Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16690/18.5T8SNT.L1-1
Relator: VERA ANTUNES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
INTERESSE EM AGIR
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O único crédito reclamado e reconhecido decorrente de indemnização pela prática de facto ilícito e doloso praticado pela insolvente encontra-se excluído da exoneração, nos termos do art.º 245º, n.º 2 do CIRE.
II.A ausência de reclamação de outros créditos no âmbito dos presentes autos, não deve obstar, sem mais, ao prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, considerando que eventuais créditos, a existirem, o que se desconhece, sempre poderão vir a extinguir-se aquando da concessão da exoneração do passivo restante.
III. Não acarretando assim  a extinção do incidente de exoneração do passivo restante por inutilidade superveniente da lide, pois que, só a final, após o decurso do período de cessão do rendimento disponível é que será lícito concluir pela inutilidade ou não da exoneração.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
O…. apresentou-se à Insolvência em 27/9/2018 e requereu desde logo que lhe fosse concedida a exoneração do Passivo Restante.
A insolvência da Requerente foi declarada por Sentença de 1/10/2018, onde, entre outros, se decidiu ainda nomear Administrador da Insolvência, I…; não nomear comissão de credores e dispensar a realização de assembleia de credores, com fundamento na inexistência de activo e no diminuto número de credores indicados.
Referiu-se ainda que no relatório a que alude o art.º 155.º, do CIRE o A.I. deveria desde logo coligir informação relativa à composição, rendimento e despesas fixas mensais do agregado familiar do insolvente, e ainda outra informação que se afigure relevante para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, para efeitos de pronúncia pelos credores e subsequente decisão, nos termos dos art.ºs 236.º, n.º 4 e 238.º, n.º do CIRE, na redacção dada pelo D.L. n.º 79/2017 de 30.06.2017. 
Relegou-se a decisão do pedido de exoneração do passivo restante para momento oportuno.
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No Relatório apresentado o AI propôs o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente; o deferimento do pedido de Exoneração do Passivo Restante da insolvente e fixado um Rendimento Disponível a entregar ao Fiduciário, cuja nomeação igualmente requereu.
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Por despacho de 18/12/2018 consignou-se o seguinte:
“Resulta da leitura do relatório apresentado nos termos do art.º 155.º, do CIRE, e da lista definitiva de créditos reconhecidos, apresentada pelo A.I. no dia 17.12.2018 sob o apenso A, que foi reconhecido um único crédito, a favor do Banco BPI, emergente de condenação em processo de natureza criminal. 
Inexistindo outros créditos, atento o disposto no art.º 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE, convido a Requerente a pronunciar-se quanto à inutilidade do incidente de exoneração do passivo restante deduzido. 
Notifique.”
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A Requerente pronunciou-se manifestando a sua discordância porquanto em seu entender, atento o disposto no artigo 238.º do CIRE, estão reunidos os requisitos necessários para o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, a isso não obstando o facto de apenas até esse momento ter sido reclamado o crédito em causa. 
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Em 8/1/2019 foi proferida a seguinte decisão, na parte que para a apreciação do presente Recurso importa:
Exoneração do passivo restante
O… peticionou a exoneração do passivo restante, alegando no essencial que reúne os respectivos requisitos legais e se compromete a observar todas as condições exigidas, nomeadamente as previstas no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE.
No relatório elaborado nos termos do art.º 155.º, do CIRE, o A.I. declarou não se opor. Notificada para se pronunciar quanto à inutilidade do pedido atendendo à natureza dos créditos reclamados, declarou opor-se, em síntese por considerar que estando reunidos os requisitos para admissão liminar do pedido, a insolvente poderá alcançar a extinção de créditos ainda que não reclamados.
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A exoneração do passivo restante está regulada nos artigos 235.º a 248.º, do CIRE. Constitui prerrogativa exclusiva da insolvência das pessoas singulares, inspirada no princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, vigente nos Estados Unidos da América, recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência – cf. art.º 45 do Preâmbulo do Dec. Lei n.º 53/2004, de 18 de Março. 
Tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de insolvência, desde que não se verifique algum dos factos impeditivos, enumerados no art.º 238.º, n.º 1, do CIRE. 
Importa porém ter em consideração que, nos termos do art.º 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE, a exoneração não abrange as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade.
Conforme se verifica pela consulta da lista de créditos reconhecidos, apresentada em 17.12.2018 (apenso A), sob a ref. Citius 3753285, que não foi objecto de impugnação, inexistem outros créditos a reconhecer além do crédito reclamado pelo Banco BPI, S.A., “resultante de dívida que deu origem ao Procº nº11450/97.8TDLSB- 3ª VARA CRIMINAL DE LISBOA - actualmente Juizo Central Criminal - Juiz 8.” 
Não havendo assim qualquer interesse em desencadear um procedimento que, pela natureza dos créditos a que respeita, não é susceptível de alcançar os fins a que se destina. 
Decide-se assim, por falta de interesse em agir dada a natureza dos créditos a reconhecer, indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.  
Notifique.”
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Inconformada com a decisão proferida, a Requerente dela recorreu, formulando as seguintes Conclusões:
“I. Vem o presente Recurso interposto do Despacho de fls., que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela ora Recorrente. 
II. A ora Recorrente apresentou-se à insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença proferida pelo Tribunal a quo no dia 01/10/2018, sendo que na sua petição inicial de apresentação à insolvência, a aqui Recorrente requereu a exoneração do passivo restante. 
 III. Decorridos os trâmites processuais subsequentes, foi proferido despacho, datado de 08/01/2019, que, além do mais, indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, porquanto considerou existir falta de interesse em agir.
 IV. Com efeito, andou mal o Tribunal a quo ao pugnar pelo entendimento de que, nos presentes autos, “não havendo assim qualquer interesse em desencadear um procedimento que, pela natureza dos créditos a que respeita, não é suscetível de alcançar os fins a que se destina”. 
 V. Compulsados os presentes autos e atento o disposto no artigo 238.º do CIRE, in casu encontram-se reunidos os requisitos necessários para o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. 
VI. Na verdade, o artigo 238.º do CIRE enuncia os casos em que o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido, sendo certo que a situação fáctica dos presentes autos não se enquadra em nenhuma das previsões das alíneas a) a g), nem tão-pouco no disposto no número 2 do referido preceito legal.
VII. Acresce ainda que, compulsado o teor do relatório do Sr. Administrador de Insolvência, o mesmo propõe o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante. 
VIII. Pelo que resulta indubitável que a Insolvente reúne os necessários requisitos para o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, porém, não vislumbra o Tribunal a quo interesse em agir no incidente processual da exoneração do passivo restante, atenta a natureza do crédito reclamado e reconhecido nos autos.  
IX. Com efeito, compulsados os presentes autos, verifica-se que existe apenas um crédito reconhecido e não impugnado, a saber: o crédito reclamado pelo Banco BPI, S.A., “resultante da dívida que deu origem ao Procº nº 11450/97.8TDLSB – 3ª Vara Criminal de Lisboa – atualmente Juízo Central Criminal – Juiz 8.”
X. Ora, a exoneração do passivo restante é uma prerrogativa exclusiva das pessoas singulares, destinada a conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga liquidar integralmente no âmbito do processo de insolvência.  
XI. Destarte, nos termos gerais, uma vez decorrido o período da cessão e sendo proferido despacho final de exoneração do passivo restante, o devedor alcança a extinção dos créditos sobre a insolvência que subsistam naquela data, com exceção dos elencados nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 245.º do CIRE.  
XII. Nos termos legais, com o término do período de cessão do rendimento disponível, o juiz irá decidir sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 244.º do CIRE.
XIII. Ora, a ausência de reclamação de outros créditos no âmbito dos presentes autos, não deve obstar, sem mais, ao prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, considerando que eventuais créditos, a existirem, o que se desconhece, sempre poderão vir a extinguir-se aquando da concessão da exoneração do passivo restante. 
XIV. Se a exoneração for concedida, ocorre a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que é concedida, com exceção dos elencados no n.º 2 do artigo 245.º do CIRE, designadamente: os créditos por alimentos, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações e os créditos tributários.
XV. Em conformidade com o exposto supra, os efeitos que decorrem para o caso concreto só podem ser aferidos a final, isto é, após o decurso do período de cessão do rendimento disponível. 
 XVI. Por outro lado, dispõe o artigo 245.º, n.º 2 do CIRE que: “A exoneração não abrange, porém: (…) b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade; (…)”.  
XVII. Compulsada a reclamação de créditos apresentada pelo Banco BPI S.A., verifica a aqui Recorrente que o credor reclamou o seu crédito nos termos gerais, isto é, não alegou nem demonstrou que o referido crédito respeita a indemnização por factos ilícitos dolosos praticadas pela Insolvente. 
XVIII. Pelo que o credor Banco BPI S.A. não reclamou o crédito aqui em crise na qualidade de indemnização por factos ilícitos dolosos, não se verificando, assim, os pressupostos legais previstos no referido artigo 245.º, n.º 2, alínea b) do CIRE. 
XIX. Destarte, face ao teor e aos termos em que foi efetuada a reclamação de créditos apresentada pelo Banco BPI S.A., deve entender-se que o crédito por este credor reclamado pode vir a ser abrangido pela exoneração do passivo restante, que assim produz os seus efeitos sobre o mesmo, não se aplicando o regime previsto no artigo 245.º n.º 2, alínea b) do CIRE.
XX. Por tudo o quanto exposto, compulsados os presentes autos verifica-se que se encontram preenchidos todos os pressupostos materiais e formais para o deferimento liminar da exoneração do passivo restante ao Recorrente, pelo que deverá ser considerado nulo o despacho ora recorrido.”
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O Recurso foi validamente admitido, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os Vistos legais.
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II. Questão a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil, e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, para além do que é de conhecimento oficioso, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, pelo que o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente.
No caso concreto, a questão a apreciar consiste em saber se, sendo o único crédito reclamado na insolvência um crédito por indemnização por facto ilícito doloso, emergente de condenação em processo de natureza criminal, tal leva à inutilidade do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Recorrente.
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III. Fundamentação de Facto:
A factualidade relevante para o conhecimento do presente Recurso é a seguinte:
1. O… apresentou-se à Insolvência em 27/9/2018 e requereu desde logo que lhe fosse concedida a exoneração do Passivo Restante.
2. A Requerente foi declarada Insolvente por sentença de 1/10/2018, onde, entre outros, se decidiu ainda nomear Administrador da Insolvência, I…; não nomear comissão de credores e dispensar a realização de assembleia de credores, com fundamento na inexistência de activo e no diminuto número de credores indicados e relegou-se a decisão do pedido de exoneração do passivo restante para momento oportuno.
3. No Relatório apresentado o AI propôs o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente; o deferimento do pedido de Exoneração do Passivo Restante da insolvente e fixado um Rendimento Disponível a entregar ao Fiduciário, cuja nomeação igualmente requereu.
4. Após ter sido concedido um prazo à Insolvente para se pronunciar sobre a inutilidade do incidente de exoneração do passivo restante deduzido, ao que esta se opôs, em 8/1/2019 foi proferida decisão a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por falta de interesse em agir dada a natureza dos créditos a reconhecer.
5. Em 17/12/2018 o AI junta a lista definitiva de créditos reconhecidos onde consta apenas o crédito do Banco BPI, S.A., no montante total de 933.789,62 € com o “Comentário” – “Crédito reclamado, resultante de dívida que deu origem ao Proc.º n.º 11450/97.8TDLSB- 3ª Vara Criminal de Lisboa, actualmente Juízo Central Criminal – Juiz 8. Posteriormente, em 10.09.2013 foi interposta acção executiva”.
6. A Insolvente foi condenada por sentença de 21/4/2006, proferida no Proc.º n.º 11450/97.8TDLSB- 3ª Vara Criminal de Lisboa, actualmente Juízo Central Criminal – Juiz 8 no pagamento da quantia de 635.744,66 €, indemnização com fundamento na prática de facto ilícito danoso, tendo sido condenada, definitivamente, por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31/1/2007 proferido em sede de recurso daquela sentença (na parte crime) pelo crime de burla informática, previsto e punido pelo art.º 221º, n.º 1 e 4, al. B) do Código Penal na pena de três anos de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de cinco anos, sob condição de pagar, no prazo de três anos, ao assistente Banco BPI, a título de indemnização (parcial) e como compensação pelo prejuízo sofrido o montante de 125.000,00 € (cento e vinte e cinco mil euros).
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 IV. Do Direito:
Com interesse para a decisão que agora se coloca, há que atender às seguintes normas do CIRE;
Dispõe o art.º 235º do referido diploma que “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.”
No art.º 236º do CIRE vem estabelecido o prazo e menções que devem constar do requerimento inicial, o qual é apreciado ou na Assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio. ou, se a mesa for dispensada, é facultado um prazo para que os credores e o administrador da insolvência se pronunciarem sobre o mesmo.
Nos termos do art.º 237.º:
“A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:
a) Não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte;
b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial;
c) Não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;
d) Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efectivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração.”
Quais as causas de indeferimento liminar do pedido vêm previstas no artigo subsequente, sendo estas:
“1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, exceto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.”
Finalmente, para o que aqui importa, há que considerar o disposto pelo artigo 245.º do CIRE:
“1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários e da segurança social.”
Feito este enquadramento legal, do mesmo resulta que a exoneração do passivo restante tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de insolvência, desde que não se verifique algum dos factos impeditivos, enumerados no art.º 238.º, n.º 1, do CIRE. 
Como vem sendo entendido pela doutrina, o instituto da “exoneração do passivo restante” representa a consagração no nosso ordenamento jurídico do princípio do “fresh start”, por via do qual o devedor, dentro de determinados pressupostos, tem a possibilidade de se libertar do passivo por si contraído e dar início a uma nova vida económica, apesar de ter sido declarado em estado de insolvência.
Trata-se duma recuperação social e económica das pessoas singulares, concretizando-se através da possibilidade de extinção das dívidas que não forem liquidadas no prazo de cinco anos (conf. art.º 235º do CIRE), assim representando um perdão parcial ou total dessas dívidas, sejam elas de diminuto ou elevado montante, com equivalente perda para os credores – Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, págs. 16 a 19 e Assunção Cristas, in “Themis”, ed. esp., 2005, pág. 167.
A exoneração do passivo restante pressupõe dois momentos distintos: o despacho inicial e o despacho de exoneração (artigos 238º e 237º do CIRE). No primeiro momento, incumbe averiguar se há fundamento para o indeferimento liminar do incidente ou se estão reunidas condições para determinar o seu prosseguimento.
No caso dos Autos, o Juiz a quo entendeu indeferir liminarmente a exoneração porquanto entendeu ser inútil o prosseguimento do incidente uma vez que o único crédito conhecido e reclamado respeita à indemnização que foi fixada em âmbito de processo crime, por factos ilícitos e dolosos, praticados pela Insolvente, pelo que tal crédito está excluído da exoneração nos termos do art.º 245º, n.º 2 do CIRE, ocorrendo assim uma situação de ausência de créditos susceptíveis de exoneração.
Ora, tem sido discutida na Jurisprudência tal questão tal como pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/6/2011, Proc. n.º 4196/10.5TBSTS.P1, disponível em www.dgsi.pt:
 “(…) não nos parece obstativa do prosseguimento da exoneração do passivo restante a circunstância dos credores não terem reclamado os seus créditos na insolvência.
Os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos têm de reclamar os seus créditos, mas a reclamação não é essencial para o reconhecimento do crédito, dado que o administrador da insolvência tem o dever de reconhecer não apenas os créditos reclamados mas também os que constem dos elementos da contabilidade do devedor e os que, por outra forma, sejam do seu conhecimento (artigo 129º, 1, do CIRE) - Luís Menezes Leitão, ibidem, pág. 230. Mesmo o encerramento do processo não obstaculiza à satisfação dos interesses dos credores. A alínea c) do n.º1 do artigo 233º atribui o valor de título executivo às sentenças homologatórias do plano de insolvência e do plano de pagamento, à sentença de verificação de créditos ou decisão proferida em acção de verificação ulterior e até os credores da massa podem reclamar do devedor a satisfação dos seus direitos na parte que o não tenha sido no processo de insolvência - Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ibidem, pág. 770. (…)
Acresce que, mesmo depois de findo o prazo fixado para a reclamação de créditos, é ainda possível reclamá-los ulteriormente (artigo 146º, na redacção dada pela Lei 25/2009, de 12 de Agosto). Tudo a significar que a ausência de reclamação dos créditos sobre o devedor, constantes da lista apresentada pela administradora de insolvência, não impede o seu reconhecimento e pagamento no processo de insolvência. Donde não haja qualquer inutilidade/impossibilidade no prosseguimento do incidente de exoneração do passivo. Ao invés, a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, aplicando-se o artigo 217º, a significar somente que não afecta os direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou terceiros garantes (artigo 245º, 1, do CIRE). Vale por dizer que, preenchido o período da cessão, se o juiz proferir despacho de exoneração do passivo restante o devedor alcança a liberação dos créditos sobre a insolvência, ainda que não tenham sido reclamados. Como a extinção dos créditos emergente da exoneração abrange também os que não tenham sido reclamados na insolvência a exoneração comporta a extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda existam no momento em que o despacho de exoneração é proferido (Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ibidem, pág. 801).
E assim se patenteia o interesse no prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante apesar dos credores reconhecidos pela administradora não terem reclamado os seus créditos na insolvência.”
E a propósito da ausência de créditos conhecidos ou reclamados, veja-se o que refere Tânia Sofia Marques de Almeida, Insolvência: exoneração do passivo restante, Um olhar crítico quanto à fixação do sustento minimamente digno, Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Jurídico Forenses, Coimbra, Fevereiro 2014:
18.3. Créditos não abrangidos pela exoneração: a situação do devedor que apresente apenas dívidas desta natureza
A maioria dos devedores insolventes apresenta inúmeros créditos. Créditos esses, na sua grande maioria, provenientes de empréstimos bancários, recurso a créditos pessoais através de instituições e linhas de créditos. Estamos nitidamente a falar de créditos cuja natureza é abrangida pela exoneração. No entanto, pessoas há que apenas têm, ou têm na sua grande maioria, créditos cuja decisão final de exoneração não abrange. Coloca-se a questão: poderão essas pessoas recorrer ao processo de insolvência e enxertar um pedido de exoneração? A resposta é simples: claro que sim. Não está vedado a estas pessoas lançar mão da insolvência. Mas nesta sequência, surge outra questão: para que servirá a declaração de insolvência, sem a possibilidade de ver a totalidade ou a maioria dos créditos abrangidos pela exoneração? A verdade é que “pode diminuir amplamente o interesse desta figura” - LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 7.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 227.
Neste sentido, de certa forma, existirá uma descriminação quanto ao alcance desta figura para as pessoas que detenham a maioria ou a totalidade das suas dívidas enquadráveis nas exceções da exoneração. Assim, e em termos comparatísticos, encontram-se desprotegidas e mais vulneráveis em relação aos demais devedores que tenham dívidas comuns.
Cabe aqui relembrar o papel fundamental dos advogados que são mandatados para propor uma ação de insolvência de pessoa singular. Estes têm primeiramente que analisar todas as causas que levaram a pessoa a não conseguir cumprir com as suas obrigações vencidas. Analisar as datas de vencimentos dos créditos e a partir de que data deixaram de cumprir. Têm de ver qual a natureza dos créditos e redigir a ação. Deverão alertar os clientes devedores da existência de créditos cuja exoneração não determina a sua extinção.
18.4. A ausência de reclamações de créditos
Como já tivemos oportunidade de referir, os créditos que não tenham sido reclamados ou que não tenham sido reconhecidos, ficam, no final do período de cessão, exonerados (…).
Nesta conformidade, na ausência de reclamação de créditos, não poderá posteriormente ao encerramento do processo, um credor referir, em sua defesa, que não tomou conhecimento do processo de insolvência. Além do período de tempo fixado na sentença para a reclamação de créditos, sempre terá o credor a possibilidade de recorrer, caso o seu crédito não tenha sido reconhecido pelo administrador de insolvência, a uma ação de verificação ulterior de créditos, mediante o preenchimento dos pressupostos do art.º 146.º do C.I.R.E.
Poderá acontecer que, uma vez proferida a sentença de declaração de insolvência, o administrador apure a existência de alguns créditos, quer porque foram indicados pelo devedor insolvente, quer porque constem da contabilidade. Neste tipo de situações, e apesar de não ter rececionado qualquer reclamação de créditos, a verdade é que deverá o administrador de insolvência incluir esses créditos primeiramente na lista provisória de créditos (a que alude o art.º 155.º do C.I.R.E.) e, posteriormente, inclui-los na relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos (art.º 129.º do C.I.I.R.E.) e fazer a notificação a que faz referência o n.º 4 do art.º 129.º do C.I.R.E.. A ausência de reclamações de créditos não faz precludir o prosseguimento do incidente da exoneração do passivo restante.”
Posto isto, impõe-se referir que:
Não se afigura correcta a decisão de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, uma vez que as causas que fundamentam tal rejeição são as que constam do art,º 238º do CIRE, não resultando do mesmo que em caso de apenas ter sido reclamado o crédito em causa seja motivo para indeferimento liminar.
É certo que o crédito reclamado e reconhecido decorre de indemnização pela prática de facto ilícito e doloso praticado pela insolvente, como resulta dos factos que acima se assentaram, pelo que improcedem as conclusões da Recorrente em sentido diverso.
Assim, não há dúvida que tal crédito se encontra excluído da exoneração nos termos do art.º 245º, n.º 2 do CIRE.
Mas quanto à extinção do incidente por inutilidade superveniente da lide decorrente deste facto, acompanha-se a Jurisprudência e doutrinas supra citadas, julgando-se que a ausência de créditos conhecidos e reclamados neste momento não acarreta a extinção deste incidente.
Nesta parte, acompanham-se as conclusões da Recorrente quando refere que a ausência de reclamação de outros créditos no âmbito dos presentes autos, não deve obstar, sem mais, ao prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, considerando que eventuais créditos, a existirem, o que se desconhece, sempre poderão vir a extinguir-se aquando da concessão da exoneração do passivo restante. 
Se a exoneração for concedida, ocorre a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que é concedida, com exceção dos elencados no n.º 2 do artigo 245.º do CIRE, designadamente: os créditos por alimentos, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações e os créditos tributários.
Deste modo, resulta que só a final, após o decurso do período de cessão do rendimento disponível é que será lícito concluir pela inutilidade ou não da exoneração.
Nestes termos, impõe-se revogar o despacho proferido, devendo o mesmo ser substituído por outro que, inexistindo outro fundamento para o indeferimento liminar do pedido, aprecie os pressupostos previstos pelo art.º 237º e 239º do CIRE e, verificados, determine o prosseguimento do incidente.
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Nos termos do art.º 304º do CIRE as custas do recurso são a cargo da Massa Insolvente.
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DECISÃO:
Nos termos e pelas razões expostas, julga-se procedente a apelação e revoga-se a decisão recorrida na parte em que indeferiu liminarmente a exoneração do passivo restante com fundamento na falta de interesse em agir, determinando-se que em substituição da mesma seja proferida outra que, inexistindo outro fundamento para o indeferimento liminar do pedido, aprecie os pressupostos previstos pelo art.º 237º e 239º do CIRE e, verificados, determine o prosseguimento do incidente.
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Custas do recurso pela massa insolvente.
Registe e notifique.

Lisboa, 20/2/2020
Vera Antunes
Amélia Rebelo
Maria Manuela Espadaneira Lopes