmo preceito a ser a seguinte:

«2-O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina:

(…)

b)A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, exceto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as ações cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias.» (a sublinhado está o segmento que foi aditado).

Esta redação tem dado azo a dúvidas interpretativas no que tange, precisamente, à questão de saber se a aprovação do plano de insolvência importa a extinção do apenso de reclamação de créditos por inutilidade superveniente da lide, entendimento que foi o adotado pelo tribunal da primeira instância.

O tribunal de primeira instância louvou-se, expressamente, no ensinamento de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2009, pp. 771 a 773, segundo os quais:

«A primeira leitura indicia que a estatuição legal se desencadeia de igual modo e com idêntico conteúdo, seja qual for a exceção que se verifique.

Contudo, uma ponderação mais cuidada do texto legal evidencia dificuldades com que temos de contar. Desde logo, nota-se que a lei manteve, na forma singular, o substantivo caso, quando, porventura, seria mais razoável que o tivesse passado a usar no plural. Mas, mais significativo do que isso, é o facto de parte relevante da estatuição não ser aplicável no caso de a exceção operante ser a da homologação de um plano de insolvência. Na verdade, nesta hipótese só pode haver recursos da sentença de verificação se, obviamente, ela já foi proferida e essa é a situação a que se reporta a restante previsão normativa e constitui, por isso, a primeira das ressalvas ao regime geral.

Isto dito, o sentido literal da lei aponta então para que, não sendo aplicável na hipótese sub judice, a parte que se refere ao seguimento dos recursos, resta somente a que respeita à continuação das ações de restituição e separação de bens.

Não pode, todavia, deixar de se perguntar se o pensamento legislativo não irá mais além, a ponto de determinar a continuação do apenso de verificação de créditos até decisão final, no caso de o processo de insolvência terminar na decorrência da homologação de um plano, o que se apresenta sobremaneira sugestivo na eventualidade de terem sido deduzidas impugnações à lista de créditos elaborada pelo administrador da insolvência dada uma certa analogia com a hipótese de interposição de recurso da sentença de verificação.

Embora com alguma perplexidade pela forma como a alteração do nº 2 al b), operou, respondemos negativamente à questão colocada, pelo conjunto de razões que seguida e sumariamente expomos.

(…)

Acontece que a exigência de proferimento da sentença de verificação de créditos, mesmo depois da homologação judicial de um plano de insolvência com a consequência da extinção do processo principal, constituiria, se fosse de considerar, uma importante novidade. Natural seria, pois, que o legislador, sendo esse o pensamento legislativo, a expressasse em termos suficientemente esclarecedores, o que, decerto, não podia deixar de se traduzir numa redação formal e substancialmente diferente da do preceito.

E, tendo identificado, no Preâmbulo do Dec. Lei nº 200/2004, as principais alterações por ele introduzidas, normal seria também que evidenciasse a sofrida pelo artº 233º, nº 2 al b), se, realmente, ela significasse o imperativo da prolação da sentença de verificação de créditos. Cremos que o silêncio a este respeito é sintomático do pouco relevo da alteração.

Isto, bem vistas as coisas, apesar de alguma aparência do contrário a que acima se alude, a verdade é que, mesmo quando a lista de credores foi impugnada, não há verdadeira analogia com o recurso da sentença de verificação de créditos que fundamenta, por si só, a não extinção da respetiva instância. É que, precisamente, num caso há sentença e no outro não!

Uma palavra mais para sublinhar que, sendo certo poderem invocar-se razões substantivas para justificar o interesse na prolação da sentença de verificação, como meio de estabilização do passivo do devedor, relevante para efeitos do plano de insolvência, certo é também que outros motivos há que desaconselham semelhante opção, que poderia, em diversas situações, perturbar a execução do plano aprovado e homologado.

Quer dizer, não é, sequer, possível fazer apelo a razões de fundo suficientemente fortes e seguras para suportar uma resposta afirmativa à dúvida colocada.

Neste contexto, cremos que, no caso de o processo judicial ter terminado na decorrência de um plano de insolvência, não estando, como é pressuposto, proferida sentença de verificação de créditos, apenas se salvaguarda a continuação das ações pendentes de restituição e separação de bens já liquidados cujos autores assim o requeiram, no prazo de trinta dias»

Na senda deste ensinamento, existem diversos arestos que defendem que, no caso de encerramento do processo de insolvência por aprovação do plano de insolvência deverá ocorrer a extinção do apenso de verificação de créditos como consequência ope legis[3], não fazendo sentido a prossecução da reclamação de créditos.[4]

Em abono desta posição, afirma-se designadamente que:

«O legislador veio, assim, clarificar a al. b), do n.º 2, do art.º 233.º, no sentido de que os autores de ações de restituição e separação de bens já liquidados só podem pretender prosseguir a ação após o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final, se a causa do encerramento for a aprovação e homologação de plano de insolvência. Porque, se outra for a causa do encerramento, não há utilidade em prosseguir qualquer dessas ações. E, deste modo, define-se por via legislativa, o que, caso a caso, teria que ser dito pelos tribunais, ou seja, que não obstante a vontade do autor em prosseguir a ação de restituição ou separação quando o encerramento ocorreu por causa distinta de plano de insolvência, a lide não prosseguiria por manifesta inutilidade.

O mesmo não se passa no encerramento do plano de insolvência, por ser aí possível o pagamento dos créditos, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos credores e devedor – cf. art.º 192.º, n.º 1, do CIRE – daí que se mantenha a utilidade na continuação (caso os respetivos autores o queiram) das ações de restituição e separação de bens.

Continuando, cumpre agora referir que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transação e, portanto, um verdadeiro contrato, cuja única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de uma simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afetados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias no caso dos credores privilegiados – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados – cf. Ac. da Relação de Coimbra, de 06.11.2012, processo n.º 444/06.4TBCNT-Q.C1.

Acresce que os credores da insolvência são tratados de forma igual, mas segundo a qualidade dos seus créditos – acórdão citado -, e a tutela dos interesses comuns dos credores está confiada, fundamentalmente, à assembleia de credores, órgão deliberativo ao qual cabe formar e manifestar a vontade dos credores (Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, págs. 92 e 93).

A aqui recorrente impugnou o seu crédito. Determina o art.º 209.º, n.º 3, do CIRE, que o plano de insolvência aprovado antes do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos acautela os efeitos da eventual procedência das impugnações da lista de credores reconhecidos ou dos recursos interpostos dessa sentença, de forma a assegurar que, nessa hipótese, seja concedido aos créditos controvertidos o tratamento devido.

Tratamento devido que tanto é fiscalizado pelo juiz, que pode oficiosamente recusar a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores, no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza (cf. art.º 215.º, do CIRE), como pelos interessados (art.º 216.º, do CIRE).

Não se vislumbra, assim, que faça sentido a possibilidade de uma sentença de verificação e graduação de créditos após a aprovação e homologação do plano de insolvência. Primeiro, porque os credores, através da sua maioria qualificada, já transigiram sobre o objeto da insolvência, inclusive com possibilidade de o fazerem sobre o pagamento dos créditos (192.º, n.º 1), pelo que seria de todo destituído de sentido que, posteriormente, viesse o tribunal a verificar e graduar créditos. E, depois, porque os credores que impugnaram o não reconhecimento do seu crédito ou de parte dele, não saem prejudicados. Quer porque, se não houver resposta, a impugnação é logo julgada procedente (131.º, n.º 3), e, sobretudo, porque o plano de insolvência deve acautelar os efeitos da eventual procedência das impugnações, de forma a assegurar que, nessa hipótese, seja concedido aos créditos controvertidos o tratamento devido (art.º 209.º, n.º 3), que, como vimos, é fiscalizado pelo juiz e interessados (215.º e 216.º).

Por conseguinte, os credores que não viram ainda ser reconhecidos os seus créditos, não são prejudicados pela aprovação e homologação do plano de insolvência sem sentença de verificação e graduação de créditos.» (Acórdão da Relação de Guimarães de 19.2.2013, Paulo Barreto, 1808/12).

Todavia, a interpretação do Artigo 233º, nº2, alínea b), do CIRE não é assim tão linear.

Conforme se refere pertinentemente no Acórdão da Relação do Porto de 15.10.2013,Maria João Areias, 1881/12,

«Ora, pretendendo o legislador, com a nova redação, excecionar o encerramento decorrente da aprovação do plano, submetendo-o a um regime distinto do previsto em geral para os demais casos de encerramento do processo após o rateio final, ao entrelinhar tal exceção “encerramento por aprovação do plano de insolvência” no meio da 1ª exceção aí anteriormente consagrada, entre “ter já sido proferida a sentença de verificação de créditos prevista no art. 140º” e “caso em que os recursos prosseguem até final”, tornou tal norma ininteligível e sujeita às mais diversas interpretações.

É certo que, se já tiver sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, não haverá dúvidas de que, quer o encerramento decorra de outras causas, quer decorra da aprovação de um plano de insolvência, a solução manter-se-á mesma: os recursos dessa sentença prosseguirão até final.

As dúvidas suscitam-se, tão só, no caso de encerramento do processo de insolvência antes do rateio final sem que tenha sido proferida sentença de verificação de créditos.»

Cremos que o sentido útil da norma em apreço não pode decorrer, de imediato, da respetiva letra porquanto – como bem é referido neste último aresto – a respetiva letra peca pela pouca clareza. Nesta medida, na interpretação da lei haverá que atender a outros fatores de interpretação, nomeadamente tendo “em conta a unidade do sistema jurídico” (Artigo 9º, nº1, do Código Civil).

O elemento sistemático da interpretação da lei expressa-se em duas vertentes, sendo a primeira a relação de contexto, nos termos da qual «o intérprete só pode interpretar a lei depois de a ter enquadrado no conjunto mais vasto em que ela se integra». A outra vertente consiste no princípio de consistência, o qual «impõe que a lei seja interpretada de molde a assegurar a unidade do sistema jurídico, quer dizer, de molde a garantir uma harmonização contextual da lei interpretada com todas as demais leis do mesmo sistema, pois que as “várias leis de um sistema jurídico desenvolvido devem «fazer sentido» quando consideradas em conjunto”» - Teixeira de Sousa, Introdução do Direito, Almedina, 2013, pp. 362, 365-366. Em decorrência do princípio da consistência, «deve ser dada preferência a uma interpretação que seja compatível com o maior número possível de regras do mesmo sistema jurídico.» - Op. Cit., p. 366. Por sua vez, a relação de contexto pode ser horizontal ou vertical, implicando a primeira que a interpretação da lei considere outras leis da mesma hierarquia (contexto intertextual) ou outros preceitos da mesma lei (contexto intratextual), de molde que «a interpretação da lei deve atender a todas as leis que, em conjunto com a lei ou com a fonte interpretada, contribuem para a solução do mesmo caso – Op. Cit., p. 364.

Ora, o próprio CIRE contém normas que podem lançar luz – em termos de contexto intratextual – sobre a interpretação do Artigo 233º, nº2, alínea b). Assim, nos termos do Artigo 209º, nº3, «O plano de insolvência aprovado antes do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação dos créditos acautela os efeitos da eventual procedência da impugnação da lista de credores reconhecidos ou dos recursos interpostos dessa sentença, de forma a assegurar que, nessa hipótese, seja concedido aos créditos controvertidos o tratamento devido

Da redação desta norma decorre que a mesma pressupõe que o apenso de verificação de créditos tem de prosseguir, mesmo no caso de homologação transitada do plano de insolvência, sobretudo se ocorrer – como ocorre no caso em apreço-  impugnação da lista de credores reconhecidos pelo administrador da insolvência. Doutra forma, não se vislumbra qual o conteúdo útil desta norma.[5]

Em segundo lugar, no Artigo 218.º do CIRE dispõe-se que:

«1–Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou perdão ficam sem efeito:

a)Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor.

b)Quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.

2–A mora do devedor apenas tem os efeitos previstos na al. a) do número anterior se disser respeito a créditos reconhecidos pela sentença de verificação de créditos ou por outra decisão judicial, ainda que não transitadas em julgado.

3–(…)

Decorre desta norma que a produção dos efeitos definidos na al. a) do nº 1, está expressamente limitada em relação aos créditos reconhecidos pela sentença de verificação e graduação ou outra decisão judicial, apesar de não se exigir que ela haja transitado em julgado. Destarte, «(…)  com a aprovação do plano, não só o credor/reclamante poderá manter o interesse em ver reconhecido o seu crédito, sobretudo se o mesmo for litigioso–quer quanto ao respetivo montante quer quanto à sua categoria em que se insere (comum, privilegiado ou garantido), para cabal esclarecimento do modo como irá ser pago em conformidade com os demais termos estabelecidos no plano–, como, mesmo não se tratando de crédito litigioso (por ter sido reconhecido pelo administrador e não ter sido objeto de impugnação), só se o seu crédito for reconhecido por sentença de verificação se poderá valer dos efeitos previstos na al. a) do nº1 do artigo 218.º para o caso de mora do devedor. / Isto é, não só se manterá para o credor reclamante a utilidade geral de reconhecimento judicial do seu crédito (utilidade que poderia, eventualmente, lograr com a propositura de uma nova ação declarativa comum), como a sentença de verificação lhe permitirá o reconhecimento ou exercício de um direito só por essa via alcançável.» [6]

Em terceiro lugar, num contexto como o deste apenso em que os créditos foram objeto de impugnação, é essencial que seja proferida sentença de graduação de créditos porquanto – só dessa forma – se estabiliza o passivo da insolvente, sendo que o plano de insolvência preconiza o pagamento de 65% do capital em dívida dos créditos comuns e a totalidade dos créditos privilegiados.

Em síntese, do elemento sistemático da interpretação dos Artigos 233º, nº2, alínea b), 209º, nº3 e 218º, nº3, todos do CIRE, decorre que o trânsito em julgado da sentença que homologou o plano de insolvência não determina a extinção do apenso de reclamação de créditos, sobretudo se neste ocorreu – como é o caso – impugnação de créditos.

O sentido útil da alteração feita no Artigo 233º, nº2, alínea b) do CRIE, pelo Decreto-lei nº 204/2004, de 18.3., é o de, com o mesmo, se pretender a continuação do processo de verificação até à decisão final, sendo esta interpretação a que melhor se compagina com os efeitos que à sentença de verificação são atribuídos no caso de aprovação de um plano de insolvência (cf. Artigos 209º, nº2 e 218º, nº3, do CIRE).

Conforme se refere no AUJ nº 1/2014, de 25.2.2104, atinente à declaração da extinção da instância por inutilidade superveniente em decorrência da declaração de insolvência do devedor, «A inutilidade do prosseguimento da lide verificar-se-á, pois, quando seja patente, objetivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a ação judicial intentada». Ora, do regime do Artigo 218º, nº1, alínea a) e nº2 do CIRE decorre que o prosseguimento do apenso de verificação de créditos traz, precisamente, benefício relevante à parte reclamante, o que não ocorrerá se não for proferida sentença de graduação de créditos. Havendo um benefício a colher com o prosseguimento do apenso de reclamação de créditos, não há extinção por inutilidade superveniente da instância.

Por todo o exposto, deve ser revogada a sentença proferida por assentar em erro de julgamento de direito.

DECISÃO:


Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e ordenando o prosseguimento do apenso de verificação de créditos.
Sem custas.



Lisboa, 22.11.2016

  
                                
(Luís Filipe Pires de Sousa)                                  
(Carla Câmara)                                  
(Maria do Rosário Morgado)


[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
[3]Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.6.2016, Ondina Alves, 1976/12.
[4]Acórdãos da Relação de Guimarães de 19.2.2013, Paulo Barreto, 1808/12, de 4.6.2013, Figueiredo de Almeida; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.11.2013, Conceição Saavedra, 144/08.
[5]Cf. Acórdão da Relação do Porto de 28.4.2014, Manuel Fernandes, 2609/11.
[6]Acórdão da Relação do Porto de 28.4.2014, Manuel Fernandes, 2609/11. No mesmo sentido, Acórdão da mesma Relação de 15.10.2013, Maria João Areias, 1881/12.