Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3228/2006-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
COMPRA E VENDA
MÚTUO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- No contrato de compra e venda de veículo podem as partes estipular que o efeito real do contrato fica dependente da condição (suspensiva) de o adquirente cumprir as obrigações assumidas perante o mutuante.

II- Na situação em que a reserva de propriedade se encontra registada a favor da própria financiadora não parece possível denegar-lhe a legitimidade para por si só requerer a providência cautelar de apreensão de viatura e subsequentemente a acção principal da sua restituição definitiva.
(IS)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.  

I – RELATÓRIO

S. […] S A intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra P. […], por apenso aos autos de providência cautelar para apreensão de viatura, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de crédito celebrado com a A. e o R. condenado a restituir-lhe o veículo automóvel, reconhecendo-se ainda o cancelamento do registo averbado em nome do R., alegadamente devido pelo incumprimento da obrigação de pagamento das prestações devidas no âmbito do referido contrato de mútuo para aquisição de veículo, e após a comunicação da decisão de resolução.

Regularmente citado o R. não deduziu contestação nem constitui advogado.

Proferiu-se de seguida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, declarando resolvido o contrato em apreço e absolveu o R. do pedido de restituição da viatura automóvel.

Inconformada com a sucumbência, a A. recorreu, recurso recebido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

O dissentimento da recorrente repousa nas seguintes conclusões:

a) O Meritíssimo Juiz a quo que julgou a presente acção declarativa parcialmente improcedente, porquanto entende não haver lugar à constituição da reserva de propriedade, em face da celebração de contratos de financiamento, uma vez que tal garantia jurídica poderá apenas ser acordada quando estamos perante a celebração de contratos de compra e venda;
b) O Mº Juiz a quo deu como provados, os factos transcritos;
c) Acontece que para o Meritíssimo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da recorrente, nem que se verifique o incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não de qualquer outro;
d) Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da lei;
e) A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles que cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, aquando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
f) Nestas situações tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
g) Este entendimento encontra pleno acolhimento no artº591 do C.Civil, bem como, no princípio da liberdade contratual estabelecido no artº405 do C.Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do devedor;
h) Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no nº3 de seu artº6 quando refere que “ o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
(…)f) o acordo sobre a reserva de propriedade”.  
i) Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, entre os quais o datado de 13/5/2003….”.
j) Por outro lado, o direito de que a Requerente tem de reaver a viatura decorre da propriedade que tem sobre ela, bem como, face à resolução contratual verificada e dada como provada pelo Mmº Juiz a quo, tem direito ao cancelamento do registo averbado a favor do recorrido, na CRA;
k) A propriedade da recorrente será condicionada, é certo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para o mutuário, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica:
l) Posto isto, e encontrando – se inscrita a favor da recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a restituição, bem como, estando provado que o mutuário não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, conforme resultou da matéria de facto provada, pelo que, e em conformidade, assiste à Ao direito de reivindicar o veículo que adquiriu, ao abrigo do artº1311 do C.Civil.
m) Ou seja, enquanto a reserva a favor da recorrente se mantiver, a R. é apenas mero detentor do veículo automóvel financiado, pelo que fica necessariamente sujeito a que, se não pagar o preço acordado, a reservatária possa exigir a sua restituição.
n) Acresce que, tendo em consideração a tese defendida de interpretação actualista da Lei, necessário será apelar também à interpretação actualista do nº18, nº1 do DL 54/75, de 12/12, devendo este normativo englobar, também as situações de contrato de mútuo conexo com o contrato de compra e venda,
o) O mesmo entendimento encontra-se presente em diversa jurisprudência já indicada.
p) Certo é que, aquando da celebração de um contrato de mútuo com vista ao financiamento do contrato de compra e venda do veículo automóvel, quem efectivamente corre o risco relativamente ao incumprimento não é o vendedor mas antes o mutuante!
q) Assim, e tal como resulta do acórdão referido “ aceitar-se a formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula de reserva de propriedade deixaria de ter qualquer efeito prático, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro - o que, como se disse, é hoje a regra face à evolução verificada nessa forma de aquisição”.
r) A reserva de propriedade acordada funciona como condição suspensiva do efeito translativo do direito de propriedade sobre a viatura em causa, tal como resulta claramente do disposto no artº409 do C.Civil.
s) Ora, tendo-se tornado impossível a verificação prática da condição em causa, retroactivamente extinguiu-se a possibilidade do mutuário vir a ser o efectivo proprietário da viatura dos autos, tal como resulta do estatuído no artº276 do C.Civil.
t) O contrato de crédito celebrado foi resolvido com fundamento no incumprimento reiterado do R. que apesar de interpelado ao pagamento dos valores em dívida, não regularizou os montantes em dívida, verificando-se o seu incumprimento definitivo.
u) Ou seja, enquanto a reserva a favor do agravado se mantiver, o agravante é apenas mero detentor do veículo automóvel financiado, pelo que fica necessariamente sujeito a que, senão pagar o preço acordado, a reservatária possa exigir a sua restituição, mesmo através do recurso à apreensão!
v) Nestes termos o direito de propriedade da A sobre a viatura financiada, terá que ser, impreterivelmente reconhecido e consequentemente, o R. deveria ter sido condenado a restituir o veículo e ser ainda ordenado o respectivo cancelamento do registo averbado.
w) Em conformidade, o cancelamento da reserva de propriedade constituída a favor da recorrente, tal como ordenada pela decisão ora recorrida, carece, de qualquer sentido ou fundamento legal, por violação manifesta do disposto no Dl 351/91, de 21/9.
x) A decisão recorrida viola o regime legalmente patente no DL 54/75, de 12/2, e as disposições legais indicadas nas presentes alegações de recurso.
y) Pelo que, a procedência do recurso nesta matéria é manifesta. Pretende, em consequência, a revogação da sentença absolutória e a sua substituição por outra que julgue totalmente procedente o seu pedido.

Não foram juntas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A. OS FACTOS

A instância recorrida fixou como provada factualidade que não foi impugnada, pelo que aqui se dá por reproduzida, ao abrigo do disposto no artº713, nº6 do CPC.
 

B.O DIREITO

Importa agora conhecer do objecto do recurso, balizado pelas respectivas conclusões – arº684,nº3 e 690 do CPC

A questão a apreciar reconduz-se ao enunciado seguinte:
 
É de admitir a efectivação do direito de reserva de propriedade na esfera jurídica do titular de um direito de crédito, que não o vendedor, e nessa medida facultar-lhe o recurso à providência de apreensão de viatura prevista no DL 54/75, de 12/2, e procedente o pedido de restituição da mesma na acção principal?

A resposta ao tema tem apaixonado a jurisprudência em argumentação variada, sem que, todavia, esteja trilhado o caminho da uniformidade, ou tão pouco, ao que se apura, o da tendência maioritária.

Dissonância que, aliás, se infere ao longo da decisão sindicada, de sinal contrário ao julgador da providência, e das alegações do recorrente, alicerçando-se, cada uma delas, em arestos deste Tribunal igualmente doutos, embora em sentido oposto.

No caso vertente, e segundo a factualidade assente (bem como a constante dos autos de providência cautelar apensos) está-se em presença de uma compra e venda financiada, tendo por objecto uma viatura automóvel, coexistindo assim dois contratos autónomos, mas com uma ligação funcional entre si: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, encontrando-se registada a favor da financiadora e aqui A, a reserva de propriedade sobre a viatura.  

Os dois contratos coexistem tendo em vista a consecução de uma finalidade económica comum, a facilitação do consumo por recurso ao crédito, mantendo, embora, cada um deles a sua autonomia estrutural e formal.

É ponto incontroverso que a reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato – nº 1 do art. 408º C.Civil.

 Em resultado da aposição desta cláusula no contrato, que traduz a possibilidade do transmitente/alienante reservar para si a propriedade da coisa – art. 409º C.Civil, a transferência do direito para a esfera do comprador apenas se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram.
 
O efeito real do contrato fica, portanto, dependente de uma condição suspensiva, estabelecendo as partes uma cláusula condicional suspensiva, (no que consiste o pactum reservati dominii - artº270 do C.Civil), qual seja, o de o integral cumprimento pelo adquirente da viatura das obrigações assumidas perante a financiadora.

Com efeito, no contrato de compra e venda de veículo automóvel pode-se estipular uma condição, como sucedeu neste caso, em que se fez depender a efectivação da venda, do pagamento por parte da compradora, das prestações devidas à recorrente, pois sendo embora a compra e venda dum veículo automóvel um negócio consensual, operando-se a transferência por mero efeito do contrato (artº219 e 874 do C.Civil), decorre que tal transferência da propriedade depende do regulamento contratual da compra e venda, ou seja, do que as partes quiseram estipular, ao abrigo da liberdade contratual.

Neste conspecto, sendo nítida a interdependência de interesses entre o triângulo de sujeitos contratuais, é compreensível, no âmbito da intangibilidade da liberdade negocial das partes (artº405 do C.Civil), que a reserva de propriedade tutele, não já directamente o interesse da vendedora, através da restituição do veículo, mas, outrossim, esteja apta a garantir o direito de crédito da financiadora que com aquela colabora, coagindo o comprador ao cumprimento integral das obrigações assumidas com a financeira.  

Sublinha-se, todavia, que no caso espécie, a reserva de propriedade está registada a favor da A e financiadora, pelo que, também resulta ultrapassado o obstáculo da eventual ilegitimidade desta ,  não estando acompanhada da vendedora (1).

A autonomia privada, é na verdade, princípio estruturante do direito civil moderno, mormente no que tange ao direito das obrigações, e por via convencional, os sujeitos privados participam, de alguma forma, com o legislador, nas normas que os irão reger, apontando-se assim novos cânones na actividade do intérprete e na metodologia jurídica (2).

 Donde, como entender o DL 54/75, de 12/2.  

Ressalvado o devido respeito, cremos que, a interacção entre a interpretação actualista do diploma supra, e a consideração do princípio da liberdade de estipulação, viabiliza construção jurídica que sustenta a tese defendida pela recorrente na acção.

Aproximando.

Reconhece-se que ao tempo da elaboração do diploma dito da apreensão de viatura, o legislador teve em vista, primordialmente, evitar que o veículo, com o respectivo uso, se deteriorasse ou desvalorizasse e, assim, garantir patrimonialmente o credor hipotecário ou permitir que o vendedor com reserva de propriedade, pudesse recuperar o bem antes da sua inutilização ou perda de valor (3), e que, o seu campo de aplicação se restringisse à apreensão de veículos automóveis hipotecados ou com reserva de propriedade.

O panorama das relações jurídico -económicas da época em torno da compra de viaturas automóveis a crédito, limitava-se à venda a prestações, suportando o crédito o próprio vendedor do veículo.

Porém, e seria exercício ocioso documentar ao longo das duas últimas décadas a evolução multifacetada deste mercado, prolifera, actualmente, uma miríade de contratos tendentes à prossecução daquela finalidade de consumo, entre os quais, avultam, conforme o caso dos autos, as empresas financiadores do adquirente, através de um mútuo, em união com a vendedora da viatura, que desta forma arrecada de imediato o seu preço.

Prescreve o nº 1, do artº 9º do C.C. que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, que se surpreenda no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.      
No nº 2 estabelece-se, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, ou seja, do significado da sua expressão verbal.

Por último, o nº 3 faz apelo a critérios de objectividade, que o intérprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada.

Como decidir, então, em face do que, estando remisso o adquirente da viatura, a financiadora ( que nestes autos detém a seu favor a reserva de propriedade) está em situação de accionar a cautelar da apreensão da viatura e sequencialmente instaurar a acção principal, pedindo  a restituição definitiva da viatura?  

 Dispõe o art. 15º, nº 1, do citado diploma que,   “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos.
           
Por sua vez, prescreve o artº 16°, nº1 que “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.

Conforme resulta do disposto nos arts. 5°, 15° e 16° do Dec. -Lei nº 54/75, no caso de incumprimento pelo requerido das obrigações que originaram a reserva de propriedade, as condições de exercício deste procedimento, são:

a) a reserva de propriedade se encontre registada, a favor do requerente, na Conservatória do Registo de Automóveis, em obediência à  alínea b) do art.5,  nº1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro
     
 b) que o requerido não tenha cumprido as obrigações que assumiu.

Constitui um dado de observação, que aumentou exponencialmente o crédito ao consumo, que hoje traduz a situação regra para a aquisição de quaisquer bens, e relevantemente para os veículos automóveis – o recurso ao financiamento pelas instituições criadas exclusivamente para o efeito, podendo, afirmar-se que o comprador do automóvel associa o pagamento do preço do bem com o cumprimento do contrato de financiamento (na satisfação mensal da prestação!), aceitando, portanto, a garantia da reserva de propriedade como a garantia de cumprimento deste contrato, e, optando, as partes, por razões de simplicidade no tráfego jurídico por ela, em detrimento da hipoteca.  

Ao que é forçoso, então, concluir que: “Seguindo o entendimento tradicional de que a reserva de propriedade nada mais é do que uma cláusula contratual que difere a transmissão da propriedade para momento posterior ao do contrato (e eventualmente a subordina a algo), a reserva não gera um direito diverso do de propriedade e, portanto, a reserva, em si mesma, não é transmissível. O que é facto, porém, é que as situações de créditos garantidos pela reserva de propriedade são tendencialmente equivalentes às de créditos garantidos por garantias reais transmissíveis (hipoteca e penhor, nomeadamente) e que, para que essa equivalência fosse consequente, a reserva deveria ser transmissível como aquelas garantias o são. Isto é: se um crédito garantido por um penhor ou uma hipoteca é transmissível conjuntamente com o penhor ou a hipoteca, a situação de garantia de créditos através da reserva de propriedade, para ser equivalente àquelas, deveria ser transmissível em termos paralelos. Na ausência de disposição legal sobre o ponto e tendo em conta o artigo 409º do Código Civil, não parece que tal transmissibilidade exista. Noutros Direitos, nomeadamente o alemão, porém, a reserva é tida por transmissível” (4).


De outra feita ainda, é unanimemente aceite que a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, apoiado estritamente nos elementos literal e lógico (teleológico, sistemático e histórico (5)) despido das consequências práticas que dele possam provir.

No tempo de hoje em que actuamos, “ a linha de orientação exacta só pode ser, pois, aquela em que as exigências do sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fechem numa auto-suficiência, a implicar também a auto – subsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante, e antes se abram a uma intencionalidade materialmente normativa que, na sua concreta e judicativa – decisória realização, se oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas, mas que ao mesmo tempo as problematize e as reconstitua pela sua experimentação concretizadora”·(6)

Ao aceitar-se a interpretação, segundo a qual, apenas o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade propenderia para ser desprovida de efeito prático, na situação da aquisição do veículo através do financiamento de terceiro, o que incontornavelmente é hoje a regra.  

Senão vejamos.

O vendedor, recebendo do financiador o montante total do preço do veículo está, bem vistas as coisas, impedido de resolver o contrato de alienação, e, doravante, impedido de reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade, que esteja registada a seu favor, tanto mais que, como se disse, a atender à vontade das partes, resulta claramente das suas convenções que a reserva foi prevista para garantir o cumprimento do contrato de financiamento e sem margem para equívocos, no caso sub judice , por ser a A. a titular da dita reserva como retro se afirmou.

E, não se diga, em desabono, que o vendedor não tem interesse  na consagração dessa garantia ( esteja registada a seu favor ou a favor da financiadora), porquanto, no caso de crédito ao consumo a interdependência entre os contratos de financiamento e de compra e venda (Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro) é inextrincável, não havendo crédito, não há venda de carro, perante a incapacidade real do comprador em  pagar a pronto a viatura

Vendedora e financiadora colaboram entre si para alcançarem um objectivo comum, dinamizarem e aumentarem os lucros dos seus negócios.

Soçobra, pois, quanto a nós, a força argumentativa da interpretação do texto legal em abstracção do caso concreto, que hodiernamente cede o passo à “interpretação orientada pelas coordenadas do sistema e do problema.”(7) 

Enveredando-se por uma perspectiva limitadora do sentido da norma, incumprido o contrato de mútuo, caso, seja vedado ao financiador, accionar o conteúdo de tal convenção, e invocar o incumprimento e resolução do contrato de mútuo como  causa do accionamento da reserva de propriedade constituída, obteríamos em consequência, a absurda situação de o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que afinal não é proprietário, efeito pernicioso que certamente os princípios do sistema não aplaudem.

De resto, a interpretação jurídica das normas não deve confinar-se a uma concepção formalista, marginalizando a ponderação das consequências negativas que dela advenham, e de todo em todo, a solução injusta no resultado não pode ser entendia como o propósito do legislador, à luz do estabelecido no artº9, nº3 do C.Civil.    

Em suma, salvo melhor opinião, o sentido interpretativo da norma que sufragamos, faculta a utilização da medida cautelar de apreensão de viatura pelo financiador, e em consequência da acção de resolução e restituição que lhe segue, não parecendo contender com qualquer dos princípios de direito, posto que, da sua aplicação não resulta, de igual modo, quebra do equilíbrio das prestações das partes, e viabiliza as expectativas prático - sociais dos sujeitos ínsitas nas convenções que estabeleceram, realizando, afinal, o direito.

Por último, encontrando-se a A. na posição de titular da reserva de propriedade, não nos parece possível denegar-lhe o exercício que o direito lhe confere, a não ser propugnando pela nulidade de tal registo, matéria que não foi tida em conta na decisão, e de todo em todo, não é o processo para o efeito, nem sequer se verifica desconformidade que se deva como tal considerar.

Assim sendo, não custa acompanhar a pretensão da apelante aceitando a conclusão alcançada de que, perante a prova do incumprimento das obrigações do contrato de mútuo, que originaram a reserva de propriedade registada a seu favor, e a declaração resolutória da requerente, estão verificados os requisitos legais para proceder o pedido de restituição da viatura.

Aqui chegados, provado o comportamento inadimplente do R., e concluindo pela validade e eficácia da resolução operada pela A., sucede-se o provimento do recurso e, impõe-se a alteração da decidida absolvição parcial do R do pedido que procederá nos precisos termos formulados.

III-DECISÃO  

Pelo que vem exposto, acorda este Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e em consequência, revogar a douta sentença, condenando o R. no pedido formulado pela A. em toda a sua extensão.

Custas a cargo do apelado. 


Lisboa,  30  /5  / 06

(Isabel Salgado)
(Curado Soares) (vota a decisão)
(Roque Nogueira)



__________________
(1).-Esta questão vem sendo suscitada quando a reserva está registada a favor da vendedora-cfr.Ac.STJ de 23/11/2000 e AcRL de 20/10/05 in www.dgsi.pt/jrl.

(2).-Fernando José Bronze in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, II, pag.82

(3).-Neste sentido, Moitinho de Almeida, in O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 1981, pag.9 e 10.

(4).-Pinto Duarte in"Alguns Aspectos Jurídicos dos Contratos Não Bancários de Aquisição e Uso de Bens", Revista da Banca, nº22, pág 54.

(5).-Manuel de Andrade “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação da Leis”, 1978, 3ª edição.

(6).-Castanheira Neves in Metodologia, 1993, pag.123

(7).-Ac.STJ de 7/12/94 in BMJ 442, pag.202.