Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11186/2005-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL FISCAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A diligência de acesso à informação do contribuinte protegida pelo sigilo bancário que, nos termos do artigo 63º/5 da Lei Geral Tributária, só pode ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente, não traduz litígio emergente de relação jurídica tributária.
II- O litígio a resolver não tem a ver com as obrigações fiscais do recorrente emergentes da sua relação tributária com o Estado, mas do direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário que é, em princípio, oponível a todas as entidades.
III- São, por isso, os tribunais judiciais os competentes à luz da aludida norma que está em conformidade com o disposto nos artigos 18º/1 da LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e artigo 66º do C.P.C. não estando atribuída competência para um tal litígio aos tribunais tributários.
IV- Por isso, o aludido preceito não ofende nenhuma disposição constitucional, designadamente os artigos 168º/1q) e 212º/3 da Constituição, visto que não interfere em matéria de competência dos tribunais nem tem por objecto dirimir litígio emergente de relação jurídica fiscal
V- O recorrente deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar - ou seja, na parte em que omite declarações de rendimento durante os anos 1996/2000 e omite, na declaração de 2001, o facto de ter adquirido duas quotas em sociedade pela quantia de 150.000.000$00, apresentando em 1994 e 1995 declarações anuais de rendimento de 735.7000$00 e 735.000$00 - ao considerar que, não obstante aquela realidade, não estão provados quaisquer factos susceptíveis de fundamentar a necessidade de consentimento do suprimento; assim, incorre em litigância de má fé (artigo 456º/2, alínea a) do C.P.C.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


1. Os Serviços de Inspecção Tributária pretendem a derrogação do sigilo bancário de A.[…] tendo em vista averiguar a sua situação tributária de sujeito passivo (artigos 63º/2 e 5 da Lei Geral Tributária e nº3 do DL 363/78, de 28 de Novembro).

2. O aludido pedido encontra-se fundamentado (ver fls. 4 a 7 dos autos).

3. O requerido foi, assim, demandado nos termos do artigo 1425º do CPC visando-se o suprimento do seu consentimento para acesso às suas contas bancárias, respectivo conteúdo e documentação que suporta os movimentos a partir de 2000.

4. Opôs-se o requerido considerando que o tribunal judicial é incompetente em razão da matéria por competir aos tribunais fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212º/3 da C.R.P. e artigo 1º/1 do E.T.A.F.).

5. Subsume a esta previsão o caso em apreço por nele se visar a apreciação e decisão de uma questão estritamente relacionada com a sua situação fiscal no âmbito da relação jurídica tributária com o Estado.

6. O requerido refere ainda que, solicitados esclarecimentos pela administração fiscal, nunca ele recusou o pretendido acesso às contas bancárias de que é titular (documentos de fls. 166/169); refere também que dos factos invocados no pedido não resulta qualquer razão justificativa do suprimento do consentimento do contribuinte, não tendo sido invocados nem provados quaisquer factos que pudessem justificar o suprimento do seu consentimento.

7. O pedido foi julgado procedente, improcedendo a invocada excepção (decisão de fls. 207/218).

8. Nas suas alegações de recurso o requerido apresenta as seguintes conclusões:

1ª- A Lei nº 41/98, de 4 de Agosto, não conferiu poderes ao Governo para regular matérias relativas à organização e competência dos tribunais (artigos 165º/1p), 166º/2 da CRP e 212º da CRP) nem para regular os termos em que o levantamento do sigilo bancário pode ser autorizado, para efeitos de a Administração Tributária apurar a real situação contributiva dos contribuintes (artigos 165º/1,b), i) e s) da CRP, 103º/2 e 212º da CRP)

2ª- O artigo 65º/5 da LGT é, assim, uma norma claramente inconstitucional (ver artigos 26º, 103º/2, 112º, 165º/1b), pois por um lado não foi precedido de autorização legislativa específica (v. art.º 166º/2 da CRP) e por outro violou frontalmente o disposto no artigo 212º da CRP sendo, assim, inaplicável in casu.

3ª- No presente processo a Administração Tributária requereu o levantamento do sigilo relativo a diversas contas bancárias no âmbito de uma acção inspectiva instaurada ao ora recorrente, por forma a apurar-se a sua real situação contributiva (ver artigo 63º/5 da LGT).

4ª- No caso sub judice está em causa a apreciação e decisão de uma questão fiscal da competência dos tribunais administrativos e fiscais (ver artigo 212º/3 da CRP, artigo 1º do ETAF e artigo 12º da CPPT).

5ª Os tribunais comuns são, assim, incompetentes em razão da matéria para conhecer do presente processo (ver artigo 212º/3 da CRP e artigos 101º e 105º do CPC).

6ª- A recusa de autorização por parte do ora recorrente integra simples pressuposto do presente meio processual (ver artigo 1425º do CPC).

7ª A douta sentença recorrida limitou-se  a aceitar as considerações genéricas e fórmulas “passe-partout” invocadas pela Administração Tributária, não dando como provados quaisquer factos concretos susceptíveis de fundamentar adequadamente a necessidade de suprimento do consentimento do ora recorrente (ver artigo 1425º do CPC e artigo 63º da LGT; cf. ainda artigo 342º do Código Civil).

8ª - A douta sentença recorrida enferma assim de manifestos erros de julgamento tendo violado frontalmente, além do mais o disposto nos artigos 103º/2,112º, 165º/1b),i),p) e s), 166º/2, 204º, 212º da CRP, artigo 1º do ETAF, artigo 63º da LGT, no artigo 342º do Código Civil, nos artigos 1425º e seguintes do CPC e no artigo 12º do CPPT.

Apreciando:

9. O ora recorrente suscitou desde a contestação a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para apreciar o pedido de suprimento de consentimento de consulta de contas bancárias por entender que se está face a um litígio emergente de relação jurídica fiscal.

10. Assim, para o ora recorrente nenhuma dúvida se suscitava quanto à competência da jurisdição fiscal para apreciar o pedido deduzido pelos Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa.

11. Nas alegações de recurso é que pela primeira vez o recorrente suscita a questão de inconstitucionalidade do artigo 63º/5 da Lei Geral Tributária (Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro) por nele se permitir o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes, dispositivo que carecia de prévia autorização legislativa que não consta da Lei nº 41/98, de 4 de Agosto.

12. Não está em causa, como é evidente, uma inconstitucionalidade traduzida no entendimento de que o sigilo bancário não pode ser objecto de levantamento; a ser assim, então, por força de uma tal inconstitucionalidade, o que estaria em causa seria sempre a inaplicabilidade daquele preceito (artigo 63º/5 da LGT) pelos tribunais fiscais, administrativos ou judiciais e não apenas uma questão de incompetência em razão da matéria, questão esta que foi a suscitada.

13. Uma tal inconstitucionalidade transportar-nos-ia para uma dimensão absoluta do sigilo bancário que não admitiria excepções; aquele preceito (artigo 63º/5 da LGT) introduziria excepção e seria, desde logo, por tal motivo desrespeitador de um direito absoluto.

14. No entanto, tal como o próprio recorrente afirma, citando jurisprudência constitucional, “ o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

15. Não sendo afinal o sigilo bancário um direito absoluto, então aquele preceito não pode ser visto como uma excepção que, pela via instrumental, iria desvirtuar a essência absoluta do direito ao sigilo - um direito sem excepções e, portanto, sem possibilidade de derrogação judicial - reduzindo-se àquilo que efectivamente é, ou seja, a atribuição ao tribunal de competência para conceder autorização para acesso à informação protegida pelo sigilo bancário.

16. Quando o recorrente questiona o entendimento de uma tal autorização caber aos tribunais judiciais em vez de competir aos tribunais fiscais, ele coloca-se numa outra perspectiva que flui do entendimento segundo o qual existe, no caso vertente, um litígio fiscal e, por conseguinte, os tribunais fiscais são os competentes para apreciar a questão, não os tribunais comuns.

17. Assim, uma interpretação diversa levaria a que fosse atribuída competência a tribunais de outra ordem judicial.

18. A inconstitucionalidade pode dirigir-se (a) directamente à própria norma considerando que uma tal interpretação resulta claramente do preceito legal ou à (b) própria interpretação judicial incidente sobre o referido dispositivo.

19. No entanto, pelo teor das alegações, afigura-se que ao recorrente não se suscita dúvida quanto ao exacto alcance do aludido dispositivo: prescrever a atribuição de competência aos tribunais judiciais.

20. Certo é que a mera invocação da incompetência em razão da matéria pode resultar do (c) entendimento de que se verifica uma incorrecta subsunção do caso concreto à norma, hipótese em que não se discute a norma em si; pode também resultar (d) de uma subsunção que leva em linha de conta uma certa interpretação da norma.

21. No caso assinalado em (d) se a interpretação que  se fizer da norma ofender a Constituição a incompetência em razão da matéria reconduz-se então a uma questão de inconstitucionalidade.

22. A expressa referência à inconstitucionalidade feita agora com as alegações de recurso, qualificação que se limitou à mera referência à excepção de incompetência em razão da matéria quando foi deduzida oposição, não constitui questão nova que escape aos poderes de cognição deste tribunal (artigo 660º do CPC)

23. Já no outro plano em que o recorrente situa a inconstitucionalidade daquele preceito - o do afrontamento do artigo 212º da Constituição (ver conclusão 2ª, segunda parte) - reconduz-se o caso à questão de saber se aquele preceito (artigo 63º/5 da LGT) atribui aos tribunais judiciais competência para a derrogação do dever de sigilo bancário e, assim sendo, se uma tal atribuição colide com o disposto no artigo 212º/3 da Constituição.

24. No entanto, para que assim fosse, impor-se-ia o entendimento de que a Constituição prescreve que as questões emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais só podem ser apreciadas pelos tribunais administrativos e fiscais.

25. O Tribunal Constitucional tem afirmado a inexistência de um princípio de reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para dirimir litígios administrativos ( ver Ac. nº 458/99 do Trib. Const. de 13-7-1999, DR,II Série, nº 55 de 6-3-2000, pág. 4454; ver também BMJ,Nº 489-26, Ac. nº 290/99 do Trib. Const. de 12-5-1999, DR,II Série, nº 264 de 15-11-2000, pág. 18529, Ac. nº 550/2000 do Trib. Const. de 13-12-2000, DR,II Série, nº 27 de 1-2-2001, pág. 2206. E, de facto, a resolução dos litígios atinentes a expropriações ou ao estatuto dos magistrados judiciais, e outras ainda, são da competência dos tribunais judiciais e não dos tribunais administrativos. não obstante a natureza das matérias.

26. Não se afigura ousado considerar que este entendimento vale mutatis mutandis para os litígios fiscais. Nada obsta em princípio a que um litígio emergente de uma relação fiscal possa ser dirimido pelos tribunais judiciais conquanto haja uma razão plausível que justifique a opção legal.

27. Assim sendo, ainda que o entendimento fosse no sentido  de que a situação em causa se reconduz a um litígio emergente de uma relação fiscal, a mera constatação de uma opção legal atribuindo a resolução de tal conflito a tribunal judicial não impõe um imediato juízo de inconstitucionalidade como aconteceria se a Constituição proibisse em absoluto que litígios de natureza administrativa ou fiscal pudessem ser apreciados por tribunais de outra ordem.

28. Um juízo de inconstitucionalidade obrigaria ao reconhecimento de que a atribuição, no caso, de competência aos tribunais judiciais não dispunha de qualquer suporte justificativo, alegação que não foi feita.

29. Referimos no Ac. da Relação de Lisboa de 1-2-2001 (P. 2669/2000  que “ a jurisdição cabe apenas aos tribunais e traduz uma das funções do Estado a par de outras como a função executiva ou legislativa; as várias ordens ou categorias de tribunais  repartem entre si a jurisdição estando duas dessas ordens organizadas hierarquicamente: a judicial, que tem o Supremo Tribunal de Justiça como órgão superior e a administrativa/fiscal encimada pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigos 202º, 209º, 210º e 212º da Constituição).

30. O princípio da reserva material de jurisdição dos tribunais, designadamente da jurisdição administrativa, é atingido quando algum órgão ou entidade se arroga poderes que cabem na jurisdição dos tribunais administrativos.

31. No entanto, quando um tribunal invade a competência do outro, ele não deixa de prosseguir o exercício da função jurisdicional; trata-se de uma situação bem diversa daquela em que um órgão ou entidade que não pode exercer função jurisdicional,  porque não é tribunal, passa a actuar no campo que constitucionalmente está reservado aos tribunais e é precisamente por isso que a decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado (faz caso julgado formal) não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, ressalvada a intervenção do Tribunal dos Conflitos (artigo 209º/3 da Constituição, artigos 106º, 107º e 116º do CPC, Decreto nº 19243. de 16 de Janeiro de 1931 e Decreto-Lei nº 23185, de 30 de Outubro de 1933 e 42º/1 do Código de Procedimento Administrativo).

32. Está fora do controlo de constitucionalidade a decisão jurisdicional que reconheça um tribunal competente em razão da matéria por se entender que de jure o tribunal competente seria afinal tribunal integrado noutra ordem judicial, pois o recurso para o Tribunal Constitucional não tem por objecto a  decisão judicial em si mesma, mas a norma que foi aplicada cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada (artigos 277º e 280º da Constituição) sob pena de o Tribunal Constitucional ser necessariamente chamado em última instância a apreciar todas as decisões proferidas em sede competência em razão da matéria sempre que se considerasse que a competência para a questão cabia afinal a outro tribunal inserido numa outra ordem jurisdicional.
33. Não é admissível declarar inconstitucional uma decisão judicial que definitivamente haja reconhecido um tribunal competente em razão da matéria, nem tão pouco a decisão final a proferir por esse tribunal poderá ser, por essa razão, inválida e ineficaz (artigo 205º/2 da Constituição)”.

34. Estamos face a situações que se subsumem ao que referimos em 20 supra: hipótese (c).

35. Dir-se-á, porém, que o aludido preceito prescreve competências em razão da matéria a determinados tribunais e, muito embora a Constituição não proíba que matérias administrativas e fiscais sejam apreciadas por tribunais não administrativos, a verdade é que a organização e competência dos tribunais constitui reserva relativa da Assembleia da República e, assim sendo, tal reserva, para ser afastada, carece de lei de autorização legislativa (artigo 165º/1 p) e nº 2 da Constituição).

36. A colisão não se daria com o disposto no artigo 212º/3 da CRP pois este preceito, como se disse, não prescreve uma coincidência absoluta entre a natureza do litígio e a natureza da jurisdição que o vai apreciar.

37. É, pois, naquela (35, supra) perspectiva, mais limitada, que se posiciona o recorrente.

38. Ou seja, o recorrente aceita que o pedido de dispensa de autorização para consulta de elementos abrangidos pelo segredo bancário possa ser deferido aos tribunais judiciais.

39. Considera, porém, que a atribuição de competência aos tribunais judiciais carecia de autorização legislativa por se tratar de matéria relativa à organização e competência dos tribunais.

40. Certo é que a aludida norma não pode nem está  a atribuir competência aos tribunais judiciais visto que a regra, no que toca aos tribunais judiciais, é a de que são da sua competência as causas que não sejam atribuídas a outra ordem judicial: competência residual, portanto (artigo 18º/1 da LOFTL - Lei 3/99, de 13 de Janeiro e artigo 66º do C.P.C.).

41. Pode, no entanto, dar-se o caso de a lei ter atribuído aos tribunais fiscais competência para a dispensa do sigilo bancário quando esteja em causa a averiguação da situação fiscal de um contribuinte.

42. Do ETAF consta, a este respeito, a norma do artigo 62º-B que atribui aos tribunais tributários de 1ª instância competência para conhecer do processo especial de derrogação do dever de sigilo bancário, previsto nos artigos 146º-A a 146º-D do Código do Procedimento e de Processo Tributário, bem como do recurso previsto no artigo 89º-A da Lei Geral Tributária.

43. Se a referida norma (artigo 63º/5 da LGT) tivesse atribuído competência a tribunal tributário, nesse caso estaríamos efectivamente face a uma norma que introduzia uma nova competência em matéria de tribunais tributários.

44. Mas isso não aconteceu.

45. A lei ao referir que a diligência referenciada naquele preceito “ só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente” não está a atribuir competência que o tribunal de comarca não disponha, pois, dada a sua competência residual, cabe-lhe dirimir os litígios que não sejam atribuídos a outra ordem judicial.

46. Se a LGT tivesse atribuído aos tribunais tributários competência para proferir tais autorizações, fora de qualquer autorização legislativa, poderia então dizer-se que a lei tinha regulado matéria da competência dos tribunais tributários.

47. O recorrente considera que há uma atribuição indevida aos tribunais judiciais porque parte de um duplo pressuposto, a nosso ver incorrecto: que o litígio em causa é um litígio emergente de uma relação fiscal e que é constitucionalmente inadmissível que um tal litígio possa em determinadas circunstâncias ser decidido pelos tribunais judiciais.

48. Tal como foi sublinhado pelo Ministério Público “ o réu confunde a relação jurídica tributária que tem com o Estado, entendida esta como a que emerge da resolução de interesses no quadro das suas obrigações tributárias para com a administração, com o pedido de autorização judicial formulado para aceder à sua situação bancária.

49. Na verdade, o pedido formulado nos autos para aceder à informação bancária do réu foi efectuado fora de qualquer processo de contencioso fiscal, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, a quem são atribuídas as tarefas de suprimento do consentimento recusado - cf. artigos 1409º e seguintes e 1425º e seguintes do CPC”.

50. O facto de a administração fiscal estar interessada no levantamento do sigilo bancário para aceder às contas bancárias do recorrente tendo em vista averiguar a sua situação tributária não envolve nenhum litígio, que não existe, emergente de relação tributária do recorrente face à administração fiscal.

51. O litígio que importa resolver é aquele que se prende com a necessidade de se manter ou não o sigilo bancário face a uma tal pretensão.

52. Há, com efeito, um litígio entre a administração fiscal e o recorrente. Mas esse litígio não tem a ver com as obrigações fiscais do recorrente emergentes da sua relação tributária com o Estado, mas do direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário que é ,em regra, oponível a todas as entidades.

53. Por isso, e entramos já no mérito da causa, o sigilo bancário apenas deve ser levantado ocorrendo razões justificativas judicialmente reconhecidas.

54. Tais razões constam da matéria de facto, a saber:

1- Relativamente ao requerido encontram-se a ser efectuadas duas acções de fiscalização tributária pela requerente, a que correspondem as ordens de serviço 77525 e 77526

2- No âmbito das acções de fiscalização referidas em 1) constatou-se a aquisição pelo requerido de duas quotas de uma sociedade no valor  de € 1.496393,69, sociedade essa por seu turno detentora de património imobiliário

3- Face à discrepância entre manifestações exteriores de riqueza e as declarações de rendimentos auferidos em 1994 e 1995 e ainda a ausência de declarações nos anos de 1996 a 2000 e o teor da declaração de 2001, por carta de 12-5-2004, foi notificado o requerido nos termos do doc. junto a fls. 158, pedindo-se em suma esclarecimentos sobre as mesmas manifestações de riqueza, com junção de meios de prova.

4- O requerido respondeu a 25-5-2004 remetendo à requerente a carta cuja cópia se mostra junta a fls. 164 na qual justificava os valores referidos como tendo origem num empréstimo familiar, descrevendo ainda as suas participações sociais em diversas sociedades como solicitado pela requerente.

5- A requerente enviou em 11-6-2004 nova carta cuja cópia se mostra junta a fls. 162 pedindo esclarecimentos sobre a proveniência dos valores, pedindo que o requerido juntasse meios de prova e ainda pedindo declaração expressa se autorizava ou não o acesso às contas bancárias.

6- O requerido respondeu em 22-6-2004 por carta cuja cópia se mostra junta a fls. 168, 169 dizendo que o empréstimo familiar se efectuou sem contrato escrito e sem remuneração acrescentando que “ entendo que a situação está devidamente clarificada. No caso de subsistirem quaisquer dúvidas desde já me disponibilizo para prestar os esclarecimentos que se venham a justificar (...) não considero necessário o acesso às minhas contas bancárias”.

55. Sustenta o recorrente que o tribunal se limitou a aceitar “ considerações genéricas e fórmulas ‘ passe-partout’ invocadas pela Administração Tributária, não dando como provados quaisquer factos concretos susceptíveis de fundamentar a necessidade de suprimento do consentimento do ora recorrente”.

56. Esta posição do recorrente é nova visto que, na oposição inicial, sustenta que “ por cartas de 25-5-2004 e de 22-6-2004 prestou todos os esclarecimentos que lhe foram solicitados nunca recusando o pretendido acesso às contas bancárias de que é titular”

57. No entanto, o ora recorrente afirma que não considera necessário o acesso às suas contas bancárias por entender que toda a situação está clarificada e porque se disponibiliza para prestar os esclarecimentos que se venham a justificar.

58. Certo é que de 1996 a 2000 não entregou declarações de IRS.

59. Os valores dos rendimentos que declarou ficaram muito aquém do valor declarado na aquisição da quota da sociedade “Nove-Sociedade de Gestão Imobiliária Ldª, valor que foi de 150.000.000$00 (escritura de 20-12-2000).

60. A aquisição da quota, segundo  o recorrente, foi efectuada com recurso a empréstimo familiar sem contrato escrito e sem remuneração e foi do montante necessário para complementar a aquisição e ocorreu na data da mesma.

61. Ora, a predisposição para prestar esclarecimentos acompanhada pela declaração de que não se justifica o acesso às contas bancárias, traduz pura e simples recusa de acesso às contas bancárias disfarçada de uma vontade de colaboração que, para o caso, é de todo inútil face aos termos em que o ora recorrente justificou a forma como obteve capital destinado à aquisição de quotas.

62. Só o acesso às contas bancárias do recorrente poderá permitir saber a origem do referido valor.

63. A decisão recorrida elenca a matéria de facto pertinente e bastaria a comprovação de uma operação com disponibilização de tão elevado capital conjugada com a omissão de declaração fiscal por parte do recorrente para justificar o acesso às respectivas contas bancárias.

64. O recorrente ao impugnar o pedido invocando a sua falta de interesse e simultaneamente afirmando a desnecessidade de acesso às suas contas bancárias escamoteou a realidade que os autos demonstram - aquisição de duas quotas em 20-12-2000 por 150.000.000$00, omissão de entrega na declaração de IRS de 2001 de quaisquer referências a manifestações de fortuna, omissão de entrega do anexo H, omissão de entrega de declarações anuais de rendimentos de 1996/2000 - e, assim sendo, deduz oposição cuja falta de fundamento não devia nem podia ignorar; recorre insistindo nos mesmos pontos e afirmando que a decisão não contém factos concretos ou que se limitou a meras considerações genéricas: continua, portanto, a desrespeitar o disposto no artigo 456º/2a) do CPC.

65. Deve, assim, o recorrente, por tais razões, ser condenado como litigante de má fé e em multa cujo montante se deverá fixar em 25 UC.

66. No entanto, para que o contraditório seja assegurado, o recorrente deverá ser ouvido sobre este ponto, tal como a parte contrária, pronunciando-se este tribunal ulteriormente sobre a sua condenação como litigante de má fé.

Concluindo:

I- A diligência de acesso à informação do contribuinte protegida pelo sigilo bancário que, nos termos do artigo 63º/5 da Lei Geral Tributária, só pode ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente, não traduz litígio emergente de relação jurídica tributária.

II- O litígio a resolver não tem a ver com as obrigações fiscais do recorrente emergentes da sua relação tributária com o Estado, mas do direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário que é, em princípio, oponível a todas as entidades.

III- São, por isso, os tribunais judiciais os competentes à luz da aludida norma que está em conformidade com o disposto nos artigos 18º/1 da LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e artigo 66º do C.P.C. não estando atribuída competência para um tal litígio aos tribunais tributários.

IV- Por isso, o aludido preceito não ofende nenhuma disposição constitucional, designadamente os artigos 168º/1q) e 212º/3 da Constituição, visto que não interfere em matéria de competência dos tribunais nem tem por objecto dirimir litígio emergente de relação jurídica fiscal

V- O recorrente deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar - ou seja, na parte em que omite declarações de rendimento durante os anos 1996/2000 e omite, na declaração de 2001, o facto de ter adquirido duas quotas em sociedade pela quantia de 150.000.000$00, apresentando em 1994 e 1995 declarações anuais de rendimento de 735.7000$00 e 735.000$00 -  ao considerar que, não obstante aquela realidade, não estão provados quaisquer factos susceptíveis de fundamentar a necessidade de consentimento do suprimento; assim, incorre em litigância de má fé (artigo 456º/2, alínea a) do C.P.C.)

Sobre a condenação do recorrente como litigante de má fé, devem as partes ser ouvidas e, oportunamente, devem os autos ser conclusos para condenação e fixação de multa.

Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Lisboa,  21 de Setembro 2006

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)