Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2408/2007-6
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: FORO CONVENCIONAL
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: - A aplicação da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do Tribunal da comarca do Réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art. 12º do CC.
- A alínea a), do nº 1, do art. 110º, do CPC, na redacção dada pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, não enferma de inconstitucionalidade.
(ALG)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – 1. Banco veio recorrer do despacho proferido pelo Tribunal “a quo” que julgou territorialmente incompetente para conhecer da presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, tendo ordenado a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, por ter entendido ser esse o Tribunal territorialmente competente para conhecer da presente acção.

Alega em resumo, no seu recurso, e em sede conclusiva, que:
1º) O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é o competente para decidir os presentes autos, não obstante o Réu residir em Samora Correia.
2º) O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do nº 1 do art. 110° do CPC, com a reacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no art. 100°, n°s. 1, 2, 3 e 4 do CPC, violou o disposto nos arts 5° e 12°, n°s. 1 e 2, do CC.
3º) E ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do nº 1 do artigo 110° do CPC, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, ao não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o que então dispunha o art. 110° do CPC é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no art. 18°, n°s. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2° da Constituição da Republica Portuguesa.
4º) Impõe-se, pois, como se requer, procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos.

2. Não houve contra-alegação.

3. Foi proferido despacho tabelar de sustentação.

II – Apreciando e Decidindo:

1. Cotejados os autos e com relevância para a decisão a proferir constata-se, factualmente, que:
a) A presente acção deu entrada no Tribunal Judicial de Lisboa em 24 de Julho de 2006, posteriormente à entrada em vigor da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril;
b) Através desta acção pretende o Banco “o cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato nos termos do Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro”;
c) Alega para o efeito que celebrou com o Réu um contrato, melhor identificado nos autos, para aquisição de um veículo automóvel, pelas condições que descreve, tendo o Réu se comprometido ao pagamento da referida quantia em diversas prestações mensais e sucessivas;
d) O Réu deixou de pagar as prestações acordadas;
e) As partes convencionaram que todos os litígios emergentes do contrato celebrado serão dirimidos pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, “com expressa renúncia a qualquer outro".

2. O Direito:

1. A questão versada nos presentes autos centra-se essencialmente em saber qual o Tribunal territorialmente competente para a instauração da presente acção e, consequentemente, se a Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, é ou não inconstitucional.

Vejamos.

2. A este propósito, e antes de mais, convém ter presente que ambas as partes acordaram, nos termos do contrato junto aos autos, um foro convencional, atribuindo competência territorial para dirimir os litígios dele emergentes ao Tribunal da Comarca de Lisboa.
A escolha da competência territorial em acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações ou a indemnização pelo não cumprimento ou, ainda, a resolução do contrato por falta de cumprimento, era permitida de acordo com o preceituado nos artºs 74° nº 1 e 110° nº 1 al. a), ambos do CPC, podendo ter lugar quer no lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou no Tribunal do domicílio do Réu.

Acontece, porém, que estes preceitos foram alterados pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, passando o artigo 74° nº 1 do CPC a ter a seguinte redacção:
“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no Tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo Tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
E o artigo 110° do CPC, que versa sobre o conhecimento oficioso da incompetência relativa, foi igualmente alterado pelo mesmo diploma, passando a incluir expressamente, na sua alínea a), as causas a que refere a primeira parte do nº 1 e o nº 2 do artigo 74° do CPC.
O que permite concluir desde logo que o conhecimento da incompetência relativa passou a ser de conhecimento oficioso, vedando, assim, a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, por força do disposto no nº 1 do artigo 100º do CPC.
Em face desta alteração legislativa a questão que se coloca de imediato é a de saber se a mesma tem aplicação ao caso sub judice, visto que o contrato em causa, que contém a cláusula atinente à competência convencional, ter sido celebrado em data anterior.
E a resposta só pode ser no sentido afirmativo.

3. Com efeito, sobre a problemática da aplicação das leis processuais no tempo, no que concerne à relação material litigada se constituir na vigência de lei processual diferente da que vigorava no momento em que é posta em juízo a acção, fundada nessa relação, pode ler-se em A. Varela, M. Bezerra e S. Nora que "a solução de problemas desta natureza vem a cada passo formulada na nova lei, através de disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação".(1)
Segundo os mesmos autores "ao lado das disposições especialmente insertas em determinados diplomas, há que considerar ainda as normas transitórias sectoriais ou parcelares, destinadas a definir, em termos relativamente genéricos, o domínio temporal das leis processuais reguladoras de certas matérias (prazos, forma dos actos, etc.)". (2)
E acrescentam que o sentido da solução geral aplicável ao comum das leis processuais, sempre que não haja disposição transitória, especial ou sectorial em contrário, é o do princípio da aplicação imediata da lei processual.

A este princípio, que não tem formulação expressa na lei, estão subjacentes, para a generalidade dos autores, o facto de o direito processual ser um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes e a circunstância de se tratar de um ramo de direito adjectivo que apenas regula o modo corno as partes podem exercer os seus direitos que a lei substantiva consagra.
Pelo que, de acordo com os citados autores, a solução passa por estender ao domínio do processo civil, com as necessárias adaptações, a doutrina estabelecida, em termos genéricos, no art. 12° do CC. Assim, a "...ideia, proclamada neste artigo, de que a lei dispõe para o futuro significará, na área do direito processual, que a nova lei se aplica às acções futuras e também a actos futuramente praticados nas acções pendentes", continuando a aferir-se a validade e regularidade dos actos processuais anteriormente praticados pela lei processual antiga vigente ao tempo.(3)

4. Ora, constata-se que, in casu, o legislador introduziu uma norma transitória especial no artigo 6° da Lei nº 14/2006, sob a epígrafe aplicação no tempo, na qual consagrou expressis et apertis verbis que "a presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor".
A consagração legal deste princípio só pode significar que a lei nova prevalece e aplica-se aos processos entrados após o início da sua vigência, princípio aplicável seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante, porquanto naturalmente que não se levantariam dúvidas quanto à sua aplicação aos contratos que se viessem a celebrar posteriormente à sua entrada em vigor, já que para estes a lei é absolutamente clara.
Prevalência sem quaisquer restrições ou ressalvas.
Daí que tal norma de direito transitório afaste a convenção das partes quanto ao foro de eleição ainda que inserta em contrato celebrado anteriormente à data em que a Lei entrou em vigor, como sucede no caso sub judice, tendo, assim, plena aplicação o disposto no nº 1 do art. 74° e na alínea a), do nº 1, do art. 110°, ambos do CPC, na nova redacção que lhes foi introduzida pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, uma vez que a acção aqui em causa foi instaurada no Tribunal “a quo” após a sua entrada em vigor. (4)
Com efeito, a nova lei - Lei nº 14/06, de 26 de Abril – veio impor não só a irrenunciabilidade de tal direito como também o conhecimento oficioso de tal matéria pelo Tribunal.
Destarte, haverá que concluir, como o fez o Tribunal “a quo”, que o pacto de competência celebrado deixou de ser reconhecido como válvula de afastamento da competência legal, porquanto no momento em que o Recorrente apresenta em juízo a sua petição o pacto extravasa os limites da autonomia contratual (5), consagrada no art. 405º, nº 1, do CC, não lhe sendo reconhecida qualquer eficácia.

Sobre a questão concreta da aplicação da lei no tempo impõe-se ainda salientar, conforme se refere, e bem, nos autos, que o “pacto de competência” constitui um “negócio de eficácia deferida”, tendo, pois, como pressuposto uma eventual verificação de um facto futuro, qual seja a necessidade de as partes recorrerem a Tribunal para a resolução de qualquer litígio que as oponha no âmbito do contrato celebrado entre as partes.
Acontece, porém, que tal facto – a apresentação em juízo da acção – ocorre já à luz da Lei Nova que, por ser mais restritiva que a Lei Antiga, não reconhecendo qualquer eficácia a tal convenção – porque contrária a norma imperativa – impõe o recurso às normas de fixação de competência em razão do território que passaram a assumir natureza imperativa.
A natureza imperativa de tais normas é, aliás, consentânea com o art. 22º da Lei nº 3/99, de 13/1 – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – que estabelece que “a competência se fixa no momento em que a acção se propõe”.

5. E não se diga que este sentido interpretativo viola qualquer princípio constitucional, designadamente, os invocados princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica e da confiança.
Um entendimento com esse alcance, de juízo de inconstitucionalidade, conforme pretende o Banco Recorrente, não pode por nós ser acolhido.
Senão vejamos:

5.1. O princípio da proporcionalidade está consagrado na segunda parte do nº 2 do art. 18° da Constituição da República Portuguesa em termos genéricos, como limitação geral ao exercício do poder público.
Este princípio, que se desdobra em três sub princípios (6): princípio da adequação, o princípio da exigibilidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, só é violado em conexão com qualquer outro direito fundamental relativamente ao qual se afirme que uma determinada situação subjectivável é desproporcionada.
Por outro lado, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 88/2004, (7) de 10.02.2004, … ”estando em causa a actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação, um largo âmbito de discricionariedade, pelo que a avaliação pelos Tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder assinalar uma manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador, um carácter manifestamente excessivo da medida ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta”.

Ora, no caso concreto, a questionada interpretação da norma em causa não evidencia que se esteja perante uma medida legislativa manifestamente inadequada ou excessiva, com inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação a vantagens que podem dela advir.
A mesma explica-se, aliás, apesar da ausência de exposição de motivos, por razões práticas de administração da justiça e visa sobretudo obviar à concentração de elevada pendência processual em certas circunscrições territoriais motivada pela litigiosidade de "massa".

5.2. Também o princípio da segurança jurídica e confiança ínsito no Estado de Direito (artigo 2° da Constituição) não se mostra violado.
É certo que o equilíbrio contratual é alterado, na medida em que da aplicação da norma em questão, com a interpretação que lhe foi dada, advêm custos acrescidos para uma das partes.
Atendendo, porém, ao interesse público que subjaz à criação do presente diploma e que presidiu decisivamente à orientação acolhida pelo legislador (8), ligada à necessidade de proceder à racionalização dos meios judiciários existentes, a verdade é que num quadro de litígios de "massa" em que o proponente da acção é uma entidade que possui um staff e uma organização dotada dos competentes e necessários meios técnicos e humanos, e em que o tipo de litígios aqui em causa se prende mais com a análise documental do que com a testemunhal ou pericial, e com meios de comunicação à disposição dessas entidades, que lhes permite a prática da generalidade dos actos processuais à distância, não se vislumbram razões para se concluir no sentido de que a referida interpretação ofende a lei fundamental.
Aliás, o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a presente matéria em Acórdãos recentes: no Acórdão nº 41/2007, datado de 23 de Janeiro de 2007 e nº 53/2007, de 30 de Janeiro de 2007, todos acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt.

5.3. Em Conclusão:
- Inexiste inconstitucionalidade quando se interpreta a Lei nº 14/06, de 26 de Abril, no sentido de que é aplicável às acções instauradas em juízo após a sua entrada em vigor, ainda que as partes hajam firmado, anteriormente, pacto de competência.
Destarte, improcede a argumentação deduzida pela Recorrente e o presente Agravo não merece provimento.

III - Decisão:
- Termos em que se acorda em negar provimento ao Agravo e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.

- Custas pelo Agravante.

Lisboa, 15/3/2007
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
Fátima Galante
Ferreira Lopes
__________________________________
1 In “Manual de Processo Civil”, 2ª Ed., Coimbra Editora, pág. 45, citado no Acórdão supra referido.
2 Ob. cit., pág. 46.
3 Cf. ob. cit., pág. 49.
4 No mesmo sentido, nesta parte, veja-se o Acórdão desta Relação de Lisboa, por nós exarado no âmbito do processo de Agravo nº 9.884/06-6ª Secção.
5 “A celebração de convenções sobre a competência está genericamente sujeita às mesmas regras de formação (atinentes à declaração de vontade e aspectos conexos) e aos mesmos requisitos de validade de qualquer contrato substantivo. Por regra, os elementos constitutivos da convenção são regulados pelo direito material e a sua admissibilidade e efeitos são definidos pelo direito processual” – Teixeira de Sousa, in “Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, Lex, pág.100.
6 Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira
7 Publicado no Diário da República, II Série, de 16/04/2004.
8 E independentemente de se cuidar aqui de saber se a opção escolhida pelo legislador foi a mais adequada.