Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13276/22.3T8SNT-A.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: INSOLVÊNCIA PLURAL
COLIGAÇÃO DE REQUERIDOS CÔNJUGES
COMUNHÃO DE BENS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: IDo conceito e da lógica finalística do processo de insolvência, assim como pela dinâmica do respetivo processado e apensos, resulta que a regra da legitimidade do sujeito passivo da declaração da insolvência é singular e não plural.

II–Excecionalmente o CIRE admite a pluralidade passiva reportada à particular situação dos cônjuges, admitindo a legitimidade plural sob a forma de coligação quando os requeridos sejam pessoas singulares casadas entre si sob o regime da comunhão de bens e, como é óbvio, desde que os fundamentos da insolvência se verifiquem relativamente a cada um dos cônjuges.

III–A ratio legal da admissibilidade da coligação em sede de processo de insolvência reporta, não à eventual comunicabilidade da dívida entre os cônjuges, mas sim à comunicabilidade do respetivo património, ou seja, ao património comum do casal.

IV–A apresentação à insolvência por ambos os cônjuges depende da vontade de cada um deles nesse sentido e, tratando-se de insolvência requerida, a legitimidade passiva do casal só fica assegurada se o requerente for credor de ambos os cônjuges.

V–O que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas vencidas por falta de suficiente liquidez no património do devedor para as satisfazer no momento em que se vencem, impossibilidade essa que é apreciada objetivamente, independentemente da causa ou do conjunto das causas que determinaram essa situação.

VI–No confronto com a definição e pressupostos da situação de insolvência resulta à evidência a impertinência jurídica e, por isso, a absoluta inutilidade para a apreciação do mérito do pedido de insolvência, do apuramento da composição do agregado familiar do devedor, dos rendimentos auferidos pelos elementos que o integram e, mais especificamente, do concreto montante auferido pelo devedor se qualquer um dos alegados não for suficiente para, de uma só vez, e sem prejuízo da preservação do necessário para assegurar a subsistência digna do devedor e dos que de si dependem, proceder ao pagamento das suas dívidas vencidas e atalhar à situação de mora no seu cumprimento.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa



I–Relatório


1.D deduziu embargos à sentença de declaração da insolvência de L, proferida em 04.08.2022, pedindo sejam julgados procedentes “com as demais consequências legais e processuais”, e seja o devedor, requerente da insolvência, condenado como litigante de má fé em multa e indemnização em montante não inferior a €500,00. Caso os embargos sejam julgados improcedentes, mais requereu seja a insolvência qualificada como culposa.
i)-Alegou ser credor do embargado a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe foi reconhecida no âmbito de processo crime, que o devedor não tem o passivo, nem o agregado familiar, nem os encargos que alega ter, que tem um rendimento mensal superior ao que indica, que, apesar de ter diligenciado para se colocar na situação de não conseguir solver os seus compromissos, está longe dessa situação, e que a presente insolvência mais não é do que uma forma de se furtar ao pagamento de indemnização cível emergente de processo crime em que foi condenado, alegação que justifica com os seguintes fundamentos:
- Pelo crédito do embargante são solidariamente responsáveis o devedor e terceiro também ali condenado, pelo que cada um é responsável por metade daquela dívida de € 8.900,00 e pode exercer o direito de regresso sobre o outro no montante que exceda metade daquele valor; o embargado não juntou comprovativo da existência das demais dívidas que relacionou, à MEO e à NOS, nos valores de € 300,00 e € 200,00, respetivamente;
- O embargado furtou-se ao pagamento daquela dívida durante cerca de dez anos mantendo-se em situação de emprego precário, e, em conluio com a sua entidade patronal, vem protelando o seu pagamento;
- O filho do embargado está à guarda da mãe daquele, e a alegada companheira do embargado está declarada na segurança social como família monoparental e aufere abono e prestações socias e ainda pensão de alimentos do pai do seu filho;
- À alegada retribuição de €804,82 do embargado acrescem subsídio de almoço, prémio de produtividade e subsídios de férias e de Natal, pelo que o seu rendimento é no mínimo de cerca de € 1.150,60;
- As dívidas atinentes com aquisição de aparelho auditivo e de óculos não constam documentadas, não são mensais, e as referentes ao filho são comparticipadas pela segurança social e suportadas em metade pela mãe; o encargo com passe de transporte público por agregado familiar é inferior ao alegado; a renda respeita a contrato de arrendamento em nome da alegada companheira que receberá apoios do Estado para o seu pagamento, as despesas com consumos domésticos e serviços de telecomunicações estão em nome daquela e a referente a gás é excessiva; metade das despesas com refeições escolares dos menores são a cargo dos outros progenitores; o cartão de crédito alegado pelo embargado está em nome da alegada companheira e a dívida ao mesmo associada respeita a despesas com entretenimento e viagens.
ii)-Sob as als. a) a v) requereu a requisição de informações a processo (para confirmação do beneficio de apoio judiciário que ali lhe foi concedido), à Segurança Social e aos serviços de Finanças (para aferir da composição do agregado familiar da mãe do filho do devedor, do filho do devedor, das prestações sociais por estes auferidas, dos rendimentos do devedor e pensão de alimentos, de contratos de arrendamento por este celebrado nos últimos 3 anos), às bases de dados do tribunal (para aferir da pendência de processo tutelar referente ao filho do devedor e ao filho da alegada companheira deste) e bases de dados dos serviços de identificação civil (para aferição dos termos da regulação das responsabilidades daqueles menores), ao Banco de Portugal (para indicação do Banco a titularidade de conta bancária identificada em documento junto com a petição inicial), ao Banco por aquele indicado (para junção de extratos bancários dos últimos 3 anos), à Câmara Municipal de Sintra (para aferir da existência de apoio ao pagamento de rendas e das declarações para o efeito ali prestadas pelo devedor quanto ao respetivo agregado familiar e rendimentos); à MEO e à NOS (para aferir do conteúdo de contratos por estas celebrados com terceiro e com o devedor e a que respeitam as dívidas por este alegadas; a sociedade Unipessoal (para junção de recibos de aquisição de gás pela alegada companheira do devedor e indicação de todas as moradas de entrega nos últimos 3 anos); a companhia de seguros (para esta informar dos rendimentos e todos os valores que a entidade patronal do devedor comunicou ter pago a este nos últimos 3 anos); aos SMAS de Sintra (para junção dos contratos de fornecimento de água celebrados com o devedor e com a alegada companheira deste).
Arrolou uma testemunha, com domicílio na morada do embargante, e protestou juntar 3 documentos.
2.Após vicissitudes processuais atinentes com a regularização do patrocínio judiciário exercido pela Sr.ª advogada subscritora da petição de embargos, foi proferido despacho a admitir os embargos e a ordenar o cumprimento do art. 41º, nº 2 do CIRE[1].
3.O devedor contestou por impugnação pugnando pela improcedência dos embargos alegando que o seu vencimento foi penhorado de fevereiro de 2020 a julho de 2022, que vive com o seu filho, conforme regulação das responsabilidades parentais que junta, e com a sua companheira e um filho desta, relativamente ao qual aquela recebe abono para sustento do filho e do qual o devedor nada tem a receber, além de que essa questão, assim como as alegadas contribuições do outro progenitor, que não existem por ausência de regulação do poder paternal, são situações pessoais da sua companheira e não do insolvente; sofre de problemas de audição e de visão e suportou e suporta as despesas que a esse respeito alegou, sem comparticipação; os contratos de arrendamento a que alude o embargante nada têm a ver com o processo de insolvência (vive com a sua companheira na morada indicada nos autos, antes residiram em casa da mãe desta e, antes de viver com a sua companheira, residiu numa outra morada); não recebe apoios do Estado nem beneficia de passe familiar porque apresenta declaração de IRS separada da sua companheira; as demais despesas do seu agregado familiar podem ser comprovadas pelo administrador da insolvência.
Arrolou como testemunha a sua companheira e juntou documentos (recibos de vencimento de maio, junho e julho 2022, documento em gráfico epigrafado de “Ag//Penhora de vencimento: 1134” com inscrição do valor inicial em dívida (€8.900,00),  e valor dos depósitos realizados entre 16.12.2020 e 31.05.2022 (€1.432,84), documento em gráfico epigrafado de “1134 acertos penhora Ordem do Tribunal” com indicação dos valores por penhorar dos rendimentos auferidos em março, abril e maio de 2022 (total de € 311,40), cópia de ata de conferência de pais no âmbito de regulação das responsabilidades parentais, fatura e recibo de 15.05 e 27.05.2021 referente a aquisição de aparelho auditivo, fatura e recibo referente a consulta de optometria e aquisição de óculos, fatura de água
3.–Por requerimento de 29.12.2022 o embargante pronunciou-se sobre os documentos juntos pelo embargado, invocou documentos que o requerido não juntou, requereu que o Banco de Portugal e duas instituições bancárias informem se o devedor é titular ou ‘movimentador’ autorizado de contas bancárias nessas instituições, e juntou recibos de vencimento do embargado de maio/2021, julho/2019 e março/2020.
4.–Por despacho de 10.01.23 foi indeferida a realização das diligências requeridas de a) a v) da petição de embargos com o fundamento de que “não cabe ao tribunal a investigação e junção de documentos que a Requerente considera adequados a demonstrar a sua tese. Essa é tarefa que lhe compete. O mesmo se entende quanto à diligência requerida no ponto 17 do R/ 29.12.202, a qual se mostra abrangido pelo sigilo bancário cujo levantamento não se mostra ajustado aos fins da presente acção.
5.–Na sequência do referido despacho, por requerimento de 18.01.2023 o embargante requereu o levantamento do sigilo por forma a obter os dados constantes das bases de dados da Segurança Social, das Administração Tributária, da Câmara Municipal de Sintra, dos fornecedores de serviços de energia, água, gás e telecomunicações.
6.–Sobre este requerimento recaiu despacho, proferido em 19.01.2023 no âmbito da audiência de julgamento designada para inquirição da testemunha arrolada pelo embargante:
Relativamente às diligências requeridas e cujo teor do requerimento entrado no dia de ontem o Embargante veio reiterar, vindo agora requerer o levantamento do sigilo importa notar que o Tribunal já considerou e decidiu que tais elementos não são necessários e/ou úteis para os fins da presente acção. Acrescenta-se nesta sede apenas que a parte/embargante, não individualiza a que facto concreto a que pretende a demonstração e comprovação com tais documentos. Ainda que assim não se entendesse também não é de considerar a realização de tão invasivas diligências, face à mera alegação de que o Insolvente tem dividas à MEO e à NOS no valor de 200 e 300 euros. No mais, também não se vê em que medida importe apurar os gastos mensais de água, gás e luz do Insolvente, mais se notando que quanto aos elementos da Segurança Social e Autoridade Tributária relativamente à composição do agregado familiar ou de outros elementos que melhor detalhem agregado familiar do embargado em face do já alegado no seu requerimento inicial, sejam úteis ou necessários para invalidar a confissão do devedor quanto às suas dívidas, mormente aquela que tem para com o aqui embargante e a capacidade em pagá-la prontamente. Todavia, anote-se que o Tribunal havia proferido decisão quanto à desnecessidade destes elementos, entenda-se, quanto a serem solicitados pelo Tribunal, decisão que não se altera e se mantêm.
7.–No seguimento deste despacho o embargante requereu depoimento de parte do devedor, que foi indeferido por extemporâneo, e declarações de parte do embargante, que foi admitido e prestado.
8.–Concluída a prestação de declarações de parte do embargante e a inquirição da testemunha por este arrolada, o embargante requereu “prazo de cinco dias para juntar documentos comprovativos das diversas benesses, subsídios, comparticipações ou qualquer outra forma de ajuda aos agregados com dificuldades económicas pelas Entidades, Câmara Municipal, Autoridades de transportes, fornecedores de serviços básicos e segurança social”, pedido que foi indeferido por extemporâneo.
9.–Em 01.03.2023 foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes e absolveu o embargado dos pedidos neles deduzidos.
10.–Inconformado, o embargante apresentou recurso da sentença requerendo a sua revogação e substituição por outra que julgue improcedentes os embargos.

Formulou as seguintes conclusões:
a)-A sentença impugnada bastou-se com as meras declarações do Embargado/Insolvente na sua petição inicial, partindo do pressuposto, como se refere na sentença posta em crise, que, “uma vez que a situação de insolvência daquele que a ela se apresenta é reconhecida pelo próprio”
b)-O Embargado/Insolvente não fez prova de que a E faz parte do seu agregado familiar,
c)-Antes pelo contrário: no requerimento de concessão do benefício de apoio judiciário que entregou na Segurança Social, o embargado/Insolvente indica como seu agregado apenas ele e o filho LO;
d)-Considerando que a totalidade das despesas estão em nome de AS, o Embargado/Insolvente, desacompanhado da referida AS é parte ilegitima para se apresentar à insolvência;
e)-Estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, e consequentemente de ilegitimidade activa: se é o agregado que não consegue fazer face ao passivo, se é o passivo do agregado que é manifestamente superior ao seu activo, é o agregado que deve ser considerado Insolvente e não apenas o Embargado/Insolvente
f)-A excepção de ilegitimidade é de conhecimento oficioso
g)-Da prova produzida, resulta que o Embargado e a AS, auferem rendimentos em conjunto que ascendem a cerca de 1800,00€/mês, com o qual fazem face a despesas (onde se inclui alimentação mensal no valor de 400,00€/mês) no montante de 1400,00€/mês
h)-Para efeitos de recepção de prestações sociais da Segurança Social e enquadramento de escalão, quer a alegada companheira, quer a Mãe do filho do Embargado/Insolvente estão qualificadas, segundo consta, como famílias monoparentais;
i)-No Requerimento de apoio judiciário, o Embargado/Insolvente apresenta como seu agregado familiar ele e o seu filho.
j)-Esta dualidade de critérios do Embargado/Insolvente – agregado familiar alegado na petição inicial versus agregado familiar alegado no requerimento de protecção juridica – não foi apreciada pelo Tribunal na sentença impugnada.
k)-Não foi junto qualquer documento comprovativo do valor e da proveniência das alegadas dívidas do Devedor à MEO e à NOS, sendo que o Administrador de Insolvência os inclui no relatório apenas por terem sido mencionados na PI, porquanto quer a MEO quer a NOS, citadas para virem reclamar créditos, não o fizeram e nem o Embargado/Insolvente juntou qualquer comprovativo de tais dívidas integrarem o seu passivo.
l)-Face ao exposto,
m)-É notório que o passivo do Embargado não é aquele que ele invoca – é manifestamente inferior;
n)-É notório que o activo – rendimento mensal do Embargado/Insolvente, não é aquele que ele invoca – é manifestamente superior; o) É notório que o agregado familiar do Embargado/Insolvente não é aquele que ele alega, sendo unicamente composto pelo Embargado p) É notório que as despesas indicadas pelo Embargado/Insolvente como sendo do agregado familiar estão todas em nome da AS e que esta não se apresentou à insolvência;
q)-Para que se verifique uma situação de insolvência de acordo com o critério do balanço, não basta que o passivo seja superior ao activo: é necessário que o passivo seja manifestamente superior ao activo, o que não é o caso, quando os rendimentos do “agregado familiar” são de cerca de 1800,00€/mês e as despesas do mesmo “agregado”, conforme resulta da sentença são de cerca de 1400,00€/mês.
r)-Pelo que deve a sentença que julgou os embargos à insolvência ser revogada com as demais consequências legais e processuais, ou caso assim não se entenda, o que só se concebe por mera cautela de patrocínio, atento que todas as despesas do agregado familiar invocadas pelo Embargado como tendo de as suportar, se encontram em nome da alegada companheira, deve esta, AS, ser considerada igualmente insolvente, ou o Embargado, desacompanhado daquela, ser considerado parte ilegítima.
s)-A sentença recorrida, ao não analisar todos os documentos juntos pelo embargado/Insolvente, designadamente o requerimento de protecção juridica, violou o disposto nos artigos 3º, 20º e 24º do CIRE e 30º, 33º, 577º e 578 do CPC.

11.–Não foram apresentadas contra-alegações.

12.–O embargante mais recorreu da sentença de declaração da insolvência, requerendo a sua revogação ou, caso assim não se entenda, a declaração de insolvência da companheira do devedor, AS, por se verificar uma situação de litisconsórcio necessário.

Formulou as seguintes conclusões:
a)-(…)
b)-A sentença impugnada bastou-se com as meras declarações do Devedor na sua petição inicial, partindo do pressuposto, como se refere na sentença posta em crise, que, “uma vez que a situação de insolvência daquele que a ela se apresenta é reconhecida pelo próprio”
c)-Não foi junto qualquer documento comprovativo dos efectivos rendimentos do Devedor, designadamente não foram considerados os valores efectivamente pagos pela entidade patronal a titulo de subsídio de almoço que ascende a cerca de 123/143€ liquidos/mês e de prémios de assiduidade e produtividade que ascende a cerca de 60,00€ liquidos/mês;
d)-Não foram considerados, para efeitos de calculo do rendimento mensal, os valores auferidos a título de subsídios de férias e de Natal – 1/12 de cada um deles, que acrescem ao rendimento mensal;
e)-Não foi junto qualquer documento comprovativo do agregado familiar, sendo que, para efeitos de recepção de prestações sociais da Segurança Social, quer a alegada companheira, quer a Mãe do filho do Devedor estão qualificadas, segundo consta, como famílias monoparentais;
f)-No Requerimento de apoio judiciário, o Devedor apresenta como seu agregado familiar ele e o seu filho.
g)-Esta dualidade de critérios do Devedor – agregado familiar alegado na petição inicial versus agregado familiar alegado no requerimento de protecção juridica – não foi apreciada pelo Tribunal na sentença impugnada.
h)-Apesar das despesas do agregado se encontrarem todas em nome da alegada companheira, esta não foi considerada Insolvente
i)-Estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, e consequentemente de ilegitimidade activa, se é o agregado que não consegue fazer face ao passivo, se é o passivo do agregado que é manifestamente superior ao seu activo, é o agregado que deve ser considerado Insolvente e não apenas o Devedor
j)-Pelo que, em caso de improcedência do presente recurso no sentido de se manter a insolvência do Devedor, o que só se concebe por mera cautela de patrocínio, deve a companheira do Devedor, AS ser igualmente considerada insolvente
k)-Não foi junto qualquer documento comprovativo do valor e da proveniência das alegadas dívidas do Devedor à MEO e à NOS
l)-Não foi arrolada como credora a Mãe do Devedor, a quem o Devedor está a pagar um alegado empréstimo que a mesma lhe terá feito para aquisição de um aparelho, em situação notória de privilegiar um credor em detrimento do outro.
Face ao exposto,
m)-É notório que o passivo do Devedor não é aquele que ele invoca – é manifestamente inferior;
n)-É notório que o activo – rendimento mensal do Devedor, não é aquele que ele invoca – é manifestamente superior;
o)-É notório que o agregado familiar do Devedor não é aquele que ele alega, sendo unicamente composto pelo Devedor
p)-É notório que as despesas indicadas pelo Devedor como do agregado familiar estão todas em nome da AS
q)-É notório que o Devedor apenas pretende furtar-se ao pagamento da indemnização que foi condenado a pagar ao Recorrente em sede de processo crime, cujo valor nem sequer é aquele que o Devedor alega, dado que a condenação foi solidaria e inexistindo repartição das culpas presume-se que cada um é responsavel pelo pagamento de metade do valor em que ambos foram condenados nos termos do artigo 487/2º CC.
r)-Para que se verifique uma situação de insolvência de acordo com o critério do balanço, não basta que o passivo seja superior ao ativo: é necessário que o passivo seja manifestamente superior ao activo, o que não é o caso.
s)-O que o Devedor pretende é furtar-se ao pagamento da indemnização ao Credor Recorrente, fazendo do processo de insolvência um uso manifestamente reprovável.
t)-Pelo que deve a sentença que declarou o Devedor como insolvente ser revogada com as demais consequências legais e processuais, ou caso assim não se entenda, o que só se concebe por mera cautela de patrocínio, atento que todas as despesas do agregado familiar invocadas pelo Devedor como tendo de as suportar, se encontram em nome da alegada companheira, deve esta, AS, ser considerada igualmente insolvente.
u)-A sentença recorrida, ao não analisar todos os documentos juntos pelo Devedor, violou o disposto nos artigos 3º, 20º e 24º do CIRE, 30, 33, 577 e 578 do CPC.

13.–Não foram apresentadas contra-alegações.

14.–Admitidos e remetidos os dois recursos à Relação, por despacho da relatora, e com a não oposição, prévia e expressamente declarada pelo recorrente, ao julgamento conjunto dos recursos, foi para o efeito determinada a apensação daqueles a estes autos.

II–Objeto do recurso – Questões a apreciar:
É consensual que, nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto desta, tal qual como surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa, bem como de conhecer de questões que não foram oportunamente submetidas a apreciação. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa (ou do incidente), se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na aplicação do direito.
Assim, considerando o teor da decisão recorrida, e conforme conclusões enunciadas pelo recorrente, cumpre apreciar:
1.–Se o insolvente detém legitimidade processual para se apresentar à insolvência desacompanhado da sua companheira - questão da invocada preterição de litisconsórcio necessário;
Caso não resulte prejudicada pela solução dada à questão anterior,
2.–Se os factos alegados no requerimento inicial do devedor/embargado concretizam os pressupostos legais da situação da insolvência e, na positiva, se os factos alegados em sede de embargos são suscetíveis de os infirmar/contrariar.

III–Fundamentação de Facto
Sublinha-se antes de mais que a decisão de facto da sentença de embargos não vem impugnada nas alegações de recurso e, por qualquer forma, ainda que essa fosse a pretensão do recorrente – pretensão que nem na motivação nem nas conclusões surge declarada ou manifestada e, por isso, não integra o objeto de decisão do presente recurso -, sempre se imporia decidir pela sua rejeição por não cumprir os requisitos processuais legais de que depende a sua admissibilidade nos termos previstos pelo art. 640º, nº 1  do CPC.
Assim, para além da atividade processual acima relatada e da decisão de facto proferida na sentença de embargos e que infra se transcreve, nos termos dos arts. 662º nº1, 663º nº 2 e 607º nº 3, do CPC mais se considera a seguinte:
1.–Em 19.07.2022 o recorrido apresentou-se e requereu a declaração da sua insolvência e, simultaneamente, deduziu incidente de exoneração do passivo restante.
Alegou encontrar-se incapacitado de cumprir as suas dívidas nos montantes de €8.900,00 a D, aqui recorrente, de € 200,00 a NOS Comunicações, SA, de €300,22 a MEO-Serviços de Comunicações e Multimédia, SA, e de €45,00 mensais à sua mãe durante 4 anos para reembolso de crédito por aquela solicitado para aquisição de aparelho auditivo de que ele necessita, que o seu agregado familiar é composto por si, pelo seu filho de 14 anos,  pela sua companheira e pelo filho de 8 anos desta, aufere salário de €647,40 mensais pelo trabalho que exerce na empresa A, sobre o qual incide penhora, e a sua companheira aufere 705,00 mensais, e suporta despesas mensais no montante total de cerca de € 1.400,00 com renda da habitação, passes sociais, alimentação, consumos de gás, água e eletricidade, alimentação escolar do seu filho e do filho da sua companheira, serviços de operador de telecomunicações, e ‘cartão universo’, a que acrescem €40,00/mês com consultas de especialidade do seu filho. Mais alegou não deter bens para além dos móveis da sua residência necessários ao conforto mínimo do respetivo agregado familiar, identificou ação executiva contra si pendente.
Juntou cópia do cartão de cidadão de todos os que alegou integrar o seu agregado familiar, notificação para penhora dirigida a Ag datada de 12.12.2019, talão multibanco de 26.05.2033 descritivo de transferência bancária no valor de €45,00, fatura de junho de 2022 referente a consultas de psicologia do seu filho, faturas de serviços de ótica referentes a si e ao seu filho, datadas de maio 2021 e abril 2022, recibo vencimento referente a abril 2022, documento dos recursos humanos de Ag datado de 24.06.2022 a declarar que o requerente foi admitido naquela empresa em 02.01.2018, aufere retribuição base mensal ilíquida de €804,82, a que acresce subsídio de alimentação pago em cartão de refeição (€7,63/dia), e prémio de assiduidade (8% da retribuição base), recibo de vencimento da sua companheira, recibo de renda de habitação de julho de 2022 emitido em nome desta, contrato de arrendamento para habitação celebrado por esta e datado de 20.01.2021, cópias de título (passe) de transporte publico e talão multibanco com descritivo de carregamento do mesmo, documento de aviso de corte do fornecimento de eletricidade de junho de 2022 endereçado à companheira do devedor na morada correspondente à habitação objeto do contrato de arrendamento, fatura-recibo de gás butano (3Un), fatura referente a fornecimento de água, faturas referentes a refeições escolares do filho da companheira do devedor e do filho deste, aviso de valor em dívida e de suspensão de serviço de operadora de comunicações de maio de 2022 dirigida a terceiro para aquela mesma morada, e extrato de dívida do cartão universo datado de maio de 2022 e endereçado à companheira do devedor.
Notificado para o efeito, juntou certidão do respetivo assento de nascimento, certificado do registo criminal, e comprovativo do pedido de apoio judiciário.
2.–Em 03.08.2022 foi proferida sentença de declaração da insolvência do requerente com fundamento nos arts. 3º, nº 1 e 4 e 28º do CIRE e considerando que “atento o montante dos rendimentos auferidos pelo Requerente, o valor do seu património e o montante das suas dívidas, verifica-se que o mesmo se encontra impossibilitado de cumprir as obrigações vencidas a que se encontra vinculado, importando por isso concluir estarem no caso reunidos os pressupostos necessários para a declaração da sua insolvência.
b)-Da decisão de facto proferida na sentença de embargos:

FACTOS PROVADOS
1.–O Insolvente é solteiro e nasceu no dia 8 de Julho de 1979. 
2.–O Insolvente tem os seguintes Credores com dívidas vencidas, conforme resulta da lista de créditos reconhecidos provisoriamente nos termos do art.º 154º do CIRE:
a.-D com uma dívida no valor de €5.600,49 emergente de sentença condenatória pela prática de facto ilícito, sendo co-responsável pelo seu pagamento juntamente com JB.....;
b.-Meo-Serviços de comunicações, no valor de €300,22;
c.-Nos-Comunicações S.A, no valor de 200,00;
d.-Pra Iberia S-L.U, no valor de 589,91.
3.–O agregado familiar do Insolvente é composto por si, pelo filho menor de 14 anos de idade em regime de residência quinzenal alternada, pela companheira e pelo filho desta, menor de idade.
4.–O Insolvente exerce funções de montador de 2.ª, por conta de outrem, auferindo remuneração base mensal ilíquido de €804,82, acrescido de um prémio de assiduidade e de 8% da retribuição base e de subsídio de alimentação em cartão no valor de €7,63/dia.
5.–A sua companheira aufere a quantia mensal de €705,00 mensais acrescida de subsídio de alimentação no valor de €4,77.
6.–O Insolvente indica como despesas mensais as seguintes: a. €600,00 para habitação; b. €60,00 passes sociais; c. €47,06 de luz; d. €400,00 alimentação; e. €100,00 gás; f. €37,03 de SMAS; g. €16,96 de alimentação escolar (A); h. €17, 52 alimentação escolar (LO); i. €78,84 da MEO; j. €44,10 de cartão Universo//Num total de €1.402,10.
7.–O Insolvente não tem bens.
8.–O Insolvente é Executado no processo de execução que corre termos no Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste, Sintra, J4, n.º 386/10.9GDSNT-A.
9.–O filho da companheira, A, tem transtorno do espectro autista e necessita de acompanhamento, nomeadamente, consultas de psicologia com o custo individual de €40.

FACTOS NÃO PROVADOS
Resultou como não provado que:
a)-Durante quase 10 anos o Insolvente furtou-se ao pagamento mantendo-se na situação de emprego precário;
b)-Com o conluio da entidade patronal, desde Dezembro de 2019 vem tentando protelar este pagamento, tanto que alegaram que o subsídio de férias era pago em Dezembro em virtude da empresa fechar totalmente e para o efeito durante 15 dias, o que veio a verificar-se ser falso;
c)-A guarda do filho do Insolvente está em exclusivo entregue à mãe.
FACTOS CONCLUSIVOS, IRRELEVANTES OU DE DIREITO
Os demais factos alegados que não foram considerados nos factos provados e não provados, o Tribunal não dará resposta por se entender que os mesmos contêm matéria conclusiva, irrelevante ou de direito.
MOTIVAÇÃO DE FACTO
A convicção do tribunal assentou na análise crítica e conjugada de todos os documentos juntos aos autos (designadamente os que foram juntos com a petição inicial em sede de pedido de insolvência/R/ 19.07.2022), contestação aos embargos/ R/12.12.2022 e, ainda, os documentos juntos no processo de insolvência, mormente, o relatório do Sr. Administrador de Insolvência a que alude o art.º 155º do CIRE/ R/21.10.2022), em conjugação com os depoimentos ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo presente as regras de experiência comum, bem como as regras de repartição do ónus da prova.
Assim, a factualidade provada vertida nos pontos 1 emerge do assento de nascimento do Insolvente; no ponto 2 do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE junto no processo principal. No ponto 3 da conjugação do cartão do cidadão do filho do Insolvente, com a acta de conferência de pais junta como documento 6 da contestação aos embargos (regulando a guarda partilhada), conjugado com as declarações do Insolvente relativamente à situação de união de facto as quais se mostram corroboradas pelas declarações do filho menor também em sede conferência de pais (vide acta supra mencionada datada de 9.05.2022 – documento 6) que declara que: «Dá-se bem com a madrasta». De igual modo, a filiação da companheira do Insolvente, AS, encontra-se provada por documento autêntico – cópia do cartão do cidadão do menor B. A factualidade sob os pontos 4 e 5 está igualmente demonstrada pelos respectivos recibos de vencimento e declarações juntas. O ponto 6, encerra o valor das despesas que o Insolvente alega ter em cada mês, tendo-se considerado neste facto a mera estimativa de gastos mensal do Insolvente. O ponto 7 está devidamente comprovado pelo relatório do art.º 155º do CIRE e o ponto 8 tem suporte na respectiva documentação junta, tendo sido igualmente sinalizado nestes autos e não sendo facto controvertido. A situação descrita no ponto 9 tem suporte nos recibos juntos em sede de petição inicial como documento 7.
Importa notar que a prova oral produzida em sede de audiência de julgamento não alterou a realidade factualidade factual trazida pela prova documental já junta, não tendo o mérito de abalá-la ou contrariá-la. Com efeito, tanto o Embargante, ouvido na qualidade de parte, como a testemunha V, seu irmão, não revelaram conhecimento directo sobre a situação sócio-económica do Embargante, tendo contextualizado a situação de onde emergiu a dívida em apreço – cometimento do crime de dano sobre o veículo do Embargante – e, no mais, expendendo considerandos sobre a sua convicção e as vozes populares quanto àquela que seria a intenção do Insolvente relativamente ao pagamento desta dívida, sem qualquer valor probatório.
No que respeita à matéria de facto dada como não provada, para além do que já foi dito supra, o Tribunal fundou a sua decisão na insuficiência de prova.”

IV–Fundamentação de Direito

1.–Da ilegitimidade do devedor por preterição de litisconsórcio necessário
A ilegitimidade do devedor para pedir a declaração da sua insolvência desacompanhado da sua companheira surge excecionada pela primeira vez nos autos em sede de recurso da sentença de insolvência, arguição que o recorrente reiterou em sede de recurso da sentença proferida nestes autos de embargos. Exceção que num e outro recurso o recorrente fundamenta no facto de as despesas do agregado familiar do devedor se encontrarem em nome da sua companheira, para daí deduzir que é o agregado familiar – e não apenas o devedor - que não consegue fazer face ao passivo, que o passivo do agregado é manifestamente superior ao seu ativo e que, logo, é o agregado que deve ser considerado insolvente e não apenas o devedor.
Que dizer?...É intensa e imensa a confusão do recorrente sobre o regime processual e pressupostos da insolvência.
Começando pela disposição primeira do CIRE.
Dispõe o art. 1º que O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. (subl. nosso)
Do conceito e da lógica finalística da insolvência, assim como pela dinâmica do respetivo processado e apensos (apreensão, liquidação, reclamação de créditos e qualificação da insolvência),  logo resulta que a regra da legitimidade do sujeito passivo da declaração da insolvência é singular e não plural (conforme é confirmado por várias disposições do Código[2]). Os pressupostos que nos termos dos arts. 3º, nº 1 e 20º são suscetíveis de reconduzir à situação de insolvência – impossibilidade de pagamento de obrigações vencidas - são forçosamente reportados à realidade patrimonial de cada um, pelo que, ainda que comuns, são distintos ou respeitam a cada devedor os factos em que se impõe concretizar a causa de pedir, assim como é forçosamente distinto o pedido concretamente deduzido relativamente a cada devedor (ainda que de igual natureza), e não comporta uma qualquer relação de prejudicialidade ou de dependência com o pedido de insolvência de outro. Aliás, precisamente por não se verificarem os requisitos positivos da legitimidade plural passiva em processos de insolvência é que obrigou o legislador a expressamente prever tal possibilidade em relação aos cônjuges, nos termos do art. 264º[3].
Com efeito, e passando agora pelo referido art. 264º, excecionalmente o CIRE admite a pluralidade passiva reportada à particular situação dos cônjuges, num claro (mas justificado) desvio à regra da singularidade passiva da insolvência, admitindo a legitimidade plural, não no regime de litisconsórcio[4], mas sob a forma de coligação, quando os requeridos sejam pessoas singulares casadas entre si sob o regime da comunhão de bens e, como é óbvio, desde que os fundamentos da insolvência - ou seja, desde que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas prevista no art. 3º, nº 1 -, se verifique relativamente a ambos os cônjuges. Sendo que nestes casos a apresentação à insolvência por ambos os cônjuges depende da vontade de cada um deles nesse sentido e, tratando-se de insolvência requerida, a legitimidade passiva de ambos os cônjuges só fica assegurada se o requerente for credor de ambos. Note-se que a lei não admite a coligação de cônjuges casados no regime da separação de bens, pelo que o critério para a admissibilidade da coligação em sede de processo de insolvência reporta, não à eventual comunicabilidade da dívida entre os cônjuges, mas sim à comunicabilidade do respetivo património, ou seja, ao património comum do casal.
Do sumariamente exposto resulta claramente afastada a legitimidade da companheira do devedor para com ele se apresentar à insolvência (ou para ser requerida contra ambos), sendo ademais certo que nem no Direito civil nem no Direito especial insolvencial existe a figura jurídica ‘do agregado familiar’ como titular de ativo ou de passivo que parece ser pressuposta pelo recorrente.
Mas, atendendo aos fundamentos da invocada preterição do litisconsórcio necessário (as despesas do agregado familiar do devedor estão em nome da sua companheira e é o agregado que se encontra em situação de insolvência), mais surge aqui pertinente a referência ao art. 3º, nº 1 que, precisamente, define situação de insolvência, e a que infra retornaremos.
Estabelece esta norma que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.” Ora, as despesas que o devedor suporta com a sua própria subsistência e do seu respetivo agregado só correspondem a obrigações vencidas fundamento da situação de insolvência se corresponderem a dívidas que o devedor já contraiu e está impossibilitado de pagar. Neste âmbito, e sem prejuízo do já acima exposto, ainda que o devedor tenha relacionado duas dívidas vencidas e não pagas a operadoras de telecomunicações (‘NOS’ e ‘MEO’) nos valores de €200,00 e €300,22, não alegou estar impossibilitado de pagar as despesas fixas mensais que sob o art. 10º da petição da insolvência enumerou a título de renda da casa que habita, de fornecimento de energia, água e serviços de operadora de telecomunicações para ela contratados, de alimentação e outros, no montante total de cerca de €1.360,00. Não foi com fundamento nas despesas que alegou suportar mensalmente que o devedor alegou e descreveu a sua situação de insolvência, mas sim no facto de ter três dívidas vencidas e não pagas no montante total de cerca de €9.400,00, conjugado com o facto de não dispor de meios para as cumprir por não ter bens nem outros rendimentos para além da retribuição que aufere pelo trabalho que presta por conta de outrem. Retribuição que o devedor alegou ser no montante mensal de €687,40, que no recurso da sentença de insolvência o recorrente alegou ser de € 1.800,00 (no conjunto dos rendimentos auferidos pelo devedor e pela respetiva companheira), e que a sentença dos embargos fixou no montante base mensal ilíquido de €804,82 acrescido de um prémio de assiduidade e de 8% da retribuição base e de subsídio de alimentação em cartão no valor de €7,63/dia, prestações estas que no recurso da sentença de insolvência o recorrente quantificou em €123/€143,00 e em cerca de €60,00 líquidos/mês. Mesmo que apenas se considere o valor atual do crédito do recorrente - emergente de sentença condenatória pela prática de facto ilícito - no montante €5.600,49, e mesmo até que se considere apenas metade desse valor[5], em qualquer uma daquelas versões do montante dos rendimentos do devedor resulta à evidência que nenhuma delas é de montante superior, equivalente, ou sequer próximo do montante do passivo do devedor, isto é, do montante das suas dívidas vencidas e não pagas (que, como acima foi necessário referir, não se confundem com as despesas mensais que o devedor sucessivamente realiza e suporta). Matéria que respeita aos pressupostos da situação da insolvência e que será retomada infra em sede de conhecimento de mérito dos demais fundamentos de ambos os recursos.
Termos em que se conclui pela improcedência da ilegitimidade do devedor para por si só pedir a declaração da sua situação de insolvência.

2.Da impugnação e da oposição à sentença de declaração da insolvência
a)-Embargos e recurso da sentença de insolvência - Enquadramento
Afastando-se do regime de impugnação monista da declaração da falência previsto no CPERF – que, conforme ali se previa no art. 129º, concentrava nos embargos toda e qualquer reação à sentença declaratória -, o CIRE repristinou o regime dualista que vigorava no CPC antes da aprovação do CPEREF e, a par com os embargos, passou a prever o recurso como meio de impugnação da sentença de declaração da insolvência, em alternativa ou cumulativamente e pelos mesmos legitimados, mas diferenciados pelos fundamentos que definem ou caracterizam o objeto de cada uma dessas formas de impugnação. Assim, prevê o art. 40º nº 2 que Os embargos (…) apenas são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência. O art. 42º, nº 1 prevê que “[é] lícito às pessoas referidas no n.º 1 do artigo 40.º, alternativamente à dedução dos embargos ou cumulativamente com estes, interpor recurso da sentença de declaração de insolvência, quando entendam que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido proferida.(subl. nossos)
Daqui logo decorre que os embargos ou o recurso são meios de impugnação que não concorrem entre si subordinados aos mesmos requisitos, pelo que, por princípio, os fundamentos de um não são aptos a fundamentar o outro.
Em síntese, os embargos estão legalmente reservados e confinados à apreciação de novos factos ou de novos meios de prova atinentes com a declaração da insolvência e suscetíveis de refutar/afastar os fundamentos (de facto) que a esta presidiram, a contender com a apreciação do mérito do pedido de declaração da insolvência, e o recurso mantém-se reservado à função que a lei processual geral lhe assinala, de controlo da legalidade da decisão através da reponderação do julgamento por ela realizado por referência aos elementos de facto até então disponíveis nos autos e por ela considerados ou devidos considerar[6].
Assim, querendo reagir contra a sentença de declaração de insolvência, qualquer interessado - incluindo o devedor que não foi pessoalmente citado previamente à declaração da insolvência e que se encontra em situação de revelia absoluta - tem a possibilidade de o fazer deduzindo embargos perante o tribunal que a proferiu para, através da alegação de novos factos ou da indicação de meios de prova que não foram considerados pela decisão, contestar a legitimidade do requerente ou o mérito do pedido e determinar apreciação distinta, exercendo a atividade de alegação e prova que não teve a oportunidade de exercer na fase dos articulados e que (ao menos em abstrato) seja apta a determinar apreciação distinta, quer por contrariar os fundamentos ou pressupostos de facto indiciários da situação de insolvência, quer por demonstrar a sua solvabilidade nos mesmos termos que dispõe o art. 30º, nº 4. Por esta via não se discute a legalidade da decisão ou o acerto do julgamento de facto e de direito por ela realizado – os embargos estão tematicamente vocacionados e reservados para a alteração ou ampliação dos concretos factos que fundamentaram a declaração da insolvência e, por eles, é proferida decisão fundada em matéria de facto nova (ou porque foi alegada e demonstrada em sede de embargos, ou porque os novos meios de prova neste requeridos conduziram à demonstração de factos já antes alegados mas não provados). Nas palavras do acórdão da Relação de Coimbra de 14.02.2012, Assim, o controlo substancial da situação de insolvência de uma devedora, face à sentença que a considera como tal, faz-se, fundamentalmente, através dos embargos (v. o artigo 40º, nº 2 do CIRE) [7] (subl. nosso).
Com âmbito e funcionalidade processual bem distinta, os recursos destinam-se a impugnar as decisões judiciais - com fundamento em erro de procedimento, ou em erro de julgamento – e não a criar decisões sobre matéria nova, sendo o âmbito do recurso delimitado pelo conteúdo do ato recorrido. «Destinando-se os recursos unicamente a modificar as decisões recorridas, e não a criar decisões sobre matéria nova, não lhes pode ser atribuído um âmbito que excede a sua própria finalidade.»[8]O tribunal de recurso repondera a decisão sobre a causa, limitando tal reponderação às questões decididas pelo tribunal a quo e à matéria de facto que este tinha ao seu dispor nos autos. Se os fundamentos do recurso corresponderem a questões novas, não abrangidas pelo poder-dever de apreciação do tribunal recorrido, o recurso carece de fundamentos para modificar, anular ou revogar a decisão recorrida e, assim, em ultima análise, carece de objeto. A aceitar-se o contrário, “levaria a admitir-se, em matéria de recursos, a própria revogação de uma decisão, válida e correta, por o tribunal superior fazer intervir, na reponderação, factos de que o juiz a quo não tivera sequer conhecimento por não terem sido carreados pelas partes ao processo (sendo certo que não devia, deles, ter conhecimento oficioso). (…) O objeto do recurso é a decisão proferida, competindo ao tribunal superior julgar se foi justa ou injusta, não interessando «senão comparar a decisão com os dados que o juiz decidente possuía» (Mendes, j. Castro, Recursos, Lisboa 1972, p. 22).[9]
b)-Dos fundamentos dos embargos e do recurso do recorrente
Do cotejo da petição de embargos com as alegações de recurso da sentença de declaração da insolvência resulta que, com exceção da ilegitimidade do devedor por preterição de litisconsórcio necessário, invocada pelo recorrente apenas em sede de recurso, no demais são os mesmos os fundamentos invocados nos embargos e no recurso da insolvência e que, em síntese, se resumem às seguintes questões de facto: o devedor não tem o passivo, não tem o agregado familiar, nem tem os encargos que alega ter; tem um rendimento mensal superior ao que indica; e pela presente insolvência pretende apenas furtar-se ao pagamento do crédito que o embargante/recorrente sobre ele detém, correspondente a indemnização cível emergente de crime em que foi condenado. Tanto assim é que, num mero relance sobre os fundamentos e conclusões do recurso da sentença de insolvência e os fundamentos do recurso da sentença que recaiu sobre os embargos, para além de pequenas e irrelevantes alterações de redação, resulta à evidência a coincidência material do seu teor, que só divergem na ordem pela qual surgem alegados.
É certo que com a petição de embargos o recorrente requereu extensa produção de prova documental, incluindo a sua requisição a terceiros e por recurso a quebra de sigilo bancário, inclusive para obtenção de informações sobre a situação da companheira do devedor e respetivo filho (terceiros nos autos) e que, conforme protestou, no decurso da tramitação do incidente juntou três documentos, correspondentes a recibos de vencimento do embargado. Porém, com exceção destes últimos documentos e da testemunha que arrolou, aqueles meios de prova foram rejeitados pelo tribunal a quo por despachos transitados em julgado. Mas, ainda que assim não fosse, os factos que alegou, no essencial atinentes com os rendimentos e as despesas do insolvente e da companheira deste, sempre reconduziriam a apreciação dos embargos aos factos alegados e disponíveis nos autos em sede de prolação da sentença de declaração da insolvência e, assim, aos fundamentos do recurso desta que, por isso mesmo, veio a reproduzir no recurso da sentença de embargos.
Para além da ilegitimidade do devedor, já apreciada, os fundamentos do recurso da sentença de insolvência cingem-se à alegação de que o devedor não fez prova do seu rendimento nem de que o seu agregado familiar é integrado por companheira e filho menor desta porque não procedeu à junção de determinados documentos (a saber, recibos de vencimento de junho e julho de 2022, declaração de IRS, declaração da Junta de Freguesia ou da Segurança Social, documento justificativo da proveniência, do vencimento e do montante das dívidas à MEO e à NOS, e da sentença que condenou o devedor no pagamento de indemnização ao recorrente); que o devedor aufere mais cerca de €200,00/mês e mais 1/12 avos dos subsídios de natal e de férias que o tribunal recorrido não considerou no cálculo do rendimento mensal daquele; que todas as despesas que o devedor alega e imputa ao agregado estão em nome da sua alegada companheira; que não fez prova de que as dívidas à MEO e à NOS são suas; que há favorecimento a credor porque o devedor indica pagamento mensal à sua mãe de empréstimo que não prova; que apesar de constar de documento junto com o pedido de insolvência a sentença não considerou que o devedor adquire direito de regresso sobre o co-executado no processo crime em que foi condenado e que, se o agregado familiar do devedor é composto por uma companheira, esta também deve ser considerada insolvente. Com base nesta alegação o recorrente concluiu que não está demonstrado que o seu passivo seja manifestamente superior ao seu ativo e que, por isso, não estão reunidos os pressupostos legais para que seja declarada a insolvência do devedor.
Conclusão que reiterou nestes autos alegando, por referência ao critério de insolvência do balanço, que o passivo não é manifestamente superior ao ativo porque os rendimentos do ‘agregado familiar’ do devedor são de cerca de €1.800,00/mês e as despesas do mesmo agregado são de cerca de €1.400,00/mês.
c)-Da relevância dos fundamentos dos embargos/recurso sobre os pressupostos da insolvência
Não está aqui em discussão[10] a adequação de cada um dos meios processuais utilizados pelo recorrente mas, como do já acima exposto resulta, da adequação das questões de facto neles suscitada para contrariar o juízo da declaração da insolvência do devedor ou afastar os pressupostos por ela considerados.
Pretende o recorrente que a matéria de facto por ele invocada no recurso da insolvência e por ele pretendida discutir nos embargos permitiria afastar ou contrariar os fundamentos considerados em sede de sentença e concluir que o devedor não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Porém, não só não infirma a situação de insolvência do devedor como resulta ostensivo que por ela não submeteu a juízo questões de facto ou de direito suscetíveis de contrariarem os pressupostos considerados na declaração de insolvência que censura, reportados aos fundamentos de facto invocados na petição inicial apresentada pelo devedor, o que teria até justificado o indeferimento liminar dos embargos com base na sua manifesta improcedência[11].
Com efeito, os factos alegados pelo devedor, considerados pela sentença de insolvência, e que não foram contrariados em sede de embargos, são suficientes e impõem concluir pela verificação de situação de insolvência por serem reveladores da impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, conforme definição legal de insolvência prevista pelo art. 3º, nº 1, de acordo com o critério da liquidez.
Conforme acima se referiu, o que para o efeito releva é a dívida vencida e não paga do devedor/embargado ao recorrente, no valor atual de €5.600,49, a insuficiência da retribuição mensal auferida pelo devedor para de uma só vez a satisfazer, e a ausência de outros bens ou rendimentos no património do devedor. Factos que o devedor alegou na petição inicial, que não foram postos em causa pelo recorrente[12], que o tribunal recorrido considerou como fundamento da declaração da insolvência[13] e que, conforme consta da sentença de embargos, “por essa razão o tribunal não poderia, senão, validar o pedido de apresentação do devedor à Insolvência.”
De acordo com o primeiro e principal critério e que decorre da literalidade da norma, o que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas vencidas por falta de liquidez no património do devedor, impossibilidade essa que é apreciada objetivamente, independentemente da causa ou do conjunto das causas que determinaram essa situação[14] – o que dita a situação de insolvência do devedor é a ausência de liquidez suficiente para pagar as suas dívidas no momento em que se vencem.[15]  Efetivamente, ainda que no CIRE o legislador tenha omitido a referência à pontualidade como característica essencial do cumprimento das obrigações vencidas, tal não pode ser entendido com o alcance de implicar o abandono do entendimento inerente à ideia de cumprimento, de realização atempada das obrigações a cumprir. É que só dessa forma se satisfaz, na plenitude, o interesse do credor, e se concretiza integralmente o plano vinculativo a que o devedor está adstrito. Neste sentido não interessa somente que ainda se possa cumprir num momento futuro qualquer, importando igualmente que a prestação ocorra no tempo adequado e, por isso, pontualmente.[16] Para além de a lei não exigir que o montante em dívida ou as circunstâncias do incumprimento revelem a impossibilidade, definitiva e em absoluto, de o devedor satisfazer a totalidade da suas obrigações – que seria causa legal de extinção da dívida e não de insolvência - é suficiente que os factos revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer tais obrigações pontualmente, isto é, ponto por ponto, conforme o acordado com os credores, no tempo e lugar próprios (cfr. art. 406º do Código Civil). A lei basta-se e pressupõe uma situação de mora/atraso no cumprimento desde que, pelo seu montante, no conjunto do passivo do devedor ou de quaisquer outras circunstâncias (designadamente, e relativamente às pessoas singulares, origem e/ou natureza do passivo em incumprimento, respetivos montantes e longevidade da mora, rendimentos auferidos, cobrança executiva, etc), tal evidencie a impossibilidade de continuar a satisfazer os seus compromissos. Não exige também que tal situação se verifique com todas as obrigações assumidas/contraídas pelo devedor, nem tão pouco exige a demonstração de pluralidade de dívidas vencidas e não pagas.[17] Por outro lado, e considerando as insistentes referências do recorrente aos rendimentos da companheira do devedor, relembra-se, de acordo com o princípio da garantia geral das dívidas prevista pelo art. 601º do Código Civil, pelo cumprimento das obrigações de cada um apenas respondem os bens do devedor (suscetíveis de penhora). Os bens de terceiro só respondem pelas dívidas de outros se se declarar ou constituir garante pessoal das mesmas, ou se sobre os seus bens constituir direito de garantia de pagamento, sendo certo que, ainda assim, tanto não exonera o património do devedor de responder pela totalidade da dívida.
O nº 2 do art. 3º prevê a aferição da situação de insolvência por recurso a critério suplementar do balanço, que se traduz na manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo “avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis, excluindo-se da valorização do ativo a rubrica do trespasse do estabelecimento, critério que a todos os níveis vem erroneamente invocado pelo recorrente já que, como da norma expressamente consta, a correlação ativo-passivo por ele pressuposta é de aplicação exclusiva às pessoas coletivas e patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa responda pessoal e ilimitadamente.
No caso, bastaria o montante do crédito ainda em dívida ao recorrente e o montante da retribuição de que o devedor mensalmente dispõe para, associados à ausência de outros bens ou direitos, impor a assunção da impossibilidade de o recorrente satisfazer pontualmente as suas obrigações vencidas por ausência de liquidez para o fazer, ou seja, uma situação de manifesta e real e comprovada insolvência, mais não fosse porque, reiterando o acima citado, não interessa somente que ainda se possa cumprir num momento futuro qualquer – designadamente, por recurso a sucessivos e continuados descontos coercivos sobre os rendimentos do trabalho do devedor no âmbito de processo executivo -, importando igualmente que a prestação ocorra no tempo adequado e, por isso, pontualmente.
Nesse sentido, e valorando positivamente a disparidade entre o montante do passivo em incumprimento e o montante dos rendimentos mensais auferidos, e não obstante a titularidade de património imobiliário (que aqui sequer se verifica), acórdãos desta secção de 27.05.2021: “3 - Um devedor (…) tem como única fonte de rendimentos um salário entre € 700 a € 800 euros, apresentando um passivo vencido e exigível de cerca de € 18.000, encontra-se em situação de insolvência atual.[18] -, e de 30.06.2020 - “Ponderando o montante vencido e a liquidez apurada – € 2.000,00 mensais de salário, não tendo sido adiantadas quaisquer despesas regulares, claramente existentes, a que se poderão somar € 1.500,00 mensais da companheira – estamos ante o incumprimento de obrigações cujo montante e longevidade do incumprimento demonstram claramente a impossibilidade do cumprimento da generalidade das obrigações vencidas. (…). Temos, assim, com clareza, verificada situação fáctica subsumível ao disposto na alínea b) do nº1 do art. 20º do CIRE.[19]
No confronto com a definição e pressupostos da situação de insolvência resulta à evidência a impertinência jurídica e, por isso, a absoluta inutilidade na apreciação do mérito do pedido de insolvência, apurar a composição do agregado familiar do devedor, os rendimentos auferidos pelos elementos que o integram e, mais especificamente, o concreto montante auferido pelo devedor se, qualquer um dos alegados, não for suficiente para, de uma só vez e sem prejuízo da preservação do necessário para assegurar a subsistência digna do devedor e dos que de si dependem, proceder ao pagamento das suas dívidas vencidas e atalhar à situação de mora no seu cumprimento.
As questões de facto suscitadas pelo recorrente apenas terão a virtualidade de relevar no incidente de exoneração do passivo restante, mais propriamente, na fixação do montante dos rendimentos a excluir da cessão, sendo certo que mesmo neste âmbito não se chega ao cúmulo de admitir a discussão do montante de cada um dos encargos tidos como normais à subsistência de cada um pois, neste particular, tendo por base o principio constitucional da dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1° da Constituição da República Portuguesa), que se impõe interpretar e integrar de acordo com o direito de toda a pessoa “a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários (...)[20], ao remeter para o critério do salário mínimo nacional[21] [22] o legislador dispensou [o] tribunal de proceder à análise e ponderação das despesas do devedor, avaliando a sua necessidade ou pertinência, demonstrada através de comprovativos como faturas de água, gás ou electricidade, talões de supermercado e afins, o que se traduziria numa intromissão na vida privada.[23]
De todo o exposto resulta que, à mingua de outra factualidade com pertinente adequação lógico-jurídica para demonstrar a alegada solvabilidade do devedor, permanecem inteiramente pertinentes os factos alegados pelo devedor e considerados em sede de sentença de insolvência e sentença de embargos como fundamento da situação de insolvência e de improcedência dos embargos, pois revelam e continuam a revelar incontestável impossibilidade do devedor de cumprimento voluntário de dívidas vencidas por ausência de liquidez para o fazer, votando à improcedência os recursos aqui apreciados.

V–Decisão

Em face de todo o exposto, acordam as juízas desta secção em julgar as apelações totalmente improcedentes, com consequente manutenção das decisões recorridas, de declaração de insolvência de L e de improcedência dos embargos que contra esta foram deduzidos.

Vencido nas apelações, as custas de ambos os recursos recaem sobre o recorrente (cfr. art. 527º, nº 2 do CPC).



Lisboa, 20.06.2023


Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso



[1]Diploma a que pertencem todas as normas citadas sem outra indicação expressa.
[2]Veja-se a excecional admissibilidade de apensação de procedimentos especiais de revitalização prevista pelo art. 17º-C, nºs 10 e 11, e de processos de insolvência prevista pelo art. 86º, que é reforçada pelo elemento histórico fornecido pela previsão do art. 1º, nº 3 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (dispunha que “Sem prejuízo dos efeitos patrimoniais da existência de personalidade jurídica distinta, é permitida a coligação activa ou passiva de sociedades que se encontrem em relação de domínio ou de grupo, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ou que tenham os seus balanços e contas aprovados consolidadamente.).
[3]Estabelece o seu nº 1 que “Incorrendo ambos os cônjuges em situação de insolvência, e não sendo o regime de bens o da separação, é lícito aos cônjuges apresentarem-se conjuntamente à insolvência, ou o processo ser instaurado contra ambos, a menos que perante o requerente seja responsável um só deles.
[4]Sendo que se nos afigura juridicamente óbvio que o litisconsórcio necessário sequer seria equacionável face ao objeto do processo de insolvência – de recuperação ou de liquidação do ativo e do passivo do devedor – e aos pressupostos previstos pelo art. 30º do CPC.
[5]Sendo certo que, como o recorrente bem sabe, perante si o devedor é responsável pela totalidade da indemnização, e que esta integra o passivo do devedor pelo montante que em cada momento falte pagar ao recorrente, independentemente de aquele poder vir ou não a exercer direito de regresso sobre o co-responsável pela indemnização.
[6]Nesse sentido, acórdão da RC de 06.12.2016, proc. nº 1414/15.77T8ACB-D.C1.
[7]Processo nº 6000/11.8TBLRA-C.C1, disponível na página da dgsi, como todos os demais que se citam sem indicação de outra fonte.
[8]Ac. RL de 04.10.68, Jurisprudência das Relações, 14º, 568, apud Fernão Fernandes Thomaz e António Colaço Canário, in O Objeto do Recurso em Processo Civil, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bfa0c2156-0c4c-4ea9-b86b-7d8ca606ed43%7D.pdf
[9]Fernão Fernandes Thomaz e António Colaço Canário, obra cit.
[10]Prejudicada quanto aos embargos na medida em que foram julgados de mérito pela instância recorrida após citação e realização de audiência de julgamento.
[11]Nesse sentido, acórdão desta secção de 22.03.2022, relatado por Isabel Fonseca no proc. n.º 11437/21.1T8LSB-B.L1 e subscrito como adjunta pela aqui relatora, não publicado, assim sumariado: 3. Se os factos novos invocados pela embargante na petição inicial não são de molde a afastar o juízo proferido na sentença impugnada, que declarou a situação de insolvência da requerida devedora, ponderados à luz de qualquer dos critérios enunciados no art. 3.º do CIRE, nem suportam o afastamento do facto-índice previsto no artigo 20.º, n.º 1, b) do mesmo diploma, que aí se considerou verificado, justifica-se o indeferimento liminar dos embargos com base na sua manifesta improcedência.
[12]Como se referiu, qualquer uma das versões do montante do rendimento mensal do devedor alegadas e fixada nos autos é inferior ao montante das dívidas do devedor.
[13]Consta da sentença de insolvência que “Assim, atento o montante dos rendimentos auferidos pelo Requerente, o valor do seu património e o montante das suas dívidas, verifica-se que o mesmo se encontra impossibilitado de cumprir as obrigações vencidas a que se encontra vinculado, importando por isso concluir estarem no caso reunidos os pressupostos necessários para a declaração da sua insolvência.
[14]Abrange quer as insolvências fortuitas, quer as criadas ou agravadas com culpa do devedor (cfr. art. 186º), o que não obsta à declaração da insolvência, refletindo-se apenas na qualificação da insolvência e, tratando-se de insolvência de pessoas singulares, no pedido de exoneração do passivo restante que por elas tenha sido deduzido (cfr. art. 238º, nº 1, al. e).
[15]Nesse sentido, Luis Menezes Leitão, Direito da Insolvência, p. 77.
[16]Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I, Quid Juris, 2005, pág. 69, nota 3; no mesmo sentido vd. Ac. RL de 19.06.2008, disponível no site da dgsi.
[17]Nesse sentido, Alberto dos Reis, citando acórdão do STJ de 29.10.1918, pelo qual se [d]ecidiu que pode ser declarada a falência ainda que seja uma só a obrigação que o comerciante deixou de pagar; e acórdão do STJ de 11.10.1927, que [d]eclarou que não pode a priori estabelecer-se se basta a falta de pagamento duma obrigação, se é necessária a falta de pagamento de várias; há que atender às circunstâncias. (Processos Especiais, vol. II, pág 323).
[18]Processo nº 145/21.3T8BRR.L1, não publicado.
[19]Processo nº 33/20.0T8FNC.L1, não publicado.
[20]Art. 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
[21]Dispõe o art. 239°, n° 3, al. b) do CIRE que Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (...) com exclusão (...) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) (…).
[22]O salário mínimo nacional, atualmente com a designação de retribuição mínima mensal garantida, corresponde atualmente à expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio-económico do período temporal para o qual é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna e que, por isso, não poderá deixar de ser considerado como referência obrigatória na tarefa de quantificação do rendimento a excluir da cessão determinada pelo incidente da exoneração do passivo restante durante o período ‘de provação’. Nesse sentido, entre outros, acórdão do STJ de 02.02.2016, proc. nº 3562/14.1T8GMR.G1.S1, e acórdão da RC de 06.07.2016, proc. n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1, ambos disponíveis na página da dgsi.
[23]Cláudia Oliveira Martins, in Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p. 222