Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3865/2004-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: CITAÇÃO EM PAÍS ESTRANGEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A Convenção Europeia dos Direitos do Homem não exige, em processo civil, a tradução dos actos judiciários na língua do respectivo destinatário, bastando-lhe que a pessoa que recebe uma notificação para comparecer possa dispor de tempo e de facilidades necessárias para a poder traduzir.
O direito de acesso aos tribunais é, fundamentalmente, um direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e de independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretar sobre o valor e resultado de umas e de outras; ensina-nos, todavia, a experiência da vida que a normalidade é no sentido de que, quem recebe uma comunicação escrita em língua que não conheça, logo diligencie por obter a respectiva tradução.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Na providência cautelar de arresto que a Oceanvision - Construtores Navais, Ldª, intentou contra MRMC - Motu Rowena Marine Company, Limited, veio esta a arguir a sua falta de citação, alegando desconhecimento do acto, por não ter sido acompanhado da respectiva tradução.
Tal veio a ser indeferido por despacho de 17-12-2003, certificado a fls. 3 e sgs. destes autos.
Inconformada com essa decisão, dela agravou a requerente para este Tribunal.
Mas sem razão, porquanto a decisão recorrida, integrada pelo despacho de sustentação de 19-03-2004, prolatado a fls.111 e segs., com adequada e cabal fundamentação de facto e de direito, contém a solução correcta das questões que lhe foram colocadas.
Para melhor salientar a sem razão da recorrente, entendemos acrescentar apenas o seguinte:

- O artº 384º do CPC consagra as características da instrumentalidade e da dependência do processo cautelar em relação ao processo principal. "E, porque assim é - escreve-se no Ac. do STJ, de 30-09-99 -, a relação entre o processo cautelar e o processo principal (de que aquele depende) é uma relação instrumental, o que significa que a providência cautelar é emitida na pressuposição ou na previsão da hipótese (instrumentalidade hipotética) de vir a ser favorável ao autor a decisão a produzir no processo principal" (BMJ 489 - 294).
Se é certo que a lei estabelece uma mera eficácia relativa da providência cautelar em relação à acção principal (nº 4 do citado artº 384º), já, no que concerne à influência do processo principal no processo cautelar, esta surge configurada, na prática, como absoluta (artº 389º do CPC).
"As providências cautelares estão necessariamente dependentes de uma acção pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que venha a ser favorável ao requerente a decisão a proferir no processo principal.
Mesmo para aqueles que consideram os procedimentos cautelares uma categoria diferenciada, um tertium genus entre o processo declarativo e o processo executivo, vendo neles um instrumento jurídico cujo objecto é distinto do objecto do processo principal, não deixam de apontar como uma das características fundamentais a instrumentalidade.
Os efeitos de qualquer providência estão dependentes do resultado que for conseguido na acção definitiva, e caducam se a acção não for instaurada, se esta for julgada improcedente ou se o direito tutelado se extinguir (artº 389º)" (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., 2ª ed., pág. 126).
Neste enquadramento, há-de convir-se que todas as vicissitudes do processo principal, mesmo as de natureza simplesmente adjectiva, desde que susceptíveis de influenciar o destino do processo cautelar, se reflectem neste directamente.
Está-se, pois, muito para lá da autonomia entre os processos apensados, ao abrigo do mecanismo previsto no artº 275º do CPC.
Daí que os efeitos da intervenção das partes em qualquer dos processos e, nomeadamente, no processo principal se tenham de entender como extensível a ambos, como se de um único processo se tratasse.

- A convenção Europeia dos Direitos do Homem, cuja ratificação foi aprovada pela Lei nº 65/78, de 13/10, não consagra o direito à liberdade linguística em justiça, salvo no que concerne ao processo penal, por força do n.º 2 do artigo 5º e do n.º 3, alíneas a) e e) do artigo 6º.
Com efeito, no que respeita ao acto de acusação ao arguido, a Convenção exige que o seja em língua que ele entenda (al. a) do n.º 3 do artigo 6º).
Estabelece, todavia, é certo, que qualquer pessoa (singular ou colectiva) tem o direito a que a sua causa seja examinada equitativamente (artº 6º, nº 1).
O conceito de processo equitativo tem sido desenvolvido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem em termos de considerarem que ele não pode ser definido em abstracto, mas em concreto, ou seja, segundo as circunstâncias particulares de cada caso e no seu conjunto; no fundo, tem-se entendido que um processo equitativo exige, como elemento co-natural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses, numa posição não inferior à da parte contrária, e que o tribunal deve proceder ao efectivo exame dos meios, argumentos e elementos de prova oferecidos pelas partes, o que necessariamente implica a obediência aos princípios do contraditório e da igualdade de armas, ou seja, da igualdade processual das partes (cfr. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 133, citado pela agravante).
Com efeito, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem já entendeu que o facto da Convenção não se reportar expressamente à língua utilizada nos actos processuais civis, tal não significa que a questão não possa ser equacionada no quadro do princípio do processo equitativo, e que isso dependerá do circunstancialismo do caso concreto.
Mas não tem considerado que a Convenção em causa exija, em processo civil, a tradução dos actos judiciários na língua do respectivo destinatário, bastando-lhe que a pessoa que recebe uma notificação para comparecer possa dispor de tempo e de facilidades necessárias para poder traduzir, de que é exemplo o Ac. de 9-12-81 (Decisions e Rapports, vol. 27, Setembro de 82, referido por Irineu Barreto, ob. cit.)
Assim, mesmo admitindo o conceito que a Comissão Europeia dos Direitos do Homem tem do processo equitativo, a conclusão deve ser no sentido de que a Convenção só excepcionalmente exige a tradução dos actos de citação por via postal de estrangeiros no estrangeiro, ou seja, quando o sistema processual do Estado do foro não garanta que o citado disponha de tempo razoável para obter a tradução dos actos judiciários (cfr. o Ac. da RL, de 19-02-1998, Processo nº 7973/97 desta Secção, inédito).
Ora, se ao prazo de 30 dias para contestar, acresce o prazo de 30 dias de dilação, contado desde o recebimento da carta de citação (artigos 486º, n.º 1 e 252º-A, n.º 3), só numa visão muito redutora das coisas e do direito tal não será de considerar como tempo razoável para obter a tradução dos actos judiciários e preparar a defesa.
Além disso, quando o tribunal considera que ocorre motivo ponderoso que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário judicial a organização da defesa, poderá, a requerimento deste, e sem prévia audição da parte contrária, prorrogar-lhe o prazo de contestação, até ao limite máximo de 30 dias (artigo 486º, n.º 5).
- Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e, nessa actividade, incumbe-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 202º, n.º 1 e 2 da CRP).
Assim, o conteúdo da função jurisdicional, da competência dos tribunais, integra a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Neste sentido, prescreve o artigo 20º da Constituição, além do mais, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, o que se traduz no princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e que todos têm direito, nos termos da lei, à informação e à consulta jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado princípio da proibição da indefesa, é indiscutivelmente um direito de natureza processual ínsito no direito de acesso aos tribunais constante do artigo 20º da Constituição, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos, decorrentes de um efectivo cerceamento ao seu exercício de defesa.
"A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á, sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 3ª ed., págs. 163/164).
Isto significa que o direito de acesso aos tribunais para defesa dos referidos direitos é, fundamentalmente, um direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e de independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretar sobre o valor e resultado de umas e de outras.
Ensina-nos, todavia, a experiência da vida que a normalidade é no sentido de que, quem recebe uma comunicação escrita em língua que não conheça, logo diligencie por obter a respectiva tradução, o que, in casu, até se mostrava facilitado, pois o expediente da citação foi acompanhado de uma cópia do contrato em cujo incumprimento se suporta a causa de pedir e de um certificado de construção redigidos em inglês, seja, na língua oficial do território em que a citanda se encontra sediada.
Por outro lado e como supra já se referiu, os prazos de contestação de acções intentadas em tribunais portugueses contra estrangeiros residentes ou sediados no estrangeiro citados por carta registada com aviso de recepção, garantem o razoável prazo de organização da defesa, incluindo a diligência de tradução ( citados arts. 486º, nºs 1 e 5 e 252º A, nº 3 do CPC), não assumindo, por isso, o ónus desta, relevância justificadora de uma postergação intolerável (leia-se, impossibilitante ou, minime, irrazoavelmente limitativa) do exercício do direito de acção ou de defesa.
A vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da proibição do arbítrio, em que se concentram os princípios da igualdade processual ou da igualdade de armas, de que decorre que o direito de acesso aos tribunais há-de poder exercer-se em condições de plena igualdade, designadamente em termos de as partes no processo deverem ser colocadas em plena paridade de condições no tocante à defesa dos respectivos direitos e interesses (cfr. o Ac. do TC nº 86/88, de 13-4-88, DR, 2ª série, de 22-8-88, pág. 7629), é perfeitamente conforme com o estabelecimento de regras divergentes para situações que apresentem especificidades merecedoras de tratamento desigual. Doutro modo, a garantia de igualdade pensada na Constituição não tem um significado absoluto, conformando-se com as discriminações ou desigualdades que sejam devidamente fundamentadas (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., págs. 149 e sgs. e o Ac. do TC nº 191/98, de 19-2-98, DR, 2ª série, de 24-7-98, pág.10347).
E tal é o caso, pois, como se refere, e bem, na decisão sindicanda, nos tratados internacionais não são impedidas, antes acontecem, por norma, derrogações dos Estados contratantes relativamente às mais variadas matérias, por razões ligadas às especificidades de cada um desses Estados.
Concluindo, a vertente da protecção judiciária, que se extrai dos arts. 13º e 20º da CRP e está ínsita no nosso Estado de direito democrático consagrado no artº 2º do mesmo diploma fundamental, não é beliscada quando, como aconteceu, se interpretaram as regras previstas nos arts. 247º do CPC e 10º, a) da Convenção de Haia, de 15-11-1965 (no aplicável à ilha de Man), no sentido de estar dispensada a tradução dos pertinentes actos de citação para a língua inglesa.

Assim, nos termos dos arts. 713º, nº 5 - na redacção dada pelo DL nº 329-A/95, de 12/12 - e 749º do CPC, acorda-se em negar provimento ao recurso, remetendo-se para os fundamentos da decisão impugnada, integrada, nos termos sobreditos, pelo respectivo despacho de sustentação.

Custas pela agravante.

Lisboa, 27-05-2004

Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Alvito Roger de Sousa