Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
689/14.3YXLSB.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA DE VEÍCULO
SALVADOS
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663º nº 7 do CPC)

1. No nosso direito predomina o princípio da livre apreciação das provas, consagrado no artigo 607º, nº 5, 1ª parte do CPC: o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Na reapreciação das provas pelo Tribunal da Relação também se impõe a obediência à regra constante do artigo 414º do CPC que estabelece que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto, ela se terá de resolver contra a parte à qual o facto aproveita, tendo em consideração, segundo o que se dispõe no artigo 346º do Código Civil, o efeito da dúvida que a contraprova consiga suscitar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

RELATÓRIO

MARKETING, LDA., com sede na Rua ……, intentou, em 09.05.2014, contra COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Rua ……, AUTO, LDA., com sede na Rua ……., acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, através da qual pede a condenação solidária das Rés no pagamento:
a. da quantia de € 15.500,00, referente ao valor do salvado do veículo m
...;
b. da quantia de € 3.061,57, a título de juros de mora vencidos, desde a data em que a autora autorizou a ré AUTO a levantar o veículo, até à data da propositura da acção (09.05.2014);
c. de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Fundamentou a autora, no essencial, esta sua pretensão da seguinte forma:
1. Em 22-10-2010, celebrou com o Barclays Bank, PLC um contrato de locação financeira mobiliária que teve por objecto o veículo de matrícula....
2. Em cumprimento do acordado no âmbito do referido contrato a Autora, através do Barclays Bank, PLC, celebrou com a 1ª ré, seguradora, um contrato de seguro que veio a ser titulado pela apólice 0045.10.900399, com o capital seguro de € 42.500,00.
3. Em 16 de Fevereiro de 2011 o veículo objecto do contrato de locação financeira sofreu um sinistro que provocou a perda total do bem.
4. A 1ª ré, seguradora comunicou à Autora que atendendo à cobertura da apólice o montante da indemnização ascendia à quantia de € 23.795,12 e que ao salvado foi atribuído o valor de € 15.500,00.
5. Em adição, a 1ª ré, seguradora, comunicou ainda à Autora que na qualidade de proprietária podia dar o destino que entendesse ao veículo e que no caso de pretender proceder à sua comercialização, pelo valor de € 15.500,00, poderia fazê-lo através da 2ª ré, “AUTO.”, entidade que se comprometeu a adquiri-lo pela referida quantia.
6. A autora informou a 1ª ré, SEGURADORA, e o Barclays Bank, PLC que aceitava o valor de € 15.500,00 atribuído ao salvado e que pretendia cancelar o contrato de leasing.
7. A 1ª ré, SEGURADORA, emitiu o recibo de indemnização no valor de € 23.795,12, ficando o salvado na posse da autora.
8. A autora concluiu o negócio de venda do salvado com a 2ª ré, “AUTO”. pelo valor de € 15.500,00. E, face à referida venda, autorizou a “AUTO” a levantar o veículo na oficina onde se encontrava.
9. Porém, até ao presente, a 2 ré “AUTO” nada pagou à autora por conta da compra do salvado.

Citadas, as rés apresentaram contestação, em 16.06.2014.

Alegou, em resumo, a 2ª ré, “AUTO”, que:
1. O veículo de matrícula... é propriedade do Barclays Bank, PLC e que a autora é apenas locatária do mesmo.
2. A proposta de aquisição do veículo estava dependente da viatura se encontrar no estado em que foi apresentado à ré (só com os danos identificados na peritagem) e da respectiva documentação estar em ordem.
3. O veículo não se mostrava no estado em que se encontrava aquando da proposta de aquisição e a autora carecia de legitimidade para vender o salvado.
4. A ré comunicou à autora que não poderia concretizar o negócio dado o salvado ter sofrido depreciação assinalável e a autora aceitou a referida recusa.

A 2ª ré deduziu ainda reconvenção, alegando que:
1. O veículo... encontra-se desde 20.10.2012, após a frustração do negócio, nas instalações da ré a pedido da autora.
2. A ré/reconvinte informou a autora que o parqueamento da viatura importaria o pagamento de um valor diário de € 12,00, acrescido de IVA.
3. A autora/reconvinda, interpelada, não procedeu ao pagamento da quantia reclamada.

Concluiu a 2ª ré, pugnando pela improcedência da acção e pela procedência do pedido reconvencional, com a condenação da autora/reconvinda a pagar à ré/reconvinte a quantia de € 7.248,00.

Por seu turno, a 1ª ré, SEGURADORA, alegou, em síntese, que
1. Se o negócio de compra e venda do salvado não se concretizou, a 1.ª Ré é alheia a tal processo e não pode ser responsabilizada.
2. O salvado sempre esteve na posse da autora, pelo que a 1.ª ré não teve qualquer intervenção a este nível.

Concluiu, defendendo a improcedência da acção, relativamente à ré SEGURADORA, e a sua absolvição dos pedidos formulados pela Autora.

A autora, notificada da contestação/reconvenção da Ré “AUTO”., apresentou réplica, em 18.09.2014, pugnando pela improcedência da matéria de excepção e da reconvenção formulada. Peticionou ainda a autora a condenação da ré/reconvinte “AUTO”. como litigante de má-fé.

A ré/reconvinte “AUTO”. respondeu, em 29.09.2014, defendendo a improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé formulado pela autora.

Foi levada a efeito a audiência prévia, em 15.01.2015, na qual foi proferido o despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os Temas da Prova, tendo as partes declarado que nenhuma reclamação tinham a fazer.

Foram apresentados os respectivos meios de prova e levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, em 23.04.2015 e 03.06.2015, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, em 16.07.2015, constando do Dispositivo da Sentença o seguinte:

Pelo exposto, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, decide-se:
a) Absolver a Ré SEGURADORA do pedido contra si formulado pela Autora MARKETING, LDA.
b) Condenar a Ré AUTO, LDA. a pagar à Autora MARKETING, LDA. a quantia de € 15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencidos, desde a data da citação (16.05.2014), e vincendos até efectivo e integral pagamento.
c) Absolver a Ré AUTO, LDA. do remanescente peticionado (juros) pela Autora.
d) Absolver a Reconvinda MARKETING, LDA. do pedido contra si formulado pela Reconvinte AUTO, LDA.
e) Não condenar a Ré A AUTO, , LDA. como litigante de má-fé.
(…)

Inconformada com o assim decidido, a 2ª ré, AUTO, LDA, interpôs, em 30.09.2015, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:
i. O veículo sofreu uma depreciação que impossibilita a satisfação do fim para que seria adquirido;
ii. Por essa razão, o veículo não se encontra no estado em que foi apresentado à Recorrente “AUTO”;
iii. Na medida em que essa depreciação impossibilita o aproveitamento do veículo, a Recorrente “AUTO” não tem interesse na manutenção do negócio;
iv. Sendo que o mesmo foi comunicado à Recorrida Marketing, conforme foi dado como provado no ponto 17 da fundamentação de facto da douta sentença;
v. O Tribunal ad quem deve, respeitosamente, dar como provado, alterando o entendimento do Tribunal o quo, que "[a] proposta apresentada pela Ré “AUTO” (e transmitida pela Ré SEGURADORA, à Autora Marketing, Lda.) para aquisição do veículo de matrícula... (pelo valor de € 15.500,00) ficou dependente:
a. Da viatura se encontrar no estado em que foi apresentado à Ré (apenas com os danos verificados na peritagem),
b. Da documentação da viatura estar em ordem."
vi. A concretização do negócio, como é comum na generalidade das relações jurídicas, ficou dependente da condição da viatura se encontrar no estado em que foi apresentado à Recorrida “AUTO”;

A autora apresentou contra-alegações, em 17.11.2015, propugnando pela improcedência do recurso interposto pela 2ª ré, e formulou as seguintes CONCLUSÕES:
i. O veículo em apreço não sofreu qualquer depreciação, pelo menos demonstrada e provada, que possa impossibilitar a satisfação do fim para que foi adquirida pela Recorrente à Recorrida;
ii. Não demonstrou nem provou a Recorrente que o veículo em apreço não se encontra no estado em que lhe foi apresentado;
iii. Não tendo a Recorrente demonstrado nem provado que o veículo em apreço não se encontra no estado em que lhe foi apresentado, age de má-fé e em abuso de direito quando alega o seu desinteresse na manutenção do negócio;
iv. Ainda que a Recorrente tenha comunicado à Recorrida que já não pretendia ficar com o salvado, a Recorrida nunca aceitou tal facto, não só mas também porque não aceita o alegado pela Recorrente quanto à alegada depreciação da viatura;
v. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não deverá ser objeto de qualquer alteração, porquanto respeita todas as exigências legais;
vi. A viatura dos autos foi entregue à Recorrente no exato estado em que lhe foi apresentada, caso contrário nunca a Recorrente a tinha deslocado para as suas instalações sem que a devolvesse e cobrasse todos os custos em que incorreu com o seu transporte de Beja para Braga.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
I. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto;
ii) A VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.
O que implica ponderar sobre:
· A venda de coisa defeituosa e a falta de interesse na realização da prestação, por parte da apelante.


III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:
1. Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto social a impressão, publicação e distribuição de livros, revistas, jornais e brochuras e qualquer outra edição tipográfica, o comércio dos bens atrás descritos, incluindo a exploração e gestão de postos de venda, bem como a importação e exportação de quaisquer bens ou serviços bem como a angariação de publicidade e a realização de eventos, concursos, passatempos publicitários ou promocionais.
2. A 1ª Ré (SEGURADORA, SA.) é uma sociedade comercial que tem como objecto, entre outros, o exercício da actividade de seguro e de resseguro.
3. A 2ª Ré (“AUTO”.) é uma sociedade que se dedica ao comércio de veículos automóveis e motociclos (salvados e usados), suas peças e acessórios.
4. Em 22.10.2010 a Autora celebrou com o Barclays Bank, PLC o contrato de locação financeira mobiliária n.º 1019840, tendo por objecto a viatura da marca BMW, modelo X1 SDRIVE 18d, com a matrícula..., com a subscrição do documento cuja cópia se mostra inserta a fls. 11 a 24, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Nos termos do mencionado contrato de locação financeira a Autora obrigou-se ao pagamento de 48 rendas mensais e, caso exercesse a opção de compra no final do contrato, a liquidar um valor residual de € 3.512,40.
6. Foi ainda acordado entre a Autora e o Barclays Bank, PLC que a Marketing, Lda. teria de contratar um seguro de responsabilidade civil e danos próprios com franquia de 2,00% (dois pontos percentuais), com cobertura de € 50.000.000,00 (cinquenta milhões de euros) para a responsabilidade civil e ainda cobertura de incêndio, raio e explosão, furto ou roubo, quebra de vidros, choque, colisão e capotamento, riscos catastróficos para os danos próprios.
7. Para cumprimento das condições contratuais referente aos seguros obrigatórios, a Autora, por intermédio do Barclays Bank, PLC, celebrou com a SEGURADORA Um contrato de seguro titulado pela apólice 0045.10.900399 através do qual transferiu a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula... e os danos próprios, nomeadamente com choque, colisão ou capotamento, para a seguradora, com o valor do veículo de € 42.500,00, com a subscrição do documento cuja cópia se mostra inserta a fls. 24 a 26 e com as condições especiais e particulares de fls. 90 a 93, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. No dia 16 de Fevereiro de 2011 o veículo de matrícula... sofreu um acidente de viação, a sua condutora perdeu o controlo do veículo, entrou em despiste e saiu da estrada.
9. Na sequência da avaliação pericial efectuada ao veículo..., pela sociedade DualPeri – Gabinete Técnico de Peritagens, Lda., a pedido da SEGURADORA, em 26-07-2011, a sua reparação foi orçamentada em € 42.100,57, o seu valor de venda de mercado era de € 40.800,00, e o mesmo foi considerado Perda Total.
10. Face à existência de cobertura de danos próprios a SEGURADORA enviou à Autora a correspondência cuja cópia se mostra inserta a fls. 32, datada de 02 de Agosto de 2011, a comunicar:
Atendendo a que a apólice tem cobertura facultativa de Choque, Colisão ou Capotamento, o montante calculado é de € 40.145,12, de acordo com o estabelecido nas Condições Especiais da Apólice, Artº 2, n.º 2, alínea b), ao qual há a deduzir a franquia contratual de € 850,00 e valor do salvado.
Ao veículo acidentado foi atribuído o valor de € 15.500,00, pelo que o montante de indemnização será de € 23.795,12.
Realçamos que, na qualidade de proprietário, pode dar ao veículo o destino que entenda conveniente e, caso pretenda proceder à sua comercialização, pelo valor acima mencionado, poderá fazê-lo através da entidade abaixo referida, que se compromete a adquiri-lo por aquela quantia. O valor estabelecido é válido por 70 dias, tendo em conta que neste prazo é entregue toda a documentação necessária à respectiva tramitação da viatura acidentada.
Comprador do Salvado: AUTO,LDA.
Telefone: 253276076
E-mail: “AUTO”auto@sapo.pt
Morada: Rua …….”.
11. Em resposta, em 09 de Agosto de 2011, a Autora informou a SEGURADORA e o Barclays Bank, PLC que aceitava o valor de € 15.500,00, e que queria “cancelar o respectivo contrato de leasing”.
12. Atenta a aceitação do valor de € 15.500,00 pela Autora, a SEGURADORA emitiu, em 25 de Agosto de 2011, o recibo de indemnização de fls. 34, no valor de € 23.795,12, que aqui se dá por integralmente reproduzido, referente à perda total da viatura..., ficando o salvado na posse da Marketing, Lda., como indemnização por todos os danos patrimoniais, não patrimoniais e/ou despesas resultantes do sinistro acima mencionado.
13. A Autora entrou em contacto com a “AUTO”. com quem concluiu o negócio de venda do salvado pelo valor de € 15.500,00, tendo remetido à SEGURADORA e ao Barclays Bank, PLC, a pedido da “AUTO”, em 19 de Outubro de 2011, uma adenda à carta de 09 de Agosto de 2011 de que havia aceite a venda do salvado à “AUTO”.
14. No dia seguinte – 20 de Outubro de 2011 – a Autora enviou à “AUTO”. o e-mail cuja cópia se mostra inserta a fls. 36, de cujo teor consta:
vimos por este meio autorizar a vossa empresa AUTO,Lda. a levantar o nosso veículo BMW X1, com a matrícula..., que se encontra actualmente na oficina ACAIL, Lda. Esta autorização tem como base a nossa venda a vós do salvado, pelo valor de 15 500€ que foi atribuído ao mesmo”.
15. O veículo de matrícula... foi levantado na oficina ACAIL, Lda. pela Ré “AUTO”. e encontra-se nas instalações desta desde 20.10.2011.
16. Até à presente data a “AUTO”. nada pagou à Autora por conta da compra do salvado da viatura marca BMW, modelo X1 SDRIVE 18d, com a matrícula....
17. Em Novembro de 2011 a Ré “AUTO”. contactou a Autora e informou que não já pretendia ficar com o salvado por alegadamente ter sido abandonado por parte do concessionário da marca onde estava parqueado e ter sofrido depreciação.
18. Na sequência do referido contacto a Autora solicitou à Ré “AUTO”. que “tirassem o máximo de fotografias possíveis, visto que a situação seria reportada”.
19. A Ré “AUTO”. enviou à Autora a reportagem fotográfica de fls. 61 a 63.
20. Consta da Cláusula Décima (Procedimento em caso de Sinistro) das Condições Gerais do contrato de locação financeira mobiliária n.º 1019840:
1. No caso de sinistro sofrido pelo bem locado, o Locatário deve, imediatamente, informar o Locador e notificar a companhia de seguros, por carta registada com aviso de recepção enviada para a respectiva sede social, delegação ou outro local indicado na respectiva apólice, solicitando uma peritagem ao estado do bem locado.
2. Se o sinistro tiver afectado uma parte do bem que seja reparável, conforme verificado pela peritagem da companhia de seguros, o locatário deverá proceder à respectiva reparação por sua conta, ficando com o direito de receber a indemnização devida pela companhia de seguros, após verificação e prévio consentimento escrito do Locador.
3. Se o sinistro provocar a perda parcial de bem, conforme verificado pela peritagem da companhia de seguros, a locação financeira subsistirá em relação à parte não sinistrada. Neste caso, tanto as rendas vincendas como o valor residual serão recalculados na data e em função da indemnização paga pela companhia de seguros ao Locador.
4. Salvo o disposto no número seguinte da presente Cláusula, se o sinistro provocar a perda total do bem, conforme verificado pela peritagem da companhia de seguros, observar-se-á o seguinte:
a. O Contrato caduca para todos os efeitos;
b. O Locatário deverá pagar ao Locador o montante das rendas vincendas e o valor residual actualizados à tseguradora de Juro nominal do Contrato em vigor naquela data, bem como todas as quantias à data vencidas e não pagas, acrescidas de juros, eventuais prejuízos derivados da legislação fiscal e as inerentes despesas administrativas.
c. Depois de liquidadas as quantias referidas na alínea anterior a indemnização paga pela companhia de seguros ao Locador será entregue ao Locatário».
21. Como consequência da ocorrência do sinistro que resultou em perda total do veículo matrícula..., em 15 de Novembro de 2011 foi efectuada a rescisão antecipada do contrato de locação financeira mobiliária n.º 1019840 (celebrado entre a Autora e o Barclays Bank, PLC).
22. Como consequência do sinistro e da rescisão antecipada do contrato de locação financeira mobiliária a Autora adquiriu o salvado do veículo matrícula....

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i. DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto


Os poderes do Tribunal da Relação, relativamente à modificabilidade da decisão de facto, estão consagrados no artigo 662º do CPC, no qual se estatui:
1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

No que concerne ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelece o artigo 640ºdo CPC que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão

as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Considerando que, no caso vertente, a prova produzida em audiência foi gravada, e a recorrente deu cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do NCPC, pode este Tribunal da Relação proceder à sua reapreciação uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.

A recorrente está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente à alínea B) da matéria não provada que, no entender da apelante, deveria ter sido dada como provada, particularmente no que concerne à condição da viatura se encontrar no estado em que foi apresentado à ré.

Há que aferir da pertinência da alegação da apelante, ponderando se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas, conduzindo necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.

Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Exma. Juíza do Tribunal a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto directo com a prova testemunhal que, em regra, melhor possibilita ao julgador a percepção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.

Há, pois, que atentar na prova gravada e na supra referida ponderação, por forma a concluir se a convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância é, ou não, merecedora de reparo.

Þ Vejamos:
Consta da Alínea B) dos Factos dados como Não Provados:
A proposta apresentada pela Ré “AUTO”. (e transmitida pela Ré SEGURADORA à Autora Marketing, Lda.) para aquisição do veículo de matrícula... (pelo valor de € 15.500,00) ficou dependente:
1) Da viatura se encontrar no estado em que foi apresentado à Ré (apenas com os danos identificados na peritagem),
2) Da documentação da viatura estar em ordem.

Fundamentou a Exma. Juíza do Tribunal a quo, da seguinte forma a decisão da matéria de facto provada e não provada:
A convicção do Tribunal quanto à antecedente matéria de facto assentou no conjunto da prova produzida, concretamente: (…)
Foram indicadas para responder à matéria aqui em apreciação, todas as testemunhas arroladas, quer pela autora (Manuel ….. e Miguel …), quer pelas rés (José …., Armando ….. e Bruno ……).

Defende, em suma, a apelante, que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, no que concerne ao depoimento da testemunha por si arrolada, José….

Importa, então, analisar os depoimentos prestados em audiência, indicados pelo recorrente como relevantes, a propósito da matéria de facto aqui em causa, em confronto com a restante prova produzida, designadamente documental, para verificar se a factualidade impugnada deveria merecer decisão em consonância com o preconizado pela apelante, ou se, ao invés, a mesma não merece censura, atenta a fundamentação aduzida pela Exma. Juíza do Tribunal a quo, e tendo, de resto, presente que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial.

E, de harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.

Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do NCPC (artigo 655.º do anterior CPC) o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.

A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.

É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente.

Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24.01.2012 (Pº 1156/2002.L1.S1).

No caso vertente, face ao teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas e, globalmente analisado e ponderado todo o acervo probatório, entende-se, tendo em conta as considerações antes aduzidas, que não há como alterar a inclusão dos factos constantes da alínea B), na matéria de facto dada como não provada pela 1ª instância.

É que muito embora a recorrente defenda que resultou da prova produzida que a “A proposta apresentada pela Ré “AUTO”. e por esta transmitida pela Ré SEGURADORA, SA. à Autora Marketing, Lda., para aquisição do veículo de matrícula..., pelo valor de € 15.500,00, ficou dependente de a viatura se encontrar no estado em que foi apresentado à Ré, i.e., apenas com os danos identificados na peritagem, e da documentação da viatura estar em ordem a verdade é que, não obstante a testemunha da 2ª ré, José ….., haja referido ter colocado tal questão à autora, na pessoa de R.M., que foi sempre o seu interlocutor, esta afirmação não encontra qualquer respaldo nas várias comunicações por correio electrónico que entre ambos foram trocadas.

E, não é crível que uma condição dessa importância – a ter sido negociada entre autora e 2ª ré – não se encontrasse vertida em tal correspondência.

Por outro lado, nem sequer se provou com exactidão quais as diferenças que eventualmente existiriam entre as condições do veículo expostas no relatório de peritagem efectuado em 22.07.2011 e nas fotografias inseridas na plataforma da empresa “Audatex” (com a qual as seguradoras, nomeadamente a 1ª ré, trabalham), com vista à obtenção de compradores para os salvados resultante de sinistro e a situação do mesmo veículo, em Outubro de 2011, quando a 2ª ré foi rebocar o veículo do concessionário da BMW em Beja, para as suas instalações, em Braga.

Alegou, com efeito, a 2ª ré, no artigo 10º da sua contestação, de forma conclusiva, que “a viatura não se encontrava no estado em que se encontrava aquando da apresentação da proposta de aquisição”. Mas, nem na contestação, nem na prova que foi apresentada resultaram evidenciados os danos que, alegadamente, terão ocorrido entre 22.07.2011 e 20.10.2011, momento em que a viatura deu entrada nas instalações da 2ª ré.

A testemunha da autora, Luís ….., ao tempo chefe da secção de pintura e colisão da empresa “Acail”, em Beja:
§ Confirmou que a viatura sinistrada esteve nas instalações da empresa, onde foi efectuada a peritagem pelo perito da seguradora e que ali ficou durante cerca de três meses, tendo sido levantada em Outubro de 2011.
§ Admitiu que o veículo não esteve dentro da garagem, mas sim no seu exterior, mas negou que tivesse havido qualquer agravamento dos danos já existentes ou que tivesse sofrido qualquer inundação, já que nesse período, o tempo no Alentejo e, particularmente em Beja, não comporta esses riscos de chuvas ou orvalho intensos.
§ Esclareceu, por outro lado, que o perito que fez a peritagem, como sempre sucede, apenas analisou e tirou fotografias à parte exterior do veículo. Viu o motor do veículo e o chassis, mas nada foi desmontado, pelo que o valor atribuído ao carro, enquanto salvado, não teve em consideração as unidades que se desconhecem se estão, ou não avariadas. Deu o exemplo das centralinas que, tal como qualquer componente electrónica, só depois de desmontado o veículo e colocadas noutro é que se poderá verificar se funcionam.
§ Confirmou que o veículo em causa tinha vidros partidos e um buraco no vidro pára-brisas, mas não se recordava que o veículo, enquanto esteve nas instalações da “Acail”, em Beja, estivesse com as ervas no seu interior, como consta das fotografias de fls. 201-202/213-215, com as quais foi confrontado.
§ Referiu ainda que, tanto quanto se recordava, quando foram levantar o veículo, em Outubro de 2011, não foi suscitado qualquer problema em relação ao estado de conservação do veículo e que, se tal tivesse sucedido, sempre seria do seu conhecimento.

As testemunhas da ré seguradora, Armando ….. e Bruno …. respectivamente, coordenador da equipa de regularizadores de sinistros da Empresa DualPeri e perito avaliador que fez a peritagem ao veículo em causa nos autos e que consta de fls. 171-173, explicaram o modo como se processam as relações entre os diversos intervenientes nas situações de sinistros com perda total, designadamente:
O modo como a peritagem foi efectuada ao veículo e a colocação das respectivas fotografias na plataforma da empresa “Audatex”.
§ A selecção de entre os potenciais interessados na compra do veículo aquele que oferece a melhor proposta.
§ A comunicação à seguradora desse potencial comprador, informando, por sua vez, a seguradora, ao tomador do seguro, aquando da regularização do sinistro, a identificação desse interessado, para o caso do tomador do seguro, que é o proprietário do salvado, estar interessado na venda pelo preço indicado.
§ Os acordos da empresa “Audatex” com as seguradoras com vista à venda dos salvados, embora estas nenhuma intervenção tenham nesse processo de venda, nem tão pouco existe nenhuma relação contratual entre as seguradoras e os compradores dos salvados.
§ As propostas apresentadas são, em regra, válidas durante 60 dias.
§ No caso concreto, a ré seguradora obteve informação, através da “Audatex”, de que a 2ª ré “AUTO” apresentara a melhor proposta e deu apenas conhecimento ao tomador do seguro, da identificação da empresa interessada em adquirir o salvado e do valor oferecido.
§ O tomador do seguro aceitou o valor indicado pela seguradora para a regularização do sinistro, correspondente à diferença entre o valor do salvado e o capital seguro, ficando o processo, na ré seguradora, encerrado com a comunicação e a aceitação da indemnização pelo tomador do seguro.
§ A partir daí o negócio da venda do salvado passou a processar-se entre o interessado na compra e o tomador do seguro, proprietário do salvado, tendo por base o valor oferecido e do qual a seguradora deu conhecimento ao tomador do seguro.
§ Confirmou ainda a testemunha Armando ….. toda a documentação constante dos autos, a fls. 32-35, a emissão do recibo em nome do tomador do seguro e da entidade credora dos direitos, pois existia um contrato de locação financeira e o respectivo cheque também foi emitido em nome das duas entidades, porque em regra há entre elas um encontro de contas.
A testemunha, Bruno ….., confirmou o relatório de peritagem e a autoria das fotografias que constam de fls. 172-173, maioritariamente do exterior do veículo e da identificação do chassis.
Mais referiu a testemunha que:
§ O veículo se encontrava numa zona descampada e não estava coberto com qualquer lona ou plástico.
§ Não fotografou a quilometragem do veículo, como é habitual, pois a bateria do veículo não estava a funcionar e não foi possível ligá-lo. Tão pouco fotografou o interior do veículo, porque entendeu que não havia dano especial a reportar.
§ A reportagem fotográfica que efectuou foi inserida na plataforma da “Audatex”, muito embora admitisse ser o formato final que aparece naquela plataforma diferente, havendo, todavia, coincidência do seu conteúdo.

Confrontado com as fotografias constantes de fls. 223 a 229 e, sendo que em muitas não seja possível identificar o veículo a que se reportam, considerou a testemunha que, se o interior do veículo ali fotografado correspondesse àquele que fez a peritagem, poderia garantir que os tapetes do aludido veículo não se encontrariam nessas condições, pois se tal se tivesse verificado, teria forçosamente fotografado esse interior do veículo.

Admitiu finalmente que se tivesse entrado água no veículo que tivesse atingido os tapetes do mesmo, a água entraria por todo o lado e o próprio interior do veículo, ao nível dos bancos, apresentaria igualmente sinais dessa água.

Ora, perante aos depoimentos consistentes, credíveis, plausíveis e isentos, prestados por estas testemunhas e, apreciando a documentação constante dos autos, entende-se, portanto, que razão assiste à Exma. Juíza do Tribunal a quo, nas dúvidas que se lhe suscitou o depoimento da testemunha José ……, o qual, na parte aqui em apreciação, não encontra qualquer respaldo na prova produzida, mormente na prova documental, nada permitindo afastar a convicção criada no espírito do julgador do tribunal recorrido, convicção essa que não é merecedora de reparo, perante a ausência de prova credível para incluir nos Factos Provados, a matéria propugnada pela ré/apelante na sua alegação de recurso.

Aliás, fazendo apelo ao disposto no artigo 346º do Código Civil e, sobretudo, ao que decorre do artigo 414º do NCPC (tal como já sucedia com o artigo 516º do revogado CPC) a dúvida sobre a realidade dum facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, pelo que sempre se teria de concluir, que não poderia ser dada como provada tal matéria propugnada pela ré/apelante, na sua alegação de recurso.

Nestes termos, julga-se improcedente a apelação, no que concerne à reformulação da factualidade apurada na 1ª instância nos termos pretendidos pela ré/apelante, mantendo-se, por conseguinte, a factualidade dada como provada na 1ª instância.

Improcede, por conseguinte, tudo o que, em adverso, consta da alegação de recurso da ré/apelante.

E, improcedendo a pretensão da apelante, no que concerne à alteração da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se a mesma inalterável, igualmente se corrobora a fundamentação de direito aduzida na sentença recorrida, nomeadamente no que concerne à efectivação de um contrato de compra e venda, nos termos do qual a autora, na qualidade de proprietária do salvado, face à rescisão antecipada do contrato de locação financeira, vendeu à 2ª ré o veículo acidentado, como salvado, mediante o preço de € 15.500,00 e a 2ª adquiriu o mesmo, tendo obtido a respectiva entrega, sem que, no entanto, haja efectuado o pagamento do preço acordado.

É que, como é sabido, celebrado o contrato de compra e venda, desencadeiam-se efeitos simultaneamente reais e obrigacionais: o efeito real consistente na transferência da propriedade da coisa, que se verifica no momento do contrato e por efeito do contrato; os efeitos obrigacionais consistentes na obrigação que incumbe ao vendedor de efectuar a entrega da coisa vendida e, correspectivamente, a obrigação do comprador de pagar do preço.

Tal como se refere na sentença recorrida não se provou que a proposta de aquisição, por parte da 2ª ré, dependesse da viatura se encontrar no estado em que lhe havia sido apresentado e da respectiva documentação estar em ordem, tal como não se provou que o veículo não se mostrasse no estado em que se encontrava aquando da proposta de aquisição.

Com efeito, não se apurou que o veículo que foi adquirido pela 2ª ré apresentasse, aquando da entrega, danos superiores aqueles que teria no momento em que foi efectuada a peritagem e a colocação da reportagem fotográfica na plataforma da “Audatex”.

Ademais, tão pouco a 2ª ré logrou demonstrar quais os eventuais danos suplementares sofridos pela viatura, entre 22.07.2011 e 20.10.2011.

Invoca agora a apelante, na sua alegação de recurso, para justificar a alegada perda do interesse na realização da prestação, que “devido a uma possível exposição do veículo a condições meteorológicas adversas o veículo terá sofrido um dano irreversível, impossibilitando a satisfação do propósito para o qual seria adquirido: a recuperação total do veículo, ou o aproveitamento das peças”.

Não colhe, todavia, tal invocação, visto que não se apurou, nem que o veículo tivesse sido sujeito no período acima referido – 22.07.2011 a 20.10.2011 – a inundações, nem que o sistema electrónico tivesse sofrido, nesse período, danos que já não existissem aquando da peritagem efectuada ao veículo, em 22.07.2011, já que o estado do sistema electrónico não foi alvo da peritagem então foi efectuada.

Não se apurou, por conseguinte, quais as reais alterações do estado do veículo – a terem existido - entre o momento da peritagem e a colocação das fotografias na plataforma “Audatex” e o momento da recolha do veículo, efectuado pela 2ª ré, a esta incumbindo tal ónus de alegação e prova.

Não se pode, consequentemente, deixar de concluir que a 2ª ré adquiriu o salvado na expectativa de que poderia, pelo menos, proceder ao aproveitamento das peças, designadamente no que se refere à parte eléctrica do veículo, maxime, as centralinas, correndo, obviamente, o risco de as mesmas se encontrarem, ou não, em condições de serem aproveitadas.

Em face da factualidade apurada, não estamos, por conseguinte, perante qualquer situação subsumível no regime da venda de coisas defeituosas, previsto nos artigos 913º a 922º do Código Cível, pelo que não há que falar em perda objectiva do interesse da prestação, como defende a recorrente na sua apelação.

E, assim sendo, a apelação não poderá deixar de improceder, in totum, confirmando-se a sentença recorrida.

A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 7 de Abril de 2016
Ondina Carmo Alves – Relatora
Lúcia Sousa
Magda Geraldes