Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1068/13.5YRLSB-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: ARBITRAGEM NECESSÁRIA
HONORÁRIOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) Os Tribunais Arbitrais não estão exonerados da escrupulosa observância de critérios de proporcionalidade, nem da sua conformação com o princípio constitucional estruturante da proibição do excesso, corolário do Estado de direito democrático.
II) Como corolário desses princípios, estão impedidos de fixar valores manifestamente desproporcionados ao serviço que prestam.
III) A violação daqueles princípios põe em causa a própria equivalência jurídica das prestações, ainda que se trate de causa de valor muito elevado.(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1. T…, B.V. e R…, Lda., demandadas num processo arbitral necessário iniciado pelas sociedades D… Company Ltd e D… Europe GmbH, vieram, ao abrigo do disposto no artigo 17º nº 3, 59º nº1/d) e 60º da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro, requerer a redução do montante dos honorários fixados pelo Tribunal Arbitral de € 60 000,00 para a globalidade dos Árbitros e de € 4 000,00 para a Secretária, para um valor total máximo até € 15 000,00 € para todos os árbitros e a fixação da remuneração devida à secretária no correspondente a 20% do montante dos honorários que vier a ser atribuído a cada um dos árbitros.
Notificadas as demandantes e o tribunal arbitral, este pronunciou-se, salientando o valor da causa, a complexidade das questões a decidir e a circunstância das demandadas se terem limitado a manifestar a sua discordância, sem proporem um valor concreto, e não terem dado conhecimento aos árbitros quando requereram a fixação judicial dos honorários, dando azo à prática por eles de actos que poderiam não aceitar praticar, ou fundar mesmo a renúncia ao encargo, violando desse modo princípios de boa fé e de cooperação processual.
Por seu turno, as demandantes realçaram a não contraposição, por parte das demandadas, de um valor concreto, quando foram notificadas do valor proposto pelas primeiras a título de honorários dos árbitros e da secretária do T.A. - € 60 000,00 e 20 000,00, respectivamente – valores que entendem “ser razoáveis, equitativos e justos, atento o elevado nível académico destes [árbitros], a importância dos valores imateriais em causa e a potencial dificuldade das questões envolvidas”.

Matéria de Facto.

2. Face aos factos alegados, aos documentos juntos e à sua não impugnação, considera-se assente a seguinte factualidade:

- Na sequência de pedidos de autorização de introdução no mercado (AIM), para diversos medicamentos genéricos, contendo Olmersatan Medoxomilo combinado com Hidroclorotiazida, formulado junto do Infarmed pelas sociedades T…, B.V. e R…, Lda, vieram as sociedades D… Company Ltd e D… Europe GmbH demandar, em processo arbitral necessário, as ditas sociedades T… e R…, Lda, com vista à obtenção de decisão que impedisse a prática pelas demandadas de quaisquer actividades susceptíveis de violarem os direitos que advinham às demandantes da Patente Europeia nº … e do Certificado Complementar de Protecção relativo a medicamentos genéricos contendo a substância activa Olmersatan Medoxomilo, de que são titulares.

- Deliberada a constituição e instalação do Tribunal Arbitral, no que toca ao que denominaram “Encargos da Arbitragem”, as partes acordaram que, até à conclusão dos articulados, poderiam apresentar ao Tribunal Arbitral “uma proposta conjunta quanto ao valor dos honorários dos árbitros e dos encargos administrativos” (ponto 9, do Ato de Instalação de Tribunal Arbitral, fls. 84);

- Mais acordaram que, “na falta de acordo entre as partes e os árbitros, o Tribunal:

a)    Fixará o valor dos honorários dos árbitros, a repartir em partes iguais, nos termos do artigo 17º, n° 2, da nova LAV, aprovada pela Lei n.° 63/2011;

b)    Definirá o tempo e o modo de reembolso das respetivas despesas, considerando-se aqui, em especial, as despesas de alojamento e estada de árbitros não residentes no local da arbitragem;

c)    Determinará o valor dos honorários da Secretária do Tribunal, o qual deve corresponder a 20% dos honorários de um árbitro;

d)     Decidirá acerca dos demais encargos elegíveis como custos do processo, em especial, honorários de eventuais assessores técnicos do TA, despesas com a gravação/desgravação da prova e com a organização de suporte físico do processo, bem como do respetivo tempo e modo de pagamento. A utilização das instalações da ABBC não se inclui nesses custos, sendo cedida gratuitamente por esta sociedade.

Se a arbitragem terminar antes da decisão final, tem lugar a aplicação do disposto no n° 5 do artigo 48° do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, versão de 2008.

Por acordo com as partes, o valor da causa, não inferior a € 30 000,01, pode ser dissociado do valor a atender para a determinação dos honorários dos árbitros, fixados, em qualquer caso, nos termos do artigo 17°, nº2 da LAV, atendendo, quando aí se alude ao valor da causa, à repercussão típica de uma comercialização do medicamento genérico nos lucros decorrentes da respetiva comercialização pelo titular da patente.

Se necessário e em caso de dúvida, aplicam-se, ainda, com as devidas adaptações, as regras constantes do Capítulo VI do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, e respectivas tabelas anexas, cabendo ao Presidente do Tribunal Arbitral decidir sobre as matérias aí cometidas ao Presidente do Centro de Arbitragem.

11. Sem prejuízo de poder ser ordenado um eventual reforço das provisões, com a petição inicial, as Demandantes procedem ao pagamento, a título de provisão inicial, de € 4500 (2250 + 2250), acrescido de IVA à taxa legal em vigor, quando aplicável. Da mesma forma, com a contestação, cada Demandada procede ao pagamento, a título de provisão, de € 2250, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, quando aplicável. Apresentando as Demandadas contestação comum, será devida uma única soma, de € 4500 (2250 + 2250).

12. Quanto ao mais, aplicam-se as regras do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da CCIP, em especial os artigos 52° a 54°, sendo o valor do preparo inicial levado em conta nos 35% do montante dos encargos a que alude o artigo 52°, n° 2.” (pontos 10 a 12 do Ato de Instalação de Tribunal Arbitral, fls.85 e 86).

- Acordaram ainda, no segmento atinente às regras processuais a adoptar, que “Cada parte suportará os honorários e despesas dos peritos que designar” (ponto 17) e, no segmento atinente ao “Regime subsidiário”, acordaram que, à presente arbitragem se aplicariam subsidiariamente, “na medida do possível e com as devidas adaptações, o Regulamento de Arbitragens do Centro de Arbitragem da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa (2008) e a Lei da Arbitragem Voluntária” (ponto 27).

- Não tendo havido acordo das partes no que respeita à proposta conjunta de honorários dos árbitros e encargos administrativos, as demandantes apresentaram proposta no sentido do valor da causa ser fixado em € 30 000,01 e propuseram o valor de € 20 000,00, a título de honorários para cada um dos árbitros, “atento o elevado nível académico destes, a importância dos valores imateriais em causa e a potencial dificuldade das questões envolvidas”, sendo esse valor reduzido entre 30% e 50%, caso o processo viesse a terminar, por acordo ou por inutilidade superveniente da lide, antes da audiência de produção da prova. E propuseram que a remuneração da secretária do TA correspondesse a 20% dos honorários dos árbitros, ou seja, no caso, € 4 000,00.

- As demandadas não apresentaram qualquer proposta, nem responderam à proposta das Demandantes.

- Por despacho de 24.07.2013, o Presidente do TA determinou:

 “1. Reiterar o convite às Demandadas para dizerem, até ao final do corrente mês de Julho, se aceitam a fixação do valor da causa em € 30 000,00, dissociando-o do valor dos honorários dos árbitros.

“2. Convidar de novo as Demandadas a indicar, no mesmo prazo, o valor total dos honorários dos três Árbitros que, tendo em conta o estado actual do processo e o provável desenvolvimento do processo consideram razoável”.

- Na sequência dessa notificação, as demandadas declararam não se opor a que o valor da causa fosse fixado em € 30 000,01, e quanto aos honorários afirmaram não poderem indicar qualquer valor “dissociado do valor atribuído à causa, de acordo com os critérios da tabela constante do Regulamento do Centro de Arbitragem da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa de 2008”, tanto mais que, desde início, a mesma nem sequer se deveria ter iniciado, pelas circunstâncias enunciadas na contestação.

E terminaram reafirmando a discordância delas com o proposto valor de € 60 000,00, “tendo presente quer a falta de complexidade dos presentes autos, quer os valores que têm sido acordados noutras arbitragens e, principalmente, as recentes decisões do Tribunal da Relação de Lisboa de redução de honorários” (fls. 100).

- Em sede de despacho saneador, o TA, para além de julgar improcedentes duas das excepções deduzidas pelas Demandadas na contestação – inutilidade da lide por duplicação de processos arbitrais e caducidade/extemporaneidade – e de relegar para final o conhecimento da terceira – falta de interesse processual das demandantes – de enunciar os factos já assentes [61] - e os controvertidos [8], fixou o valor da causa em € 14 milhões.

- E ponderando esse valor, complexidade das questões suscitadas, tempo despendido (inclusive nos preliminares até à aprovação do Acto de Instalação) e a despender, o Tribunal fixou o valor global dos honorários devidos aos “Árbitros em € 60 000,00, mais IVA se for o caso, a que correspondem, nos termos do Ato de Instalação do Tribunal, 4 000,00 para a secretária, como proposto pelas Demandantes”, ressalvando a hipótese das partes virem a chegar a acordo, caso em que haveria uma redução do valor para € 21 000,00.

- E para além de ser ordenada a notificação das partes para sugestões e apresentação de prova complementar, o TA designou logo dia para a audiência, com as advertências habituais e reforço de preparos.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

O Direito.

3. Tem esta acção como objectivo a redução dos honorários que o Tribunal Arbitral constituído decidiu fixar para os árbitros que o integram e respectiva secretária – € 60 000,00 e € 4 000,00 – valores que as requerentes entendem não dever exceder um máximo global de € 15 000,00, para os primeiros. 

Encontramo-nos no âmbito de um processo de arbitragem necessária, à qual tem aplicação, em tudo o que não estiver especialmente regulado na lei que a impuser, o disposto na Lei de Arbitragem Voluntária (art. 1085º do Novo Código de Processo Civil).

Na fase de constituição e instalação do Tribunal Arbitral, as partes, para a hipótese de não haver acordo sobre o valor dos honorários, acordaram logo que seria o próprio Tribunal Arbitral (TA) a fixá-los, de acordo com o disposto no art. 17º nº 2 da L.A. V., aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro.

Ora, estabelece o dito artigo 17º o seguinte:

 «1- Se as partes não tiverem regulado tal matéria na convenção de arbitragem, os honorários dos árbitros, o modo de reembolso das suas despesas e a forma de pagamento pelas partes de preparos por conta desses honorários e despesas devem ser objecto de acordo escrito entre as partes e os árbitros, concluído antes da aceitação do último dos árbitros a ser designado.

2- Caso a matéria não haja sido regulada na convenção de arbitragem, nem sobre ela haja sido concluído um acordo entre as partes cabe aos árbitros, tendo em conta a complexidade das questões decididas, o valor da causa e o tempo despendido ou a despender com o processo arbitral até à conclusão deste, fixar o montante dos seus honorários e despesas, bem como determinar o pagamento pelas partes de preparos por conta daqueles, mediante uma ou várias decisões separadas das que se pronunciem sobre questões processuais ou sobre o fundo da causa.

3- No caso previsto no número anterior do presente artigo, qualquer das partes pode requerer ao tribunal estadual competente a redução dos montantes dos honorários ou das despesas e respectivos preparos fixados pelos árbitros, podendo esse tribunal, depois de ouvir sobre a matéria os membros do tribunal arbitral, fixar os montantes que considere adequados».

Por sua vez, dispõe o artigo 59º da LAV que:

«1- Relativamente a litígios compreendidos na esfera de jurisdição dos tribunais judiciais, o Tribunal da Relação em cujo distrito se situe o lugar da arbitragem ou, no caso da decisão referida na alínea h) do nº 1 do presente artigo, o domicílio da pessoa contra quem se pretenda fazer valer a sentença, é competente para decidir sobre:

(...)

d) A redução do montante dos honorários ou despesas fixadas pelos árbitros, ao abrigo do nº 3 do artigo 17».

Assim sendo, na apreciação do pedido de redução dos montantes dos honorários dos árbitros, salvo se coisa diversa for acordada, há que atender, predominantemente, à complexidade das questões decididas, ao valor da causa e ao tempo despendido e a despender até à sua conclusão (nºs 2 e 3 do citado art. 17º da L.A.V.).

Mas qual será o “valor da causa” a atender para o efeito? 

Extrai-se dos autos que o valor proposto e aceite pelas partes - € 30 000,01 - não corresponde à utilidade económico do pedidos das demandantes, nem foi o querido para preencher o conceito de “valor da causa” ínsito no primeiro dos preceitos referidos, tanto mais que aquelas logo acordaram que esse valor (mínimo) poderia “ser dissociado do valor da causa a atender para a determinação dos honorários”, acabando, por admitir, “se necessário e em caso de dúvida”, o recurso às disposições do denominado Regulamento de Arbitragem (2008), ou seja, à Tabela nº1, anexa ao mesmo (art. 48º), cuja previsão assenta no dito “Valor do litígio”, como se de coisa diversa se tratasse.   

Tudo ponderado, entende-se que o que as partes verdadeiramente aceitaram como valor da causa para efeitos dos honorários e deixaram enunciado no “Ato de Instalação de Tribunal Arbitral” foi, efectivamente, o correspondente à utilidade imediata económica do pedido/quantia em dinheiro equivalente ao benefício (art. 296º nº 1 e 297º nº 1, 2ª parte do CPC), nunca claramente enunciado, mas que o TA acabou por fixar, “números redondos” em 14 milhões de euros (cfr. fls. 139).

No que respeita à complexidade, releva o facto de se estar perante um processo contestado, com dedução de excepções já conhecidas no despacho saneador, com enunciação dos factos assentes e controvertidos, a exigirem prova de carácter técnico, mas sem particular exigência dentro da especificidade própria da lide.

Ora, como os Tribunais Arbitrais, embora se não “enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos de soberania e não sejam órgãos do Estado, nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos como categoria autónoma de tribunais" (cfr. Ac. T. Constitucional nº 230/86, citado no acórdão desta Relação de 3.10.2013 –proc nº 747/13.1YRLSB.L1-8.), também não estão exonerados da escrupulosa observância de critérios de proporcionalidade, nem da sua conformação com o princípio constitucional estruturante da proibição do excesso, corolário do Estado de direito democrático (cfr. artº 2.º, da C.R.P.).

Do que deriva estarem impedidos da fixação de valores manifestamente desproporcionados ao serviço prestado, o que, a suceder, porá em causa a própria equivalência jurídica das prestações (cfr., v.g., Ac. TC nº 1108/96, também referenciado no acórdão desta Relação acima identificado), ainda que se trate de causa de valor muito elevado, como acaba por ser a presente.

Daí que se deva concluir, tal como o colectivo subscritor do referenciado acórdão deste Tribunal, que “o sinalagma entre serviços prestados no âmbito destes autos e a respectiva contrapartida monetária, a pagar pelas partes” seja de ponderar “à luz de critérios de proporcionalidade, equidade, justiça diluídos pela noção de adequação à quantificação e qualificação dos actos processuais levados a cabo”.

E assim sendo, não obstante o valor, elevado, dos interesses económicos subjacentes à presente lide, a qualidade técnica dos árbitros, as vantagens que o legislador anteviu com o recurso à intervenção do TA (com afastamento da regra geral de atribuição de competências jurisdicionais aos tribunais comuns), a actividade processual já desenvolvida e, supostamente a desenvolver, tudo temperado com ditos critérios de proporcionalidade e equidade, tem-se como adequado fixar os honorários devidos a cada um dos árbitros em € 10 000,00.

E como as partes aceitam que os honorários devidos à Secretária devem corresponder a 20% do valor dos honorários devidos aos árbitros, ascendem os mesmos a € 2000,00.

Procede, assim, em parte, a pretensão das demandadas.

Decisão.

4. Termos em que, deferindo parcialmente o requerido, se reduz para € 10 000,00 (dez mil euros) o montante de honorários devidos a cada um dos árbitros, o que acrescido dos ditos 2 000,00 de honorários da Secretária do TA, determina um valor global de € 32 000,00 de honorários.

Custas por requerentes e requeridas, na proporção do respectivo decaimento.

             Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014.

          (Maria Manuela B. Santos G. Gomes)

                        (Fátima Galante)

                         (Gilberto Jorge)