Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1873/16.0T8TVD.L1-3
Relator: A. AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO AMBIENTAL
EMBARGO DE OBRA EM ZONA PROTEGIDA
PRINCÍPIO “NON BIS IN IDEM”
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: 1. Levantado um auto de contra-ordenação contra o arguido, por realização de obra em zona protegida e tendo a entidade administrativa (Agência Portuguesa do Ambiente, IP) embargado a obra, em caso de incumprimento do embargo por parte do embargado, não pode a aquela entidade levantar novo auto de contra-ordenação, por continuação daquela mesma obra.

2. Tendo abusivamente o arguido continuado a obra em causa, seria subsidiariamente aplicável ao caso, o disposto no artº 420º do cód. procº civil, por força do artº 4º do cód. procº penal, que prevê situações como a ocorrida e determina o caminho a seguir, para além de fazer incorrer o visado no crime de desobediência.

3. Transitada em julgado, aquela decisão, a coima e a sanção acessória tornaram-se exequíveis, cumprindo a quem de direito ordenar a sua execução.

4. O segundo auto de contra-ordenação incidiu sobre os mesmos factos, em sentido amplo (ou seja sobre a mesma obra mas em fase distinta) e sobre o mesmo agente, tendo deste modo sido violado o princípio “non bis in idem”, constitucionalmente consagrado no artº 29º nº 5 da CRP, que se interliga com a excepção do caso julgado, formal e material.

5. O princípio “non bis in idem”, como exigência da liberdade do indivíduo, impede que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.

(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Por decisão administrativa da Agência Portuguesa do Ambiente, IP, foi o arguido O. D. S. G., titular do NIF (…) condenado pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81º, nº 3, al. a) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31.05, punível nos termos da al. a) do nº 4 do artigo 22º da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção actual, no pagamento de uma coima no valor de € 45.000,00, acrescida de custas e ainda na sanção acessória de demolição/ remoção das construções efectuadas no local, sito na Rua (….), Porto Novo, Maceira, com vista à reposição da situação anterior à infracção e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma, no prazo de 45 dias úteis, nos termos da alínea j) do nº 1 do artigo 30º da Lei 50/2226, de 29.08, na redacção conferida pela Lei 114/2015, de 28.08.
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Inconformado com a decisão proferida, o arguido, impugnou judicialmente, aquela decisão administrativa ao abrigo do disposto no artº 59º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, sendo o recurso recebido, autuado com o Nº 1873/16.0T8TVD e julgado pelo Juízo Criminal de Torres Vedra, Comarca de Lisboa Norte, o qual veio a decidir nos seguintes termos:
-         «Face ao exposto e pelos fundamentos expendidos, julgo parcialmente procedente o recurso apresentado pelo Arguido O. D. G. e, em consequência, decido alterar a decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, IP, condenando o Recorrente, pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81º, nº 3, al. a) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31.05, punível nos termos da al. a) do nº 4 do artigo 22º da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção actual:
a)  No pagamento de uma coima no valor de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros); e
b)    Na sanção acessória de demolição/remoção das construções efectuadas no local, sito na Rua …., Porto Novo, Maceira, com vista à reposição da situação anterior à infracção e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma, no prazo de 45 dias úteis, nos termos da alínea j) do nº 1 do artigo 30º da Lei 50/2226, de 29.08, na redacção conferida pela Lei 114/2015, de 28.08, suspensa na sua execução, pelo período de 2 (dois) anos, suspensão essa condicionada à obrigação do Arguido, no prazo da suspensão, obter o respectivo título para utilização dos recursos hídricos no local onde realizou as construções em causa nos autos, ou, não sendo tal legalmente possível, comprovar nos autos todas as diligências encetadas tendentes a tal fim, comprovando que a não obtenção de tal título a si não lhe pode ser imputada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s - artigo 8º, nº 5 do RCP e Tabela III, anexa ao mesmo».
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Inconformado com a decisão judicial supra, recorreu o arguido O. D. S. G., nos termos de fls. 96 a 108, pugnando pela revogação da decisão recorrida, terminando com as seguintes conclusões:

«1.     O recorrente foi julgado na sequência da impugnação de processo contra-ordenacional instaurado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA, IP) em FEV2016;

2.         Neste processo estava em causa a realização de obras sem autorização e a ocupação de solo em área sujeita ao domínio público marítimo;

3.         Anteriormente, em 2015, já a APA (IP) havido iniciado um outro processo de contra-ordenação, na sequência da remoção do coberto vegetal, remoção de terras e construção de muro em betão e estrutura de piscina em betão armado, com ocupação de solo sujeito ao domínio público marítimo sem a devida autorização;

4.        Ambos os processos referem-se à mesma obra, no mesmo local, na mesma área e contra o mesmo agente;

5.         Ambos os processos correram paralelamente;

6.         O processo de 2015 já transitou em julgado;

 7.        Resulta da experiência comum que as obras de construção civil são marcadas por etapas, da preparação do terreno até à conclusão dos trabalhos;

8.         O processo de 2016 refere-se a obras que são a continuação natural e decorrente das obras mencionadas e condenadas no processo de 2015;

9.         Com a instauração do procedimento de 2015 e até decisão final, o ora recorrente não estava impedido de continuar os trabalhos;

10.      Com a presente sentença o recorrente foi condenado pela segunda vez por factos relacionados com a mesma obra, no mesmo local, praticados pelo mesmo agente e já transitados em julgado;

11.      Contrariamente à experiência comum e em erro notório, o tribunal recorrido entendeu que se trata de factos diferentes, sendo que tal entendimento permitiria assim múltiplas e contínuas condenações durante a realização da mesma obra.

12.     Entende o recorrente que, tratando-se sempre da mesma obra, no mesmo local e do mesmo agente, a que acresce um já ter havido condenação transitada em julgado, a presente sentença viola o artigo 29º, nº 5 da Constituição.

Nestes termos e nos demais de Direito, deverá assim esse Tribunal da Relação concluir pela revogação da sentença em causa, por violação do artigo 29º, nº 5 da CRP e, como alegado, ser decretada a absolvição do recorrente, com todos os feitos legais».

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O Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância contra alegou, nos termos de fls. 112 a 117 e sem articular conclusões, defendeu a improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.

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Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o Douto Parecer de fls. 125 a 142, tendo concluído pela procedência do recurso, por alegada violação do princípio non bis in idem, face a anterior condenação por factos idênticos.

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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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FUNDAMENTOS

O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[1].

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Objecto do recurso

Embora o recorrente aponte no início do recurso para o chamado “erro notório na apreciação da prova” (artº 410º nº 2 al. c) do cód. procº penal), a única questão a apreciar extraída das conclusões do recurso interposto consiste em apurar se estamos perante uma situação de caso julgado e por consequência de violação do princípio non bis in idem ou se ao invés estamos perante situação factual nova, face à anterior condenação administrativa transitada em julgado.

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FACTOS PROVADOS
Foram dados como provados os seguintes factos:
1.         No dia 4 de Fevereiro de 2016, pelas 11h00, na Rua …., Porto Novo, Maceira, Torres Vedras, O. D. S. G. tinha procedido à realização das seguintes obras de construção civil, de carácter fixo, em área abrangida pelo regime jurídico do Domínio Público Marítimo e do Plano de Ordenamento da Orla Costeira Alcobaça-Mafra:

-          construção de um piso inferior em alvenaria, tipo cave, com cerca de 80 m2, ocupando a zona do logradouro;

-         construção de edificações no piso superior em alvenaria, com pelo menos 50m2, ocupando a zona do logradouro;

 -          construção de uma caixa e poço para aplicação de um elevador panorâmico, agregado à fachada lateral do edifício já existente, com 12,86 m de altura e uma área base de 3,3 m2;

2.        A ocupação total situada em área classificada com estatuto de protecção especial, perfaz aproximadamente 150m2;

3.         O responsável pelas obras era o Recorrente O. D. S. G.;

4.         As obras descritas foram efectuadas sem a respectiva autorização da APA, IP;

5.         No início de Maio de 2015, a fiscalização da DOLMT – Caldas da Rainha, de passagem pelo local, ao suspeitar de movimentações de maquinaria pesada abordou o Recorrente sobre a sua actuação e informou-o de que aquela zona estava designada com estatuto de protecção especial, assim como, dos contratos dos serviços da APA, IP, para que os consultasse em caso de dúvida ou para qualquer esclarecimento;

6.        Foi instaurado ao Recorrente um processo de contra-ordenação com nº DJUR.DCCO.00292.2015, desencadeado pelo Auto de Notícia nº 13/2015, pelos factos verificados a 17 de Junho de 2015, pelas 15h00, no mesmo local destes autos, que consistiram no seguinte:

-          destruição e remoção do coberto vegetal naturalmente existente, numa área aproximada de 200m2;

-         escavações do monte e remoção de terras, numa área com proximamente 150m2; o talude vertical resultante do corte do monte ficou com cerca de 5m de altura a um angulo de praticamente 90º;

-          construção de um muro de vedação em betão armado, com cerca de 3m de altura, numa extensão total de 40m lineares;

-         construção da estrutura de uma piscina em betão armado, com aproximadamente 30 m2;

7.        O Arguido, após a recepção do ofício de notificação nº SO34747-ARHTO.DOLMT e tendo já conhecimento do processo de contra-ordenação em curso, solicitou em Julho de 2015 uma reunião na sede da DOLMT - Caldas da Rainha, onde foi mais uma vez inteirado dos factos;

8.         O Arguido foi notificado do mandado de notificação no dia 04 de Novembro de 2015, através do ofício nº SO55570-201509-DJUR, datado de 02.11.2015;

9.         Este processo de contra-ordenação foi decidido a 08.03.2016, onde o Arguido foi condenado pela prática da contra-ordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 81º, nº 3, al. a) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31.05, no pagamento de uma coima de € 32.000,00, numa sanção acessória de demolição/remoção das construções efectuadas no local, com vista à reposição da situação anterior à infracção e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma, no prazo máximo de 45 dias úteis e por último nas custas do processo;

10.      O Arguido foi notificado daquela decisão em 10.03.2016, não a tendo impugnado, tendo a mesma transitado em julgado em 08.04.2016;

11.     O Arguido executou novamente obras, apesar de já ter sido informado pelos funcionários da APA, IP da necessidade de obtenção do título para as executar e de ter sido notificado de que se encontrava a correr um processo de contra-ordenação contra ele;

12.      Previu a possibilidade da sua actuação ser ilícita e não obstante isso, concluiu as obras por lhe ser indiferente a falta de título e com tal resultado se conformou;

13.      O Arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

14.     As obras realizadas pelo Arguido foram para beneficiar as infra-estruturas do seu Hostel “West Beach Hotel”, sendo que no local era já desenvolvida a actividade de pensão/residencial;

15.     Esta pensão/residencial encontrava-se em decadência, com o edifício degradado, com mau aspecto em termos de edificação e com reduzida afluência;

16.      Ao investir no projecto turístico, que a Junta de Freguesia viu com bons olhos, o Arguido criou postos de trabalho (entre 4 a 8 postos de trabalho, dependendo da época), tanto permanentes como temporários e que de outra forma não existiriam, participando no desenvolvimento económico da região e renovando e melhorando a capacidade hoteleira da zona de Maceira – Porto Novo;

17.     Em resultado do investimento, o que era um edifício degrado é hoje uma unidade hoteleira moderna e atraente, reabilitando o imóvel e a sua envolvência;

18.     Os terrenos onde foram realizadas as obras eram zonas degradadas e há muitos anos abandonadas, habitualmente usadas como depósitos de lixos, restos de obras e entulhos, estando cobertas de mato e vegetação seca;

19.     O Arguido, a expensas suas, limpou os terrenos em causa e removeu os lixos e entulhos de obras, velando para que toda aquela área se mantivesse limpa, arranjada e com potencial turístico;

20.     Tem conseguido que o empreendimento seja frequentado por turistas, que visitam a zona e ali se fixam alguns dias, com acréscimo de receitas para a freguesia e para o concelho de Torres Vedras;

21.      Receitas essas que de outro modo não se verificariam;

22.     A actividade turística desenvolvida pelo Arguido é recente e resultou de um investimento avultado que só terá retorno dentro de anos;

23.     De modo a realizar o investimento, o Arguido esgotou a sua capacidade financeira e as suas poupanças, contratando um empréstimo bancário;

24.      A aplicação de uma coima no valor que foi aplicado determinará o encerramento da unidade turística a breve trecho;

25.     Está em curso processo de revisão dos instrumentos legais de gestão e ordenamento do território e do litoral da região em causa, prevendo-se que ainda no corrente ano esteja aberto para discussão pública, pretendendo-se com tal revisão, designadamente, regularizar e normalizar situações de facto que se arrastem há anos e que são desconformes com as normas em vigor;

26. A propriedade do imóvel onde foram realizadas as obras encontra-se inscrita na matriz predial urbana a favor de Duarte Fontes Garcia, sendo este o titular da licença emitida pela Câmara Municipal de Torres Vedras para exploração de estabelecimento residencial, mediante despacho de 16.09.1996.

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Factos Não Provados:

1.         Foram de 100 m2 as edificações do piso superior;

2.         Foi de 200m2 a ocupação total situada em área classificada com estatuto de protecção especial;

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Motivação da decisão de facto pelo tribunal “a quo:

«Quanto aos factos provados:

A fim de formar a sua convicção, o tribunal baseou-se na análise ponderada e crítica do conjunto de toda a prova produzida, de molde a reconstituir a factualidade ora em causa.

Em primeiro lugar, quanto aos factos objectivos que se deram como provados (factos nºs 1, 2, 3 e 4) o tribunal considerou as declarações do próprio Arguido, que admitiu os factos em causa.

Por seu turno, tais factos foram ainda confirmados pela testemunha Edgar T. M., o técnico superior da APA, IP, que elaborou o Auto de Notícia em causa nos autos e que procedeu à operação de fiscalização subjacente a estes autos, bem como a outras operações de fiscalização realizadas ao mesmo local.

O seu depoimento revelou-se inteiramente credível. Revelou um conhecimento privilegiado em relação aos factos, evidenciando uma memória avivada acerca do sucedido, detalhando as situações, com o rigor e precisão apenas possíveis por quem, efectivamente, experienciou o que estava a relatar.

O seu depoimento demonstrou-se ainda isento. Efectivamente, para além de uma postura visivelmente calma, espontânea e assertiva, a testemunha apresentou um discurso coerente, não apenas ao longo de todo o seu discurso, mas com outros meios de prova e objectivo, nunca evidenciando pretender prejudicar o Arguido a qualquer custo, que não apenas relatar o sucedido, informando tanto acerca de factos favoráveis, como desfavoráveis ao Arguido.

A sua honestidade intelectual foi ao ponto de mencionar que o Recorrente sempre se mostrou simpático, nunca tendo obstado à realização das funções que lhe eram inerentes, sendo cooperante, confirmando o teor do facto provado sob o nº 25, no sentido de que está em curso a revisão do POC e afirmando, sem qualquer inibição que as obras a que se alude no primeiro processo de contra-ordenação instaurado contra o Arguido foram feitas no mesmo local a que se alude nestes autos.

Nessa base e também com base nas declarações do Recorrente, compaginados tais meios de prova com o teor dos documentos juntos nos autos a fls. 5, 8-12, 13, 14, 15-16, o tribunal deu como provados os factos nºs 5 a 11, respeitantes aos factos atinentes ao primeiro processo contra-ordenacional.

Quanto ao elemento subjectivo que se deu como provado (nºs 12 e 13), tal resulta directamente da factualidade objectiva dada como provada, que indicam que o Arguido dispunha de todos os elementos necessários para ter conhecimento do desvalor da sua conduta e ainda assim não se absteve de proceder nos moldes em como procedeu, sendo certo que tais actuações são actuações do domínio humano, nada tendo que ver com actuações reflexas ou inconscientes.

Quanto à demais factualidade (factos nºs 14 a 24), para além das declarações do Arguido, as quais mereceram credibilidade, porque prestadas de forma serena, genuína, gesticulando enquanto falava, não apresentando latências de relevo na resposta às perguntas colocadas e não apresentando igualmente contradições nas suas declarações, nada indiciando que estivesse a faltar à verdade, para além dessas declarações, dizíamos, o tribunal considerou também os depoimentos das seguintes testemunhas, que, por merecerem credibilidade, também serviram para que o tribunal atentasse para aquelas primeiras declarações do Recorrente como autênticas:

-          Ana C. A. M., presidente de Junta e amiga de infância do Recorrente, a qual assentou a sua razão de ciência no facto de conhecer bem o local em questão e as consequências, em termos turísticos, que o investimento teve, até devido às funções que desempenha;

-          Vânia F. M., trabalhadora do empreendimento turístico em causa, há cerca de 3 anos;

-          Luís F. M. G., urbanista na camara Municipal da Lourinhã e amigo do Recorrente, o qual também conhece a zona em causa.

De referir que as testemunhas se apresentaram credíveis ao tribunal, nunca se coibindo de mencionar desconhecer acerca de determinado facto, quando tal sucedia, mesmo que tal facto fosse favorável ao Recorrente, apresentando uma postura calma, objectiva, descontraída, sem quaisquer contradições entre si.

Finalmente, quanto à propriedade do imóvel e titularidade da licença sanitária (facto nº 25), o tribunal considerou o teor dos documentos de fls. 39 e 40.

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Quanto aos factos não provados:

O tribunal, no que tange aos factos não provados, considerou as declarações do Arguido, que mereceram credibilidade, nos termos já explorados supra, não se vislumbrando porque motivo o Arguido confessaria as obras realizadas em causa e colocasse em causa apenas a dimensão da construção de edificações no piso superior, se tal situação não estivesse realmente incorrecta.

Por seu turno, nessa parte e ao contrário dos demais factos por si atestados, a testemunha Edgar T. M. não se mostrou taxativo relativamente à concreta dimensão das obras em causa nesta segunda situação».

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DIREITO

A questão fundamental consiste em apurar se estamos perante uma situação de caso julgado e por consequência de violação do princípio non bis in idem ou se ao invés estamos perante situação factual nova, face à anterior condenação administrativa transitada em julgado.

A sentença recorrida teve por base o processo de contra-ordenação instaurado pela Agência Portuguesa do Ambiente (IP) em 04FEV2016 e com o nº DJUR.DCCO.00025.2016, devido à realização de obras de ampliação e modernização em terreno anexo a hotel que explora, cuja área se encontra sujeita às regras do domínio público marítimo, sem a devida autorização da APA (IP).

Em consequência foi-lhe aplicada a coima no valor de 45.000 euros e, como sanção acessória, a demolição/remoção de construções efectuadas em Porto Novo, Maceira, Torres Vedras.

Tais obras compreendiam:

-         “Construção de um piso inferior em alvenaria, tipo cave, com cerca de 80 m2, ocupando a zona do logradouro;

-     Construção de várias edificações no piso superior em alvenaria, com cerca de 100 m2, ocupando a zona do logradouro;

-         Construção de uma caixa e poço de elevador panorâmico, agregado à fachada lateral do edifício já existente, com uma área base de 3,3 m2”.

Importa salientar que à data em que foi instaurada a contra-ordenação objecto deste recurso (04.02.2016), corria termos um outro processo contra-ordenacional, também instaurado pela APA (IP) em 30JUN2015, a que foi atribuído –o nº DJUR.DCCO.00292.2015.

Neste processo o recorrente foi acusado de, sem autorização da APA (IP), ter procedido às seguintes obras no mesmo local e área sujeita às regras do domínio público marítimo:

-  “Destruição e remoção do coberto vegetal naturalmente existente, numa área aproximada de 200 m2;

-          Escavação do monte e remoção de terras, numa área com aproximadamente 150 m2;

-          Construção de um muro de vedação em betão armado, numa extensão de 40 m lineares;

-         Construção de uma estrutura de uma piscina em betão armado, com aproximadamente 30 m2”.

Neste processo de 2015, foi o arguido/recorrente condenado por decisão de 08.03.2016 na coima de 32.000 euros e na sanção acessória de demolição/remoção das construções efectuadas, tendo transitado em julgado em 08.04.2016.

No processo contra-ordenacional de 2016 os próprios autuantes reconhecem que, “em ambas as situações estão em causa obras no mesmo local, com a mesma finalidade e efectuadas pelo mesmo arguido”.

A sentença recorrida entendeu que a ocupação da “zona do logradouro e a construção de um piso inferior tipo cave e de um piso superior, naquele espaço”, nada tem a ver com a “remoção do coberto vegetal, escavações, remoção de terras e construção de muro de vedação”, considerando-as obras diferentes e por consequência factos contra-ordenacionais distintos, afirmando que “não há continuidade entre eles nem se podendo reduzir as condutas a um único desvalor, a uma unidade ilícita, pelo que o princípio constitucional do artigo 29º, nº 5 da CRP não terá aqui aplicação”.

Do que nos é dado conhecer do processo em recurso, bem como os factos a que se alude, referentes à contra-ordenação anterior afigura-se-nos que o recorrente terá razão em invocar o caso julgado e por consequência a violação do denominado princípio non bis in idem, com manifesta ofensa do disposto no artº 29º nº 5 da CRP.

Tudo indica da factualidade provada que a conduta do arguido tem na sua génese a realização de uma única obra – melhoramento de uma unidade hoteleira – sendo esta, como todas as obras uma tarefa a realizar por etapas necessárias. Como sejam, a preparação dos terrenos, as fundações, a construção das paredes estruturais e os acabamentos. É uma única obra que está em causa, realizada por etapas.

É manifesto que ao recorrente se impunha ter parado os trabalhos logo que foi notificado e ficou ciente de que a mesma não era legalmente permitida pela Agência Portuguesa do Ambiente.

Dolosamente não cumpriu a decisão da contra-ordenação anterior, continuando a obra como se “as ordens legitimamente emanadas de autoridade competente” não fossem para cumprir.

Agiu mal a autoridade administrativa ao levantar outro auto de contra-ordenação pelos mesmos factos anteriores (e/ou continuação deles), pois tinha apenas que aguardar pelo trânsito em julgado da decisão anterior que determinou, além da coima de 32.000 €, a sanção acessória de demolição e remoção das construções efectuadas e caso incumprisse como se verificou, remeter os factos ao Ministério Público para eventual procedimento pelo crime de desobediência e determinar a execução da sanção acessória que se tornou exequível com o trânsito em julgado daquela primeira decisão.

A entidade administrativa bem como o tribunal recorrido não tiveram em conta a norma subsidiariamente aplicável por força do artº 4º do cód. procº penal, prevista no artº 420º do cód. procº civil que prevê situações como a ocorrida em que abusivamente o visado não respeita a ordem de suspensão da obra:

«1.      Se o embargado continuar a obra, sem autorização, depois da notifição e enquanto o embargo subsistir, pode o embargante requerer que seja destruída a parte inovada.

2.        Averiguada a existência de inovação, é o embargado condenado a destruí-la; se não o fizer dentro do prazo fixado, promover-se-á, nos próprios autos, a execução para a prestação de facto devida”.

É claro que não estamos perante um embargo civil, mas a analogia não pode deixar de ser tida em conta. Ao contrário do que refere o recorrente, de que “não ficou proibido de continuar a obra”, é manifesto que tal apelo não colhe, dado que o mesmo foi notificado da proibição e sabia que não tinha autorização para realizar a obra visada e por consequência deveria cessar os trabalhos, o que não fez, fazendo eventualmente tal acto incorrer o recorrente noutro ilícito criminal distinto, o crime de desobediência.

Acresce referir que, tendo aquela primeira decisão transitado em julgado, a coima e a sanção acessória tornaram-se exequíveis, cumprindo a quem de direito ordenar a sua execução.

O segundo auto de contra-ordenação incidiu sobre os mesmos factos, em sentido amplo (ou seja sobre a mesma obra mas em fase distinta) e sobre o mesmo agente.

Tendo o arguido desrespeitado a primeira decisão administrativa, havia como reagir a tal conduta, sem ser através do levantamento de novo auto.

Diz-nos o artº 29º, nº 5 da CRP:

           

-         «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», (neste caso contra-ordenação), consagrando esta norma ao mais alto nível legislativo o conhecido princípio oriundo do direito romano do “non bis in idem” [2], que se interliga com a excepção do caso julgado, formal e material.

Com efeito a excepção do caso julgado materializa o disposto no art. 29º, nº 5 da CRP quando estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória finda, sendo um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material)[3].

A proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.

“Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural”, Cfr. Ac. TRL de 13.04.2011, in www.dgsi.pt.

O conceito romano de jurisdição “quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit” visava por fim a eventuais controvérsias com o pronunciamento do Juiz, tornando a sentença ou decisão imutável e irrevogável, (exceptuando-se naturalmente os casos expressamente previstos na lei).

Para que tal excepção se verificasse, os factos constantes de um e outro processo, teriam que ter por objecto o mesmo comportamento atribuído anteriormente, (identidade de objecto - eadem res), ou seja uma entidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída.

Não basta haver identidade da pessoa, tem que existir identidade do facto no espaço e no tempo.

Como facilmente se alcança da informação contida nestes autos, na sentença objecto deste recurso, o tribunal “a quo” condenou o arguido por factos que integradores da mesma obra iniciada e ilegalmente continuada.

Há uma clara identidade fáctica como se verifica. Estamos perante condutas que tipificam o mesmo ilícito, cometidas em momentos distintos, mas obedecendo ao mesmo desígnio contra-ordenacional.

O princípio non bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, impede que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos[4].

«A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal” – cfr. Ac. TRL supra citado.

Não nos restam quaisquer dúvidas de que a questão suscitada viola o princípio citado e por consequência o recurso terá de proceder.

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DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e absolver o arguido do delito contra-ordenacional que lhe foi imputado, por violação do princípio “non bis in idem”

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Sem custas.

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Lisboa 27 de Setembro de 2017

A. Augusto Lourenço

João Lee Ferreira

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[1] - Cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, n.º 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) todos do cód. procº penal; acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271.
[2] - Non bis in idem” que significa literalmente “não duas vezes pela mesma coisa”.     

[3] - Cfr. Ac. Trib. Rel. Lisboa, de 13.04.2011 e disponível em www.dgsi.pt/trl
[4] - Em situações similares se pronunciaram os Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto, em 25/05/2011; e, em 27/11/2013, ambos disponíveis em www.dgsi.p/trp. Assim nos pronunciámos em Acórdão por nós relatado no processo nº 995/13.4TAVFR.P1, datado de 20.05.2015, do Tribunal da Relação do Porto.