Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5397/2006-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: ORDEM PÚBLICA
SENTENÇA ESTRANGEIRA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O controlo da ordem pública deve limitar-se à decisão em si e não aos fundamentos em que assenta.
II- No regime instituído pelo Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000 (artigo 38.º) considera-se obstáculo à declaração de executoriedade da sentença não ter sido comunicado ou notificado ao requerido revel o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, em tempo útil e de modo a permitir~lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer (artigo 34.º/2) o que significa que, também aqui, a ordem pública processual pode constituir obstáculo à declaração de executoriedade, ficando a ordem pública material confinada ao artigo 34.º/1 do Regulamento
III-A invocada falta de fundamentação da decisão estrangeira não se enquadra na previsão constante do artigo 34.º/2 e nem o direito português prevê tal fundamentação como requisito necessário para a confirmação (artigo 1096.º do Código de Processo Civil)
IV- Aliás, não se pode considerar que a decisão é omissa quanto à fundamentação quando remete essencialmente para o alegado na petição, situação admitida também no direito processual português (artigo 784.º do Código de Processo Civil)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.

Na […] Vara Cível de Lisboa Air  […] requereu declaração de executoriedade de sentença estrangeira, nos termos e para os efeitos do art.38º do Regulamento (CE) Nº44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, alegando que tem um crédito sobre a Sociedade Comercial  […] S.A., no valor global de € 2.836.654,62, o qual se encontra reconhecido por sentença proferida pelo High Court of Justice, Queen`s Bench Division, Commercial Court, Tribunal de 2ª instância de Inglaterra.

Mais alega que a requerida não procedeu ao pagamento daquela quantia, pelo que, pretende a requerente instaurar acção executiva, em Portugal, contra a devedora, servindo a referida sentença como título executivo.

Juntou cópia certificada da sentença estrangeira, bem como, certidão emitida pelo Tribunal que a proferiu, nos termos dos arts.53º e 54º, do citado Regulamento.

Conclui, assim, que, estando verificados os respectivos pressupostos, deve ser declarada executória a aludida sentença.

Tendo tal sentença sido imediatamente declarada executória, a parte contra quem foi pedida a execução interpôs recurso de apelação dessa decisão.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.
2.1. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:
1a - A sentença proferida no High Court of Justice, Queen`s Bench Division, Comercial Court na qual, se veio a condenar a Ré, ora Recorrente no pagamento de € 2.836.654,62 padece de vícios.

2a - A douta sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão.

3a - De todo o texto que compõe a sentença, não existe qualquer explicação dos factos que fundamentam a decisão.

4a - A sentença proferida no High Court of Justice, Queen`s Bench Division, Comercial Court não faz qualquer referência aos fundamento de direito que
justificam a decisão.
5a - A inexistência de fundamentação de facto e de direito, coarcta os direitos de defesa da Recorrente, impedindo o recurso da decisão.
6a - A ausência dos requisitos supra referidos tem como cominação a nulidade da sentença, conforme dispõe a alínea a) do n.° l do artigo 668° do Código de
Processo Civil.
7a - Dispõe o artigo 34° do regulamento n.° 44/2001, que uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública
do Estado-Membro.
8a - A ordem pública portuguesa de natureza processual é constituída, nomeadamente, pela fundamentação da decisão.
9a - A falta de fundamentação da decisão é contrária à ordem pública do Estado Português e como tal obsta à declaração de executoriedade.

Nestes termos e nos mais de direito, deve apresente apelação ser julgada procedente, revogando-se a decisão do Tribunal de 1a Instância.

2.2. A recorrida contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

I. Atendendo a que as alegações de recurso da Recorrente deram entrada na Secretaria do Tribunal a 3 de Abril de 2006, e na eventualidade de se verificar a
expedição extemporânea das referidas alegações, deverá o presente recurso ser considerado deserto, por falta de alegação, nos termos do artigo 690.°, n.° 3 do
Código de Processo Civil.

II. Não está em causa um reconhecimento próprio sensu, (na acepção restrita de "reconhecimento de efeitos" ínsita no Regulamento), mas antes a mera atribuição à
sentença inglesa da força executiva que assiste a um acto interno equivalente.

III. É falso que a sentença inglesa declarada executória pela decisão recorrida padeça de vícios que obstassem à declaração da sua executoriedade em Portugal,
nomeadamente de uma falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que estiveram na sua base.

IV. No que respeita aos fundamentos de facto, a sentença em causa condena a Recorrente no pagamento das quantias devidas à ora Recorrida, na sequência de
julgamento da acção movida pela segunda contra a primeira, na qual aquela não deduziu contestação ou interpôs recurso.

V. A mera referência à falta de contestação pela Recorrente e a remissão para os pedidos formulados na petição inicial da ora Recorrida, bem como para os
respectivos fundamentos subjacentes aos mesmos, sempre será suficiente.
 
VI. Sendo que é entendimento da própria jurisprudência nacional que é suficiente uma fundamentação de sentenças portuguesas (e portanto, plenamente sujeitas às
intensas exigências específicas do nosso direito processual) por mera remissão (explícita ou mesmo implícita) para elementos dos articulados.

VII. Também não é verdade que a sentença inglesa careça de fundamentação de direito, pois, mais uma vez devido à falta de contestação da Ré, ora Recorrente, o High
Court of Justice faz referência remissiva aos fundamentos jurídicos nos quais a ora Recorrida, única parte que fez quaisquer considerações de Direito nos autos que
culminaram na referida sentença, alicerçou o seu pedido.

VIII. Contudo, ainda que a sentença inglesa padecesse do vício de falta de fundamentação que lhe imputa a Recorrente, o que só por mera cautela de patrocínio se conjectura, deveria esta ter arguido os mesmos vícios ou inclusive a suposta nulidade da decisão em causa, em recurso interposto junto aos tribunais ingleses, ao invés de obstar à produção de plenos efeitos no espaço comunitário
desta sentença.

IX. No que concerne ao argumento de contrariedade à ordem pública portuguesa da declaração de executoriedade desta sentença, mesmo no âmbito das normas de reconhecimento de fonte interna, claramente mais exigentes quanto aos requisitos necessários para atribuição de força executiva em Portugal a uma sentença estrangeira do que as normas comunitárias, a jurisprudência praticamente unânime
não considera a falta de fundamentação da sentença um motivo válido para a recusa de confirmação.

X. No âmbito do Direito Comunitário, maxime para os efeitos do artigo 34.°, n.°1 do Regulamento 44/2001, esta cláusula de ordem pública internacional é interpretada
pelos tribunais, nomeadamente pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, em termos extremamente restritivos, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos objectivos fundamentais do Regulamento e os
órgãos jurisdicionais do Estado requerido estão impedidos de controlar a exactidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo órgão
jurisdicional do Estado de origem.

XI. A atribuição de força executória a esta sentença no nosso país não viola nenhum princípio substantivo ou processual (v.g. o princípio do contraditório ou o direito ao recurso, os quais, aliás, não foram sequer enunciados pela Recorrente) uma vez que
nunca foi coarctado à Recorrente em Inglaterra o direito a recorrer ou a contradizer o que contra si alegou a ora Recorrida, então Autora.

XII. No que concerne a alegada violação do artigo 205.° da Constituição da República Portuguesa pela sentença declarada executória, ressalte-se que esta afirmação
encerra uma incontornável contradição de princípio, na medida em que as sentenças proferidas por jurisdições diferentes da portuguesa não estão submetidas à nossa
Lei Fundamental.

XIII. Por último não será despiciendo tomar em consideração o facto de, atento o reconhecimento automático das sentenças dos restantes países da Comunidade
Europeia no nosso país (ex vi do artigo 33.°, n.° 1 do Regulamento) a decisão inglesa produzir já efeitos de caso julgado no nosso país, impossibilitando por isso a Recorrida de intentar nova acção junto aos tribunais portugueses, com vista à condenação consequente da Recorrente ao pagamento dos cerca de 3 milhões de euros em dívida, o que, aliado a uma eventual não atribuição de força executiva da
mesma no nosso país, consubstanciaria uma solução manifestamente iníqua, injusta e por essas razões contrária à nossa ordem jurídica.

Nestes termos e nos demais de Direito, cujo douto suprimento de V. Exa. se espera e invoca, deve ser declarado deserto o Recurso interposto pela Recorrente, por falta de alegação, nos termos do artigo 690.°, n.° 3 do Código de Processo Civil.

Caso assim não se entenda, o que, não se concedendo, por mera cautela de patrocínio se admite, deverá ser o presente recurso julgado improcedente.

2.3. Dir-se-á, antes do mais, que a questão colocada pela recorrida na sua alegação, no que respeita à invocada extemporaneidade das alegações da recorrente, já foi decidida pelo relator no despacho de fls.94 e 94 v.º, onde se entendeu que aquelas alegações não foram apresentadas extemporaneamente, já que, tendo sido enviadas por correio electrónico, vale como data da prática do acto a da sua expedição, nos termos do art.150º, nº1, al.d), do C.P.C., ou seja, no caso, 27/3/06, que correspondia ao último dia do prazo para a sua apresentação.

Assim, a única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se a sentença estrangeira, cuja execução se pretende, não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, e, em caso afirmativo, se essa falta de fundamentação é contrária à ordem pública do Estado Português, obstando, por isso, à declaração de executoriedade.

Como é sabido, o processo civil internacional foi objecto de uma importante reforma, levada a cabo através de diversos actos de Direito Comunitário, sendo que, um dos textos fundamentais daquela reforma foi, precisamente, o Regulamento (CE) nº44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Por outro lado, por força do disposto no art.249º do Tratado da Comunidade Europeia, o Regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados membros, primando, no seu específico âmbito de aplicação, sobre as normas do Direito interno desses Estados, exceptuadas, nos termos do seu art.67º, as que visam harmonizar as leis nacionais em conformidade com o disposto em actos comunitários. Por último, o Regulamento substitui, entre os Estados membros, a Convenção de Bruxelas, nos termos do disposto no art.68º, nº1.

Conforme se refere nos considerandos do Regulamento, «São indispensáveis disposições que permitam simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à execução rápidos e simples das decisões proferidas nos Estados-Membos» (2); «Para alcançar o objectivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento jurídico comunitário vinculativo e directamente aplicável» (6); «A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação» (16); «A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada» (17); «O respeito pelos direitos de defesa impõe, todavia, que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução. Também deve ser dada ao requerente a possibilidade de recorrer, se lhe for recusada a declaração de executoriedade» (18).

O Regulamento visa, assim, em última análise, nas palavras de Dário Moura Vicente, Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) nº44/2001, in Scientia Jurídica, Maio-Agosto 2002-Tomo LI-Número 293-págs.347 e segs., a constituição de um espaço judiciário europeu, no âmbito do qual cada jurisdição nacional funcionará como órgão de uma ordem judiciária comum.

No que respeita ao reconhecimento de sentenças estrangeiras, o Direito português exige a revisão e confirmação para que possam produzir em território nacional os seus efeitos próprios enquanto acto jurisdicional (cfr. os arts.1094º e segs., do C.P.C.). O Regulamento, por seu turno, adopta o sistema do reconhecimento automático das decisões proferidas nos Estados-Membros, embora possam ser objecto de uma revisão, se o reconhecimento for impugnado, tendente a averiguar se se verifica algum dos fundamentos de recusa desse reconhecimento (art.33º, nºs 1 e 2). Quanto ao efeito executivo das sentenças estrangeiras, poder-se-á dizer que o reconhecimento é, numa primeira fase, quase automático, pois que, nos termos do art.38º, do Regulamento, a execução das decisões proferidas nos Estados-Membros está sujeita a uma declaração prévia de exequibilidade, que é proferida, nos termos do art.41º, num processo que, em 1ª instância, não tem carácter contraditório, nem dá lugar à verificação dos motivos de recusa do reconhecimento. Daí o teor da sentença recorrida, que imediatamente declarou executória a decisão estrangeira, por ter entendido estarem cumpridos os trâmites previstos no art.53º (apresentação de uma cópia da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade), sem que tenha procedido à verificação dos motivos referidos nos arts.34º e 35º e sem ouvir previamente a parte contrária (art.41º). Esta, porém, pode interpor recurso daquela sentença, ao abrigo do art.43º, como aconteceu no caso, em sede do qual a declaração de executoriedade pode ser revogada por um dos motivos especificados nos arts.34º e 35º, mas não podendo, em caso algum, a decisão estrangeira ser objecto de revisão de mérito (cfr. o art.45º).

No caso sub judice, invocou a recorrente o disposto no art.34º, nº1, nos termos do qual, a decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido. Assim, alega que a falta de fundamentação da decisão é contrária à ordem pública do Estado Português e, como tal, obsta à declaração de executoriedade.

Haverá, pois, que verificar se a execução da decisão estrangeira é contrária à ordem pública do Estado Português, sem que tenha de se proceder a um novo julgamento da causa, que, como já vimos, o citado art.45º expressamente afasta.
Já Alberto dos Reis dizia, in Processos Especiais, vol.II, pág.175, que é questão árdua e complicada saber o que deva entender-se por ordem pública portuguesa, embora considere que deve ter-se como certo que esta é a ordem pública internacional e não a ordem pública interna. Acrescentando, por um lado, que as leis de ordem pública apresentam os seguintes caracteres gerais: são leis rigorosamente imperativas que consagram interesses superiores da comunidade local e estão em divergência profunda com as leis estrangeiras a cuja aplicação servem de limite. E, por outro lado, citando a lição de Savigny e de Mancini, considera como leis de ordem pública internacional as que se inspiram ou em razões políticas (as que proíbem quaisquer discriminações derivadas de diferenças de raça ou de diferenças de religião), ou em razões morais (as que proíbem a poligamia, o divórcio, a investigação de paternidade), ou em razões económicas (as que proíbem os fideicomissos, a pulverização da propriedade imobiliária, a renúncia ao direito de exigir a divisão da propriedade, etc.).
Segundo Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.II, pág.335, ordem pública significa os interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar e os princípios correspondentes que constituem como que um substracto desse sistema. Para Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág.434, parece dever entender-se por ordem pública o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas. Entende Ferrer Correia, Lições, pág.511, que toda a disposição de lei, através da qual se pretenda sancionar o princípio-limite da ordem pública, tem de revestir a forma de preceito em branco, que ao juiz da causa compete preencher, apurando em cada caso concreto, socorrendo-se do seu senso jurídico, se o resultado é intolerável do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema.

Ora, no caso dos autos, o que a recorrente alega é que o reconhecimento é manifestamente contrário à ordem pública portuguesa de natureza processual, dada a falta de fundamentação da decisão estrangeira. No entanto, refira-se, desde já, que no direito português apenas se exige expressamente, como condição processual do reconhecimento, que o réu tenha sido regularmente citado para a acção e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (cfr. o art.1096º, al.e), do C.P.C.). Preceito este que é, assim, uma manifestação da ordem pública processual, na medida em que faz apelo aos princípios fundamentais que não podem deixar de presidir a toda e qualquer lide pela qual se vise a solução de controvérsias jurídicas (cfr. Rui Moura Ramos, RLJ, Ano 130º, Nº3881, pág.236). Segundo este autor, aquela disposição sublinhou a importância do respeito da ordem pública processual em sede de reconhecimento de sentenças estrangeiras e permitiu libertar de referências deste tipo a cláusula de ordem pública internacional prevista na al.f), do citado art.1096, que pode assim ficar destinada a compreender princípios de ordem material e não já processual (cfr., ainda, Ferrer Correia-Ferreira Pinto, Revista e Direito e Economia, Ano XIII-1987, pág.53). Por outro lado, é opinião corrente na nossa doutrina que o controlo da ordem pública deve limitar-se à parte decisória da sentença, sem que importe considerar os respectivos fundamentos. Ou seja, haverá que atender à decisão em si, à situação que a decisão cria e estabelece, e não aos fundamentos em que assenta (cfr. Alberto dos Reis, ob.cit., págs.179 a 181 e Ferrer Correia-Ferreira Pinto, ob.cit., pág.54).

No regime instituído pelo Regulamento, considera-se obstáculo processual à declaração de executoriedade da sentença recorrida, não ter sido comunicado ou notificado ao requerido revel o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer (art.34º, nº2, aplicável ex vi do art.45º, nº1). Visa-se, deste modo, impedir a livre circulação no espaço comunitário de decisões proferidas sem a efectiva observância do princípio do contraditório. O que significa que também aqui a ordem pública processual pode constituir obstáculo à declaração de executoriedade, ficando a ordem pública material compreendida no art.34º, nº1.

Assim, quando a recorrente invoca este último artigo, para fundamentar a alegada incompatibilidade com a ordem pública portuguesa de natureza processual, erra o alvo. Sendo que, a invocada falta de fundamentação da decisão estrangeira também não se enquadra na previsão do citado art.34º, nº2. Aliás, o próprio direito português não prevê tal fundamentação como requisito necessário para a confirmação (cfr. o citado art.1096º) e tem-se entendido, por outro lado, como já vimos, que o que importa é que a situação criada pela sentença estrangeira não seja, em si mesma, contrária à ordem pública portuguesa. O que vale por dizer que a declaração de executoriedade da sentença estrangeira não é, no caso, manifestamente contrária à ordem pública, material ou processual, do Estado Português, ainda que se entenda que, como alega a recorrente, aquela sentença não se encontra fundamentada, já que, tal declaração não é intolerável do ponto de vista dos princípios fundamentais subjacentes ao nosso sistema jurídico, isto é, não é ostensivamente contrária às concepções jurídicas que alicerçam o referido sistema.

De todo o modo, sempre se dirá que não se pode afirmar que a sentença estrangeira em questão não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. O que se passou foi que, por a acção não ter sido contestada, remeteu essencialmente para o alegado pela autora na petição. O que, aliás, o nosso sistema jurídico também admite, prevendo a possibilidade de uma forma de julgamento simplificado nas acções sumárias não contestadas, quando a matéria de facto reconhecida em consequência da verificação da revelia operante do réu conduz à procedência da pretensão deduzida pelo autor, de modo a aligeirar a estrutura formal da sentença (art.784º, do C.P.C.). Neste caso, e por evidentes razões de economia, permite-se que o juiz profira decisão sumária em que, após especificar (por mera remissão para o conteúdo da petição) qual a matéria de facto reconhecida em consequência da revelia operante, se limita a condenar o réu no pedido, aderindo inteiramente aos fundamentos jurídicos (e à causa de pedir) alegados pelo autor (esta situação tem algum paralelismo com a que, em sede de recursos, está prevista nos nºs 5 e 6, do art.713º). O que não implica, como é bom de ver, qualquer falta de fundamentação do decidido, em colisão com o princípio constitucional consagrado no art.205º, nº1, da CRP. Consequentemente, também não há que falar na nulidade da sentença a que alude o art.668º, nº1, al.b), do C.P.C., que, ainda assim, a entender-se que existiria, deveria ter sido arguida no próprio tribunal em que foi proferida. Acresce que, no nosso direito, se tem entendido que o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação e não a eventual insuficiência desta.

Dir-se-á, por último, que o ónus da alegação e prova das causas de recusa da declaração de executoriedade previstas nos arts.34º e 35º, do Regulamento, cabe à parte que se lhe opõe (cfr. Miguel Teixeira de Sousa e Dário Moura Vicente, Comentário à Convenção de Bruxelas, págs.149 e 159).
Haverá, deste modo, que concluir que a sentença estrangeira, cuja execução se pretende, especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, e que, ainda que assim não fosse, a falta de fundamentação não seria contrária à ordem pública do Estado Português, não obstando, por isso, à declaração de executoriedade.

Constata-se, assim, que não se verifica o motivo referido no art.34º, nº1, do Regulamento, invocado pela recorrente, sendo que, também não se vê que se verifiquem quaisquer das outras causas de recusa enunciadas nos restantes números daquele art.34º e no art.35º, mormente aquelas que visam proteger directamente interesses públicos, caso em que há quem entenda que o tribunal ad quem pode delas conhecer oficiosamente (cfr. as citações feitas por Miguel Teixeira de Sousa e Dário Moura Vicente, ob.cit., pág.149, nota 20).

Improcedem, pois, as conclusões da alegação da recorrente, não havendo que revogar a declaração de executoriedade e antes devendo manter-se a decisão recorrida.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.

Custas pela apelante.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2006

(Roque Nogueira)
(Pimentel Marcos)
(António Geraldes)