Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
988/2006-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Estando em causa a apreciação de acidente de viação supostamente da responsabilidade do veículo pertencente ao Estado e conduzido por agente do Estado, estamos perante uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil, é regulada por normas de direito privado que não por normas, princípios e critérios de direito público.
2. Tendo presente o já referido princípio da residualidade, isto é, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária são os tribunais-regra, por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18º da LOFTJ e do art. 66º do CPC, na circunstância é o Tribunal Cível da Comarca do Seixal o competente para conhecer do objecto da presente acção
(F.G)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
1 - M intentou acção contra o Ministério da Administração Interna e Instituto de Seguros de Portugal, todos com os sinais dos autos, pedindo a sua condenação solidária a pagar-lhe uma indemnização por danos sofridos no seu veículo automóvel LB, danos esses causados pelo embate do veículo OF, pertença do 1.°R, naquele LB, com culpa exclusiva do condutor do veículo OF.
2 - Citados, os RR contestaram, tendo o 2.° Réu, além do mais e para o que ora interessa, excepcionado a incompetência absoluta deste tribunal em razão da matéria, por estar em causa uma responsabilidade civil extracontratual do Estado Português, em virtude do veículo OF, ao serviço da PSP, ser usado, aquando do embate no veículo da A, em serviço e, como assim, estar tal uso integrado num acto de gestão pública. Mais refere que, a competência para apreciar a responsabilidade civil do Estado por prejuízos decorrentes e actos de gestão publica, como é o caso, pertence aos tribunais administrativos nos termos do art. 51.°/1 al b) do ETAF (DL n.°129/84 de 27/4).
Por seu turno o M.P. também contestou, afirmando, além do mais, que o veículo OF seguia, por ordem da respectiva autoridade, em perseguição de um outro veículo – na pressuposição de que este último era furtado – sendo no desenvolvimento dessa actividade de perseguição de criminosos que se deu o acidente de que acabaram por resultar para a A o referenciados prejuízos.
A A não respondeu.
3 - Conhecendo da excepção, decidiu ser a presente acção da competência dos tribunais administrativos de círculo, pelo que, julgando a excepção da incompetência absoluta do tribunal cível em razão da matéria, absolveram-se os RR do pedido.
Inconformada, a A. veio, no essencial, formular as seguintes conclusões:
1- Nas vestes do direito privado, o Estado responde pelos danos resultantes dos riscos próprios dos seus veículos de circulação terrestre e responde, grosso modo, por actos de negócios jurídicos de gestão privada, cuja apreciação também é objecto de competência dos tribunais comuns.
2- Assim, são os Tribunais Comuns que julgam as questões relativas a actos de gestão privada e as relativas à responsabilidade civil do Estado por acidentes de viação com viaturas do Estado e demais pessoas colectivas públicas.
3- A condução de veículo é um acto de gestão privada, em que a Administração intervém despida de poder público, agindo fundamentalmente nos quadros de direito privado e sujeita a este.
4- Afigura-se correcta a utilização dos tribunais comuns para obtenção do ressarcimento por indemnização devido pelo acto de condução do funcionário/agente que conduzia o veículo pertença do Estado, que como se disse agia claramente como um comissário.
5- Sendo os tribunais comuns os competentes para julgar este tipo de acções de indemnização visando a responsabilidade civil do Estado, deverá ser revogada a decisão proferida pelo Mmo. Juiz a quo e mandados prosseguir os presentes autos neste mesmo Tribunal, dado que houve uma incorrecta aplicação dos arts. 51°, 66° do ETAF, e dos arts. 10 1º e 104° do CPC.

Contra-alegou o MºPº, que, no essencial, concluiu:
1. O acidente de viação em causa deu-se em consequência da actividade da Polícia de Segurança Pública que ia em perseguição de uma viatura suspeita de ter sido objecto de furto.
2. O art. 4°, n.° 1, al. g) do ETAF, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 107-B/2003, de 31 de Dezembro, defere aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto "questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.
3. A causa de pedir fundamenta-se na responsabilidade civil extracontratual do Estado, enquanto pessoa colectiva de direito público.
4. A A. não respondeu, à excepção da incompetência absoluta suscitada na contestação.
5. O vício da incompetência do tribunal em razão da matéria configura incompetência absoluta (art. 101° do CPC) e constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, sendo causa de absolvição da instancia (Art. 288°, n.º 1, do CPC).

Colhidos os vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
Sendo as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste tribunal (arts. 684º e 690º, nº 1 do CPC), importa decidir qual o tribunal competente para dirimir o presente conflito.

Para apreciação deste recurso importa ter presentes os factos já constantes do Relatório.

II – O DIREITO
A sentença recorrida considerou os tribunais administrativos competentes para conhecer a presente acção argumentando que em acções sobre a responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, é afastada a competência residual dos tribunais comuns.

1. MºPº vem pôr em causa a legitimidade da A. para arguir a incompetência do tribunal, em razão da matéria, isto porque não respondeu à matéria da excepção da incompetência absoluta suscitada na contestação. Porém, sem razão.
Na verdade, a questão da incompetência material assenta em matéria de direito e por isso a falta de resposta não tem o efeito cominatório pretendido.
Ainda que assim não fosse, a posição da A. já está implícita e antecipadamente assumida, porque se a A. intentou a acção nos tribunais comuns, fê-lo por considerar serem estes os competentes para dirimir o pleito. Nesta hipótese a A. está dispensada de replicar (1).
Por último, cabe ter em conta que, como dispõe o art. 102º n. 1 do CPC, a incompetência absoluta do tribunal pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, pelo que tão pouco necessitava de ser arguida pelo Réu, na contestação e, apesar disso, a A. não estava impedida de recorrer da decisão que julgasse o tribunal incompetente em razão da matéria.

2. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram (2).
A competência do tribunal, em geral, não depende da personalidade judiciária dos pleitantes, da legitimidade das partes, nem da procedência da acção.
É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deveriam ser as partes e os termos dessa pretensão (3). Vale isto por dizer que a competência do tribunal se determina em face dos termos da acção, ou seja, do pedido inicial e da respectiva causa de pedir.
No caso em apreço pretende a A. que os RR. sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos danos causados no âmbito da responsabilidade extracontratual.
Alega, a A., no essencial, que o seu veículo foi embatido violentamente pelo veículo OF, pertença do MAI, Comando Geral da PSP, o que lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais.
Alegadamente, o veículo ao serviço da PSP seguia em perseguição de um outro veículo, supostamente furtado.
Não estando em causa a apreciação do mérito, será com base nestes factos que terá que assentar a decisão acerca da competência do tribunal em razão da matéria.
Atendo o disposto no art. 211º , nº 1 da CRP, “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais".
E nos termos do art. 212°, n° 3 da CRP, "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".
Assim, a regra da competência dos tribunais da ordem judicial segue o princípio da residualidade, isto é, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (artigos 66º do Código de Processo Civil e 18º, nº 1, da LOFTJ).
À jurisdição administrativa, incumbe, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribua a outra jurisdição.
Atento o art. 1º, nº 1 do ETAF (4), são os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal “os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
De acordo com o disposto no artigo 4°, n.° 1, al. g) do ETAF defere-se aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
Nesta medida, os tribunais administrativos são competentes para dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, como tal se entendendo aquelas em que as autoridades administrativas praticam actos de gestão pública.

3. A questão posta nos autos resulta apenas do facto de a proprietária do veículo supostamente causador do acidente, ser uma entidade pública, o que logo levaria a questionar se a sua intervenção na génese do acidente constituía ou não um acto de gestão pública.
Mas, sendo uma entidade pública, não podem restar dúvidas que também pode limitar-se a exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com os particulares, portanto desprovida do poder de supremacia que em princípio lhe advém da sua qualidade de ente público administrativo. Nesta última situação, os actos praticados já seriam de qualificar como de "gestão privada" (5).
Pode dizer-se que actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção. Actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado (6).
A solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar:
- Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado;
- Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.
O verdadeiro distinguit - para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada / gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo”.
“Mas a "pedra de toque" para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dicotomia "actos de gestão pública - actos de gestão privada", mas sim no critério constitucional plasmado no art. 212º, nº 3 da Lei Fundamental, ou seja compete aos tribunais dessa jurisdição especial o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das denominadas relações jurídicas administrativas” (7).

4. Estando em causa, nos autos, a apreciação de acidente de viação supostamente da responsabilidade do veículo pertencente ao Estado e conduzido por agente do Estado, que constitui a causa petendi, não pode ter-se como consubstanciando um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, como se defende no despacho recorrido.
Do que se trata é de uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil, é regulada por normas de direito privado que não por normas, princípios e critérios de direito público.
Se assim é, a uma tal apreciação não subjaz uma qualquer relação jurídica regulada pelo direito público, mas uma mera relação jurídico-privada, como tal regulada pelo direito privado. Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual estabelecidos nos artigos 483º e seguintes do C. Civil.
Reconduz-se, pois, a questão central a decidir sobre uma relação jurídica de direito privado (actividade por sua natureza potencialmente geradora de danos), como tal regulada pelas normas e princípios do direito civil comum.
Não restam dúvidas, portanto, que o litígio que as partes submeteram à apreciação do Tribunal é questão de direito privado, ainda que uma das entidades putativamente responsável, seja uma pessoa de direito público (8).
A circulação do veículo do Estado, não se compreende na actividade do Agravado, enquanto ente público que é, ainda que circulando no âmbito e exercício de funções policiais (melhor fora que circulasse no interesse privado do condutor), mas antes numa actuação em posição de paridade com os particulares a que os actos de circulação automóvel respeitam, com submissão às normas de direito privado estradais aplicáveis a todos os cidadãos (9).
Do que vem de ser dito se conclui que o acto de circulação automóvel do veículo do Estado, interveniente no acidente que deu causa à presente acção, não se compreende no exercício de um poder público, nem na realização de uma função pública, estando, desta sorte, excluído do âmbito de previsão do artigo 4°, n° 1, alínea g) do ETAF.
Ora, tendo presente o já referido princípio da residualidade, isto é, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária são os tribunais-regra, por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18º da LOFTJ e do art. 66º do CPC, na circunstância é o Tribunal Cível da Comarca do Seixal o competente para conhecer do objecto da presente acção.
E porque o vício da incompetência do tribunal em razão da matéria configura incompetência absoluta (art. 101º do CPC) e constitui excepção dilatória de conhecimento oficioso, não pode deixar de conceder-se provimento ao presente agravo.

III – DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, prosseguindo o processo, seus termos normais, se razão diversa da apreciada não obstar a tal.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2006.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
__________________________
1 Vide A. Reis, CPC Anotado, Vol. III, anotação ao art. 507º do CPC., pag, 157 e segs.
2 Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 207.
3 Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, 1979, pág. 91.
4 Aprovado pela Lei nº 13/02 de 19/2 e que entrou em vigor em 1/1/2004, com as alterações introduzidas pela Lei nº 107-B/2003, de 31 de Dezembro.
5 Cfr. Marcelo Caetano, "Manual de Direito Administrativo", Tomo I, 10ª edição, Coimbra, pag 430.
6 Sobre o conceito de actos de gestão publica/gestão privada vide Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. 1º, pág. 60/61; Marcelo Caetano, Manual, 10ª ed., 2º vol., pág. 1222; Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 1991, I, pag. 134: vide ainda Ac. STA de 29.04.2004, (relator Pires Esteves), www.dgsi.pt.
7 Ac. STJ de 20 de Outubro de 2005 (Araújo Barros), www.dgsi.pt/jstj; Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, Coimbra, 1988, pag 487.
8Neste sentido o acórdão desta Relação da 2ª Secção, Proc. Nº 7560/06 (Ana Paula Boularot), decidiu que a mera presença da Administração, através da intervenção de um seu funcionário num acidente de viação, não é suficiente para qualificar a responsabilidade civil daquela, como extracontratual, para os efeitos do disposto na alínea h) do n° 1 do artigo 4° do ETAF.
9 Ac. RL da 2ª Secção, já citado.