Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10411/2006-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
RENÚNCIA
PENHORA
REGISTO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2006
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A reserva da propriedade assume-se como uma condição suspensiva da transmissão da propriedade da coisa alienada até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
II – Apesar de originariamente pensada para contratos de alienação, nada obsta, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, à aplicação desta figura a contratos diferentes, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o de compra e venda de veículo automóvel apresente uma relação de estreita conexão, consubstanciada no facto de o objecto do primeiro – quantia mutuada – representar o preço do segundo.
III – Tal reserva é passível de renúncia abdicativa (ou renúncia strito sensu) por parte do respectivo titular, através de um negócio ou acto unilateral que, constituindo ex nunc uma nova situação de direito, tem como efeito real a perda ou extinção do direito renunciado, dele ficando privado o respectivo titular.
IV – A propriedade reservada, enquanto direito real de gozo, não cabe no rol dos direitos reais que, nos termos do art. 824º, nº 2 do C. Civil, caducam com a venda em execução e são mandados cancelar oficiosamente, ao abrigo do disposto no art. 888º do C. P. Civil.
V – Por isso, ainda que a nomeação à penhora, pelo exequente, do bem cuja propriedade foi reservada para si valha como manifestação tácita daquela renúncia abdicativa, a execução não pode prosseguir sem que o mesmo exequente proceda ao cancelamento do respectivo registo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: O recurso é o próprio, foi recebido no efeito devido e nada obsta ao seu conhecimento.
Sendo simples a questão a decidir e tendo a mesma sido já apreciada variadíssimas vezes, nos termos consentidos pelo art. 705º do C. P. Civil, sobre ela se passa a proferir decisão sumária.
*
I – Banco […] S. A., em execução que moveu a Carlos […] , nomeou à penhora, entre outros bens, o veículo automóvel da marca Renault, modelo Master, com a matrícula […]

Ordenada e efectuada esta penhora e junta nota do respectivo registo e certidão dos ónus e encargos que incidem sobre o veículo, constatou-se ter o exequente inscrita a seu favor reserva de propriedade sobre ele.

Mais tarde, foi proferido despacho onde se determinou a suspensão da acção executiva no tocante aos termos conexionados com a penhora do veículo automóvel, até que o exequente comprovasse ter procedido ao cancelamento do registo da reserva de propriedade a seu favor.

Contra ele agravou o exequente, tendo apresentado alegação onde, pedindo a sua revogação e substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos, formula conclusões do seguinte teor:

1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre veículo automóvel com a matrícula […] penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz “a quo”.

2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz “a quo” competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente.

3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo e de harmonia com o disposto no art. 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.

4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve agir-se de acordo com o que se prescreve no art. 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada.

5. Tendo o ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre o qual a mesma incide – o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo o exequente renunciado ao “domínio” sobre o bem – pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos arts. 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no art. 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido se errou e decidiu incorrectamente.

6. Caso assim se não entenda, sempre se dirá, que deveria o exequente – titular da reserva de propriedade – ter sido notificado para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, que não foi, mas não ser notificado para requerer o seu cancelamento.

7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu, claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no art. 888º do Código de Processo Civil, violou-se também o disposto nos arts. 5º, nº 1, alínea b) e 29º do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do Registo Predial e artigos 408º, 409º, nº 1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

Foi proferida decisão em que se sustentou o despacho impugnado, sem menção de outros argumentos para além dos que fundaram a decisão emitida.

Cumpre agora decidir.

Visto o conteúdo das conclusões formuladas pelo agravante – que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso –, a questão a decidir consiste essencialmente em saber se o facto de o exequente não ter procedido ao cancelamento do registo da reserva da propriedade de que é titular sobre o veículo penhorado, obsta, ou não, ao prosseguimento da execução no tocante àquele bem.

II – Para além do já descrito no relatório deste acórdão, os factos a ter em consideração para a decisão do recurso são os seguintes:

1. O agravante, ao nomear à penhora o veículo automóvel em causa, indicou-o como sendo bem pertencente ao executado Carlos […].

2. Efectuada essa penhora, o exequente trouxe aos autos certidão, emitida pela Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, de onde consta que, relativamente àquele veículo, se encontram feitos, na mesma Conservatória, os seguintes registos:

a) – do direito de propriedade a favor do aqui executado Carlos […], com data de 5.07.2000;

b) – de reserva da propriedade a favor do Banco […] S. A., também com data de 5.07.2000;

c) – de penhora tendo como sujeito activo o Banco […] S. A., e como sujeito passivo Carlos […] para garantia do pagamento de € 11 925,84, proc. nº 2271-A/2002 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, 2º Juízo Cível, com data de 22.03.2004.
 
III – A reserva da propriedade, figura instituída no art. 409º, nº 1 do C. Civil – diploma a que respeitam as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência - para os contratos de alienação, assume-se como uma condição suspensiva da transmissão da propriedade da coisa alienada, transmissão essa que, segundo o princípio geral constante do art. 408º, é mero efeito de contratos daquela natureza. (1)

Através do “pactum reservati dominii” o alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.

Daí que se venha falando na utilização da propriedade como garantia, exactamente porque, nestes casos, “a titularidade do direito de propriedade é atribuída a um sujeito, não para que ele desfrute da coisa, mas sim como garantia de um seu crédito... (2) 

Apesar de originariamente pensada para contratos de alienação, nada obsta, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, à aplicação desta figura a contratos diferentes, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o de compra e venda de veículo automóvel apresente uma relação de estreita conexão, consubstanciada no facto de o objecto do primeiro – quantia mutuada – representar o preço do segundo. (3)

Foi exactamente o que aconteceu no caso dos autos em que a reserva da propriedade sobre o veículo foi estabelecida, não a favor do vendedor, mas em benefício do mutuante, justamente porque o primeiro recebeu, mercê do contrato de mútuo outorgado pelo comprador, o preço convencionado no âmbito da compra e venda do veículo.

A estes casos são aplicáveis os efeitos prescritos na lei e próprios da reserva de propriedade como se esta houvesse sido constituída a favor do vendedor.

Daí que, mostrando-se inscrita na Conservatória do Registo de Automóveis reserva da propriedade do veículo penhorado a favor do exequente - o que faz presumir a existência do direito e que este pertence ao titular inscrito, nos termos do art. 7º do Código do Registo Predial, aplicável por força do art. 29º do Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro –, se deva concluir que a propriedade daquele se não transferiu para a titularidade do executado, mantendo-se na esfera jurídica do exequente.

Não obstante, este nomeou-o à penhora tendo esta diligência sido realizada.

E recusa proceder ao cancelamento do registo dessa mesma reserva, argumentando, essencialmente, que a circunstância de ter optado pelo cumprimento do contrato, em detrimento da sua resolução que envolveria o funcionamento da reserva de propriedade a seu favor, consubstancia a renúncia à mesma, renúncia que igualmente se extrairá, no seu dizer, do facto de ter nomeado à penhora o bem que dela é objecto e que desde o início foi por ele indicado como pertencendo ao executado. Diz, ainda, não obstar ao prosseguimento da execução a circunstância de aquela reserva continuar inscrita a seu favor na competente Conservatória, na medida em que, por imposição legal, a mesma, após a venda do bem, será mandada cancelar oficiosamente.

Porém, em nosso entender, não lhe assiste razão.

Alguma da nossa doutrina e jurisprudência vem entendendo que o facto de o vendedor não resolver o contrato, optando pela via da satisfação coerciva do seu crédito e instaurando execução onde nomeie ou aceite a nomeação à penhora do bem cuja propriedade reservou para si, envolve a renúncia a essa reserva.(4)

Afigura-se-nos também que tal reserva, instituída no âmbito do princípio da liberdade contratual, como meio de afastar o princípio segundo o qual a transferência da propriedade é mero efeito do contrato de alienação, é, de facto, passível de renúncia abdicativa (ou renúncia strito sensu) por parte do respectivo titular.

Esta, como escreve Francisco Pereira Coelho (5), corporizar-se-á em negócio ou acto unilateral que, constituindo ex nunc uma nova situação de direito, tem como efeito real a perda ou extinção do direito renunciado, dele ficando privado o respectivo titular.

E a declaração unilateral do titular do direito é bastante para a produção do resultado abdicativo.(6) 

Mas, quer se veja na acima descrita actuação do exequente a materialização tácita de uma tal renúncia – art. 217º, nº 1, 2ª parte -, quer se entenda que para tanto é necessária declaração expressa nesse sentido, certo é que a execução não pode prosseguir quanto ao veículo penhorado.

E isto porque, ao contrário do sustentado neste recurso, a propriedade reservada, enquanto direito real de gozo que apenas produz efeitos em relação a terceiros se registado for – arts. 409º, nº 2 do Código Civil e 5º, nº 1, al. a) do Dec. Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro –, na medida em que foi inscrita a favor do agravante em data anterior àquela em que foi registada a penhora efectuada nos autos, não cabe no rol dos direitos reais que, nos termos do art. 824º, nº 2 do C. Civil, caducam com a venda em execução e são mandados cancelar oficiosamente, ao abrigo do disposto no art. 888º do C. P. Civil.

Significa isto que, a efectivar-se a venda judicial do veículo cuja propriedade a agravante para si reservou, estaria o tribunal impedido de ordenar o cancelamento do seu registo, o que levaria à transmissão do bem com aquele ónus.

Daí que, contra o defendido pelo recorrente, sem o cancelamento do registo daquela reserva a execução não possa prosseguir.(7)

Finalmente, carece de fundamento a invocação, feita pelo agravante em sustentação da sua tese, do regime instituído no art. 119º do C. R. Predial.

Na verdade, este preceito, pressupondo, além do mais, a existência de penhora registada provisoriamente por o bem respectivo estar inscrito a favor de pessoa diferente do executado, cria mecanismo tendente a evitar que a execução deixe de prosseguir apenas porque, em virtude de desactualização, a inscrição registral relativa à titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado não retrate a realidade.

Ora, no caso em análise, a penhora promovida pelo agravante e efectuada nos autos não se mostra registada provisoriamente, antes o tendo sido a título definitivo, o que só por si afastaria a aplicação deste preceito legal.

Por outro lado, o que obsta ao prosseguimento da execução não é a circunstância de o executado, estando verificada a condição suspensiva que envolveria a transmissão, para si, da propriedade do veículo – o que obviamente não ocorreu -, ter deixado de promover o cancelamento da reserva, mas sim, o facto de o exequente, titular dessa mesma reserva, e único interessado nisso, não ter procedido a tal cancelamento.

Pelo exposto, não sendo de atender as razões invocadas pelo recorrente, tendentes a demonstrar que não obsta ao prosseguimento da execução o facto de continuar inscrita a seu favor reserva da propriedade sobre o veículo que, por nomeação sua, foi penhorado nos autos, impõe-se a improcedência do recurso.

IV – Assim, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do agravante.

Lxa. 15.12.06

(Rosa Maria Ribeiro Coelho)



___________________________________
1.-Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 376 e Luís Lima Pinheiro, “A Cláusula de reserva de Propriedade” pág. 93 e 113.

2.-Luís Lima Pinheiro, mesma obra, pág. 105.

3.-Ac. desta Relação, de 21 de Fevereiro de 2002, agravo nº 789/02, C. J. 2002, Tomo I, pág. 112 e segs.

4.-Na jurisprudência, cfr., entre outros, os acórdãos juntos, em cópia, pela agravante com a sua alegação; na doutrina, cfr. Lobo Xavier, “Venda a prestações, Algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil”, Coimbra, 1977, pág. 23 a 25.

5.-A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica 8, Coimbra Editora, 1995, pág. 63 a 65.

6.-Autor e obra referidos, a pág. 103, 104, 107

7.-Neste sentido se pronunciaram, entre muitos outros, o já acima mencionado acórdão desta Relação e, bem assim, os acórdãos desta 7ª secção, proferidos nos agravos nº 529/02 (C. J. 2002, tomo II, pág. 124 e segs.), 8886/02 - em que a relatora deste interveio como ajunta -, 1410/03-7, 10134/03-7, 1698/05-7, 3025/05-7, 730/06-7 e 1292/06-7, os seis últimos datados, respectivamente, de 13.05.03, 17.02.04, 8.03.05, 26.04.05, 7.02.06 e 21.02.06 aqui seguidos de muito perto, dado terem sido relatados por quem relata o presente.