Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8994/2007-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
COLONIA
CONSTITUIÇÃO
VIA PRIVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Constituem requisitos da providência cautelar comum destinada à restituição da posse a possibilidade séria da existência do direito invocado e o “periculum in mora”.
II – A constituição, por via negocial, de uma situação de colonia, após a proibição legal desta, assume natureza meramente obrigacional, recondutível ao regime do arrendamento rural, conferindo aos “arrendatários” a tutela facultada ao possuidor, nos termos dos artigos 1037º nº 2 e 1276º e seguintes do Código Civil, podendo obter judicialmente a restituição do prédio a fim de o gozarem na qualidade de arrendatários (art.º 1277º do Código Civil).
III – Se a posse se exerce sobre a totalidade de um terreno que constitui uma unidade económica e jurídica e o esbulho abrangeu todo esse terreno, deve ser ordenada a restituição da totalidade deste e não apenas da parcela onde ainda não se consumou a destruição de benfeitorias.
(JL)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 15.3.2007 J e mulher C intentaram na Vara de Competência Mista do Funchal procedimento cautelar comum para defesa da posse contra A.
Alegaram, em síntese, que amanham e agricultam os terrenos de diversos prédios, que identificam, sitos na freguesia do Faial, concelho de Santana, tendo adquirido as respectivas benfeitorias, consistentes em culturas que descrevem. A partir de 1980 os Requerentes, além das benfeitorias, têm possuído em nome próprio, como se proprietários fossem, também o solo dos prédios em referência, uma vez que nessa data acordaram com o procurador dos herdeiros do proprietário desses terrenos a aquisição do solo, por meio de remissão, no âmbito do processo de extinção da colonia em toda a ilha da Madeira. Porém, a escritura de remissão acabou por não se realizar, primeiro em virtude da morte inesperada de uma das herdeiras e depois por razões de saúde do aludido procurador, que faleceu entretanto. Em 19 de Fevereiro de 2007 o Requerido mandou uma retroescavadora entrar no terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo nº , Sítio do Guindaste, freguesia do Faial, concelho de Santana, após o que o respectivo maquinista arrancou e removeu as canas cuidadas pelos Requerentes. Daí para cá os Requerentes estão privados da fruição desse terreno. Nos dias 24 e 26 de Fevereiro de 2007 o Requerido fez deslocar uma máquina retroescavadora para junto dos terrenos do Sítio das Covas, com a intenção de também aí remover os produtos plantados pelos Requerentes e deles se apoderar, expulsando os Requerentes. Só o deteve a presença de familiares e vizinhos dos Requerentes. O comportamento do Requerido ofende a posse dos Requerentes em relação aos prédios em causa, não só quanto às benfeitorias como também quanto ao solo dos terrenos, que exercem seja a título de propriedade plena adquirida por usucapião, seja à luz do regime do arrendamento rural, mercê da convolação operada pelo artigo 1º do Decreto Regional nº 13/77/M, de 18 de Outubro, seja a título de composse ou à luz do arrendamento rural sem qualquer ligação ao instituto da colonia.
Por ser duvidoso que tenha ocorrido esbulho violento no que concerne ao prédio sito no Guindaste, optam pela via do procedimento cautelar comum.
Concluem pedindo que lhes seja restituída a posse do terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo nº e que o Requerido seja intimado a abster-se da continuação das perturbações já realizadas relativamente à posse que os Requerentes exercem sobre os prédios a que se reportam os artigos matriciais nºs .
Na sua oposição o Requerido afirmou, em síntese, que os Requerentes ocuparam abusivamente os aludidos terrenos, não sendo verdade que adquiriram quaisquer benfeitorias.
Conclui pela improcedência da providência cautelar.
Realizou-se audiência final e em 29 de Junho de 2007 foi proferida decisão que julgou parcialmente provado e procedente o procedimento cautelar e consequentemente determinou:
- A restituição aos requerentes da posse das benfeitorias que realizaram e ainda existentes no prédio inscrito na matriz sob o artigo nº e
- Que o Requerido se abstenha de continuar as perturbações já realizadas relativamente à posse que os Requerentes exercem sobre as benfeitorias existentes nos prédios a que se reportam os artigos matriciais nºs .
Os Requerentes agravaram desta decisão, agravo esse que foi admitido com subida imediata, nos próprios autos.
Nesta Relação admitiu-se essa modalidade de subida do agravo, a que corresponde efeito suspensivo da decisão (art.º 740º do Código de Processo Civil), por se dar relevância ao facto de o recurso constituir reacção dos próprios Requerentes contra a parte em que haviam decaído na providência, dando-se prevalência ao instituído no disposto no art.º 738º nº 1 alínea a), parte final, do Código de Processo Civil.
Os agravantes apresentaram alegação em que formularam as seguintes conclusões:
1. Dos factos descritos nos itens 9.°, 10.°, 11.°, 12.°, 13.°, 19.°, 26.°, 32.°, 33.° e 34.° da matéria de facto provada e da apreciação do conjunto desta, decorre que os Requerente têm, há pelo menos 27 anos:
a. Antes de mais nada, o uso, a fruição e o poder de facto sobre o chão do terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.°
b. A propriedade das benfeitorias nele realizadas, consubstanciadas nas plantas e respectivos frutos.
2. Ou seja, natural, económica, social, jurídica e logicamente, tal como o arrendatário rural ou o superficiário de plantações, os Requerentes têm de aceder e gozar o terreno sobre o qual se projectam os poderes em que estão investidos, o que comporta, obviamente, a possibilidade de fazerem e implantarem novas benfeitorias no caso das primitivas serem destruídas.
3. O que explica e justifica, por exemplo, a norma do artigo 1.536.°, n.° 1, b) do CC, a qual aponta no sentido do direito de superfície não se extinguir com a destruição das plantações e da necessidade do superficiário renova-las prontamente, caso queira preservar a subsistência do seu direito.
4. De outro modo, esvaziar-se-á o conteúdo útil e a finalidade económica/jurídica dessa investidura e o uso e fruição diuturna do terreno nos moldes denotados pelos factos provados.
5. De resto, flui da matéria de facto provada, que a situação fáctica em que os Requerentes estão investidos teve na sua génese uma concessão de exploração e uma actuação sobre o prédio à luz da ora extinta colonia, a qual tem grandes analogias com a superfície – vide, em especial, os factos provados descritos nos itens 16.°, 19.°, 21.°, 25.° e 31.°.
6. Oliveira Ascensão, na sua obra Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, 5.a Edição revista e Ampliada, pág. 650, lucidamente, vinca e esclarece que "..., o colono não tem apenas o direito de implantar e manter. Tem antes de mais um direito de gozo do solo, e o direito sobre as benfeitorias acresce a esse direito de gozo."
7. Situação similar decorreria da existência de um poder de facto ou posse exercida em termos de um direito de superfície que conferisse ao superficiário a faculdade de plantar árvores no solo do fundeiro ou de um arrendamento rural.
8. Independentemente da rigorosa qualificação jurídica da situação de facto em que estão investidos os Requerentes relativamente ao terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.° , o certo é que o seu conteúdo essencial, do ponto de vista material e económico, pressupõe e comporta a possibilidade de acesso, uso e gozo, pois só desse modo podem fazer novas plantações ou manter as existentes, colher os seus frutos e fazê-los seus, à luz e à semelhança daquilo que efectivamente fizeram desde pelo menos 1980 até Fevereiro de 2007.
9. Todavia, vai implicado na decisão recorrida que a meritíssima juíza "a quo" entende que os Requerentes não têm qualquer possibilidade de gozo do solo do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.° , pelo que o concernente poder é inerme para além dos limites das benfeitorias que aí realizaram.
10. Caminhando nessa preocupação, a meritíssima juíza "a quo" embora implicitamente, propugna que, com a destruição física das canas-de-açúcar, esse poder extinguiu-se, na sua totalidade, por perda do seu objecto.
11. Ora, pelas razões vertidas nas conclusões acima alinhadas, com o devido respeito, não tem razão a meritíssima juíza "a quo", pois, além do mais, o gozo do chão é essencial e aliás é "conditio sine qua non" para a realização e/ou a manutenção de plantações e recolha dos respectivos frutos.
12. Na verdade, ainda que se admitisse que a propriedade das benfeitorias se extinguiu com a sua destruição física ou material, por força do disposto no artigo 1.267.°, n.° 1, b) do CC, é inequívoco que o corpus do poder de facto dos Requerentes continua a ser possível em relação ao chão e à possibilidade de fazer novas plantações; posteriormente, com o desenvolvimento e frutificação natural destas, tal como aconteceu desde 1980, o poder dos Requerentes expandir-se-á também em relação às benfeitorias desse modo obtidas.
13. Da mesma forma que seria inequívoco que os requerentes poderiam continuar a usar e fruir o chão do terreno, em termos de nele poderem renovar a plantação de canas de açúcar ou iniciar novas culturas com outras plantas, se, em vez de serem arrancadas pelo requerido como efectivamente o foram em Fevereiro de 2007, tivessem sido destruídas, por exemplo, por um incêndio.
14. Noutra óptica, a meritíssima juíza "a quo", ao decidir como decidiu na parte impugnada, beneficiou o infractor, dando a genérica indicação, por exemplo, aos proprietários fundeiros de terrenos sobre os quais incide um direito de superfície destinado a plantações ou aos senhorios nos contrato de arrendamento rural, de que, quando querem livrar-se dos superficiários ou dos arrendatários, lhes basta destruírem-lhes fisicamente as culturas.
15. Desse modo, a decisão "a quo", além de dar guarida a uma espoliação torpe, coloca em crise a paz social e a proibição da auto tutela.
16. A decisão "a quo" está em contradição com o real sentido e alcance económico/social e jurídico da situação fáctica em que estão investidos os Requerentes relativamente ao terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.° , e violou o artigos 1.278.° do CC e 387.°, n.° 1, do CPC.
Os agravantes terminam pedindo que seja determinado que os Requerentes têm antes de mais nada o poder juridicamente tutelado de gozarem o solo do terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.° tal sorte que podem a ele aceder irrestritamente a fim de, por exemplo, reiniciarem o cultivo de canas de açúcar, para o que lhes deve ser imediatamente restituída a correspondente posse.
Não houve contra-alegações.
O tribunal a quo sustentou a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso consiste em saber se deve ser ordenada a restituição aos Requerentes da posse do terreno de um determinado prédio onde se encontravam umas benfeitorias de que eram proprietários, pese embora essas benfeitorias já se encontrarem destruídas.
Pelo tribunal a quo foi dada como provada e esta Relação aceita, a seguinte
Matéria de Facto
1°- Os requerentes amanham e agricultam os terrenos dos prédios a que se reportam os seguintes artigos matriciais, todos eles localizados na freguesia do Faial, concelho de Santana:
3°- Na matriz predial e nos registos da Direcção Regional de Geografia e Cadastro, os prédios estão inscritos, em partes iguais, em nome dos requerentes e dos herdeiros de J,
4°- Os requerentes adquiriram as benfeitorias sobre o prédio a que se reporta o artigo matricial n°, por compra verbal a J.
5°- Os requerentes adquiriram as benfeitorias sobre o prédio a que se reporta o artigo matricial n°, por compra verbal a M.
6°- Os requerentes adquiriram as benfeitorias sobre o prédio a que se reporta o artigo matricial n° , por compra verbal a J.
7°- Os requerentes adquiriram as benfeitorias sobre o prédio a que se reporta o artigo matricial n° , na sequência da partilha verbal da herança aberta por morte dos pais do requerente.
8°- Nos respectivos solos são plantados os seguintes produtos:
- No prédio descrito sob o artigo matricial n°, canas-de-açucar;
- No prédio descrito sob o artigo matricial n° , batatas e favas;
- No prédio descrito sob o artigo matricial n° , peras abacateiras;
- No prédio descrito sob o artigo matricial n° , bananeiras, canas e vinhas;
- No prédio descrito sob o artigo matricial n° , vinha e bananeiras;
- No prédio descrito sob o artigo matricial n° , batatas;
- No prédio descrito sob o artigo matricial n° , canas e vinhas.
9°- Pelo menos, em 1980, o Sr. L, actuando na qualidade de procurador do Sr. J, respectivo dono, deu ainda a cultivar aos requerentes:
- O terreno do prédio a que corresponde o artigo matricial n° , no qual desde essa data cultivam canas sacarinas, árvores de fruto e vinha sendo que, em 1980, já existiam nesse terreno algumas canas de açúcar, bem como algumas árvores de fruta;
-O terreno correspondente ao prédio inscrito na matriz sob o artigo , ao sítio das Covas, onde há mais de 30 anos cultivam canas-de-açúcar.
10°- Todos os prédios identificados são agricultados apenas pelos requerentes, directamente por si ou por meio de trabalhadores por eles contratados e pagos há, pelo menos, 27 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, colhendo os frutos e fazendo seu o produto da venda.
11°- Desde que adquiriram as benfeitorias referidas e desde que passaram a amanhar e a cultivar os terrenos, os requerentes têm actuado na convicção de que são suas as benfeitorias que realizam nesses terrenos, convicção essa que é partilhada por alguns vizinhos, familiares e amigos.
12°- Os requerentes plantam, suportam as despesas decorrentes dessa plantação, designadamente os salários dos trabalhadores agrícolas, colhem e vendem os produtos resultantes do cultivo da terra.
13°- Nos meses de Abril dos anos de 2003, 2004 e 2005, os requerentes pagaram o IMI sobre os terrenos identificados nos documentos juntos a fls.38 a 40 dos autos.
14°- O solo dos terrenos acima identificados pertencia ao Sr. J e, por sua morte, passou para os seus herdeiros, cuja cabeça de casal era a Sra M.
15°- O feitor e procurador do Sr. J era o Sr. L.
16°- A partir do momento em que começou a falar-se na extinção da colonia em toda a ilha da Madeira e também na freguesia do Faial, mas com especial acuidade desde 1980, o requerente marido passou a abordar insistentemente o Sr. L no sentido de, através de escritura pública, adquirir o solo dos terrenos por ele agricultados.
17°- O Sr. L concordou com a venda, aos requerentes, do solo dos terrenos por eles agricultados.
18°- Nessa sequência, os requerentes e o dito feitor acordaram nos preços das referidas vendas.
19°- O acordo alcançado quanto à remição do solo pelos requerentes abrangia o dos prédios a que correspondem os artigos matriciais n°s .
20°- Porém, o Sr. L, ressalvava que era ainda preciso preparar a papelada dos prédios, designadamente a respectiva inscrição na matriz, o que ainda estava por fazer.
21°- No ano de 1992, o requerente marido deslocou-se ao Cartório Notarial de Santana, acompanhado do Sr. L a fim de assinarem a escritura de remição do solo onde estavam fixadas as benfeitorias.
22°- Nessa altura, foram ajustados novos preços para os terrenos a vender e que constam das cadernetas prediais rústicas juntas a fls.41 a 47 dos autos.
23°- O Sr. L com o seu próprio punho, manuscreveu os números e os dizeres constantes nas referidas cadernetas prediais, a lápis.
24°- Os terrenos do Sítio do Pico do Guindaste estão inscritos na matriz apenas em nome dos herdeiros de J.
25°- A escritura de remição do solo pelos requerentes acabou por não ser formalizada porque, num momento em que já estavam no cartório, o Sr. L teve conhecimento de que uma das herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por morte do Sr. J e que, nessa qualidade, lhe havia passado procuração, tinha falecido por esses dias.
26°- Apesar da frustração da escritura de 1992, no dizer do Sr. L, logo que lhe fosse passada a nova procuração pelos interessados da herdeira decessa, as escrituras seriam imediatamente realizadas.
27°- O Sr. L, durante algum tempo, ficou à espera de nova procuração outorgada pelos herdeiros daquela cuja morte determinou o cancelamento das escrituras em 1992.
28°- Entretanto, o seu estado de saúde foi-se depauperando, em termos tais que já muito raramente se deslocava à freguesia do Faial.
29°- Para contactar com ele, era preciso telefonar para a sua casa, aqui na cidade do Funchal.
30°- Nos últimos anos de vida, especialmente depois de vender os respectivos prédios de maior dimensão e valor, o Sr. L já não tinha paciência nem ânimo para tratar ou sequer falar dos assuntos relativos à denominada "Casa Catanho".
31°- O Sr. L acabou por morrer sem celebrar a escritura de remissão do solo que havia ajustado com os requerentes.
32°- No dia 19 de Fevereiro, pela manhã, o requerido mandou uma retroescavadora entrar no terreno do prédio inscrito na matriz sob o artigo após o que o respectivo maquinista, ao longo de três dias, arrancou e removeu as canas cuidadas pelos requerentes.
33°- Fê-lo de tal modo que arrancou as raízes ou socas das canas, fixadas no local há mais de 50 anos.
34°- Daí para cá os requerentes estão impedidos de cultivar o referido terreno e de aceder ao mesmo.
35°- Nos dias 24 e 26 de Fevereiro de 2007, o requerido fez deslocar, na carroçaria de um camião conduzido sob as suas orientações, uma máquina retroescavadora, até junto dos terrenos dos Sítio das Covas, com a intenção de, tal como fez com o terreno do Sítio dos Guindastes, remover os produtos plantados e deles apoderar-se exclusivamente, expulsando os requerentes.
36°- Só o deteve a presença, no local, de familiares e vizinhos dos requerentes que, desse modo, impediram a imediata concretização da sua pretensão dominial.
37°- Disse e diz, a quem se presta a ouvi-lo, que os terrenos em causa são dele, e só dele e que os requerentes vão viver para debaixo da ponte ou para o calhau.
38°- Diz ainda que os requerentes "a bem ou a mal” vão sair de cima de todos os terrenos que foram da "Casa Catanho".
39°- O comportamento do requerido faz com que os requerentes estejam receosos de que o mesmo venha a suceder relativamente aos restantes terrenos que agricultam.
40°- O requerido, lançando mão da retroescavadora que tem exibido e usado na freguesia do Faial, pode, a qualquer momento, entrar nos restantes terrenos, sem que os requerentes o possam materialmente impedir.
41°- Os requerentes estão em vigilância dos terrenos em questão, tendo para o efeito solicitado a ajuda de familiares e vizinhos.
42°- O requerido continua com a retroescavadora no sítio do Guindaste.
43°- Os requerentes pretendem intentar a acção principal.
44°- O solo dos prédios em causa pertence à família do Dr. C.
45°- A família C vive em Lisboa.
46°- Até ao seu falecimento, o procurador da família C celebrou contratos de remição de colonia.
47°- Nos jornais desta Ilha publicam-se justificações notariais com frequência.
48°-Os requerentes queriam comprar, à família C, o solo dos terrenos que cultivam, o que ainda não conseguiram.
O Direito
A requerida providência foi accionada ao abrigo do disposto no artigo 395º do Código de Processo Civil, no qual preceitua-se que “ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 393.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum.
O art° 381°, n° 1, do Código de Processo Civil, atinente às providências cautelares não especificadas, dispõe que «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória do efeito daquela decisão, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
O n° 1 do art° 387° explicita que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão».
A decretação da providência pressupõe, pois, que se verifique a “probabilidade séria da existência do direito invocado” e “fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito”.
Neste recurso está em causa apenas o prédio a que corresponde o artigo matricial n° .
No que concerne ao aludido primeiro requisito, provou-se que pelo menos em 1980 o Sr. L, actuando na qualidade de procurador do Sr. J, respectivo dono, deu a cultivar aos requerentes o terreno do prédio a que corresponde o artigo matricial n° , no qual desde essa data cultivam canas sacarinas, árvores de fruto e vinha sendo que, em 1980, já existiam nesse terreno algumas canas de açúcar, bem como algumas árvores de fruta; esse prédio era agricultado apenas pelos requerentes, directamente por si ou por meio de trabalhadores por eles contratados e pagos há, pelo menos, 27 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, colhendo os frutos e fazendo seu o produto da venda; desde que passaram a amanhar e a cultivar o aludido terreno, os requerentes têm actuado na convicção de que são suas as benfeitorias que realizam nesse terreno, convicção essa que é partilhada por alguns vizinhos, familiares e amigos; os requerentes plantam, suportam as despesas decorrentes dessa plantação, designadamente os salários dos trabalhadores agrícolas, colhem e vendem os produtos resultantes do cultivo da terra; o solo do terreno pertencia ao Sr. J e, por sua morte, passou para os seus herdeiros, cuja cabeça de casal era a Sra M; o feitor e procurador do Sr. J era o Sr. L; a partir do momento em que começou a falar-se na extinção da colonia em toda a ilha da Madeira e também na freguesia do Faial, mas com especial acuidade desde 1980, o requerente marido passou a abordar insistentemente o Sr. L no sentido de, através de escritura pública, adquirir o solo dos terrenos por ele agricultados; o Sr. L concordou com a venda, aos requerentes, do solo dos terrenos por eles agricultados; nessa sequência, os requerentes e o dito feitor acordaram nos preços das referidas vendas; o acordo alcançado quanto à remição do solo pelos requerentes abrangia o do prédio a que corresponde o artigo matricial n°; a escritura de remição do solo pelos requerentes acabou por não ser formalizada porque, num momento em que já estavam no cartório, o Sr. L teve conhecimento de que uma das herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por morte do Sr. J e que, nessa qualidade, lhe havia passado procuração, tinha falecido por esses dias; nos últimos anos de vida, especialmente depois de vender os respectivos prédios de maior dimensão e valor, o Sr. L já não tinha paciência nem ânimo para tratar ou sequer falar dos assuntos relativos à denominada "Casa C"; o Sr. L acabou por morrer sem celebrar a escritura de remissão do solo que havia ajustado com os requerentes.
A posse consiste no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil). O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse (artigo 1277º do Código Civil).
No requerimento inicial os Requerentes invocaram serem possuidores do terreno ora em questão, não só no que concerne às benfeitorias mas também em relação ao solo, a título de proprietários, por força de usucapião (artigo 1287º do Código Civil). Subsidiariamente, alicerçaram a sua posse na condição de arrendatários rurais, mercê da convolação operada pelo artigo 1º do Decreto Regional nº 13/77/M, de 18 de Outubro ou mesmo sem qualquer ligação ao instituto da colonia. Na alegação de recurso, invocam ainda a equiparação da sua situação jurídica à do superficiário.
No que concerne ao exercício de poderes de facto sobre o solo como se de seus proprietários se tratasse, nada se provou. Provou-se, antes, que os Requerentes fruíam o aludido solo como se seus colonos fossem, tendo a expectativa de virem a adquirir a propriedade daquele por remição.
Ora, a colonia, direito real que surgiu por via consuetudinária na ilha da Madeira e que se caracteriza pela cisão do direito de propriedade sobre um prédio rústico em dois direitos reais menores, o direito de propriedade do chão (na titularidade do primitivo proprietário) e o direito de propriedade das benfeitorias aí implantadas pelo colono (na titularidade do colono), foi proibida, para futuro, pelo Decreto Lei nº 47 937, de 15.09.1967. Assim, após essa data a constituição, por via negocial, de uma situação idêntica à colonia assumirá natureza meramente obrigacional (artigo 1306º nº 1 do Código Civil). De resto, mesmo os direitos de colonia constituídos anteriormente perderam a natureza de direitos reais, extinguindo-se, passando a aplicar-se-lhes o regime do arrendamento rural e as disposições especiais previstas na legislação regional da Madeira (artº 55º nº 1 da Lei nº 77/77, de 29.9 e art.º 1º do Decreto Regional 13/77/M, de 18.10). Tal regime especial previa efectivamente a reunião da titularidade do solo e das benfeitorias num único titular, o proprietário do solo ou o colono, por remição, a exercer num determinado prazo (artigos 3º e 8º do Decreto Regional 13/77/M), mas apenas se aplicava às situações de colonia validamente constituídas.
Assim, a exploração feita pelos Requerentes do aludido terreno eventualmente terá acolhimento no regime do arrendamento rural, sendo certo que a falta de redução a escrito do respectivo negócio constitui nulidade atípica, não cognoscível oficiosamente (artigos 3º e 36º nº 1 do Dec.-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro – Lei do Arrendamento Rural).
Aceitando que assim é, os Requerentes gozam da tutela facultada ao possuidor, nos termos dos artigos 1037º nº 2 e 1276º e seguintes do Código Civil, ou seja, poderão obter judicialmente a restituição do prédio inscrito na matriz sob o artigo nº 007.0021.0000, no Sítio do Guindaste, freguesia do Faial, concelho de Santana, a fim de o gozarem na qualidade de arrendatários (artigo 1277º do Código Civil).
Poderá ainda configurar-se a posse dos Requerentes como reportada ao exercício dos poderes de facto correspondentes ao superficiário, posto que foi-lhes reconhecido o direito de fazerem e manterem plantações em solo alheio, o que fizeram durante mais de vinte anos, considerando-se donos das mesmas, direito esse constituível por usucapião (artigos 1524º, 1528º e 1287º do Código Civil).
Porém, como se disse, a procedência da providência cautelar comum, instaurada para acautelar provisoriamente aquele direito, depende da verificação de um segundo requisito, o periculum in mora, isto é, que se demonstre o receio de que será infligida lesão grave ou dificilmente reparável ao direito. De facto, não é qualquer consequência do comportamento do requerido que justifica que contra ele sejam tomadas medidas, antes da apreciação definitiva dos direitos de cada um, que embora provisórias têm reflexos imediatos na sua esfera jurídica (quanto à exigência de periculum in mora no decretamento de restituição de posse em procedimento cautelar comum, cfr., v.g., acórdão da Relação de Coimbra, de 23.5.2000, Col. de Jur., ano XXV, tomo III, pág. 22 e seguintes).
A decisão recorrida ordenou a restituição do aludido prédio apenas no que concerne à parte do terreno em que ainda existiam culturas, isto porque nessa parte não se havia ainda consumado a lesão consubstanciada na destruição de benfeitorias, sendo certo que se ajuizou como sendo lesão grave ou de difícil reparação a eliminação de culturas que tinham já dezenas de anos.
Vejamos.
Para além do direito às benfeitorias, avulta na situação dos Requerentes o exercício do gozo e fruição do terreno em que se consubstancia o prédio em referência, com a faculdade (e o dever) de amanharem esse terreno. Mesmo na colonia, o colono tem antes de mais um direito de gozo do solo e o direito sobre as benfeitorias acresce a esse direito de gozo (Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 578). A posse dos Requerentes exercia-se sobre um determinado terreno, que agricultavam, suportando as respectivas despesas, colhendo os respectivos frutos e auferindo os respectivos rendimentos. O seu objecto constitui uma unidade jurídica e económica. Ora, não faz sentido que seja ordenada a restituição da posse de apenas uma parcela desse terreno, ficando de fora a parte restante, para mais quando o esbulhador não provou, nem sequer indiciariamente, ser titular de qualquer situação juridicamente relevante que fundamente o acto que praticou e que tutele a manutenção parcial do esbulho. As culturas que persistem e a cuja destruição se quis obviar situam-se num espaço unitário, mais alargado, sobre o qual incidia a posse dos Requerentes e que não há que cindir, tanto mais que, repete-se, não se visiona no caso concreto a existência de interesse relevante que o aconselhe.
DECISÃO
Pelo exposto, concede-se provimento ao agravo e consequentemente:
1º Revoga-se a decisão recorrida no que concerne ao prédio inscrito na matriz sob o artigo nº e em sua substituição determina-se a restituição aos Requerentes da posse da totalidade desse prédio;
2º No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo agravado.
Lisboa, 14.02.2008
Jorge Manuel Leitão Leal
Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro
Ana Paula Martins Boularot