Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26411/11.8T2SNT-D.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
EXTEMPORANEIDADE
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A correcta compreensão do princípio do contraditório não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos, antes implica ainda que possam pronunciar-se sobre quanto a questões determinantes para a decisão a proferir que, constituindo novidade no processo, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.
II) Pretende-se evitar que as partes se defrontem, sem pronúncia prévia, com uma interpretação judicial que não poderiam antecipar ou com uma tramitação processual que escape ao modelo formal aplicável, visando que a decisão seja o culminar de um processo argumentativo justo e equitativo que permita que cada um dos justiciáveis faça ouvir a sua voz, trazendo ao decisor a sua perspectiva e, nessa medida, influenciando a decisão.
III) A decisão de indeferimento liminar de embargos de terceiro por intempestividade não pode ser considerada decisão-surpresa, tratando-se de uma decisão típica, que aborda um dos fundamentos previstos pela lei como seu objecto.
IV) O prazo estabelecido para a dedução de embargos de terceiro é um prazo judicial para dedução de um incidente em processo em curso, com uma janela temporal delimitada claramente na lei.
V) Com a «nova» (reforma de 1995/1996) reconfiguração dos embargos como incidente, a lei impõe ao juiz a verificação oficiosa na fase liminar da tempestividade dos embargos.
VI) À apreciação liminar da petição de embargos é aplicável o disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que estatui o indeferimento liminar por manifesta improcedência.
VII) O direito de retenção do promitente-comprador que resolveu o contrato promessa não é incompatível com a penhora ou com a venda em execução para pagamento de quantia certa deduzida contra o promitente-vendedor, sendo antes a execução pressuposto do seu exercício.
VIII) Actuando a Relação em substituição, o contraditório a que alude o artigo 665.º, n.º 3, do CPC, apenas se aplica a questões novas ou a apreciação de mérito, como resulta da sua origem no antigo artigo 753.º, n.º 2, do CPC de 1961 na redacção anterior à reforma de 2008.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I) RELATÓRIO

A e B, com os sinais dos autos, vieram apresentar oposição a execução para pagamento de quantia certa, por embargos de terceiro, contra C e D, exequentes, E [ ….. S.A.R.L. ] , MINISTÉRIO PÚBLICO, requerendo, ao abrigo do artigo 7º, nº 4, do C.P.C., a identificação dos demais Exequentes e Credores eventualmente existentes, para contra todos correr a oposição.
Alegaram para tanto:
Em 10 de Janeiro de 2012 foi penhorada fracção autónoma de um prédio, tendo os embargantes recebido, em 21 de Março de 2019, uma carta da agente de execução para marcação da “realização da diligência de verificação do estado do imóvel” referido.
Os Embargantes estranharam o teor da carta uma vez que nada conheciam do processo de execução e não tinham dívidas, pese embora o que possibilitaram o acesso da agente de execução na data por ela designada – 27 de Março de 2019 -, sendo nessa altura esclarecidos por ela de que o imóvel se encontrava em fase de venda, o que inteiramente desconheciam, ficando assustados com essa informação, por ser a fracção sua propriedade, uma vez que, em 31 de Outubro de 2011, celebraram com os executados um contrato promessa de compra e venda do imóvel em causa nos autos, livre de ónus ou encargos, pelo preço de € 62.000,00 (sessenta e dois mil euros), sendo entregues aos executados nessa data € 7.000,00 (sete mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, acordando em que o remanescente preço seria pago no acto da escritura.
O pagamento do sinal foi efectuado contra a entrega imediata do imóvel em causa, que se concretizou com o recebimento das chaves nessa mesma data de 31 de Outubro de 2011, tomando os Embargantes posse do andar com o consentimento dos promitentes vendedores, ora Embargados/Executados, os quais consentiram em que os Embargantes desde logo ocupassem a fracção e nela passassem a viver com a sua família, finalidade essa da sua aquisição, até à assinatura da escritura de venda, o que vem sucedendo desde há mais de seis anos, por nela os embargantes terem constituído morada e família, aí residindo actualmente com os seus dois filhos menores, passando a dispor da fracção como se sua fosse, aí guardando os seus objectos, uma vez que esta é a primeira e única habitação dos Embargantes, sendo a sua casa de morada de família, aí fazendo as suas refeições e convivendo com familiares e amigos, tudo desde a data em que foi celebrado o referido contrato promessa, aguardando que os Embargados/Executados cumprissem o contrato e fosse realizada a escritura, o que estes não fizeram até agora.
Os Embargantes, apesar de esgotado o prazo inicial para a celebração da escritura, não a marcaram por os Embargados/Executados não terem enviado a necessária documentação para o efeito.
Apesar de esgotado o prazo estipulado de 120 (cento e vinte) dias, embora desagradados com a atitude dos Embargados/Executados, uma vez que lhes foi comunicado que entretanto o imóvel tinha sido penhorado, era ainda vontade dos Embargantes que aqueles cumprissem a promessa e procedessem nos termos da cláusula segunda do dito contrato, uma vez que também se comprometeram a proceder ao cancelamento da penhora.
Razões pelas quais, em 29 de Fevereiro de 2012, os Embargantes acederam a celebrar a adenda ao contrato promessa existente, nos termos da qual ficou estipulado que a escritura de compra e venda seria celebrada no prazo de um ano, prazo este que se entendeu adequado para que os Embargados/Executados solucionassem a existência da indicada penhora, que incidia sobre o imóvel e que impedia a realização da escritura definitiva de compra e venda.
Em 02/03/2012 e 05/03/2012 os Embargantes, a título de reforço de sinal e nos termos da mesma adenda, pagaram aos Embargados/Executados o montante global de € 3.000,00 (três mil euros) e aguardaram que os Embargados/Executados cumprissem com a promessa de procederem ao cancelamento da penhora, de forma a possibilitar a realização do contrato definitivo.
Como nada mais lhes foi dito, os Embargantes voltaram a interpelar os Embargados/Executados, que lhes transmitiram que a questão da penhora se encontrava praticamente solucionada, tendo voltado a pedir-lhes cerca de 30 dias para que o assunto ficasse definitivamente resolvido, ao que os Embargantes acederam, por manterem interesse na compra da fracção em causa nos autos, celebrando em 12 de Dezembro de 2016 nova adenda ao contrato inicial, com redução do preço do imóvel para € 59.400,00, fixação de novo prazo para celebração da escritura, até ao dia 31 de Janeiro de 2017, e reforço do sinal em € 8.000,00, constando dessa adenda que, por conta do preço acordado, os Embargantes foram liquidando, aos Embargados/Executados, prestações mensais de € 300,00, no total de € 25.500,00.
Os Embargantes pagaram, deste modo, a quase totalidade do preço acordado, faltando apenas liquidar a quantia de € 15.900,00 do preço global estipulado de € 59.400,00, quantia aquela a pagar no acto da assinatura da escritura pública de compra e venda.
Em finais do ano de 2011, os Embargantes decidiram comprar aquela habitação nova, e não tendo capital próprio para tal, dirigiram-se ao banco “Millennium BCP”, agência de Belas, a fim de pedirem financiamento para compra da casa, tendo sido aprovado o montante total do crédito que se destinava a financiar a aquisição do imóvel objeto do mesmo.
Logo que o imóvel lhes foi entregue os Embargantes contrataram os serviços de água, electricidade, gás e televisão por cabo, que mantiveram até à presente data, realizando obras de conservação corrente, como pintura e diversos pequenos arranjos, bem como implementaram benfeitorias, as quais se demonstram necessárias à manutenção, conservação e valorização do imóvel, sendo por isso necessárias/úteis, tais como colocação de janelas duplas e isolamento exterior, em tudo tendo despendido a quantia global de € 600,00, sempre com a autorização e conhecimento dos Embargados/Executados.
Ficou estipulado que os Embargantes, a partir da assinatura daquele contrato promessa ocorrida em 31 de Outubro de 2011, eram os únicos responsáveis pela guarda, limpeza e asseio do imóvel, sendo igualmente da sua conta e responsabilidade quaisquer danos ou deteriorações que pudessem vir a ocorrer no mesmo, pelo que os Embargantes cuidaram do imóvel como seus proprietários, sempre pensando que iam celebrar a escritura pública de compra e venda da fracção em questão nos autos.
Foi nessa convicção que sinalizaram e foram reforçando, por conta do preço acordado, com diversas entregas de sinais, sendo certo que os Embargados/Executados nunca lhes exigiram a entrega do imóvel, assim aumentando a sua convicção, quer na realização do contrato definitivo de compra e venda, quer ainda que actuavam como proprietários, desde a data em que ocuparam a fracção, sem qualquer interrupção ou oposição seja de quem for.
Tal entrega (tradição) foi efectuada à vista de todos, pacificamente e de boa-fé e sem oposição de quem quer que seja, sendo do total conhecimento de familiares, amigos e vizinhos dos Embargantes, agindo estes perante os seus amigos e família como sendo donos do imóvel que a vizinhança identifica como pertencente aos Embargantes.
Foi vontade das partes transferir para os Embargantes, logo com a celebração do contrato-promessa, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade do imóvel em questão e, até à “visita” efectuada pela Agente de Execução, não era notório que os Embargados/Executados não poderiam cumprir com as obrigações que assumiram perante os Embargantes, nomeadamente através do contrato promessa celebrado e suas respectivas adendas.
Isto porque, apesar de os Embargantes saberem da existência de uma penhora, tal conhecimento advém exclusivamente do que consta nas adendas que foram celebradas ao contrato promessa supra referidas, nunca tendo tido conhecimento do processo executivo e dos termos em que tinha ocorrido a penhora, tendo-se limitado a confiar no que os Embargados/Executados lhe transmitiram e que consta das ditas adendas, sendo que nunca vislumbraram qualquer documento que demonstrasse a existência da aludida penhora.
Por outro lado, foram efectuadas diversas promessas aos Embargantes, no sentido de a penhora existente ser cancelada, o que estes sempre acreditaram, tendo anuído nos adiamentos da escritura que foram estipulados entre as partes. Ficou acordado que a marcação da escritura incumbia aos Embargantes, devendo estes comunicar aos Embargados/Executados o local, dia e hora que para o efeito designassem, por carta registada enviada com a antecedência mínima de 10 dias.
Apesar dessa incumbência, a escritura só não foi marcada anteriormente, pelos Embargantes, em virtude dos pedidos de adiamento que foram sendo efectuados pelos Embargados/Executados, sendo que os Embargantes sempre manifestaram interesse na concretização daquele acto de transmissão.
Depois do termo do último prazo estipulado (31 de Janeiro de 2017), os Embargantes pediram várias vezes, sem sucesso, aos Embargados/Executados, que enviassem os documentos para efeitos de realização da escritura pública de venda, o que nunca concretizaram, apesar do que os Embargantes nunca suspeitaram ou previram que os Embargados/Executados não cumprissem com o acordado.
Esta situação apenas se alterou quando foram informados, pela agente de execução, de que o seu imóvel se encontrava em fase de venda, face ao que, em 10 de Abril de 2019, os Embargantes remeteram aos Embargados/Executados uma carta a marcar a escritura pública para o dia 22 de Abril de 2019, pelas 10:00 horas, solicitando aos Embargados/Executados que fossem remetidos, até ao dia 18 de Abril de 2019, todos os documentos necessários à realização da dita escritura, o que estes não fizeram.
Os Embargantes procederam à marcação, junto da respectiva Notária, da dita escritura pública de compra e venda, enviando todos os documentos tendentes à sua concretização que tinham em seu poder, solicitando a emissão das competentes guias de impostos.
Porém, a escritura aprazada não foi realizada, apesar de solicitada pelos Embargantes, por motivos exclusivamente imputáveis aos Embargados/Executados que não compareceram à escritura, nem de outro modo reagiram à marcação.
Por carta registada com aviso de recepção, dirigida aos Embargados/Executados, datada de 18 de Abril de 2019, os Embargantes comunicaram a falta de documentos tendentes à realização da escritura pública definitiva, tendo reiterado a sua apresentação, bem como assim o local, data e hora para a realização da escritura, sob pena de, tal não se verificando, o contrato promessa e suas adendas serem imediatamente resolvidas, por causas totalmente imputáveis aos Embargados/Executados.
Apesar disso, os Embargados/Executados não compareceram na escritura nem sequer enviaram os documentos tendentes à sua realização, pelo que, no dia 22 de Abril de 2019, houve incumprimento definitivo do contrato prometido, que foi resolvido, ficando os Embargantes credores dos Embargados/Executados.
Nas cartas enviadas aos Embargados/Executados, em 18 e 22 de Abril de 2019, os Embargantes comunicaram àqueles que, como decorrência da declaração de resolução, tinham o direito de exigir deles o dobro do sinal por si prestado, ou seja, € 87.000,00, assim como peticionaram o reembolso das benfeitorias realizadas no imóvel, advertindo-os ainda de que, considerando o seu crédito, lhes assistia o direito de retenção quanto à fracção, para garantia desse crédito.
Nessa conformidade, ainda em tais cartas, os Embargantes concederam aos Embargados/Executados até ao momento em que a escritura pública se deveria ter realizado, para restituírem o montante global do crédito peticionado, o que também não fizeram até à presente data.
 Mantendo-se o incumprimento dos Embargados/Executados não era exigível aos Embargantes continuarem a suportar essa situação indefinidamente, sendo que nunca os Embargantes foram informados pelos Embargados/Executados, da existência de qualquer hipoteca que incidisse sobre o bem imóvel em causa.
Os Embargantes continuam a morar no imóvel, com os seus dois filhos menores, não são parte na referida execução, desconhecendo-a em absoluto, com excepção do referido no presente articulado, sendo que a penhora da fracção, assim como todo e qualquer ónus e encargo existente, priva os Embargantes de usar e fruir da fracção em causa.
A Ex.ma Senhora Juiz proferiu despacho, na fase liminar, de indeferimento do incidente dos embargos, com fundamento na sua intempestividade decorrente de os Embargantes conhecerem a penhora desde, pelo menos, 29 de Fevereiro de 2012, sendo de trinta dias o prazo para contra ela reagirem por embargos de terceiro.
É deste despacho que vem interposto recurso pelos Embargantes que, alegando, apresentaram as seguintes conclusões:
1º - O presente recurso vem interposto da douta sentença de fls., que ficou com a referência 118995804, de 26 de Abril de 2019, e vêm dela interpor recurso de Apelação, nos termos dos artigos 627º, 629º nº 1, 631º nº 1, 637º, 638º, nº 1, 639º, nºs 1 e 2, 644º, nº 1 alínea a), 645º, nº 1 alínea c), e 647º nº 3, alínea c), todos do C.P.C., e uma vez que os Embargantes com ela não se conformam, o presente versa sobre toda a parte decisória constante da mesma, a qual indeferiu liminarmente, por extemporânea, a petição de Embargos de Terceiro por estes apresentada.
2º - Com relevância factual para a decisão do caso em apreço, devem ser considerados os pontos (i) a (vi) supra reproduzidos, que assim se dão por assentes para os devidos efeitos.
3º - A sentença recorrida rejeitou liminarmente os embargos de terceiro deduzido pelos Recorrentes, com base no artigo 344º, nº 2, do C.P.C., porquanto entendeu que os mesmos são intempestivos. Do ponto de vista da matéria factual alegada pelos Recorrentes, o Tribunal “a quo” não teve a correcta interpretação quanto à matéria invocada do conhecimento da penhora, nem sequer atendeu a todos os factos que foram alegados pelos Recorrentes quanto a este ponto da tempestividade do incidente de embargos.
4º - Para uma correcta interpretação da matéria factual referente à excepção da caducidade do incidente de embargos deve ser colhido o alegado pelos Recorrentes nos artigos 1º a 3º, 6º, 7º, 20º a 22º, 25º a 27º, 44º a 46º, 53º a 56º, 61º, 62º, 81º a 84º e 126º a 133º, supra reproduzidos, que assim se dão por assentes para os devidos efeitos.
5º - A douta decisão recorrida apenas aproveitou parte da alegação/confissão dos Embargantes/Recorrentes quanto à penhora do imóvel em questão nos autos. Na realidade, ao lermos a causa de pedir invocada pelos Embargantes/Recorrentes, verificamos que os mesmos se demonstram surpreendidos pela notificação da Agente de Execução para efeitos de vistoria ao imóvel, ocorrida em 21 de Março de 2019 (artigos 2º e 3º da p.i.), desconhecendo também que o imóvel se encontrava em fase de venda (artigos 6º e 7º da p.i.), assim como os Embargantes/Recorrentes apenas admitiram que a transmissão do imóvel ajustada com os Embargados/Executados sempre se concretizaria (artigos 44º a 46º, 53º, 56º, 61º e 62º da p.i.).
6º - Os Recorrentes alegaram que desconheciam, por completo, os autos de processo executivo, nele não sendo partes e para o qual nunca foram notificados (até 21 de Março de 2019), tudo se resumindo ao que consta das adendas firmadas entre as partes quanto ao contrato-promessa, e que se resumem a uma referência genérica ao termo penhora, sem mais qualquer indicação concreta do processo judicial, do Tribunal ou sequer se a mesma provinha, por exemplo, de um Agente de Execução ou da Autoridade Tributária (artigos 54º, 55º e 83º da p.i.). E se a isto juntarmos que os Recorrentes também invocaram que nem sequer conheciam a existência de uma hipoteca a incidir sobre o imóvel em questão (artigo 81º da p.i.), facilmente se poderá concluir que o facto de terem admitido terem tido conhecimento de uma penhora sobre o imóvel em causa, em Fevereiro de 2012, não poderia a sentença recorrida - num “salto” sem qualquer suporte factual - logo admitir que os mesmos tenham obtido conhecimento de todos os meandros concretos da penhora para que, logo de seguida, pudessem reagir à mesma.
7º - Os Recorrentes não conheciam os presentes autos nem qualquer dos termos específicos da penhora que incidiu sobre o imóvel que anteriormente tinham ajustado a compra com os Embargados/Executados, como resulta dos factos alegados da p.i. que supra se reproduziram. Só com a notificação recebida em 21 de Março de 2019, os Recorrentes ficaram a saber, na sua plenitude, que sobre o imóvel existia um processo de execução, o Tribunal onde o mesmo é tramitado e o número do processo judicial.
8º - Segundo o princípio da indivisibilidade ínsito no artigo 360º do Código Civil, não podia o Tribunal “a quo” dar como provado o facto referente à penhora, que são favoráveis à tese da decidida intempestividade, quando não aceita os demais factos que são desfavoráveis à essa mesma tese, principalmente porque os Recorrentes rejeitaram qualquer concreto conhecimento do processo executivo em causa e subjacente a essa penhora, ou seja, terá de se considerar sempre a globalidade dos factos constantes do articulado apresentado pelo sujeito processual (no caso referente ao decidido conhecimento da penhora) e não apenas a parte que é conveniente e que no caso suportou a tese da intempestividade dos embargos.
9º - A decisão recorrida foi tomada de forma surpreendente, uma vez que não foi precedida de qualquer audição prévia dos Recorrentes quanto à mesma, não lhes tendo sido facultada a possibilidade de pronúncia sobre questões de facto e de direito sobre que veio a pronunciar-se a decisão recorrida, situação esta que viola o disposto nos artigos 3º, nº 3, e 195º, ambos do C.P.C..
10º - Os Recorrentes insurgem-se, com a dedução dos embargos, contra a entrega do bem imóvel em questão nos autos, e não contra qualquer outra providência executiva anterior (apreensão ou penhora, por exemplo) ofensiva da sua posse ou direito (alíneas f), g) e h) das conclusões da petição inicial).
11º - A matéria em causa nos presentes embargos não é disciplinada por preceitos cuja imperatividade os torna inderrogáveis, não se encontrando, consequentemente, excluída da disponibilidade das partes (artigo 333º, nº 2, do Código Civil).
12º - Sendo assim, considerando que o prazo prescrito pelo artigo 344º, nº 2, do C.P.C., consubstancia um prazo de caducidade, estabelecido em matéria inserida no âmbito da disponibilidade das partes, o seu decurso, ainda que demonstrado, não pode ser objecto do conhecimento oficioso do Tribunal (artigo 303º do Código Civil).
13º - Os Embargantes/Recorrentes nunca antes de 21 de Março de 2019 tiveram conhecimento dos presentes autos executivos, pelo que não deveria proceder a caducidade pela propositura da petição de embargos, como decidiu o Tribunal “a quo”.
14º - Ao assumir que os Recorrentes tiveram conhecimento da penhora em Fevereiro de 2012, a sentença sob recurso mal interpretou a petição inicial e erradamente aplicou o direito, uma vez que deve-se exigir o efectivo conhecimento do acto lesivo (que dá lugar aos embargos) e não apenas a sua mera cognoscibilidade, ou seja, uma vez que os Recorrentes nunca antes de 21 de Março de 2019 tiveram conhecimento dos presentes autos executivos, não deve proceder a caducidade pela propositura da petição de embargos.
15º - A entrega do imóvel que se encontra na posse dos Embargantes/Recorrentes ainda não se efectivou, admitindo estes, em função da notificação da Sra. Dra. Agente de Execução de 21 de Março de 2019, que já tenha sido ordenada pelo Tribunal, até porque o imóvel encontra-se em fase de venda.
16º - Os presentes embargos de terceiro têm uma função preventiva (artigo 350º do C.P.C.) e não repressiva (artigo 344º do C.P.C.). Aliás, na alínea h) dos pedidos deduzidos foi, imediatamente, requerida a suspensão das diligências executivas ao abrigo do artigo 350º, nº 2, do C.P.C..
17º - Os embargos preventivos não se encontram sujeitos ao prazo previsto no artigo 344º, nº 2, do C.P.C., podendo ser interposta logo que seja ordenada a diligência judicial (no caso, a venda) que seja incompatível com os direitos invocados pelos Recorrentes (no caso, de manutenção da posse e suspensão da diligência da entrega do imóvel penhorado nos autos principais de execução).
18º - Os presentes embargos foram, pois, deduzidos tempestivamente face ao disposto no artigo 350º, nº 1, do C.P.C..
19º - Por força da decisão recorrida o Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 3º, nº 3, 195º, 344º, 355º, todos do C.P.C., e os artigos 303º, 333º, nº 2, 343º, nº 2 e 360º, todos do Código Civil, pelo que não lhes foi conferida a devida interpretação e aplicação, conforme acabado de explanar nas presentes alegações.
Termos em que, Deverá ter provimento o presente recurso. Revogando-se a douta sentença de fls., ora recorrida, em toda a sua parte dispositiva, a fim de se fazer a tão costumada JUSTIÇA.
O recurso foi recebido para subir imediatamente nos autos e com efeito meramente devolutivo.
A decisão foi proferida na fase liminar dos embargos, não sendo aplicável, em consequência, o disposto no artigo 641.º, n.º 7, do CPC, como aliás resulta implícito da decisão de primeira instância de remessa do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir por a tal nada obstar.

II) OBJECTO DO RECURSO

Tendo em atenção as conclusões dos Recorrentes - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, são as seguintes as questões a decidir:
1) Da nulidade da decisão impugnada por violação de contraditório;
2) Do mérito da decisão de julgar intempestivos os embargos.

III) FUNDAMENTAÇÃO

A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Atentas as questões em apreciação, não há lugar a fixação da matéria de facto, uma vez que cumpre apreciar a petição inicial tal como foi apresentada em juízo, decorrendo do relatório o que de essencial constitui o seu teor.

B) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Da nulidade da decisão impugnada por omissão de contraditório
Defendem os Recorrentes que, previamente à decisão de indeferimento dos embargos, deveria a Ex.ma Senhora Juiz ter determinado a sua audição nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, pois tal decisão foi tomada de forma surpreendente, uma vez que não foi precedida de qualquer audição prévia dos Recorrentes quanto à mesma, não lhes tendo sido facultada a possibilidade de pronúncia sobre questões de facto e de direito sobre que veio a pronunciar-se a decisão recorrida, situação esta que viola o disposto nos artigos 3º, nº 3, e 195º, ambos do C.P.C..
Louvam-se no disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, norma que reza:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O princípio do contraditório constitui pedra angular do processo civil, visando permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte/entidade por ela afectada possa pronunciar-se sobre a mesma.
Desse modo, vem consagrando a lei processual civil, na leitura que dela vem sufragando o Tribunal Constitucional, que a correcta compreensão do princípio não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos. Incluindo tal garantia, implica ainda que as partes possam pronunciar-se sobre quanto a questões determinantes para a decisão a proferir e que constituindo novidade no processo, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.
Exemplo típico são as denominadas decisões surpresa, conceito que se tem vindo a densificar na jurisprudência em termos de enquadrar no seu âmbito apenas aquelas com que as partes se confrontam e que não poderiam antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável ou do regime processual na sua tramitação legalmente estabelecida ou objecto de adequação formal nos termos legalmente previstos.
Visa-se, assim, obstar a que as partes se defrontem com uma interpretação judicial que não poderiam antecipar ou com uma tramitação processual que escape ao modelo formal aplicável e não tenha sido submetida a pronúncia.
Em tais casos, o respeito pelo contraditório impõe audição específica das partes, possibilitando que a decisão seja o culminar de um processo argumentativo justo e equitativo que permita que cada um dos justiciáveis faça ouvir a sua voz, assim trazendo ao decisor a sua perspectiva e, nessa medida, assim influenciando a decisão.
Cremos não haver divergência sobre o alcance do contraditório exigível, quando no campo das decisões surpresa. Veja-se, por todos, o mais recente acórdão do Tribunal Constitucional, de 10 de Julho de 2019, n.º 426/2019 (Joana Fernandes Costa), que apreciou em conferência a Decisão Sumária n.º 365/2019, onde se lê:
Têm sido repetidamente assinaladas na jurisprudência constitucional, as condições para que assim seja. Nas palavras do Acórdão n.º 173/2016, na linha de muitos outros: «Como o Tribunal Constitucional vem reiteradamente decidindo, «recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82)».
Ou como lapidarmente refere o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 17 de Junho de 2014, proferido no processo 233/2000.C2.S1 (Maria Clara Sottomayor):
Admitimos que se deu um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja.
Quanto ao caso vertente, o despacho proferido pela Ex.ma Senhora Juiz é o despacho típico previsto para a fase processual em curso, como resulta do artigo 345.º, do CPC, sendo nessa medida aquele com que os Embargantes poderiam contar naquele momento processual.
O aspecto considerado – tempestividade – também é expressamente previsto na norma como conteúdo do despacho, o mesmo acontecendo com a decisão que é uma das duas possíveis.
A parte apresentou aliás a petição conhecedora dessa perspectiva, pronunciando-se designadamente quanto à tempestividade dessa mesma petição.
Nada nesta concreta decisão pode assim ser considerado como surpresa para os Embargantes. Não se vê que possa considerar-se surpresa uma decisão típica, que aborda um dos fundamentos previstos e debatidos no enunciado da petição, constituindo um dos dois resultados típicos: recebimento ou rejeição dos embargos.
Não se verifica, por conseguinte, qualquer nulidade da decisão por violação do contraditório legal.
2. Do mérito da decisão de rejeição
2.1. Do conhecimento oficioso da tempestividade
Entendem os Recorrentes que está vedado o conhecimento oficioso pelo juiz da tempestividade dos embargos de terceiro, por se tratar de um prazo de caducidade estabelecido no domínio de direitos indisponíveis e por isso sujeito ao regime do artigo 333.º do Código Civil.
Adiante-se que não cremos ser esse o regime aplicável. O prazo estabelecido não é um prazo de caducidade para fazer valer um direito em juízo, mantendo-se a possibilidade de, segundo as regras gerais, ser judicialmente accionado o direito que funda os embargos de terceiro.
O prazo estabelecido é um prazo para dedução de um incidente em processo judicial em curso que, aliás, tem uma janela temporal delimitada quanto aos respectivos termos iniciais e finais: não depois dos trinta dias subsequentes ao conhecimento do acto ofensivo nem depois de os bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados. É o que dispõe o artigo 344.º, n.º 2, do CPC.
É neste contexto, e com a «nova» (reforma de 1995/1996) reconfiguração dos embargos como incidente, que o artigo 345.º do CPC impõem ao juiz a verificação logo na fase liminar de que os embargos são deduzidos naquela janela temporal:
Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante (nosso sublinhado).
A esse respeito o acórdão desta Relação de 25 de Maio de 2000, proferido no processo JTRL00027288 (Fernanda Isabel) de que se cita o sumário:
No regime processual vigente a partir da reforma de 1995 - 1996, a redacção dada ao artº 354º do Código Processo Civil deixa claro que no juízo de viabilidade liminar da pretensão do embargante a efectuar na fase introdutória dos embargos de terceiro deve conhecer-se oficiosamente da tempestividade da sua dedução, devendo a petição ser liminarmente indeferida se não for apresentada em tempo.
Do que se conclui que o conhecimento oficioso é imposto pela própria lei, nada havendo a censurar a tal respeito à decisão recorrida.
2.2. Da verificação da intempestividade
2.2.1. A decisão recorrida assenta em que os Embargantes alegam ter conhecimento da penhora desde, pelo menos, Fevereiro de 2012, pelo que contra ela deveriam ter reagido em trinta dias contados do último daquele mês e ano. Não o tendo feito, são intempestivos os embargos.
O conhecimento imposto ao juiz nesta fase liminar não contraditória é um conhecimento perfunctório assente naquilo que indubitavelmente decorre do processo, assim cerceando o curso de incidente votado ao fracasso de forma ou mérito.
É a essa luz que importa apreciar do mérito da conclusão pela intempestividade.
A fita do tempo relevante, tendo em atenção a alegação dos Embargantes que é o que está em apreciação, é a seguinte:
31 de Outubro de 2011 – celebração do contrato-promessa, entrega do sinal e tradição da fracção, estabelecendo nela a sua morada de família, situação que se mantém.
29 de Fevereiro de 2012 – adenda ao contrato por a escritura ainda não ter sido celebrada por os promitentes vendedores não terem entregue os documentos e terem informado os Embargantes de que havia sido feita uma penhora a cujo cancelamento iriam proceder para o que o prazo para a escritura foi fixado em um ano.
2 de Março de 2012 e 05 de Março de 2012 - os Embargantes, a título de reforço de sinal e nos termos da mesma adenda, pagaram aos Embargados/Executados o montante global de € 3.000,00.
31 de Janeiro de 2017 – nova data acordada para a celebração da escritura por os promitentes vendedores terem informado os promitentes compradores de que o cancelamento da penhora seria conseguido até lá.
21 de Março de 2019 – recepção pelos Embargantes de uma carta da agente de execução, designada no âmbito do referido processo de execução, para marcação da “realização da diligência de verificação do estado do imóvel”.
27 de Março de 2019 – visita da agente de execução à fracção.
18 e 22 de Abril de 2019 - resolução do contrato-promessa pelos Embargantes, com fundamento em incumprimento definitivo imputável aos promitentes vendedores.
22 de Abril de 2019 – entrada da petição de embargos.
2.2.2. Como resulta claro da petição inicial no seu conjunto e se concretiza na alínea c) do pedido, o direito incompatível invocado pelos Embargantes é o direito de retenção sobre o imóvel, garantia do pagamento do montante indemnizatório devido pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa, previsto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.
Alegam a esse respeito os Embargantes:
126º
Os Embargantes, que não são parte na execução, não colocam em causa a diligência de penhora e venda subsequente, já que o disposto no artigo 759º do Código Civil acautela nessa perspectiva o seu direito de retenção.
127º
Opõem-se, sim os Embargantes à entrega do imóvel ao fiel depositário, que tanto quanto têm conhecimento ainda não foi determinado, ou ao adquirente ou a qualquer outra entidade, e porquanto isso afectará o seu direito de retenção, que assim se extinguirá.
Em suma, os Embargantes não colocam em causa a penhora efectuada, nem a prossecução da execução para a fase de venda, mas apenas a entrega da fracção a terceiro que não eles próprios, antes da satisfação do seu crédito a reconhecer e graduar nos autos, uma vez que tal entrega, defendem, implicaria a extinção do direito de retenção por força do disposto no artigo 761.º do Código Civil.
Esta a leitura que resulta da análise da petição inicial. O direito incompatível invocado é o direito de retenção, não a situação jurídica de posse. Tal resulta claro da alegação de que o contrato foi resolvido pelos Embargantes (e do pedido de que seja reconhecido que o foi por causa imputável aos Executados, com condenação destes a pagar indemnização pelo incumprimento e benfeitorias).
O acto de ofensa do direito incompatível invocado não é o acto de penhora, mas a entrega da fracção a outrem que não os Embargantes que não consta da petição ter ocorrido.
Assim, o momento em que os Embargantes tiveram conhecimento do acto potencialmente lesivo do seu invocado direito de retenção foi o da data da recepção da carta da agente de execução, relativamente à qual os embargos foram tempestivamente deduzidos.
Discorda-se em consequência da decisão de rejeição por intempestividade dos embargos.
2.2.3. A decisão pela intempestividade obstou a que em primeira instância fosse liminarmente apreciada a petição de embargos em sede da sua manifesta improcedência.
Ora, tal apreciação está compreendida entre aquelas a que o juiz está adstrito, por força do disposto no artigo 345.º, do CPC, uma vez que constitui uma das razões para o imediato indeferimento da petição de embargos.
Na verdade, à apreciação liminar da petição de embargos é aplicável o disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que refere que a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente.
2.3. Nos termos do artigo 715.º, nº 2, do CPC, a Relação deve proferir decisão relativamente a questões não decididas pelo tribunal recorrido, nomeadamente, por prejudicadas pela solução dada na primeira instância. Apenas em caso de os autos não conterem todos os elementos necessários deverá remeter os autos à primeira instância sem essa decisão «substitutiva».
Ou seja, a Relação não é um tribunal apenas de cassação, funcionando antes como tribunal de substituição nos casos que a norma indica.
No caso dos autos a decisão a proferir basta-se com a apreciação dos factos constantes da petição – é mesmo esse o seu objecto – pelo que os autos contêm os elementos necessários à pronúncia.
Afigura-se que a situação se enquadra directamente na previsão do artigo 715.º, n.º 2, citado, nada havendo que a excepcione daquele regime.
Não se incluindo entre a apreciação em causa elementos não considerados pela parte, a desnecessidade de contraditório prévio que se entendeu verificada quanto à decisão de primeira instância é também válida em sede de recurso, uma vez que se não encontra em causa a apreciação do mérito da causa, mas a apreciação preliminar da petição de embargos.
O n.º 3 do preceito [715.º antigo actual 665.º] garante a regra do contraditório, facultando às partes a faculdade de se pronunciarem (…) sobre as questões de mérito que a 1.ª instância havia considerado prejudicadas[1].
A esta apreciação de mérito (ou a apreciação de questão nova no sentido que já foi delimitado) se restringe a previsão do n.º 3 da norma, como resulta da sua origem no antigo artigo 753.º, n.º 2, do CPC de 1961 na redacção anterior à reforma de 2008), quanto aos agravos.
Não é esse o caso, uma vez que a decisão substitutiva da Relação se inscreve no mesmo âmbito de apreciação formal.
2.4. Conforme se referiu anteriormente, os Embargantes invocam o direito de retenção, decorrente de indemnização devida por incumprimento definitivo de contrato-promessa com tradição do imóvel.
O direito de retenção é um direito real de garantia e não de gozo – artigo 754.º, do Código Civil -, visando colocar o credor que o detém em posição reforçada para obtenção do pagamento do seu crédito.
Enquanto direito real de garantia é insusceptível de ser ofendido pelo acto de penhora ou de venda em execução, constituindo estes actos, aliás, pressuposto do seu exercício[2]. Assim, o direito de retenção visa a satisfação do crédito com a precedência que resultar do concurso de credores, implicando o prosseguimento da execução para pagamento de quantia certa instaurada contra os promitentes vendedores (já não assim no que respeita à execução para entrega de coisa certa[3]).
Contrariamente ao que o seu sumário inculca[4], não contraria esta conclusão o acórdão da Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2019, proferido no processo 18281/16.6T8PRT-B.P1 (Aristides Rodrigues de Almeida) que se refere apenas à posse e não ao direito de retenção.
Com isso parecem concordar os Embargantes na sua petição, nomeadamente nos passos dela que acima se transcreveram, ao afirmarem que não consideram ofensivas do seu alegado direito nem a penhora, nem a venda. No entanto, não retiram de tal as consequências que cremos que se impõem.
A entrega do bem objecto do direito de retenção é susceptível de o afectar. No entanto, contrariamente ao que defendem os Embargantes, cremos ser pacífico que a extinção do direito pela entrega da coisa, a que se refere o artigo 761.º, do Código Civil, apenas ocorre em caso de entrega voluntária por parte do titular do direito de retenção, não pela entrega decorrente de venda judicial, a qual se realiza de modo a efectivar o direito de retenção e a possibilitar o seu exercício[5].
A execução não causa ao promitente-comprador qualquer prejuízo – apenas o força ou incita a reclamar o seu crédito nesse mesmo processo. A garantia, numa palavra, é compatível com a execução.
Quanto ao problema de saber se o promitente-comprador pode usar dos embargos com o objectivo, não de excluir a coisa do processo executivo, mas de se manter no respectivo gozo até ao termo da execução, a resposta também não deve ser diferente daquela que se deu para os terceiros que, em geral, possuam nos termos de um direito de garantia.
Este direito apenas permite a realização, à custa da coisa, de determinado valor, não existindo nenhum direito real de gozo susceptível de tutela.
Ora, uma vez que a execução para pagamento assegura ao promitente-comprador a satisfação do seu direito de crédito, mesmo no caso de ter perdido, no âmbito do processo executivo, a posse que exercia sobre a coisa, não tem tal promitente de ser mantido no gozo dessa coisa com base no alegado direito de retenção[6].
Aos Embargantes, cabe por isso deduzir os meios processuais adequados à declaração do direito de crédito e da garantia que a retenção constitui e de reconhecimento e graduação do mesmo em sede de execução, para pagamento pelo produto da venda do bem.
De entre os pedidos deduzidos consta o de reconhecimento desses direitos e de graduação do crédito. No entanto, o incidente de oposição à execução por embargos de terceiro visa aquilo que a sua denominação designa: obstar a que a execução prossiga ou a que determinado acto nela realizado ou a realizar se mantenha ou realize. Tal incidente não é idóneo àquela declaração de direitos ou graduação de créditos, nem a petição em que é deduzido é aproveitável para tal efeito.
Assim, não pode embargar de terceiro, nem mesmo para se manter na posse da coisa até ao termo da acção executiva, o titular do direito real de garantia, por exemplo o titular do direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na acção executiva por via do concurso de credores[7] ou seja, por via do reconhecimento e graduação do crédito que permitem a sua satisfação com a precedência que o direito de retenção impõe.
Se estiver em causa um direito real de aquisição ou um direito real de garantia, a incompatibilidade [com a penhora e com a venda] não se verifica, visto que o respectivo titular encontrará satisfação no esquema da acção executiva[8].
Aos Embargantes cabe recorrer ao incidente de reclamação de créditos previsto no artigo 788.º, do Código de Processo Civil, nomeadamente do seu n.º 3, considerando as circunstâncias invocadas, ou, não se encontrando munidos de título exequível, usar do disposto no artigo 792.º, do mesmo Código[9].
Em suma, à dedução de embargos de terceiro pelo titular de um direito real de garantia só poderá corresponder o indeferimento liminar da respectiva petição (…)[10].
Em conclusão, a petição de embargos está votada ao insucesso, devendo ser liminarmente indeferida com esse fundamento, o que se decide.

IV) DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso da decisão que rejeitou liminarmente os embargos, embora por razões diversas da sua intempestividade, a saber, a manifesta improcedência dos mesmos.
Custas pelos Recorrentes – artigo 527.º, do CPC.
                                 *
Lisboa, 10 de Outubro de 2019
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves

[1] Cf. Lopes do Rego in Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, p. 489.
[2] Cf. quanto a tal numerosa e concordante jurisprudência de que se citam os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2001, proferido no processo 01A1843 (Silva Paixão), de 23 de Janeiro de 2003, proferido no processo 02B4386 (Duarte Soares), de 18 de Setembro de 2007, proferido no processo 07A2627  (Mário Cruz), de 4 de Dezembro de 2007, proferido no processo 07A4070 (Fonseca Ramos), e de 29 de Abril de 2008, proferido no processo 08A745 (Paulo Sá).
[3] Cf. Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro, Almedina, 2001, p. 97-98.
[4] O qual tem o seguinte teor: Os embargos de terceiro deduzidos pelo promitente-comprador que obteve a tradição da coisa objecto do contrato, fundados na alegação da posse da coisa e do direito de retenção para garantia da indemnização pelo incumprimento do promitente-vendedor, não podem ser indeferidos liminarmente com o fundamento de serem manifestamente improcedentes por o promitente-comprador ser sempre, independentemente dos factos alegados, um mero detentor da coisa.
[5] Cf. entre outros o acórdão desta Relação de 17 de Março de 2016, proferido no processo 1690/10.1TBSCR-D.L1-2 (Jorge Leal), e o acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2001 também citado anteriormente.
[6] Assim, Miguel Mesquita, Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, Almedina 1998, p. 162-164.
[7] Cf. Salvador da Costa in Os incidentes da instância, Almedina, 1999, p. 183.
[8] Cf. José Lebre de Freitas, A acção Executiva – depois da reforma da reforma, Coimbra Editora, 5.ª edição, 2011, p. 286.
[9] Assim, João Calvão da Silva, in Sinal e Contrato-Promessa, Coimbra, 1988, p. 112.
[10] Cf. Augusta Ferreira Palma, op. cit. p. 97.