Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4169/18.0T8FNC.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: LOCAÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
MORA DO CREDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Se aquele que sucede nos direitos do locador, por força da transmissão da posição deste (art. 1057 do CC), não fornece ao locatário os elementos necessários para que este possa fazer o pagamento da renda no local onde ela deve ser paga segundo o contrato existente, não se pode dizer que existe mora no pagamento da renda pelo locatário, mas sim mora do credor (art. 813 do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A-Lda, intentou um acção contra B e C, dizendo que deve declarar-se resolvido de imediato o contrato de arrendamento identificado e devem os réus ser condenados a despejarem de imediato o locado e a pagar à autora as rendas já vencidas de 518,83€ e as vincendas até à resolução do contrato, bem como os respectivos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, e ainda 250€ por mês desde Novembro de 2017 inclusive até à restituição do locado, sendo até à presente data devida a quantia de 2250€.
Alega para tanto, em síntese, que os réus não pagam, pelo menos desde Junho de 2017, as rendas da parte esquerda do rés-do-chão que lhes está arrendada – pelo valor mensal que diz ser de 39,91€ -, nem fizeram depósito liberatório, e que não permitem o acesso ao rés-do-chão para exame da coisa locada ou para fazer intervenção técnica de manutenção ou reabilitação do rés-do-chão e para arrendamento da parte direita do rés-do-chão; parte direita esta que, por isso, a autora não pode arrendar pelos 250€ mensais que, de outro modo, poderia obter por ela; e tudo aquilo é fundamento suficiente de despejo. Esta petição foi mais tarde aperfeiçoada, com melhor descrição dos factos, entre eles o acrescento da alegação de que as partes esquerda e direito do rés-do-chão tinham acesso individualizado para cada uma delas.
Os réus contestaram dizendo, entre o mais, que a autora nunca comunicou aos réus a sua qualidade de proprietária do prédio em apreço, mostrando ou fornecendo cópia de documentos que titulassem tal qualidade; nunca informou a designação completa da respectiva sociedade comercial, sede e número de identificação fiscal, local e meio de pagamento da renda pretendido; nunca forneceu o número da sua conta bancária e identificação do banco onde a mesma se encontrava sediada, para efeitos de eventual depósito das rendas, ou indicou o respectivo IBAN associado, para efeitos de eventual transferência dos valores correspondentes à rendas mensais; também nunca notificou (nem o fez a anterior proprietária, Santa Casa) os réus da existência da dação em cumprimento do local arrendado, nem nunca os interpelaram para o exercício do direito de preferência a que alude o art. 1091/1-g do CC; a renda não é de 39,91€ mas de 83,21€, como o comprova o extracto de movimentos dos depósitos obrigatórios de renda, efectuados pelo réu junto da Caixa Geral de Depósitos nos últimos 5 anos; a resolução do contrato não pode operar pois a autora não teve a virtualidade de efectuar a comunicação legalmente exigível, relativa à cessação do contrato de arrendamento por resolução, in casu a notificação avulsa a que alude o art. 9/7-a do NRAU, com a redacção introduzida pela Lei 43/2017, de 14/06; os réus iniciaram a consignação em depósito das rendas do locado em dezembro de 1992 com o fundamento de que a primitiva proprietária/senhoria, LE, por si ou através do seu procurador, se recusava a recebê-las; de acordo com a cláusula 3.ª do contrato de arrendamento “a renda é pagável no domicílio do procurador dos senhorios, nesta cidade;” ora, a autora nunca indicou a identificação e domicílio do seu procurador, desconhecendo-se se o mesmo existe; de sorte ao caso é aplicável o disposto no art. 1039/1, 2.ª parte, do CC, devendo a renda ser paga no domicílio do locatário e a verdade é que a autora nunca mandou ao domicílio dos réus seu representante com o fito de receber as rendas; aliás, presume-se que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do vencimento, segundo aquela norma; substituíram a fechadura do portão porque a “visita” da autora introduziu-se no espaço locado sem pedir licença, saltando para dentro de um anexo, pela janela; esta conduta suspeita, aliada ao facto de não entregar cópia do título de propriedade, fez os réus desconfiarem das intenções da tal “visita”; tal “visita” reapareceu mais tarde, mas não pediu o exame da coisa locada, nem avisou com a devida antecedência a sua presença; o prédio em questão não está submetido ao regime de propriedade horizontal, o mesmo é dizer que não possui zonas comuns; assim, os réus não têm de permitir o acesso de terceiros ao espaço locado; se a autora tem a pretensão de arrendar a terceiro “a habitação, composta por dois quartos, cozinha e serventia de casa de banho” (parte direita do R/C do prédio), tem a obrigação de assegurar-lhe o gozo para os fins a que se destina, ou seja, tem de proporcionar-lhe uma entrada/saída autónoma para a via pública, e um contador de luz e água separados, os quais nunca foram mandados colocar pela autora; a autora litiga de má-fé, pela qual deve ser condenada.
A autora impugnou os documentos juntos aos autos pelos réus anexos à contestação, nos termos do disposto no artigo 444 e seguintes do CPC e também os pretensos depósitos, nos termos do disposto no artigo 21 do NRAU; e impugnou a alegação de que litiga de má-fé.
Na acta da audiência final, os réus requereram a junção aos autos de 9 guias de depósito de renda (que ficaram juntas como documento autónoma do mesmo dia da acta, relativamente aos meses de Agosto de 2018 a Abril de 2019.
Realizada a audiência final, foi depois proferida sentença que absolveu os réus do pedido.
A autora recorre desta sentença, impugnando a decisão da matéria de facto em dois pontos, apontando nulidades à sentença e pondo em causa a decisão da improcedência dos pedidos.
Os réus não apresentaram contra-alegações.
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Questões a decidir: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada; se se verificam as nulidades apontadas; se o pedido de resolução com base na falta de pagamento de rendas e no impedimento ao acesso ao rés-do-chão para exame da coisa locada ou para fazer intervenção técnica de manutenção ou reabilitação do rés-do-chão, devia ter sido julgado procedente; se o pedido de indemnização com base no impedimento ao arrendamento da parte direita do rés-do-chão, devia ter sido julgado procedente.                 *
São os seguintes os factos dados como provados e que interessam à decisão das questões a decidir:
1. Pela AP n.º 0000 de 03/07/2017 foi registada a aquisição do direito de propriedade, [pela autora], por dação em cumprimento, sobre o prédio urbano descrito sob o nº 111 da Conservatória de Registo Predial do F e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de G sob o artigo 222, sito na Rua H.
2. O sujeito passivo do acto referido em 1 foi a Santa Casa da Misericórdia de M, na qualidade de única herdeira habilitada por óbitos de LE e de ME.
3. Por escrito particular denominado “contrato de arrendamento” datado de 18/05/1990, LE e de ME, na qualidade de “senhorios” concederam a B, na qualidade de “inquilino”, o gozo de dois quartos, cozinha, com serventia da casa de banho, que fazem parte integrante do prédio, com destino a habitação, pela contraprestação mensal de 8000$, a que actualmente corresponde o contravalor de 39,90€ [pagável […] no domicílio do procurador dos senhorios, nesta cidade – clª 3 do contrato, transcrita agora por este TRL, ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, ambos do CPC, tendo em conta que o contrato foi junto pela autora e não foi impugnado pelos réus, tendo esta cláusula sido invocada pelos réus em sua defesa na contestação e a sentença baseado implicitamente nela a sua argumentação].
4. A contraprestação inicialmente fixada foi sucessiva e legalmente aumentada, vigorando no valor de 53€ mensais desde 01/07/2012, encontrando-se, actualmente, em 83,21€.
5. O prédio é constituído por dois pisos um rés-do chão e um primeiro andar.
6. O acesso ao 1.º andar faz-se pelo n.º 9 da Rua H.
7. O acesso ao rés-do-chão faz-se por um portão com entrada pela esquina do prédio anterior, o prédio n.º 7 da mesma rua, contornando-se este mesmo prédio pela lateral e pelas traseiras, até às traseiras do prédio n.º 9.
8. Após a ocorrência da dação, em data que situa em finais de maio de 2017, o legal representante da autora dirigiu-se ao prédio e após vistoriar o 1.º piso, contornou o prédio n.º 7 e dirigiu-se às traseiras para aceder ao rés-do-chão e examiná-lo.
9. Apareceram então os réus a quem o gerente da autora se apresentou a si e à firma sua representada como nova proprietária do prédio e questionando os réus sobre a razão por que ocupam a parte esquerda do rés-do-chão.
10. Os réus responderam que estavam no local porque eram inquilinos do mesmo, tendo sido entregue por estes à autora uma cópia do escrito referido em 3.
11. A autora comunicou então aos réus, verbalmente, que a partir daquela data a autora passava a ser a sua senhoria por ter adquirido o prédio e como tal deveria começar a ser tratada, nomeadamente quanto a pagamento de rendas, sem que, no entanto, tivesse entregue qualquer documento comprovativo da qualidade arrogada, tendo referido que o “iria demonstrar futuramente”, o que não fez, não informou a designação completa da respectiva sociedade comercial, sede e número de identificação fiscal; meio de pagamento da renda pretendido; número da sua conta bancária e identificação do banco onde a mesma se encontrava sediada, para efeitos de eventual depósito das rendas, ou indicou o respectivo IBAN associado, para efeitos de eventual transferência dos valores correspondentes às rendas mensais.
12. Para poder ter acesso ao rés-do-chão da propriedade que engloba a parte onde habitam os réus e a parte direita actualmente devoluta, o legal representante da autora solicitou ao 1.º réu uma chave de acesso ao portão, solicitação que de imediato foi satisfeita.
13. Contudo, em nova deslocação ao local a autora verificou que a fechadura foi substituída impedindo a autora de voltar a entrar no prédio até ao momento.
14. A autora outorgou com MS escrito particular denominado “Contrato de arrendamento urbano para habitação com prazo certo”, pelo qual lhe concedia o gozo da parte direita do rés-do-chão do prédio, pelo prazo de 5 anos com início a 01/09/2017 e com a renda mensal de 250€.
15. O contrato 14 não teve início pois os réus impediam o acesso da autora e de qualquer outra pessoa ao prédio em causa.
16. Entretanto os réus, desde Junho de 2017 até hoje inclusive não pagaram à autora, directamente, qualquer renda, tendo efectuado, na CGD à ordem destes autos, nos dias 07 ou 08 de todos os meses, desde Setembro de 2018 a Abril de 2019, depósitos de 82,21€, com motivo “recusa de renda”.
17. Os réus efectuaram depósitos nos termos referidos em 16 de Janeiro de 2013 até Novembro de 2016, em Janeiro, Fevereiro, Abril, Agosto a Outubro e Dezembro de 2017 e Janeiro, Fevereiro, Abril, Julho e Agosto de 2018 (8 depósitos efectuados) de 2018.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Em relação ao ponto 8 a 13 dos factos provados, o tribunal escreveu o seguinte:
Foram dados como provados atento o teor dos depoimentos das testemunhas RT, NS, AJ e CV, todos por si e em conjugação entre si, com as limitações supra elencadas com relação a cada uma delas, permitiram ao tribunal formar a convicção segura da ocorrência dos factos conforme dados como provados.
Contra o facto 11 e a fundamentação apresentada, a autora escreve o seguinte:
Considera inaceitável que sob o nº 11 da matéria de facto dada como provada se tenha julgado provada matéria que efectivamente não ficou provada e além disso tenha sido “recortada a fazenda” em conformidade com o molde de um determinado fato, chegando-se ao cúmulo de transcrever uma expressão muito repetidamente usada pela testemunha CV, filha dos autores que, por isso e pela paixão com que depôs, não pode primar pela imparcialidade, imparcialidade essa que humanamente até nem se lhe pode exigir.
A testemunha RT declarou relativamente a esta matéria o seguinte:
T.- Eu estive lá presente quando, o Senhor se foi apresentar às pessoas em questão a dizer-lhe que ele seria o próximo dono do património.
Advogado da autora – E porque era o próximo dono?
T.- Supostamente aquilo deveria pertencer a alguém.
A.- E quanto a rendas ficou combinado alguma coisa nessa conversa?
T.- Que seriam pagas à A.
A.- A A tem uma sede e tem um escritório?
T.- Sim exactamente. Foi-lhe dito para passarem no escritório da A.
(gravação-09:54:05 a 10:00:15)
Por sua vez, a testemunha NS declarou o seguinte:
T.- E que agora passaria a ser ele o proprietário da casa, inclusive […] que tinha sido através da empresa que é a A, que era o proprietário, pronto e os dados digamos de identificação dele.
A.- Quando diz dados…
T.- Os dados… neste aspecto, eu sou a pessoa tal, faço isto, sou o proprietário da A, explicou a situação e onde é que morava e a localização da A.
A.-E o que é que ficou combinado quanto às rendas?
T.- Não posso precisar, mas penso que o J depois iria ver a melhor possibilidade deles…
A.- Olhe e quando ele disse A, ele disse onde é que era a sede…
T.- Escritório
AA.-Ah ele disse onde era o escritório!...
T.- Sim.
(gravação: 10.01.17 a 10.10.12)
Depois vem a Testemunha CV que começa por referir que o legal representante da autora afinal se apresentou como representante de um cunhado que esse sim era o dono da A e que nada provou documentalmente alegando que o “iria demonstrar no futuro”.
Estranha opinião!
De referir ainda que as restantes testemunhas nada declararam sobre esta matéria.
Das transcrições que acabaram de reproduzir-se, não se poderá considerar provada a matéria que o nº 11 reproduz.
O que se pode concluir destes depoimentos é apenas que o gerente da autora forneceu verbalmente aos réus o endereço do escritório da autora, com vista a um encontro para combinarem um aditamento ao contrato que passasse pelo reconhecimento da transmissão da posição contratual de senhoria para a autora e pela fixação do modo de pagamento de renda e pelo destino a dar aos valores alegadamente depositados.
Dado que nunca os réus compareceram nos escritórios da autora e verificada a prova dos factos referidos em 13 e 15, tal encontro acabou por não se fazer e a prova documental da qualidade de proprietário acabou por não ser entregue aos réus até à data da citação.
Portanto, da conjugação da restante matéria de facto e de todos os depoimentos testemunhais sobre a matéria no nº 11 da matéria de facto, deveria considerar-se provado que: “As partes acordaram na entrega de documentos de prova no escritório da autora tendo o legal representante desta indicado aos réus o endereço dos referidos escritórios”.
Decidindo:
As duas testemunhas que a autora invoca a favor da sua versão, não confirmam minimamente, segundo as próprias passagens transcritas pela autora, que tenha havido qualquer acordo na entrega dos documentos no escritório da autora. Quanto ao facto do fornecimento do endereço, apenas uma delas disse que foi dito onde era o escritório.
Quanto à testemunha RT, que foi fornecedor de materiais à autora – o que, diga-se, não é qualquer razão para ter acompanhado o gerente da autora - é-lhe perguntado se os réus disseram já ter um contrato, e a testemunha afasta-se da pergunta e acaba por responder que não sabe se eles já tinham um contrato de arrendamento – ora, a própria autora [e a testemunha a seguir] refere que foram os réus, na altura, que lhe deram conhecimento da existência do contrato que já tinham (que lhe deram então para as mãos, ficando ela com ele e juntando com a petição inicial…). O facto de a testemunha não saber isto, tira toda a credibilidade ao respectivo depoimento. Aliás, a testemunha não deu qualquer razão para ter ido acompanhar a autora na visita ao prédio. Trata-se de um depoimento de uma testemunha que foi servir de testemunha da autora e que relata a conversa da forma como pensa ser favorável à mesma…. Já agora anote-se que este depoimento tem a duração de 6:10 minutos, pelo que as passagens invocada pela autora não estão nos minutos (9 a 10) por ela indicados.
Quanto à testemunha NS, vive em união de facto com mulher que é prima do “dono” da autora. Diz que o dono da autora [ou seja, o gerente] foi lá abaixo apresentar-se aos réus (quase no final volta a dizer mais ou menos o mesmo: foi quando se lembrou dos Srs que estavam lá em baixo, foi quando descemos [7:33 a 7:41]… [mas a autora na petição inicial descreve a situação como tendo sido um encontro surpresa, inesperado e, já agora, não amigável – o réu respondeu num tom arrogante, segundo conta – ao contrário do que diz a testemunha RT…]: o interrogatório conduziu a testemunha a afirmar a questão da indicação da morada (4.49 a 5:01) e por isso tirou-lhe a credibilidade toda e a testemunha não diz a que propósito é que o gerente da autora disse a morada; a testemunha não convence minimamente…. Também este depoimento só tem 9:04 pelo que as passagens indicadas pela autora não estão no minuto 10.
Destes dois depoimentos não resulta, por isso, a prova do que a autora pretende e, muito menos, resulta que não ficou provado o que o tribunal deu como provado, o que a autora tenta fazer apenas com dois comentários críticos ao depoimento da testemunha CV; ora, desde logo, não se sentiu qualquer paixão no depoimento da filha e, por outro lado, os 37 minutos de depoimento da mesma, cheio de pormenores e de afirmações espontâneas (inclusive com referência a factos que não tinham sido afloradas nas peças processuais: como por exemplo, o facto de o gerente da autora ter aparecido uns dias depois com contrato para os réus assinarem), mesmo na instância do advogado da autora (apesar desta instância ter constado de inúmeras hipóteses e de considerações e não perguntas sobre o que a testemunha podia saber), não deixa dúvida nenhuma de que o que consta de 11 corresponde ao que se passou.  
Pelo que se mantém o ponto na redacção que lhe foi dada pelo tribunal recorrido.
*
Em relação ao ponto 17 dos factos provados o tribunal recorrido escreveu o seguinte:
O facto descrito [o tribunal está a referir-se também ao que consta de 16] foi dado como provado face ao teor dos documentos juntos aos autos de fls. 21 verso a 24 e 41 a 49, referindo-se que, a impugnação dos mesmos efectuada pela autora não tem por consequência a negação do conhecimento da sua existência e do seu teor, ficando ao tribunal a sua apreciação conjuntamente com outros meios de prova e, no caso, o depoimento da testemunha CV, conjugado com o teor de tais documentos permitiu ao tribunal formar a convicção segura da sua ocorrência.
Contra isto a autora escreve, em síntese, que:
4. O Sr. juiz a quo não pode dar como provado o que consta do ponto de facto sob 17 porque a lei exige prova documental de tais factos, exigindo até determinados conteúdos no documento: art. 364/1 do CC, pelo que tal ponto deve considerar-se não escrito com as legais consequências.
No corpo das alegações a autora escreveu que:
Estes alegados depósitos são os constantes da relação junta como DOC.1 anexo à contestação, documento impugnado pela ré. O Sr. juiz a quo não pode dar como provado o que não está em tal documento. Como determina o artigo 18 do NRAU o depósito é feito perante um documento, em dois exemplares, assinado pelo arrendatário ou por outrem em seu nome e do qual constem: a) Identidade do Senhorio e Inquilino; b) Identificação do locado; c) Quantitativo da renda; d) O período a que respeita; e) O motivo por que se pede o depósito; refira-se que o artigo 18 do NRAU, nesta matéria transcreve o artigo 23/1 do RAU (DL 321-B/90 de 15/10).
Ora, como já alegou oportunamente a autora, o DOC.1 anexo à contestação é uma listagem sem assinatura de ninguém, sem certificação da proveniência, sem indicação do objecto do depósito, sem identificação do senhorio, sem indicação do inquilino, sem identificação do locado, sem identificação do valor depositado, sem indicação do período a que respeita, ou seja, sem qualquer elemento que permita aferir os elementos essenciais prescritos por lei. A prova do depósito de rendas só pode ser feita documentalmente, devendo o documento de prova conter os requisitos determinados por Lei, como os réus muito bem sabem, pois, se não soubessem, não teriam cumprido os requisitos legais no depósito das rendas feitos desde 07/09/2018 até 08/04/2019 e juntos aos autos.
Ora, se a prova deste facto só pode ser feita por documento escrito com os requisitos legais, não pode o Sr. juiz a quo dar tal matéria como provada “face ao teor dos documentos juntos de fls. 21 verso a 24 e 41 a 49” e considerar que a impugnação dos mesmos efectuada pela autora não tem como consequência a obrigação do conhecimento de sua existência e do seu teor. O que o Sr. juiz poderia considerar provado era apenas e tão só o que consta de tal DOC.1 anexo à contestação; só que isso era juridicamente irrelevante; tudo o que o Sr. juiz escreveu são divagações proibidas por Lei.
Assim, a matéria constante do nº 17 da sentença deve naturalmente ser considerada não provada, eliminando-se tal número da rubrica “Matéria-Provada”.
Já o documento junto como DOC.2 anexo à contestação não contém o nome dos senhorios, a identificação do locado, nem o valor depositado, formalidades essenciais exigidas por Lei. É também um autêntico “OVNI”, não se sabendo a que se refere.
Decidindo:
Aquilo que o tribunal recorrido fez, foi aplicar o entendimento que existe há muito de que: os documentos particulares impugnados, podem servir de meios de prova, apreciados livremente pelo tribunal. Ou seja, eles não deixam de existir por terem sido impugnados. Deixam apenas de poder servir de prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (art. 376 do CC). Neste sentido, veja-se, por exemplo, o ac. do STJ de 15/04/2004 (04B795): IV - Os documentos particulares que, em resultado de terem sido impugnados, carecem da força probatória estabelecida no art. 376 do CC, podem, não obstante, contribuir para a livre convicção do juiz sobre os factos quesitados, com base na sua maior ou menor credibilidade. Ou o STJ de 02/05/2012 (44768/09.9YIPRT.P1.S1): VIII - Do ponto de vista da formação da convicção do juiz e julgamento da matéria de facto, quando se trate de documentos – autênticos ou particulares – que satisfaçam todos os “requisitos exigidos na lei”, vigora o princípio da prova legal. Na falta deles, o conteúdo dos documentos está sujeito ao sistema da prova livre.
Por outro lado, lembre-se que, face ao que consta dos arts. 364 e 393/1 do CC, sempre se tem dito que “quando haja alguma prova documental (princípio de prova por escrito), já deve ser admitida a prova testemunhal que a complete (Adriano Vaz Serra, anotação ao ac. do STJ de 04/12/1973, RLJ 107, pág. 312, Mota Pinto – Pinto Monteiro, arguição da simulação pelos simuladores/prova testemunhal, CJ.85.III, págs. 12-13, Luís Carvalho Fernandes, A prova da simulação pelos simuladores, O Direito, 1992, IV, págs. 598 a 609). O escrito deve emanar da pessoa a quem é aposto e tornar verosímil o facto alegado (Adriano Vaz Serra, ibidem).” (Lebre de Freitas, anotação 3 ao art. 393 do CC anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág. 479).   
Tendo isto em conta, veja-se então:
No ponto 17 dá-se como provado que os réus efectuaram depósitos bancários em determinados meses e sobre isso não pode haver a mais pequena dúvida, considerados os documentos referidos pelo tribunal recorrido, conjugados com o depoimento da filha, que diz que era ela, por ter menos dificuldades de escrita que os seus pais, que preenchia as guias de depósito. Não há qualquer norma legal que imponha que a prova de depósitos bancários seja feita através de uma determinada forma, pelo que não é aplicável o art. 364 do CC. Normalmente há prova documental da efectivação de depósitos bancários, porque é a forma como eles habitualmente são feitos, mas não há qualquer norma que a prova deles só possa ser feita por um certo tipo de documento.
No ponto 17 acrescenta-se que tais depósitos eram efectuados nos termos referidos em 16 e neste consta que os depósitos eram efectuados na CGD à ordem destes autos, com motivo “recusa de renda”. A questão é se se pode dar também como provado que os depósitos eram efectuados nesses termos.
Diga-se desde já que também não há qualquer norma a impor que os factos de os depósitos serem feitos na CGD ou por motivo de recusa só possam ser provados por um dado documento com determinadas formalidades. Quanto ao serem feitos à ordem destes autos, tal só pode logicamente referir-se àqueles que foram feitos depois de haver o conhecimento deles, sendo que os anteriores não ficam à ordem de autos que ainda não existem, mas à ordem do tribunal da situação do prédio. Ora, a partir do momento em que existe um processo, pode-se resumir toda a situação com a expressão ‘à ordem destes autos’ já que o tribunal que o está a dizer é o tribunal da situação do prédio.
Posto isto, vejam-se os documentos:
O doc.1 consiste numa impressão de uma consulta de movimentos em histórico por anos feita numa conta da CGD, que vai de 2013 a Agosto de 2018, bem como a referência ao número da conta e que se refere a depósito obrigatório, constando também a emissão de quatro levantamentos através de ‘emissão precatório’.
O doc. 2 é uma fotocópia de uma ficha de modelo obrigatório da CGD, CGD 9 – 1.000.000 ex 2-993 – art. 2.12.16 – 125.000 fls –, com a aposição de um carimbo, de uma nova conta da CGD com a data de 07/12/1992, referente à morada do locado, com o nome e assinatura do réu, e como 2º titular a ante proprietária LE, com o espaço à frente das condições de movimentação (a) v.v. preenchido com a frase Dep. Renda; consta também o tipo de conta 50 e o grupo 920.
Os documentos juntos em audiência – estes não foram impugnados - dizem respeito precisamente a essa conta, comprovando o depósito nelas dos valores das rendas do locado em causa, com referência ao nome do réu como arrendatário e da ante proprietária LE como senhoria (dada como residente no mesmo edifício/prédio 9-A, sem ser no rés-do-chão; aliás, já no contrato de arrendamento, os senhorios LE e marido são dados como residentes no mesmo local – o que torna compreensível a explicação espontânea dada pela a filha que disse que antes dos depósitos obrigatórios, os pais iam entregar as rendas na casa da proprietária ou esta as ia receber no locado – ou seja, imagina-se facilmente um dos pais da testemunha a dar a volta ao edifício, a subir ao 1.º andar e a entregar a renda, ou a senhoria a descer até ao rés-do-chão para a receber), feitos à ordem do tribunal, motivo recusa de renda, sendo depósitos posteriores ao abrigo do art. 18 do NRAU. Se a conta não existisse antes desse momento, os depósitos não podiam ter sido feitos deste modo.
Tudo isto, conjugado com o depoimento da filha, nos termos já referidos, não deixa qualquer dúvida de que o tribunal recorrido podia formar a convicção, que se acompanha, de que em 1992 foi constituída uma nova conta, também em nome da anterior senhoria, na CGD, onde passaram a ser depositadas as rendas, à ordem do tribunal e depois à ordem destes autos, com o motivo de recusa de renda.
Note-se que a impugnação feita pela autora não tirava qualquer credibilidade aos documentos em causa, pois que a autora nem sequer sabia que existia um contrato de arrendamento, segundo diz, nem sabia os valores das rendas, ou seja, não sabia nada para trás de Maio de 2017. 
A autora confunde as normas que impõem a forma como um depósito deve ser feito e comunicado, para poder ser considerado eficaz, que é uma questão de direito, com o valor probatório dos documentos para prova de que foram feitos depósitos.
Assim, também se mantém o ponto 17 dos factos provados nos termos que vêm da sentença recorrida.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação, muito em síntese:
O contrato dos autos é um arrendamento habitacional (art.1022 do Código Civil); constitui obrigação primária do arrendatário o pagamento da renda acordada nos termos e condições contratuais de acordo com o disposto nos artigos 1038/-a e 1041, n.ºs 1 e 2, do CC; a falta de pagamento de rendas é fundamento de resolução do contrato (art. 1083/3 do CC). A autora adquiriu o direito com base no qual foi celebrado o contrato (já que tal facto está registado – art. 7do código de Registo Predial) pelo que, nos termos do artigo 1057 do CC, sob a epígrafe “Transmissão da posição do locador”, a autora assumiu, a partir de 2017/07/03, nos direitos e obrigações do locador.
Os réus não efectuaram pagamentos de renda à autora, mas vinham-no fazendo, desde Janeiro de 2013 por depósito bancário (consignação em depósito) por fundamento em recusa de recebimento de rendas por parte da senhoria (artigos 17 e seguintes do NRAU).
Não pode a autora entender que os depósitos em causa não têm qualquer valor, pois que têm, não constando provado que tais depósitos tenham sido impugnados pela senhoria à qual foram oponíveis (LE), pelo que, não resultou provado que os réus não estejam a efectuar o pagamento das rendas, encontrando-se em mora.
Por outro lado, as obrigações da autora, enquanto locadora/senhoria, vão mais além do que uma simples comunicação verbal, sem qualquer suporte documental, de que “é a nova proprietária”. A comunicação verbal de que a autora é a nova proprietária e deve começar a ser tratada como senhoria, devendo os réus passar a pagar as rendas a si na sede da empresa são, necessariamente, estipulações posteriores de alteração dos termos do contrato, designadamente da cláusula terceira, que dispõe de forma diversa.
Convoquemos então o disposto no artigo 219 do CC, sob a epígrafe liberdade de forma, que dispõe que “A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir.” O contrato de arrendamento deve ser reduzido a escrito pelo que, tendo presente o disposto no art. 221/2 do CC, “as estipulações posteriores ao documento […] estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis.” A comunicação da assunção da posição contratual de locador bem como o local de pagamento de rendas são, de suma importância, na execução do contrato, pois que, se os réus passarem a cumprir com a sua obrigação de pagamento de renda a quem não tem o direito de a receber poderão ter consequências graves (eventualmente resolução por falta de pagamento de rendas), o que, tanto bastaria para considerar que tais alterações impunham a observância da forma do contrato, ou seja, a escrita, o que, não resultou provado que a autora tenha feito (e tal não se basta com a citação para a presente acção).
A inobservância da forma legal na comunicação da alteração contratual pretendida acarreta a sua nulidade (cfr. art. 220 do CC), não se verificando assim, até ao regular cumprimento, por parte da autora, da alteração contratual em causa, qualquer obrigação de pagamento de rendas, directamente, à autora.
Mas, ainda que assim não se entendesse, pretendendo a autora uma alteração quanto à forma de pagamento de renda que estava convencionada, o dever de boa-fé a que está sujeita nos termos do art. 762/2 do CC impunha-lhe a obrigação de comunicar aos réus/inquilinos, a solução que pretendiam implementar fosse quanto à forma de pagamento, fosse quanto ao destinatário do seu envio (demonstrando inequivocamente a propriedade do imóvel), que fosse capaz de ser perfeitamente compreendida pelos réus, o que, manifestamente, não logrou demonstrar ter feito.
Pelo exposto, não pode deixar de considerar-se liberatória, relativamente à obrigação de pagamento das rendas, a repetição da conduta dos réus, continuando a pagar as rendas nos mesmos termos que vigoravam antes da transmissão da posição contratual do senhorio para a autora (ainda que em litígio com a primitiva senhoria).
Ainda que assim não se entendesse, corresponderia, igualmente, a uma execução contratual de má-fé a actuação da autora que, adquirindo a propriedade do imóvel, contactando, verbalmente, os inquilinos, dizendo que era a “nova proprietária” e que o iria demonstrar “futuramente”, não o tendo feito, deixou decorrer quase um ano, para assim conseguir reunir os requisitos de resolução prescritos no art. 1083/3 do CC. Em tal circunstância, o exercício desse direito seria abusivo e, portanto, não autorizado, nos termos do art. 334 do CC.
A isto a autora contrapõe o seguinte:
5. Ao tribunal foi colocada a questão de saber se os alegados depósitos de rendas eram ou não eram liberatórios; sobre esta matéria o tribunal nada disse, com o que violou o disposto no artigo 615/1-d do CPC, por omissão de pronúncia, o que acarreta a nulidade da sentença.
6. O Sr. juiz a quo considera que, por se ter transmitido a posição contratual da senhoria, isso equivale a uma alteração do contrato; esta leitura é incompatível com a realidade jurídica, pois “transmissão de posição contratual” é uma coisa e “alteração contratual” é outra. A alteração contratual consiste em alterar o clausulado e nos termos do disposto no artigo 406/1 do CC só por mútuo acordo entre as partes pode fazer-se; com este seu raciocínio o Sr. juiz a quo fez um errado enquadramento jurídico dos factos, violando assim o disposto no artigo 1057 do CC. Face às disposições legais, a decisão é ininteligível, o que torna a decisão nula e de nenhum efeito nos termos do disposto no artigo 615/1-e do CPC.
7. Verificando-se a injustificada falta de pagamento de rendas e a obstrução ilegítima ao exercício dos direitos do proprietário, a única solução de direito, face aos factos provados será a procedência dos pedidos.
8. Acresce que o tribunal não se pronunciou sobre o destino das verbas objecto de depósito assim violando o dever que lhe é imposto pelo artigo 22/3 do NRAU o que fere de nulidade a sentença por força do disposto no artigo 615/1-d do CPC.
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Das nulidades da sentença
Com a síntese feita da fundamentação da sentença decorre que a sentença se pronunciou expressamente sobre a eficácia liberatória dos depósitos, pelo que não se verifica a nulidade apontada em 5 das conclusões da autora.
A argumentação da sentença recorrida não tem o sentido que lhe é dado pelo autora, que a entendeu mal, o que não quer dizer que tal seja culpa da ininteligibilidade da sentença, pelo que também não se verifica a nulidade invocada em 6 das conclusões.
De acordo com o invocado art. 22/3 do NRAU o tribunal tinha que se pronunciar sobre o destino das verbas objecto de depósito e não o fez, pelo que, nesta parte se verifica a nulidade da sentença (artigo 615/1-d do CPC) invocada na conclusão 8 do recurso, nulidade que será suprida por este tribunal ao abrigo do art. 665/2 do CPC.
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Se devia ter sido decretada a resolução com base nos fundamentos invocados pela autora
I
Como se escreveu na sentença recorrida, a falta de pagamento de rendas pode ser fundamento de despejo.
O contrato estipulava, na sua cl.ª 3, que a renda era “pagável […] no domicílio do procurador dos senhorios, nesta cidade.”
A autora, que sucedeu no contrato na posição da locadora primitiva não comunicou aos réus que tinha procurador ou qual o domicílio deste, nem que não tinha procurador e, neste caso, qual a morada da sua sede. Assim sendo, os réus não tinham qualquer obrigação de saber onde é que era que deviam ir fazer o pagamento das rendas, nos termos do contrato existente. E não eram eles que tinham que averiguar isso.
Existe, assim, mora, não do devedor/inquilino, mas sim do credor/senhorio/autora (art. 813 do CC), ao não praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação.
Não tem, assim, razão a autora quando diz que “Se [os réus] não quiseram ir ao escritório da autora para aí receberem prova de aquisição [do direito de propriedade do prédio] receberam-na em 31/07/2018 [data da citação para a acção – parenteses deste TRL]. Por aí ficaram com prova documental a saber quem era a locadora e onde morava visto que o contrato estipulava que a renda seria paga no domicílio do procurador dos senhorios, nesta cidade e uma vez que esta nova senhoria não tinha procurador nomeado, os inquilinos tinham, a partir daí, obrigação de se dirigirem ao escritório da autora para pagar a renda.”
Ora, nem que mais não fosse, a parte essencial disto, no que agora importa, isto é, que a autora não tinha procurador nomeado, não era do conhecimento dos réus, sendo ambos os factos (inexistência de procurador e conhecimento disso pelos réus) algo que a autora está a invocar do nada. 
Assim, de novo se conclui que os réus não lhe podiam – nem depois de citados para a acção - ter pago a renda nos termos previstos no contrato. O que basta para que a autora não possa invocar a falta de pagamento de rendas.
II
A sentença recorrida vai mais além e a argumentação dela serve para aprofundar a questão e, por outro lado, para se ver que a fundamentação da sentença não é aquela que a autora diz ser. 
A sentença diz que autora sucedeu nos direitos e obrigações da locadora primitiva; perante esta os réus estavam a consignar a renda nos termos dos arts. 17 e seguintes do NRAU, na CGD por motivo de recusa do pagamento das rendas por parte da senhoria, não constando provado que tais depósitos tenham sido impugnados pela senhoria à qual eram oponíveis, pelo que não se poderia dizer que eles não estivessem a efectuar o pagamento das rendas, encontrando-se em mora.
No entanto, mesmo tendo em conta a manutenção dos factos provados, deles decorre que algumas das rendas não foram pagas no momento devido e, quando o foram, não vieram com o acréscimo legal (art. 1041/1 do CC), e isto quer no período anterior à aquisição do direito pela autora quer no período posterior.
Por outro lado, a autora tem razão quando, no corpo das alegações, desenvolve a questão da consignação em depósito, dizendo que, alegando os réus que estavam a fazer esses depósitos desde Dezembro de 1992 com fundamento em que a primitiva senhoria se recusava a receber as rendas, e tendo a autora impugnado os depósitos no seu todo, cabia aos réus fazer a prova dos pressupostos da eficácia dos mesmos O que não fizeram. Sendo que, como também não fizeram a prova de terem comunicado os depósitos à anterior senhoria, não se demonstra que esta tivesse ficado vinculada por eles (arts. 342/1 e 841/1 do CC e 17 a 23 do NRAU, antes 22 a 29 do RAU, e ac. do TRL de 29/03/2007, proc. 1862/2007-6). E assim continuam a poder ser impugnados os pressupostos da consignação e a sua eficácia, como o foram pela autora.
Portanto, nesta parte a sentença não tem razão, não se podendo dizer que os pagamentos feitos através da consignação das rendas valham como pagamento de rendas sem mora.
III
Mas a autora só pode invocar, como fundamento resolutivo, a falta de pagamento das rendas a que tem direito, sendo que ela só tem direito às rendas que se venceram depois da transmissão do locado – neste sentido, por exemplo, o ac. do TRE de 08/03/2007, proc. 1568/06-3: a autora só pode pedir as rendas, desde a altura em que se arroga ser titular do imóvel e não as rendas que eram devidas ao anterior proprietário [“Relativamente ao objecto da transmissão, parece que salvo acordo em contrário, apenas se transmitirão para o adquirente os direitos e obrigações do senhorio respeitantes à execução futura do contrato, permanecendo na esfera do anterior senhorio os direitos e obrigações respeitantes ao período locativo anterior à transmissão. Assim, a menos que ocorra simultaneamente uma cessão de créditos a rendas vencidas não poderá o novo senhorio reclamar o pagamento de rendas respeitantes a períodos de tempo anteriores à transmissão, nem requerer a resolução do contrato com esse fundamento (Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª ed., Almedina, 2017, pág. 114, com invocação de vária doutrina no mesmo sentido, na nota 105 da mesma página)].
Ora, como a consignação em depósito não é obrigatória, mas um direito dos arrendatários, o facto de eles não poderem invocar a consignação das rendas como forma legítima de pagamento das rendas, não afasta a conclusão, tirada acima, de que, em relação à autora, a falta de pagamento das rendas só podia ser invocada por ela se ela tivesse comunicado aos réus que ela, autora, era a nova proprietária e, visto que o contrato não foi alterado, tivesse acrescentado quem é que era o seu procurador e o local do domicílio deste, ou pelo menos, como já se disse e se vai ver melhor, qual era o local da sua sede (para a hipótese de ter acrescentado que não tinha procurador, que já se sabe que não ocorreu). E a autora não o fez, nem mesmo na versão dos factos que ela pretendia que fosse dada como provada.
IV
Por outro lado, a sentença acrescenta: a pretensão da autora em passar a receber as rendas em local diferente do contrato representava uma estipulação posterior de alteração dos termos do contrato, designadamente da cláusula terceira, que dispõe de forma diversa. Ora, esta, como o contrato de arrendamento tinha que ser reduzido a escrito, também tinha que ser reduzida a escrito (arts. 219 e 221/2 do CC).
Aceita-se que isto seria mais ou menos assim, se no contrato constasse uma morada certa. Dir-se-ia então, com uma adaptação da construção da sentença [sugerida mais à frente pela própria sentença], que tal representaria uma tentativa da autora de alterar unilateralmente os termos do contrato, o que não está na possibilidade das partes: art. 406/1 do CC: os contratos só podem modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes nos casos admitidos por lei.
Mas, constando do contrato apenas que a renda era “pagável […] no domicílio do procurador dos senhorios, nesta cidade”, sendo a autora, a nova senhoria, uma sociedade comercial, poder-se-ia entender que a autora, se tivesse dito que a sua sede era no local tal, que não tinha procurador e que a renda devia ser aí paga, estava simplesmente a concretizar o que constava do contrato e a cláusula deveria ser integrada, de boa-fé (art. 239 do CC), como querendo dizer que, sendo o senhorio uma pessoa colectiva, sem procurador, a renda devia ser paga na sede da sociedade, o que era admissível se a sede da sociedade também fosse naquela cidade e não estivesse a uma distância desrazoável da anterior, de modo a representar um sacrifício inexigível dos réus. Mas mesmo então tal só seria assim se a autora tivesse comprovado que era de facto a nova proprietária do prédio. E nada disto se passou, nem poderia ter-se passado, porque a autora não sabia nada do que se passava com o contrato, nem, logicamente, com a situação das rendas, para que, de algum modo, lhe fosse possível ter dito aos réus tudo o que é pressuposto no que antecede e ainda comprovar a titularidade do direito. E tudo isto, com as devidas adaptações, está de acordo com o que a sentença diz a seguir, quanto à boa-fé no exercício dos direitos.
Sobre a obrigação do novo senhorio comprovar a alienação invocada, veja-se por exemplo, Gravato Morais, Falta de pagamento da renda no arrendamento urbano, Almedina, Maio de 2010, págs. 27, 28, 68, 69 [: “no caso de transmissão da posição do senhorio (v.g., por efeito da venda do imóvel), tal deve ser comunicado devida e adequadamente (através do envio do próprio contrato de compra e venda, que comprova a alienação do prédio ao arrendatário, sob pena de este poder recusar o pagamento ao novo sujeito, sendo-lhe portanto legítimo o pagamento ao antigo locador, a quem o represente ou eventualmente a efectivação de depósito de renda à ordem do ‘antigo’ senhorio”] e os acórdãos por ele citados, do TRE de 08/03/2007, proc. 1568/06-3, e o ac. do TRL de 21/09/1993, proc. 0028741).  
E não se volte ao início, dizendo que, então, os réus deviam ter feito uma consignação em depósito (e em termos que o pudessem invocar aqui de forma eficaz), pois que, já se viu acima, este depósito não é um dever deles, mas sim um direito, pelo que não é ele o fundamento da resolução, mas sim a falta de pagamento de rendas e esse, como se viu acima, não lhes pode ser censurada, porque a autora estava em mora no fornecimento dos dados para o efeito.
Tudo isto visto, constata-se assim que a sentença não confundiu a transmissão da posição do locador com uma alteração contratual: o que a sentença disse foi que, após a transmissão da posição contratual, a autora modificou o contrato (embora, fosse antes uma tentativa de o modificar).
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Da resolução do contrato com base no facto de os réus não terem facultado ao locador o exame da coisa locada
Diz a sentença:
No mais, não tendo logrado a autora comunicar aos réus a sua qualidade nos termos supra expostos não tinham estes, qualquer obrigação contratual, de franquear as portas da sua habitação aos réus.
O único facto que a autora pode invocar que poderia ter alguma coisa a ver com a obrigação dos réus de facultar ao locador o exame de coisa locada (art. 1038/b do CC, é o que consta do ponto 13 dos factos provados.
Este facto o que diz então é que, sendo o acesso ao rés-do-chão, onde está a parte locada, feito através de um portão que dá acesso a todo ele, os réus substituíram a fechadura do portão impedindo a autora de voltar a entrar no prédio até ao momento.
Ou seja, está-se a tratar de uma pretensão de entrar em todo o rés-do-chão, livremente, com uma chave, rés-do-chão que, já se sabe, engloba também o lado direito não arrendado.
Assim sendo, daqui não decorre que a autora alguma vez tenha manifestado aos réus que pretendia fazer o exame da coisa locada, que é a casa de habitação dos réus, de modo a que estes devessem facultar esse acesso, que, naturalmente tem de decorrer sobre o possível controle dos réus, ou seja, que não é um acesso livre e indiscriminado ao local arrendado, casa de habitação dos réus.
Portanto, não se prova que tenha ocorrido a violação da obrigação em causa, pelo que nem interessa apurar se ela constituiria, em concreto, por si só, fundamento suficiente do direito de resolução, ao abrigo do art. 1083/2, corpo, do CC.
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Do direito de indemnização pelo impedimento do gozo da parte direita do rés-do-chão do prédio
Tendo a autora locado a parte direita do rés-do-chão (facto 14), o contrato não teve início pois os réus impediam o acesso da autora e de qualquer outra pessoa ao prédio em causa (facto 15).
Diz a sentença:
Quanto ao facto descrito em 14, face à solução jurídica da causa, não assume relevância porquanto os réus não violaram o contrato de arrendamento em causa nem praticaram qualquer acto passível de preencher os pressupostos do art. 483 do CC, com a consequente obrigação de indemnizar a autora nos termos peticionados.
Decidindo:
Lendo com boa vontade a conclusão 7 do recurso da autora, e o que ela diz no corpo das alegações, pode-se entender que o recurso também coloca em causa a correcção desta decisão, autónoma das outras.
E os factos 14 e 15 apontam, à primeira vista, para a prova de um acto ilícito dos réus na violação do direito de propriedade da autora, na vertente de impedimento do gozo e fruição do mesmo, designadamente através do arrendamento da parte direita do locado.
Esse impedimento resultou da substituição da fechadura cuja chave já tinham sido os réus a fornecer à autora, quando a autora lhes disse que era a proprietária do prédio e que ia fazer a demonstração disso futuramente. Depois disso os réus substituíram a fechadura – que dava acesso a todo o rés-do-chão, incluindo a parte que lhes estava arrendada – sendo que a autora admite não ter feito a prova que dizia ir fazer (na sequência do que os réus lhe forneceram a chave), até à citação para a acção.
Nestas circunstâncias os réus não eram obrigados a ter fornecido nova chave à autora permitindo-lhe até o acesso à parte que lhes tinha sido locada, que tem serventia a uma casa de banho (que, por isso, não está situada na parte arrendada), isto é, a devassa da sua vida privada, e que mais tarde pudessem vir a ser acusados de terem sido cúmplices na invasão e/ou ocupação de um prédio sem terem prova de que a pessoa a quem davam a chave era a proprietária do prédio. De forma mais simples: os réus não têm que fornecer a sua chave de um prédio a quem, sem mais, diz ser dono desse prédio. Ou seja, não se verifica a ilicitude da sua conduta, um dos pressupostos da obrigação de indemnização (art. 483 do CC).
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Dos depósitos
De acordo com o art. 22/3 do NRAU, o depósito pelo senhorio só pode ser levantado após decisão judicial e de harmonia com ela.
Os depósitos dados como provados não puderam ser entendidos como pagamento de rendas, pelo que a autora não tem direito a eles.
Assim sendo, eles pertencem aos réus.
Tal só vale, no entanto, relativamente ao valor daqueles que estiveram em causa nesta acção, isto é, àqueles que dizem respeito ao período de tempo em que a autora é senhoria, isto é, desde Julho de 2017.
Os outros continuam a ficar à ordem do tribunal da situação do prédio (art. 22/3 do NRAU = 23/3 do RAU).
*
Da junção de documentos
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento (art. 425 do CPC) ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância (art. 651/1 do CPC).
Ora, a autora nem sequer tentou alegar os factos que permitiriam o preenchimento destas normas, pelo que é manifesto que os documentos em causa não podem ser agora juntos.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não há outras), pela autora (que é quem perde o recurso).
*
Não se admite a junção aos autos dos dois documentos apresentados pela autora com as alegações de recurso.
Desentranhe e devolva à autora esses documentos.
A autora vai condenada em 1 UC de multa (art. 443/2 do CPC e 27/1 e 4 do RCP).
*
Os depósitos feitos na conta a que se referem os pontos de factos provados sob 16 e 17, a partir de Julho de 2017, inclusive, pertencem aos réus, a quem devem ser entregues. 
 
Lisboa, 11/12/2019
Pedro Martins (relator por vencimento)
Inês Moura
Nelson Borges Carneiro (vencido de acordo com a declaração de voto que anexa)


VOTO DE VENCIDO:
1.) REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
B.) Facto provado nº 17
Entende a apelante que este facto deve ser considerado não provado, pois a respetiva prova só pode ser feita por documento escrito com os requisitos legais.
Vejamos a questão.
O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes art. 607º, nº 5, do CPCivil.
Por mor deste princípio, «o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange, contudo, os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes[1].
O princípio da livre apreciação da prova cede, pois, pela imposição legal (direta ou indireta) de um específico meio probatório (normalmente o documento) para prova de um determinado facto[2].
Imposição indireta quando a lei exige um documento, autêntico ou particular, como requisito de validade (ad substabtiam) ou da existência (ad constutionem) de forma (ad probationem) da declaração negocial (art. 364º, nº 1, do CCivil), o que implica o ónus de conservação do documento e a sua apresentação para a prova dessa declaração, com a consequente postergação de outros meios de prova[3].
Podem as partes reagir contra admissibilidade dos meios de prova apresentados pela sua contraparte, seja através de impugnação, seja através de exceção[4].
São particulares os documentos escritos que não reúnam os requisitos de origem respeitantes aos documentos autênticos (art. 363º, 2 CCivil in fine)[5].
Ora, em relação ao facto provado nº 17, o tribunal a quo deu como provado que ”Os RR. efetuaram depósitos nos termos referidos em 16) desde janeiro de 2013 até novembro de 2016; em janeiro, fevereiro, abril, agosto, setembro outubro e dezembro de 2017; janeiro, fevereiro, abril, julho, agosto (8 depósitos efetuados) de 2018”.
Para tal fundamentou a sua resposta no “teor dos documentos juntos aos autos de fls. 21 verso a 24 e 41 a 49, referindo-se que, a impugnação dos mesmos efetuada pela A. não tem por consequência a negação do conhecimento da sua existência e do seu teor, ficando ao Tribunal a sua apreciação conjuntamente com outros meios de prova e, no caso, o depoimento da testemunha CV, conjugado com o teor de tais documentos permitiu ao tribunal formar a convicção segura da sua ocorrência”.
Ora, os documentos juntos a fls. 21 verso a 23 verso, juntos pelos apelados e que foram impugnados pela apelante, são “listagens” nas quais se lê na parte superior “Caixa Geral de Depósitos”, que em determinado “dia”, “mês”e “ano”, foi feito um “depósito obrigatório” de uma determinada “quantia”, e quanto ao documento junto a fls. 24, é um impresso onde na parte superior se lê “Caixa Geral de Depósitos”.
E, terão tais documentos a virtualidade de provar que pelos apelados foram efetuados depósitos de rendas na Caixa Geral de Depósitos?      
Pensamos que não.
A impugnação da letra ou assinatura do documento particular ou da exatidão da reprodução mecânica, a negação das instruções a que se refere o n.º 1 do artigo 381.º do Código Civil e a declaração de que não se sabe se a letra ou a assinatura do documento particular é verdadeira devem ser feitas no prazo de 10 dias contados da apresentação do documento, se a parte a ela estiver presente, ou da notificação da junção, no caso contrário – art. 444º, nº 1, do CPCivil.
A autoria do documento, isto é, a sua feitura pela pessoa a quem o apresentante o atribua, ou a sua exatidão, isto é, a correspondência da representação nele contida à realidade representada, fica assente: se a parte contrária expressamente reconhecer ou não impugnar a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de documento particular assinado, bem como se declarar que não sabe se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas (art. 374.º, n.º 1, do CCivil); se expressamente reconhecer ou não impugnar a letra de documento particular não assinado nem carecido de assinatura, nem as instruções dadas ao autor material, que não seja o credor, para a sua feitura, bem como se declarar que não sabe se a letra lhe pertence, apesar de lhe ser atribuída, ou se as instruções foram dadas, apesar de lhe serem imputadas (art. 374.º, n.º 1, por analogia); se expressamente reconhecer ou não impugnar a exatidão de reprodução mecânica (art. 368.º, do CCivil)[6].
A exibição dum documento particular encerra (implicitamente) a afirmação, pelo apresentante, de que o documento provém do respetivo subscritor; mas essa afirmação pode ser posta em crise pela parte contrária, seja por negação dessa autoria ou subscrição, seja pela alegação de desconhecimento sobre se a assinatura é da pessoa a quem a autoria do documento é imputada (arts. 374, nº 1, do CC e 444º, nº 1, do CPC)[7].
Em primeiro lugar, no caso dos autos, não foi feita a prova que tais “listagens” tivessem sido emitidas pela referida entidade bancária; por quem foram feitos os depósitos (no caso de terem sido); a favor de quem foram efetuados (no caso de terem sido); se foram efetivamente depositadas as quantias referidas, bem como o motivo por que o foram.
Tendo a apelante impugnado a genuinidade dos documentos apresentados pelos apelados com a sua contestação, e não tendo sido feita prova da sua veracidade, tem-se os mesmos por impugnados, não se podendo assim ter por assente a sua autoria e exatidão, e deste modo, dar o facto como provado com base naquelas “listagens”.
Tal raciocínio é extensivo ao documento apresentado pelos apelados a fls. 24, igualmente impugnado pela apelante, pois não foi feita prova da sua veracidade, por quem foi elaborado, quem o preencheu, nem certificada a sua origem e emissão.
Por outro lado, o depósito de rendas é feito em qualquer agência de instituição de crédito (na vigência do RAU, aprovado pelo  DL nº 321-B/90, de 15-10, o depósito tinha de ser realizado, obrigatoriamente, na Caixa Geral de Depósitos), perante um documento em dois exemplares, assinado pelo arrendatário ou por outrem, em seu nome, e do qual constem a identidade do senhorio e do arrendatário, a identificação do locado (na vigência do RAU, a identificação e localização do prédio, ou parte de prédio, arrendado), o quantitativo da renda, o período de tempo a que ela respeita, e o motivo por que se pede o depósito - art. 18º, do NRAU, aprovado pela  Lei nº 6/2006, de 27-02.
Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal – art. 393º, nº 1, do CCivil.
Assim, exigindo a lei documento escrito para prova de um facto, no caso, depósitos de rendas, são postergados outros meios de prova, nomeadamente, prova testemunhal[8].
Por isso, não podia o tribunal a quo, atento o disposto no art. 607º, nº 4, do CPCivil, dar como assente que ”Os RR. efetuaram depósitos nos termos referidos em 16) desde janeiro de 2013 até novembro de 2016; em janeiro, fevereiro, abril, agosto, setembro outubro e dezembro de 2017; janeiro, fevereiro, abril, julho, agosto (8 depósitos efetuados) de 2018”, pois, para a respetiva prova, eram necessários documentos escritos, no caso os depósitos de rendas, além de que também não podia fundamentar tal resposta com outros meios de prova, no caso, prova testemunhal, como o fez.
Atendendo a que os documentos juntos a fls. 21 verso a 24, por um lado, foram impugnados pela parte contrária (no caso, a ora apelante) e, por outro, que eram necessários documentos escritos para sua prova, não se podendo socorrer de outros meios de prova, não se pode ter como provado que ”Os RR. efetuaram depósitos nos termos referidos em 16) desde janeiro de 2013 até novembro de 2016; em janeiro, fevereiro, abril, agosto, setembro outubro e dezembro de 2017; janeiro, fevereiro, abril, julho, agosto (8 depósitos efetuados) de 2018”.
Porém, quanto aos documentos juntos a fls. 41 a 49, os quais não foram impugnados nem arguidos de falsos, resulta que o apelado procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos em 2019-04-08; 2019-03-07; 2019-02-08; 2019-01-07; 2018-12-07; 2018-11-08; 2018-10-08; 2018-09-07 e, 2018-08-06, da quantia de € 83,21, em relação a cada depósito efetuado.
Não tendo a apelante impugnado nem arguido de falsos tais documentos apresentados pelos apelados, tem-se por assente a sua autoria e exatidão.
Vislumbrando-se um erro de julgamento, decorrente de concreta e flagrante desconformidade entre a resposta dada e a prova produzida, altera-se a resposta do facto provado nº 17, no sentido de que “apelado procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos em 2019-04-08; 2019-03-07; 2019-02-08; 2019-01-07; 2018-12-07; 2018-11-08; 2018-10-08; 2018-09-07 e, 2018-08-06, da quantia de € 83,21, em relação a cada depósito efetuado”.
Deste modo, impunha-se alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto e que ficou consagrada no julgamento efetuado em 1ª instância, em relação à resposta ao facto provado nº 17, pois mostrava-se verificado o condicionalismo previsto no art. 662º, do CPCivil.
Destarte, nesta parte, procederiam parcialmente as conclusões da apelação.
2.)  TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO LOCADOR.
O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras de registo – art. 1057º, do CCivil.
A posição jurídica do locador só pode transmitir-se quando se transmite o direito com base no qual foi possível celebrar o contrato. A translação desse vínculo é um efeito da lei, sem necessidade de alienante e adquirente a clausurarem, nem possibilidade de a excluírem.
A transmissão não faz cessar o arrendamento, pois o accipiens da coisa locada sucede ex lege na posição do senhorio (fenómeno jurídico também dito de sub-rogação legal no contrato)[9].
Pressuposto da aplicação do art. 1057º, é apenas a aquisição do direito com base no qual foi celebrado o contrato, independentemente da forma como essa transmissão se opere, seja por ato entre vivos, seja mortis causa[10].
Relativamente ao objeto da transmissão, parece que salvo acordo em contrário, apenas se transmitirão para o adquirente os direitos e obrigações do senhorio respeitantes à execução futura do contrato, permanecendo na esfera do anterior senhorio os direitos e obrigações respeitantes ao período locativo anterior à transmissão. Assim, a menos que ocorra simultaneamente uma cessão de créditos as rendas vencidas não poderá o novo senhorio reclamar o pagamento de rendas respeitantes a períodos anteriores à transmissão, nem requerer a resolução do contrato com esse fundamento[11].
Está provado que “pela AP n.º 0000 de 2017/07/03 foi registada a aquisição do direito de propriedade, por dação em cumprimento, sobre o prédio urbano descrito sob o nº 111 da Conservatória de Registo Predial do F e inscrito na matriz predial urbana da Freguesia G sob o artigo 222, sito na Rua H” – facto provado nº 1.
O sujeito passivo do ato referido em 1) foi a Santa Casa da Misericórdia de M, na qualidade de única herdeira habilitada por óbitos de LE e de ME – facto provado nº 2.
Por escrito particular denominado “contrato de arrendamento” datado de 18 de maio de 1990, LE e ME, na qualidade de “senhorios” concederam a B e C, na qualidade de “inquilino”, o gozo de dois quartos, cozinha, com serventia da casa-de-banho, que fazem parte integrante do prédio referido em 1), com destino a habitação, pela contraprestação mensal de 8.000$00 (oito mil escudos), a que atualmente corresponde o contravalor de € 39,90 (trinta e nove euros com noventa cêntimos) – facto provado nº 3.
O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei - art. 1316.º do CCivil.
O artigo não faz a distinção clássica entre modos de aquisição originária e de aquisição derivada da propriedade[12].  
Se se invoca como título do direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, usucapião ou a acessão, apenas haverá que provar os factos de que emergem os direitos.
Se a aquisição é derivada, pode-se socorrer da presunção legal decorrente do registo, não tendo necessidade de alegar e provar que o direito já existia no transmitente.
A pessoa que tenha um registo favorável goza, da presunção da sua titularidade. Ora assim sendo, é a contraparte que tem de arcar com a dificuldade de provar a inexatidão do registo em causa[13].
O registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define – art. 7.º, do CRPredial.
São duas as presunções estabelecidas neste preceito: a de que o direito existe tal como o registo o revela, e de que o direito pertence a quem está inscrito como seu titular[14].    
Tendo a apelante alegado que adquiriu por dação em cumprimento ao anterior dono o imóvel locado a que respeitam as rendas em dívida, e tendo junto a respetiva certidão confirmativa daquela aquisição, está justificada a sua posição de atual locador e titular do direito à renda, nos termos do art. 1057º, do CCivil.
Assim, tendo a apelante feito prova de ser a proprietária do prédio urbano descrito sob o nº 171 da Conservatória de Registo Predial do Funchal, por ter adquirido em dação em cumprimento, socorrendo-se para tal da presunção decorrente do registo, sucedeu nos direitos e obrigações da primitiva locadora.
E tal transmissão da posição do locador foi comunicada aos apelados/locatários, ou, dela tiveram conhecimento?
A lei não estabelece forma especial para a comunicação ao arrendatário da aquisição pelo comprador do prédio arrendado da posição de senhorio, e, consequentemente, funciona o princípio da liberdade de forma a que alude o art. 219º, do CCivil. A referida declaração torna-se eficaz logo que recebida pelo destinatário – art. 224º, nº 1, do mesmo código[15].
Não estabelecendo a lei forma especial para a comunicação aos apelados da sucessão pela apelante na posição de senhorio (por via da aquisição do imóvel por dação em cumprimento), qualquer comunicação seria válida, desde que recebida pelos destinatários, no caso, os apelados.
Entendemos que os apelados tiveram conhecimento da sucessão pela apelante na posição de senhorio (por via da aquisição do imóvel por dação em cumprimento), pois ficou provado que “em data que situa em finais de maio de 2017, o legal representante da Autora dirigiu-se ao prédio, …, comunicou então aos Réus, verbalmente, que a partir daquela data passava a ser a sua senhoria por ter adquirido o prédio e como tal deveria começar a ser tratada, nomeadamente quanto a pagamento de rendas” – factos provados nºs 8 e 11.
Tudo isto sem prejuízo, de que caso ocorressem os pressupostos da consignação em depósito, nomeadamente, por não puderem efetuar com segurança o pagamento das rendas, por qualquer motivo relativo à pessoa do senhorio, os apelados procedessem ao depósito das rendas numa instituição de crédito.
3.)  RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO POR FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS DEVIDAS PELA UTILIZAÇÃO DO ARRENDADO.
A apelante alega que os apelados “não pagaram as rendas respeitantes posteriores a maio de 2017, nem as consignaram em depósito”.
Vejamos a questão, isto é, se os apelados não pagaram e nem depositaram as rendas devidas pela utilização do arrendado, e se por isso lhe assiste fundamento para resolução do contrato de arrendamento.
Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição - art. 1022.º do CCivil.
A locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel - art. 1023.º do CCivil.
O contrato de locação é, pois, um contrato oneroso. Pelo uso e fruição de uma coisa móvel ou imóvel o locatário paga periódica e proporcionalmente uma renda.
Por escrito particular denominado “contrato de arrendamento” datado de 18 de maio de 1990, LE e ME, na qualidade de “senhorios” concederam a B e C, na qualidade de “inquilino”, o gozo de dois quartos, cozinha, com serventia da casa-de-banho, que fazem parte integrante do prédio referido em 1), com destino a habitação, pela contraprestação mensal de 8.000$00 (oito mil escudos), a que atualmente corresponde o contravalor de € 39,90 (trinta e nove euros com noventa cêntimos) – facto provado nº 3.
Face à matéria de facto provada e respetivos documentos, vigorava entre apelante (que sucedeu na posição contratual dos primitivos senhorios, como já nos referimos) e apelados um contrato de arrendamento, pois estão presentes o termo final e o pagamento periódico e proporcional, a título oneroso, de uma retribuição.
São obrigações do locatário: pagar a renda ou aluguer - al. a), do art. 1038.º do CCivil.
Sobre o locatário recai a obrigação, traduzida em prestações periódicas, de pagar a renda, como contrapartida pela entrega e pelo gozo da coisa locada que o locador lhe deve assegurar.
A sua violação permite ao senhorio a resolução do contrato, e faz certamente incorrer em responsabilidade o arrendatário pelo ato ilícito que por ela comete, nos termos gerais (art. 800º, nº 2, do CCivil)[16].
O pagamento de renda ou aluguer deve ser efetuado no último dia de vigência do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime - art. 1039.ºnº 1, do CCivil.    Assim, por força de tal contrato de arrendamento, estavam os apelados obrigados ao pagamento das rendas de acordo com o convencionado (al. a), do artigo 1038.º, CCivil).
Aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado - n.º 1, do art. 342º, do CCivil.
Está provado que “os RR desde junho de 2017 até hoje inclusive não pagaram à A., diretamente, qualquer renda tendo efetuado, na Caixa Geral de Depósitos à ordem destes autos, os seguintes depósitos: a. No dia 7 de setembro de 2018 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; b. No dia 8 de outubro de 2018 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; c. No dia 8 de novembro de 2018 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; d. No dia 8 de dezembro de 2018 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; e. No dia 7 de janeiro de 2019 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; f. No dia 8 de fevereiro de 2019 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; g. No dia 7 de março de 2019 no montante de € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda”; h. No dia 8 de abril de 2019 no montante de € € 82,21 (oitenta e dois euros com vinte e um cêntimos) com motivo “recusa de renda” – facto provado nº 16.
Mais se provou (alterando-se as respostas à matéria de facto como se referiu) que “o apelado procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos em 2019-04-08; 2019-03-07; 2019-02-08; 2019-01-07; 2018-12-07; 2018-11-08; 2018-10-08; 2018-09-07 e, 2018-08-06, da quantia de € 83,21, em relação a cada depósito efetuado”.
Sendo de prazo certo a obrigação do pagamento da renda, incumbia aos apelados procederem ao seu pagamento no respetivo prazo de vencimento, o qual, nos termos convencionados, deveria ter lugar até ao dia 8 do mês a que disser respeito (cláusula terceira do contrato de arrendamento).
O não pagamento da renda naquela data fez os apelados incorrerem em mora, independentemente de interpelação, nos termos dos artigos 804.º, n.ºs 1 e 2 e 805.º, nº 2, al. a), ambos do CCivil, constituindo fundamento para a apelada pedir a resolução do contrato de arrendamento, como estatuído artigo 1083º, nº 3, do CCivil.
A resolução consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um ato posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.
O direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência e, como ocorre no universo contratual, a resolução legal do contrato pressupõe uma situação de incumprimento stricto sensu.
É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio – art. 1083º, nº 2, do CCivil.
Assim, a resolução nos contratos de arrendamento depende da verificação dos requisitos previstos no nº 2, do artigo 1083.º, sendo enumerados nas cinco alíneas deste número 2, algumas das situações que podem constituir fundamento de resolução do contrato pelo senhorio.
A gravidade do incumprimento fundador do direito à resolução do contrato há de aferir-se quer pela própria natureza da infração – atuação/omissão substancialmente grave – quer pelas consequências ou efeitos que provoca – e que tornam tal incumprimento grave – quer ainda pela reiteração da conduta violadora das obrigações assumidas – que, por essa via, também é qualificável como grave -, tudo de tal forma que não seja razoavelmente exigível à outra parte a manutenção do arrendamento[17].
O direito de alguma das partes resolver o contrato de arrendamento está (atualmente) dependente de existência de motivo que torne inexigível à outra parte a manutenção da relação contratual (art. 1083º, nº2, do CC, na redação da Lei nº 6/2004), cabendo ao A. (que pretenda a resolução) a alegação e prova dos factos que permitam concluir, na situação, pela inexigibilidade da manutenção da relação contratual[18].
Assim, não é todo e qualquer incumprimento das obrigações do arrendatário que determina a resolução, exigindo-se que esse incumprimento, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento[19].
É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ou de oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 e 5 do artigo seguinte – art. 1083º, nº 3, do CCivil.
A verificação de tal situação de inadimplência basta para, por si só, tornar inexigível para o locador a manutenção do arrendamento. A situação de mora no pagamento da renda igual ou superior a três meses é suficiente para justificar o pressuposto material do incumprimento grave da obrigação do locatário determinante da não exigibilidade de manutenção do contrato, bastando, para o efeito, a mora no pagamento de uma única renda.
Neste caso estamos perante a consagração legal de um fundamento de resolução que opera pela verificação de um incumprimento considerado pela lei como objetivamente grave, e que torna inexigível ao senhorio a manutenção da relação contratual[20].
Porém, caso de inexigibilidade da manutenção do contrato pelo senhorio é a mora do locatário por período superior a três meses no pagamento das rendas, encargos ou despesas (art. 1083º, nº3, do CC), o que não significa, necessariamente, que a mora se tenha de referir a rendas de três meses, mas antes que a mora se prolongue por mais de três meses[21].
Assim, ocorre mora relevante para efeitos de resolução do contrato de arrendamento por parte do locador, se o locatário retardar o pagamento de uma renda, ou de parte dela, mantendo-se o atraso por três ou mais meses.
Ora, não pagando os apelados, diretamente, à apelante qualquer renda. desde junho de 2017, existe fundamento para resolução do contrato de arrendamento, nos termos do nº 3, do art. 1083º, do CCivil, pois retardaram o pagamento de mais do que uma renda, mantendo-se esse atraso por três ou mais meses.
A cessação do contrato torna imediatamente exigível, salvo se outro for o momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, a desocupação do local e a sua entrega, com as reparações que incumbam ao arrendatário – art. 1081º, nº 1, do CCivil.
A falta de pagamento de renda, se o inquilino não fizer cessar a mora nos termos do art. 1042º, do CCivil, constitui, nos termos do art. 1083º, nºs 2 e 3, do mesmo código, o senhorio no direito de operar a resolução do contrato, exigindo a devolução do locado, bem como o pagamento das rendas vencidas e vincendas até à entrega do mesmo, acrescidas da indemnização moratória[22].
4.)  QUANTIAS DEPOSITADAS A TÍTULO DE RENDAS.
O direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer, quando for exercido judicialmente, caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do artigo 1041º – art. 1048º, nº 1, do CCivil.
A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete aquele contra quem a invocação é feita – n.º 2, do art. 342.º, do CCivil.
Caso o senhorio venha a exercer judicialmente a resolução do contrato, determina igualmente o art. 1048º, nº 1, que esse direito caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do art. 1041º, aplicando-se igualmente esse regime “à falta de pagamento de encargos e despesas que corram por conta do locatário” (art. 1048º, nº 3)[23].
Competia, portanto, aos apelados fazer a prova de que foram pagas ou depositadas as rendas respeitantes ao arrendado no período de tempo em que usufruiu do mesmo.
Vejamos então se os apelados fizeram tal prova, isto é, se pagaram ou depositaram as somas devidas e uma indemnização igual a 20% do que for devido, para deste modo fazerem caducar o direito à resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
O arrendatário pode proceder ao depósito da renda quando ocorram os pressupostos da consignação em depósito, quando lhe seja permitido fazer cessar a mora e ainda quando esteja pendente ação de despejo – art. 17º, n.º 1, NRAU.
Está provado que “o apelado procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos em 2019-04-08; 2019-03-07; 2019-02-08; 2019-01-07; 2018-12-07; 2018-11-08; 2018-10-08; 2018-09-07 e, 2018-08-06, da quantia de € 83,21, em relação a cada depósito efetuado” – facto provado nº 17.
Tendo havido transmissão da posição do locador não poderá a apelante reclamar o pagamento de rendas respeitantes a períodos anteriores à transmissão, nem requerer a resolução do contrato com esse fundamento, pelo que, os depósitos a apreciar, serão os posteriores a essa transmissão, pois fundamento de despejo é a falta de pagamento de rendas posterior a junho de 2017.
Assim, o adquirente de um prédio não pode exigir o pagamento de rendas vencidas antes da aquisição, salvo se o alienante, no próprio título que transmite o prédio, ceder ao adquirente o direito a receber as rendas já vencidas, o que não se verifica no caso sub judice.
Estando provado que os apelados “desde junho de 2017, até hoje, inclusive, não pagaram à A., diretamente, qualquer renda”, e tendo apenas procedido em 2019-04-08; 2019-03-07; 2019-02-08; 2019-01-07; 2018-12-07; 2018-11-08; 2018-10-08; 2018-09-07 e, 2018-08-06, ao depósito na Caixa Geral de Depósitos da quantia € 83,21, em relação a cada depósito”, não depositaram porém as somas devidas desde junho de 2017, nem a indemnização igual a 20% do que era devido.
Temos, pois, que os apelados até ao termo do prazo para a contestação desta ação, não pagaram ou depositaram as rendas devidas e a indemnização de 20% do que era devido (devidas desde junho de 2017 até setembro de 2018), tendo apenas procedido ao depósito de três rendas (depositadas até ao termo do prazo para a contestação, mas sem a respetiva indemnização de 20%, devida à mora dos locatários).
Assim, não tendo os apelados procedido ao pagamento das rendas, nem procedido ao depósito liberatório das mesmas, existe fundamento para a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida – art. 1045.º, nº 1, do CCivil.
Concluindo, os apelados constituíram-se na obrigação de pagar à apelante as rendas vencidas e vincendas devidas desde junho de 2017 e até à efetiva entrega do arrendado, no montante mensal de € 83,21, cada.
Destarte, procedendo o recurso de apelação, haveria que revogar a sentença proferida pelo tribunal a quo.          
5.) MORA NO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO.
A mora do devedor é o atraso (demora ou dilação) culposo no cumprimento da obrigação. O devedor incorre em mora, quando, por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível[24].
Para que haja mora, além da culpa do devedor (e, consequentemente, da ilicitude do retardamento da prestação), é necessário que a prestação seja, ou se tenha tornado, certa, exigível e líquida[25].
No caso de obrigações a prazo certo, não é necessária a interpelação para que haja mora. A mora verifica-se, portanto, logo que, vencida a obrigação, o devedor não cumpre.
Tal resulta do art. 805º, n.º 2, al. a), do CCivil que estatui que há mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo.
A mora tem dois efeitos fundamentais: por um lado obriga o devedor a reparar os danos que causa ao credor o atraso culposo no cumprimento (CCivil, art. 804º); por outro, lança sobre o devedor o risco da impossibilidade da prestação[26].
Tratando-se de obrigação pecuniária, a lei presume que há sempre danos causados pela mora e fixa, em princípio, à forfait, o montante desses danos. Garante-se uma indemnização efetiva ao credor a partir do dia da constituição em mora, e identifica-se a indemnização com os juros legais da soma devida, salva a hipótese de um juro convencional mais alto ou de um juro moratório diferente, estipulado pelas partes.
Sendo de prazo certo a obrigação do pagamento da renda, incumbia aos apelados procederem ao seu pagamento no respetivo prazo de vencimento, o qual, nos termos convencionados (cláusula terceira do contrato de arrendamento), deveria ter lugar até ao dia 8 do mês a que disser respeito.
Não tendo os apelados pago à apelante as rendas na data acordada, isto é, até ao dia 8 do mês a que disser respeito, entraram em mora.
Havendo mora do devedor no cumprimento da obrigação, presume-se que há sempre danos, os quais consistem nos juros legais, devidos desde a data de constituição dos mesmos em mora (arts. 559.º; 804.º; 805.º e 806.º, todos do CCivil).
Os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano[27] – art. 559º, nº 1, do CCivil.
De harmonia com o princípio geral fixado no n.º 1, do art. 799º, do CCivil, uma vez verificados os pressupostos objetivos da mora, é ao devedor que incumbe afastar a presunção de culpa que recai sobre ele.
Ora, não tendo os apelados provado que não havia mora no cumprimento da obrigação, pelo que, não fazendo a prova que lhes competia, constituíram-se em mora a partir do dia 8 do mês a que a renda não paga disser respeito.
6.) CONCLUSÃO.
Haveria pois previamente que averiguar se os apelados pagaram ou depositaram a renda e, caso o tivessem feito, é que se iria averiguar se estavam ou não em mora.
Antes de estar comprovado o depósito ou pagamento das rendas não se pode discutir se existe ou não mora.
Isto é, os apelados não podem usufruir do arrendado sem comprovarem que pagaram ou depositaram a renda.
Haveria mora do credor, e isso concordo, se a apelante não comunicasse o local de pagamento da renda, mas para isso tem o arrendatário um meio que a lei lhe possibilita para se livrar da obrigação, que é o depósito das rendas.
Aliás, os apelados teriam que consignar em depósito as rendas, caso não pudessem efetuar o pagamento com segurança por qualquer motivo atinente à pessoa do senhorio, ou não pudessem efetuar o pagamento, v.g., por desconhecimento do local de pagamento da renda.
Ora, se os apelados reconheceram que a apelante era a proprietária da fração (ao lhe entregarem uma chave de acesso ao portão[28]), pois de outra foram não teriam entregue a chave, como podem depois dizer que não a reconheceram, o que parece estarem a atuar em abuso de direito, num venire contra factum proprio.
O que não podem é deixar de pagar ou depositar as rendas, isto é, ou continuavam a pagar ao anterior senhorio da mesma maneira que o faziam, o que não provaram, ou depositavam as rendas devidas a partir de junho de 2017, o que também não provaram.
Isto é, os apelados usufruíram do arrendado sem pagarem ou depositarem as rendas devidas, sem que para tal existissem motivos para não ao fazerem.
Questão diferente era se a apelante não tivesse comunicado o local de pagamento da renda aos apelados, pois aí, sim, podíamos discutir se havia ou não mora no pagamento das rendas por parte destes.Agora não se pode discutir previamente se há mora da apelante, se não há pagamento ou depósito das rendas efetuadas após junho de 2017, pelos apelados.
Caso houvesse mora do credor, v.g., não indicar o local de pagamento das rendas, então aí os apelados não teriam que pagar a indenização de 20%, pois aí a mora não lhes seria imputável.
Concluindo, havendo uma sucessão na posição contratual, operando esta uma simples modificação subjetiva na relação contratual básica, a qual persiste embora com um novo titular, sem sujeição a qualquer formalidade, competia aos apelados pagarem a renda ao novo senhorio.
Caso sem culpa sua não pudessem efetuar o pagamento das rendas (nomeadamente por o senhorio não fornecer os elementos necessários para que este possa fazer o pagamento da renda no local onde ela deve ser paga segundo o contrato existente), verificando-se por isso os pressupostos da consignação em depósito, os apelados teriam que proceder ao depósito das rendas, o que não fizeram.
Não podem é vir dizer que não sabiam onde pagar a renda, e não procederem ao seu depósito, ou continuavam a pagar a renda como o faziam até à data, e depois discutir-se-ia se estavam ou não em mora, o que também não fizeram.
Acresce dizer ainda que os depósitos de rendas nem sequer foram comunicados à apelante, pois não tendo sido juntos até à contestação, não puderam ser impugnados.

Lisboa, 2019-12-11
(Nelson Borges Carneiro)
_______________________________________________________
[1] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 267.
[2] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 268.
[3] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 268.
[4] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 274.
[5] LEBRE DE FREIRAS, A Ação Declarativa Comum, À luz do código de processo civil de 2013, 3ª ed.., p. 235.
[6] LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil, anotado, vol. 2.º, pág. 449, nota 3.
[7] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 275.
[8] Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal – art. 393º, nº 1, do CCivil.
[9] PINTO FURTADO, Manual de Arrendamento Urbano, vol. II, 4ª ed., p. 594.
[10] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 9ª ed., p. 118.
[11] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 9ª ed., p. 118.
[12] PIRES DE LIMA e, ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 3.º vol., 2.ª ed., p. 121.
[13] MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, p. 592.
[14] LUÍS CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 3.ª Ed., p. 123.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1996-10-03, Relator: SALVADOR DA COSTA, Coletânea de Jurisprudência, ano XXI, tomo 4, o. 114.
[16] PINTO FURTADO, ob. cit., vol. I, 4ª ed., p. 526.
[17] ALBERTINA GOMES PEDROSO, A Resolução do Contrato de Arrendamento no Novo e Novíssimo Regime do Arrendamento Urbano, Revista Julgar, nº 19, p. 45.
[18] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2008-11-27, Relator: JOSÉ FERRAZ, www.dgsi.pt./jtrp.
[19] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 9ª ed., p. 137.
[20] ALBERTINA GOMES PEDROSO, A Resolução do Contrato de Arrendamento no Novo e Novíssimo Regime do Arrendamento Urbano, Revista Julgar, nº 19, p. 51.
[21] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2008-11-27, Relator: JOSÉ FERRAZ, www.dgsi.pt./jtrp.
[22] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2009-05-28, Relator: NETO NEVES, www.dgsi.pt./jtrl.
[23] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 9ª ed., p. 139.
[24] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pp. 113/4.
[25] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, p. 115.
[26] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, Almedina, p. 121.
[27] A Portaria nº 291/03, de 8.4, fixou em 4% ao ano, a taxa legal referida no art. 559º do CCivil.
[28] Para poder ter acesso ao rés-do-chão da propriedade que engloba a parte onde habitam os RR e a parte direita atualmente devoluta, o legal representante da A solicitou ao 1º R uma chave de acesso ao portão, solicitação que de imediato foi satisfeita – facto provado nº 12.