Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9887/2007-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
MÚTUO
NULIDADE
CLÁUSULA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I- A acção de que depende a providência a que alude o artigo 15.º/1 do Decreto-lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro (apreensão de veículo e certificado de matrícula) é a acção de resolução do contrato de alienação para a qual não tem manifesta legitimidade o mutuante ainda que tenha conseguido o registo de reserva de propriedade do veículo vendido a seu favor.
II- Face ao disposto no artigo 409.n.º/1 do Código Civil é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa nos contratos de alienação; tal preceito obsta a que se estipule noutros contratos a aludida cláusula.
III- Não resulta do disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro que o acordo sobre reserva de propriedade, que deve constar dos contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações sob pena de inexigibilidade, seja acordo firmado em contrato que não seja o contrato de venda a prestações.
IV- É nula a cláusula de reserva de propriedade aposta em contrato de mútuo.
SC
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. S. […] SA demandou Marta […] pedindo que se declare judicialmente a resolução do contrato de crédito junto como doc. n.º1 celebrado entre a A. e a Ré em 22-12-2004 e, consequentemente, que seja a ré condenada a restituir à A. o veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo Classe e Diesel […]; que seja reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado em nome da ré junto da entidade competente.

2. Alegou a A. que mutuou à Ré € 54.791,12 destinados à aquisição de viatura automóvel tendo sido constituída reserva de propriedade a favor da mutuante sobre o mencionado veículo como condição de celebração do referido contrato e garantia do seu bom cumprimento.

3. O veículo foi vendido à ré com o encargo de reserva de propriedade registado a favor da mutuante.

4. Face ao incumprimento das prestações acordadas destinadas ao pagamento do mútuo, a A. considerou resolvido o contrato, reclamando agora o veículo sobre o qual detém reserva de propriedade.

5. A acção foi julgada parcialmente procedente.

6. O Tribunal decidiu:
- Julgar válida a resolução do contrato de crédito celebrado entre a A. e a Ré, em 22-12-2004, denominado “ Contrato de Crédito nº 524102.
- Declarar nula e de nenhum efeito a condição particular aposta no referido contrato sob a denominação de “garantia” e as alíneas a) a e) da condição geral 9ª por meio da qual a A. reserva para si a propriedade do veículo Mercedes Benz […]
- Determinar o cancelamento da respectiva inscrição na Conservatória dos Registos Automóveis
- Julgar improcedentes os pedidos de restituição do veículo e cancelamento do registo averbado em nome da ré.

7. Sustenta a decisão recorrida, com ampla fundamentação doutrinária e jurisprudencial, que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre, em regra, por mero efeito do contrato (artigo 408.º/1 do Código Civil).

8. No entanto, nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento - artigo 409.º do Código Civil.

9. A relevância da faculdade de constituição de reserva de propriedade resulta a contrario do disposto no artigo 886.º do Código Civil segundo o qual , transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento de preço.

10. Havendo reserva de propriedade, o negócio pode ser resolvido por falta de pagamento de preço

11. Significa isto, prossegue a decisão recorrida, que havendo reserva de propriedade o negócio pode ser resolvido por falta de pagamento do preço.

12. Neste sentido dispõe o artigo 934.º do Código Civil que, vendida a coisa a prestações, com reserva de propriedade e feita a sua entrega ao comprador, a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço não dá lugar à resolução do contrato, nem sequer, haja ou não reserva de propriedade, importa perda do benefício do prazo relativamente às prestações seguintes, sem embargo de convenção em contrário.

13. Defende-se que sendo a reserva de propriedade uma cláusula pela qual se suspende a transferência da propriedade isso significa que só pode ser aposta num contrato pelo qual se transfira a propriedade.

14. Não se concebe a reserva de propriedade noutros contratos que não sejam de alienação.

15. Nas suas alegações de recurso a A. defende que a reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo sobretudo daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda, verificando-se nestas situações uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, entendimento que encontra pleno acolhimento no artigo 591. do Código Civil bem como no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405.º do Código Civil uma vez que não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor, consagrando a própria lei sobre o crédito ao consumo tal possibilidade no artigo 6.º/3.

16. Defende ainda a recorrente que o artigo 18.º/1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Dezembro abrange as situações de contrato de mútuo conexo com o contrato de compra e venda, correndo o mutuante , em caso de incumprimento pelo mutuário, um risco que não corre o vendedor do veículo, funcionando a reserva de propriedade como condição suspensiva do efeito translativo do direito de propriedade sobre a viatura.

Apreciando:

17. Remete-se para os termos da decisão de 1º instância que decidiu a matéria de facto (artigo 713.º/6 do C.P.C.).

18. A lei não consente a cláusula de reserva de propriedade noutros contratos que não sejam os contratos de alienação, ou seja, todos os contratos dos quais decorra a transmissão da propriedade. O artigo 409.º/1 não se limita aos contratos de compra e venda pois o seu âmbito é mais vasto.

19. Na França, por exemplo, considera-se que o contrato de compra e venda surge como o domínio de predilecção desta cláusula. No entanto, se, na prática, esta última se insere, em regra, no seio dos contrato de venda a fim de garantir o crédito do vendedor ( pagamento do preço) em teoria ela pode inserir-se em qualquer contrato conquanto ele permita uma transferência de propriedade sobre a qual o contrato possa actuar ( designadamente o contrato de empreitada). Considera-se que o Tribunal de cassação reconheceu implicitamente a validade desta cláusula de reserva de propriedade inserida num contrato de empreitada pois num caso em que o empreiteiro reivindicava a propriedade das coisas instaladas num imóvel (sanitários, instalações de aquecimento ou de ventilação) a rejeição da pretensão resultou do facto de tais bens já estarem incorporados no imóvel, mas não do facto de a cláusula aposta ser inválida.

20. Em Portugal - recorde-se - situação similar, a da instalação de elevadores em imóveis com estipulação de cláusula de reserva de propriedade, levou ao Ac. do S.T.J. ( Pleno das Secções Cíveis) de 31-1-1996, D.R.,II Série, nº 132 de 7-6-1996, pág. 7675 também in B.M.J. 453-4 que firmou o entendimento de que “ a cláusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e instalação de elevadores em prédios urbanos torna-se ineficaz logo que se concretiza a respectiva instalação”.

21. Não se vê que a lei tenha admitido, para além do campo dos contratos de alienação, a possibilidade de reserva de propriedade a favor de quem não seja o alienante in casu o mutuante.

22. Nem se vê que o mutuante tenha assumido responsabilidades que lhe adviriam, na qualidade de proprietário, relativamente ao contrato de seguro do veículo, sabido que o adquirente do veiculo seria, válida que fosse a cláusula, mero detentor.

23. Uma interpretação actualista, como a que defende o recorrente, no sentido de admitir a validade de uma cláusula de reserva de propriedade a outros contratos que não sejam os de alienação apenas porque o mutuante entrega a quantia mutuada ao vendedor que aliena o veículo ao comprador/mutuário, para além de não encontrar na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (artigo 9.º/2 do Código Civil), não tem justificação pois a lei permite que seja constituída hipoteca sobre o veículo automóvel, o que constitui garantia mais do que suficiente para permitir ao credor ressarcir-se pela venda do veiculo e lhe permitir utilizar os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

24. Não se nos afigura que haja uma conexão relevante entre os contratos salvo a que decorre do interesse comercial do mutuante e do vendedor. Uma conexão traduzida em actos jurídicos que implicassem uma interdependência contratual não se vê que ocorra.

25. Refira-se que este diploma (D.L. n.º 54/75) não contempla de modo nenhum a reserva de propriedade a favor do mutuante, importando salientar que o nosso sistema legal não prevê tal situação nem ao nível substantivo nem obviamente do ponto de vista procedimental. Assim, a mero título de exemplo, o artigo 5.º/1, alínea b) do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro) permite o registo da reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis; a apreensão cautelar do veiculo ver artigo 16.º do DL 54/75), tratando-se de reserva de propriedade, pressupõe o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, a acção de resolução que é dependência do procedimento cautelar é a acção de resolução do contrato de alienação, não é a acção de resolução do contrato de mútuo.

26. Não foi alegado pelo A. que o vendedor o haja sub-rogado nos seus direitos (artigo 589.º do Código Civil) ou que tenha sido sub-rogado pelo devedor precisamente em consequência do empréstimo feito (artigo 591.º do Código Civil). A sub-rogação, pelo menos nos casos em que é feita pelo devedor, obsta a que este possa invocar junto do cessionário os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol II, 7ª edição, pág. 352). Admitindo que já assim se não entenda nos demais casos, a verdade é que não se vê que o comprador pudesse alguma vez, com sucesso, opor ao mutuante tais meios de defesa invocando uma sub-rogação que de facto não se verifica. A recorrente parece encarar a sub-rogação naquilo que lhe seria favorável, esquecendo, porém, o reverso da medalha. Mais rigorosamente dir-se-á que não houve um tal esquecimento pois não houve alegação alguma que possa permitir considerar verificada a sub-rogação. Seria, sem dúvida, este um meio legal que permitiria à recorrente, porque sub-rogada na posição do alienante, beneficiar da cláusula de reserva de propriedade.

27. Tudo isto reforça a ideia de que não se vê necessidade de uma interpretação que reconheça, a nosso ver, contra legem um regime legal que a lei, observados as suas regras, põe à disposição da autora.

28. Não vemos razão para nos afastarmos da orientação que a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo, posto que não haja unanimidade nas decisões dos tribunais, como se salienta com todo o propósito na decisão recorrida.

29. Aqui deixamos outras considerações expostas no P. 4927/2006 que relatámos:

“20. Outra questão que se suscita é a de saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do mutuante.

21. Não o admite o artigo 409.º do Código Civil que limita a aponibilidade da cláusula aos contratos de alienação e, por conseguinte, não releva o argumento extraído do princípio da liberdade estipulação a que se refere o artigo 405.º/1 pois a liberdade de estipulação não é absoluta, há-de ceder se afrontar norma que condicione a estipulação de certa cláusula a determinados contratos.

22. A circunstância de o mutuante ter introduzido no contrato de financiamento uma cláusula que não lhe seria lícito apor poderá levar a considerar-se, dado o princípio da incindibilidade do negócio condicional, que o negócio padece de nulidade ( ver MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 559).

23. A nossa lei não admite a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, mas tão somente em benefício do alienante (artigo 409.º/1 do Código Civil). Ou, por outras palavras, não parece admissível a constituição de uma reserva de propriedade a favor de terceiro.

24. Não será, portanto, admissível que uma instituição de crédito outorgue contrato de mútuo com reserva de propriedade a seu favor simultaneamente com a compra e venda do imóvel a favor do comprador de tal sorte que a propriedade ficaria no mutuante (instituição de crédito) e não no mutuário/comprador, como acontece sempre que se procede à compra e venda com mútuo com garantia real (hipoteca) a favor do mutuante.

25. A reserva de propriedade passaria então a garantir o mutuante, não o vendedor; a nossa lei não tomou ainda uma tal opção que teria, como é fácil de ver, a maior das repercussões no plano do crédito, designadamente imobiliário. Admite-se que as entidades mutuantes ficassem, assim sendo, numa posição muito mais confortável do que actualmente, garantidas por hipoteca; mas também é verdade que uma tal solução traria outros problemas, designadamente os que resultam de o comprador não aceder à propriedade com todos os efeitos daí decorrentes, sujeitando-se ao império do mutuante que consolidaria a propriedade em caso de incumprimento, resolvendo o contrato, podendo criar-se situações em que o comprador, reconhecida a invalidade da resolução, não a poderia invocar diante de terceiro (artigo 435.º/1 do Código Civil: “ a resolução...não prejudica os direitos adquiridos por terceiro) salvo se diligenciasse accionar o mutuante com registo prévio da acção ao registo do direito de terceiro (artigo 435.,n.º2 do Código Civil).

26. E nem estamos a considerar os efeitos decorrentes do entendimento que tem merecido algum acolhimento judicial de o titular do registo de reserva de propriedade conseguir penhorar o bem sobre o qual incide o registo e fazer prosseguir a execução sem cancelamento da reserva de propriedade, conseguindo, assim, situação substantiva que lhe proporciona as vantagens do credor hipotecário sem as correlativas desvantagens.

27. O recorrente sustenta finalmente, como se disse, a admissibilidade da referida cláusula face ao disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro onde se refere o seguinte:

3- O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
.......
f) O acordo sobre a reserva de propriedade.

28. No entanto, a circunstância de a lei prescrever que a referida cláusula conste do contrato de crédito não significa que a cláusula se traduza em acordo sobre a reserva de propriedade a favor do mutuante; o referido acordo, precisamente porque o contrato tem por objecto um financiamento para aquisição de bens ou serviços em prestações, há-de respeitar ao contrato de alienação e a sua utilidade é a de o mutuante ver precludida a possibilidade de “ exigir ulteriormente a constituição dessas garantias (artigo 7.º/3” (FERNANDO DE GRAVATO MORAIS “ Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo”, Scientia Iuridica, Jul./Dez 2000, Tomo XLIX, pág. 394/395). Aliás , refere expressamente este autor, como se salientou na decisão recorrida, que “quanto às menções remanescentes a indicação das garantias exigidas, nos contratos de crédito em geral, e do acordo sobre a reserva de propriedade, no caso de venda a prestações, a sua falta não prejudica a validade e eficácia do contrato de crédito”.

30. Importa, portanto, concluir, tal como a decisão recorrida, que é nula e de nenhum efeito a condição pela qual a A. reservou para si a propriedade sobre o veículo identificado nos autos.

Concluindo:
I- A acção de que depende a providência a que alude o artigo 15.º/1 do Decreto-lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro (apreensão de veículo e certificado de matrícula) é a acção de resolução do contrato de alienação para a qual não tem manifesta legitimidade o mutuante ainda que tenha conseguido o registo de reserva de propriedade do veículo vendido a seu favor.
II- Face ao disposto no artigo 409.n.º/1 do Código Civil é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa nos contratos de alienação; tal preceito obsta a que se estipule noutros contratos a aludida cláusula.
III- Não resulta do disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro que o acordo sobre reserva de propriedade, que deve constar dos contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações sob pena de inexigibilidade, seja acordo firmado em contrato que não seja o contrato de venda a prestações.
IV- É nula a cláusula de reserva de propriedade aposta em contrato de mútuo.

Decisão:
Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente

Lisboa, 13 de Dezembro de 2007
(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)