Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
223/15.8T8CBA.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: REPÚDIO DA HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Na denominada “habilitação-legitimidade”, o autor apenas tem de alegar na petição inicial e fazer prova da qualidade de sucessor do demandado do falecido, não sendo necessária a formulação de pedido de habilitação dos sucessores do falecido
2.A lei atribui aos pais a representação legal do filho menor, desse modo se suprindo a incapacidade de agir deste, para que aqueles, nessa qualidade, pratiquem os necessários actos jurídicos em nome do filho (art.º 1878º, n.º 1 do Cód. Civil).
3.O poder-dever de agir em nome do filho menor não é inteiramente livre, na medida em que nem sempre por eles alguns actos podem ser exercidos, nomeadamente estando em causa o património do filho menor.
4.Elenca o artigo 1889º do Código Civil, um conjunto de actos cuja validade depende de autorização, actualmente do Ministério Público, nos quais se inclui o repúdio da herança, e sem a qual o acto é passível de anulação, a requerimento do filho, até um ano depois de este atingir a maioridade.
5.Mostra-se correcta a decisão de absolvição do réu da instância, na acção proposta por um alegado credor do falecido, intentada contra o filho menor deste, na qualidade de seu sucessor, com vista ao pagamento de uma invocada dívida, tendo a representante do menor, em nome deste, repudiado a herança do falecido, sem a necessária autorização do Ministério Público, de harmonia com o disposto no artigo 2º, alínea b) do Decreto-Lei nº 272/01, de 13/10.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


  
RELATÓRIO:


BANCO, S.A., com sede na ……., intentou, em 10.05.2016, após despacho de aperfeiçoamento, contra FILIPE ….., na qualidade de herdeiro da herança aberta por óbito de João  B., residente na ……, representado, para suprimento da sua incapacidade por menoridade, pela sua mãe  Jacinta ....., a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, através da qual pediu que o réu seja condenado a pagar à autora a quantia de € 6.383,30, acrescida de juros de mora desde a data da resolução contratual até efectivo e integral pagamento.

Fundamentou, a autora, no essencial, esta sua pretensão na forma seguinte:

1.em 28 de Dezembro de 2009 celebrou com João  B. o contrato de locação financeira n.º 3021562, que teve por objecto o veículo automóvel da marca Mercedes Benz, modelo E 220 CDi, com a matrícula …..
2.O locatário João  B. faleceu em 10 de Abril de 2014, tendo deixado como seu legítimo herdeiro  Filipe ...., menor, demandado na qualidade de herdeiro do falecido locatário.
3.O locatário deixou de cumprir as suas obrigações de pagamento para com a Autora, o que motivou a resolução do contrato, estando em dívida o valor de € 6.383,30, a que acrescem juros de mora contados desde a data da resolução, 1 de Agosto de 2014, até integral e efectivo pagamento.
Citado, o réu, representado pela sua mãe, contestou, arguindo, além do mais, a sua ilegitimidade, alegando, para tanto, que, conforme escritura que juntou, repudiou a herança aberta por óbito do seu pai. Referiu que a mãe, sua representante legal, não requereu a necessária autorização judicial para o efeito, porque o réu atingirá a maioridade em 31 de Março de 2018.
Concluiu que perante o repúdio, não é herdeiro do seu falecido pai, pelo que deverá ser absolvido da instância.

Notificada, a autora sustentou a improcedência da arguida excepção alegando, para o efeito, que não tendo o repúdio sido previamente autorizado pelo tribunal trata-se de um acto inexistente, desprovido de qualquer efeito jurídico.

O Ministério Público, que tem intervenção acessória nos autos, nada disse.

Por despacho de 12.12.2016, foi dispensada a audiência prévia.

Nessa mesma data foi proferido despacho saneador, no qual o Tribunal conheceu da excepção de ilegitimidade passiva arguida pela réu na contestação, por considerar que a autora já havia exercido o contraditório relativamente a essa excepção, julgando-a improcedente, pelo que entendeu ser o réu parte legítima.

Por considerar que os autos dispunham já de todos os elementos, o Tribunal a quo apreciou, de imediato, do mérito da causa, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte:
Pelo exposto e decidindo, absolve-se o Réu  Filipe .... da instância.
Custas pela Autora (cfr. artigo 527º do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.

Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, em 27.01.2017, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:
i.A sucessão legítima é, como resulta do art. 2131º do Cód.Civil uma sucessão que a lei impõe, indicando expressamente quem há-de suceder ao de cuius, na hipótese de este não ter disposto nesse sentido.
ii.Nos termos do art. 2132º e 2133º nº 1 do Cód.Civil são herdeiros legítimos o cônjuge, os parentes e o Estado, pela ordem seguinte: cônjuges e descendentes; cônjuge e ascendentes; irmãos e seus descendentes; outros colaterais até ao 4º grau; e Estado.
iii.Conforme resulta da conjugação dos art. 2134º e 2137º nº 1 do Cód.Civil, a sucessão legítima é orientada pelo princípio da preferência de classes, através do qual, os sucessíveis indicados nas classes – grupos ou categorias – anteriores preferem aos mencionados nas classes posteriores e, em caso, dos primeiros não puderem ou não quiserem aceitar a herança serão chamados os imediatos sucessores.
iv.O direito de suceder é um direito potestativo instrumental, através de cujo exercício, mediante a manifestação da sua vontade, o sucessível chamado à herança a pode fazer sua ou afastá-la.
v.Conforme resulta dos art. 2050º e 2062º do Cód.Civil, a manifestação de vontade do sucessível chamado à herança poderá traduzir-se na sua aceitação, expressa ou tácita, ou caso contrário, no seu repúdio.
vi.No caso de os titulares da vocação sucessória não aceitarem o chamamento à titularidade das relações jurídicas do autor da sucessão, verifica-se o repúdio da herança, sendo chamados os sucessíveis subsequentes até, eventualmente, se chegar ao último - o Estado, conforme decorre dos artigos 2062º e 2133º, n.º 1, alínea e), 2134º e 2137º nº 1 do Cód.Civil.
vii.Assim, o chamamento do Estado à sucessão legítima depende da inexistência de sucessíveis das anteriores classes previstas no art. 2133º do Cód.Civil. O Estado ocupa, assim, a posição de sucessível legítimo, integrando a última das respectivas classes, uma vez esgotada a relevância sucessória dos familiares do de cuius, cônjuges e parentes sucessíveis.
viii.Por outro lado, a aquisição da herança pelo Estado opera ipso iure, sem necessidade de aceitação [mas sim, investidura!], contudo, é necessário reconhecer-se judicialmente a inexistência de cônjuge, descendentes, ascendentes e colaterais até ao 4º grau com capacidade sucessória para a herança ser declarada vaga nos termos da lei de processo.
ix.Resultando da Sentença proferida pelo Tribunal a quo que o locatário João  B. faleceu em 10 de Abril de 2014, no estado de divorciado, tendo deixado apenas um herdeiro, o filho  Filipe .....
x.Por escritura pública outorgada em 22 de Junho de 2016 e, em representação legal do seu filho menor, a mãe de  Filipe ...., Jacinta ....., repudiou à herança aberta por óbito do seu pai.
xi.O descendente  Filipe .... não tem, por sua vez , descendentes.
xii.Nos termos legais, designadamente, de acordo com o princípio da preferência de classes, plasmado nos arts. 2134º e 2137º do Cód.Civil, verificado o repúdio da herança por parte do descendente do falecido,  Filipe ...., o Tribunal a quo deveria ter reconhecido judicialmente a inexistência de outros herdeiros sucessíveis, e, em consequência, declarar a herança vaga em benefício do Estado.

Pede, por isso, a apelante, que deverá ser concedido provimento à Apelação e, consequentemente, ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, e substituída por outra que, reconheça a inexistência de outros herdeiros sucessíveis e, em consequência, declare a herança vaga em benefício do Estado.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

I.ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO.

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise: DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.

III.FUNDAMENTAÇÃO.

A–
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Foi dado como provado na sentença recorrida o seguinte:
1.João  B. faleceu em 10 de Abril de 2014, no estado de divorciado;
2.Filipe .... é filho de João  B. e de  Jacinta .....;
3.Por escritura pública outorgada em 22 de Junho de 2016, no Cartório Notarial sito na Rua Castilho, n.º 61, R/c, Esquerdo, em Lisboa, perante a notária Exma. Sra. Dra. Maria ….,  Jacinta ……,  “em representação legal do seu filho menor,  Filipe .... declarou que “repudia a herança, de João  B., pai do seu representado, falecido em dez de Abril de dois mil e catorze”;
4.Mais declarou que “o seu representado não tem descendentes”;
5.Jacinta …… não obteve prévia autorização do tribunal para a prática do acto referido em 3).

BFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Insurge-se a apelante contra a sentença recorrida que absolveu o réu da instância, por entender que, perante o repúdio da herança por parte do réu, deveria o Tribunal reconhecer a inexistência de outros herdeiros e declarar a herança vaga em benefício do Estado.

Vejamos se assiste razão à apelante.

Na presente acção visa a autora/apelante a condenação do réu, na qualidade de sucessor de um seu devedor entretanto falecido, no pagamento da quantia alegadamente em dívida, em resultado de um contrato de locação financeira celebrado com referido falecido, pai do réu.

Estamos, portanto, perante a denominada “habilitação-legitimidade”, consistente na invocação da qualidade dos sucessores demandados na própria petição inicial, como representante do falecido, neste caso do alegado devedor da demandante, devendo proceder à junção dos documentos  comprovativos dessa factualidade, não sendo necessária a formulação de pedido de habilitação dos sucessores do falecido.

É consabido que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (artigo 2031.º do Código Civil), sendo chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (artigo 2032.º, nº 1 do C.C.).
 
Os titulares de vocação sucessória não têm, necessariamente que aceitar o chamamento. Podem aceitar a herança e, passam de meros sucessíveis para efectivos sucessores, adquirindo o domínio e posse dos bens da herança (
artigo 2050,º, nº 1 do CC).

Mas, também podem não aceitar a herança, o que terá de ser formalizado através de repúdio (
artigos 2062º e seguintes do CCivil), caso em que são chamados os sucessíveis subsequentes, de harmonia com o disposto no artigo 2133.º, nº 1 do CCivil.

O repúdio da herança é utilizado quando alguém quer afastar-se da sucessão a uma herança da qual não está interessado. Tal sucede por razões de ordem pessoal ou por razões de ordem material, designadamente, para evitar o cumprimento de encargos ou obrigações decorrentes dessa mesma herança.

Trata-se, portanto, de um acto pelo qual o chamado responde negativamente ao chamamento sucessório (artigo 2062º do Cód. Civil). Reconduz-se a um negócio jurídico unilateral não receptício e irrevogável (artigo 2066º do Código Civil), que tem lugar após abertura da sucessão, mas os seus efeitos retroagem a essa data, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia (artigo 2062º do Código Civil).

A herança não pode ser repudiada sob condição nem a termo, estando o repúdio sujeito à forma exigida para a alienação da herança.
                             
O herdeiro que repudia a herança, no âmbito da sucessão legal, é substituído pelos seus descendentes por direito de representação, no caso de o herdeiro repudiante ser filho ou irmão do autor da sucessão. Ao passo que no âmbito da sucessão testamentária, o herdeiro repudiante é sempre representado pelos seus descendentes, salvo se o testador tiver disposto de maneira diferente.
No caso em apreciação, ficou provado – v. Nºs 1 a 3 da Fundamentação de Facto - que, na escritura pública outorgada em 22.06.2016, o réu, representado pela mãe, porque menor - já que o mesmo apenas atingirá a maioridade em 31.03.2018, conforme resulta do documento de fls. 54 - disse repudiar a herança do pai, João  B., em relação ao qual a autora alega ter com este celebrado um contrato de locação financeira, do qual resulta uma dívida do falecido para com a autora.

É certo que a lei atribui aos pais a representação legal do filho menor, desse modo se suprindo a incapacidade de agir deste, para que aqueles, nessa qualidade, pratiquem os necessários actos jurídicos em nome do filho (artigo 1878º, n.º 1 do Cód. Civil).

Este poder-dever de agir em nome do filho menor não é, no entanto, inteiramente livre, na medida em que nem sempre por eles pode ser exercido, nomeadamente estando em causa o património do filho menor.

Elenca, por conseguinte, o artigo 1889º do Código Civil, sob a epígrafe “Actos cuja validade depende de autorização do tribunal” um conjunto de actos que os pais não podem praticar sem autorização prévia do tribunal, incluindo-se na alínea j) o repúdio de herança ou do legado.

E, conforme resultou apurado essa autorização não foi requerida pela representante legal do réu, em momento prévio ao repúdio da herança do pai do réu menor – v. Nº 5 da Fundamentação de Facto.
 
Ora, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 272/01 de 13/10, procedeu-se à transferência da competência decisória do tribunal para o Ministério Público, designadamente em matéria de autorização para a prática de actos relativos aos menores pelos respectivos representantes, sendo o Agente do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores da residência do menor - e não o respectivo juiz - a entidade competente para a apreciação e decisão de um processo de autorização judicial para a prática de acto através do representante legal.

Resulta, portanto, do nº 1 do artigo 2º do citado diploma que: São da competência exclusiva do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de:
a)-Suprimento do consentimento, sendo a causa de pedir a incapacidade ou a ausência da pessoa;
b)-Autorização para a prática de actos pelo representante legal do incapaz, quando legalmente exigida;
c)-Autorização para a alienação ou oneração de bens do ausente, quando tenha sido deferida a curadoria provisória ou definitiva;
d)-Confirmação de actos praticados pelo representante do incapaz sem a necessária autorização.

No caso em apreciação, e como acima ficou dito, o acto de repúdio da herança de João  B., por parte da representante legal do menor, carecia de autorização prévia do Ministério Público, que aquela não logrou obter.

Decorre do artigo 1893º do Código Civil, sob a epígrafeActos anuláveis”.
1–Os atos praticados pelos pais em contravenção do disposto nos artigos 1889º e 1892º são anuláveis a requerimento do filho, até um ano depois de atingir a maioridade ou ser emancipado, ou, se ele entretanto falecer, a pedido dos seus herdeiros, excluídos os próprios pais responsáveis, no prazo de um ano a contar da morte do filho.
2–A anulação pode ser requerida depois de findar o prazo se o filho ou seus herdeiros mostrarem que só tiveram conhecimento do ato impugnado nos seis meses anteriores à proposição da ação.
3–A ação de anulação pode também ser intentada pelas pessoas com legitimidade para requerer a inibição das responsabilidades parentais, contento que o façam no ano seguinte à prática dos atos impugnados e antes de o menor atingir a maioridade ou ser emancipado.

No caso vertente, atento o objecto da acção, há que concluir que nunca poderia o Tribunal a quo decidir em sentido diverso da absolvição do pedido ou da instância, tendo optado – e bem – por não proferir decisão que absolvesse o réu do pedido, porquanto atenta a idade do réu, sempre a acção de anulação ainda estará em tempo de poder vir a ser intentada, razão pela qual se mostra correcta a decisão de absolvição do réu da instância.

Sempre se dirá, todavia,  que é no processo especial dos artigos 938º e 939º do CPC que se surpreendem duas fases distintas e sequenciais: a primeira, de natureza declarativa e, a segunda, de natureza executiva, sendo que, na primeira, se mostram consubstanciados os actos e diligências processuais atinentes à declaração da herança vaga para o Estado, com vista à sucessão deste, na sua qualidade de herdeiro legítimo, por força dos artigos 2132º, 2133º, nº 1, al. e) e 2152º a 2155º, todos do Código Civil; enquanto, na segunda fase se regulam as operações da liquidação da herança já declarada vaga a favor do Estado, essencialmente traduzidas na cobrança dos créditos (dívidas activas), na venda judicial dos bens e na satisfação do passivo, por forma a que ao Estado seja adjudicado o remanescente.

Destarte, improcede a apelação, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.

A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

IV.DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.



Lisboa, 21 de Setembro de 2017



Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Martins                                                                               Arlindo Crua