Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7423/2006-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: I - A reforma adjectiva de 95 veio privilegiar os aspectos de ordem substancial em detrimento das questões de naturêza meramente formal, de que é corolário o princípio da adequação formal (artº 265º-A do CPC) e daí que se aceite não haver obstáculo à correcção oficiosa da forma incidental desde que, obviamante, o respectivo requerimento comporte os elementos fundamentais da forma incidental que se mostre adequada.
II - Ainda que titular de um direito de indemnização contra terceiro, tal não basta ao réu para fazer intervir este acessoriamente nos autos, pois exige ainda a lei (artº 331º, 2 do CPC) a existência de uma relação de conexão entre o objecto da acção pendente e o da acção de regresso, no entendimento de que tal conexão será de configurar quando a relação controvertida surgir como questão condicionante ou prejudicial à existência do invocado direito de regresso.
III - Sendo o destino do mútuo o pagamento do preço de um bem fornecido ou vendido, é natural que exista sempre uma qualquer união entre esse contrato e o contrato de compra e venda que está na sua génese negocial e, por isso, o disposto no nº 1 do art. 12º do DL 359/91 faz depender a validade e eficácia do contrato de compra e venda da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e vendedor na preparação ou conclusão do contrato de crédito, sem que tal perda de autonomia signifique que, para lá dessa relação de dependência, não continuem a aplicar-se a cada um dos contratos as regras que lhe são próprias.
(CV)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

A, SA, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B e mulher, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe a importância de € 13.609,86, acrescida de € 2,323,26 de juros vencidos até à data da propositura da acção -25-08-2003 -, de € 92,93 de imposto de selo sobre estes juros e ainda os juros que sobre a dita quantia de € 13.609,86 se vencerem, à taxa anual de 23,25%, desde 26-08-2003 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à taxa de 4%, sobre estes juros recair, suportando este pedido na resolução por incumprimento do R. marido de um contrato de mútuo, com vista à aquisição de um veículo automóvel em proveito comum do casal.

Citados, os RR. contestaram e, começando por requerer a intervenção provocada da X, Ldª, que incumpriu o contrato de compra e venda outorgado com o R. marido e que teve como objecto o veículo cuja aquisição foi financiada pela A., arguíram a ilegitimidade passiva da Ré mulher e deduziram reconvenção, pedindo a resolução daquele contrato de compra e venda, por incumprimento da chamada e a condenação desta a restituir ao R. marido todas as quantias que lhe pagou, no montante de € 3.242,00, todas as prestações pagas à A., no total de € 10.407,54, o montante pago para as despesas de transferência de propriedade e os respectivos juros legais, contados desde o pagamento pelo R. marido de tais importâncias até integral restituição.
Por último, invocando a anulabilidade do contrato de mútuo ajuizado, peticiona que esta seja declarada, devendo, em consequência ser devolvidas ao R. marido todas as prestações pagas à A. e os valores pagos à chamada, com juros, à taxa legal, desde a respectiva data de pagamento até integral restituição, prontificando-se o R. marido a entregar a viatura à chamada.

Após resposta da A., foi deferido o pedido de intervenção principal da supra referida X, Ldª, e ordenada a citação desta, tendo desta decisão a A. interposto recurso, admitido como sendo de agravo e subida diferida.

Proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual se conheceu e desatendeu a alegada excepção de ilegitimidade da Ré mulher, a que se seguiu o despacho de condensação, que foi objecto de reclamação, sem êxito, por parte da chamada.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente e parcialmente procedente a reconvenção, absolveu os RR. do pedido formulado pela A. e, declarando resolvidos os contratos de compra e venda e de mútuo ajuizados, condenou a chamada a restituir ao R. marido todas as quantias que lhe pagou, no montante de € 3242,00, todas as prestações pagas à A., no total de € 10.407,54, o montante pago para as despesas de transferência de propriedade, a liquidar em execução de sentença, sendo os montantes já liquidados acrescidos de juros legais, contados desde a data da sentença até integral pagamento.

Inconformadas com esta decisão, dela atempadamente apelaram a A. e a chamada.

Nas conclusões do agravo e nas das apelações da sentença, devidamente resumidas - artº 690º, 1 do C.P.C. -, questionam, respectivamente, o agravante a admissibilidade da intervenção principal requerida e ambas as apelantes a sentença na sua versão de direito.

Contra-alegando, os RR. pugnaram pelo desatendimento dos recursos.

Cumpre decidir, atenta a factualidade apurada na instância recorrida e constante da decisão impugnada, para a qual, por não ter sido posta em causa nem haver lugar à sua alteração, se remete, ao abrigo do disposto no nº 6 do art. 713º do CPC, na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12.

Começando pelo conhecimento do agravo (art. 710º, 1 do CPC).
Como no relatório se referiu, os RR. requereram a intervenção provocada da vendedora do veículo financiado, Auto Sueco, Ldª, o que veio a ser deferido pelo despacho de fls. 108, na consideração de que o “chamanento assenta na ocorrência de uma relação negocial tripartida, com incumprimento por parte do chamado e com a alegação de que tal incumprimento desonera o Réu da obrigação de cumprir a prestação, a seu cargo, a favor da Autora”.
De tal dissente a agravante, defendendo que a lei processual não consente a deferida intervenção nos autos da chamada.
É sabido que a reforma adjectiva de 95/96 veio suprimir, em termos de tipificação autónoma, os incidentes anteriores da nomeação à acção, do chamamento à autoria e do chamamento à demanda.
O condicionalismo integrador daqueles três incidentes passou a ter tratamento processual conjunto, integrando-se agora num incidente único, que é o da intervenção provocada - arts. 325º s segs. do CPC.
Contudo, uma distinção se opera na dinâmica do novo incidente: referimo-nos à intervenção principal e à intervenção acessória, a primeira reservada às situações em que está exclusivamente em causa a própria relação jurídica invocada pelo Autor ou em que os terceiros sejam garantes da obrigação a que se reporta a causa principal (é neste quadro que se inserem as situações configuradoras dos antigos incidentes de nomeação à acção e do chamamento à demanda) e a segunda atinente aos casos em que ocorre a existência de uma relação jurídica material conexa com aquela que é objecto da acção (é este o lugar outrora reservado ao chamamento à autoria).
Para além da aglutinação num só instituto dos pressupostos tipificadores daqueles antigos incidentes, a actual intervenção provocada abarca ainda, em resultado do alargamento produzido na esfera da coligação inicial, a possibilidade de intervenção dos destinatários de um eventual pedido subsidiário, a deduzir pelo Autor no âmbito da relação jurídica ajuizada no nº 2 do citado art. 325º.
É certo, por outro lado, que a legitimidade para o chamamento - afora a última situação referida - tanto é conferida ao Autor como ao Réu e, segundo entendemos, também aos próprios intervenientes principais, sendo ainda que os terceiros podem ser chamados a intervir como associados do chamante ou como associados da parte contrária - nº 1 do mesmo preceito.
Desta exposição sumária logo decorre que a actual intervenção provocada prevê um leque multiplicado de situações, quer em termos de pressupostos ou condições de admissibilidade do incidente, quer em termos de escalonamento processual dos agentes entre os quais se vai dirimir o pleito.
Por isso se compreende que, à luz do nº 3 do citado art. 325º, recaia sobre o chamante “o ónus de indicar a causa do chamamento e de explicar o interesse que, através dele, se pretende acautelar, tudo isso como forma de clarificar liminarmente as situações a que o incidente se reporta e de permitir ajuizar com segurança a legitimidade e o interesse em agir, quer de quem suscita a intervenção quer do chamado a intervir” (Abílio Neto, C.P.C. Anotado, 14ª ed., pág. 384).
Conforme resulta do exposto, incumbe ao chamante indicar a causa do chamamento, a qual das partes pretende ver associado o interveniente e qual o interesse que tenciona ver acautelado com essa intervenção.
No caso em apreço, não resulta claro em que lugar pretendem os chamantes/RR. ver colocada processualmente a chamada, se ao lado da A., se ao seu lado, pois, de seguro, o que se retira da sua alegação é que a chamada “é parte interessada”, face ao seu incumprimento do contrato de compra e venda financiado.
Tendo-se presente o condicionalismo legal acabado de enunciar, parece não ser claramente de configurar situação de intervenção principal provocada.
A relação jurídica suportadora do incidente - contrato de compra e venda outorgado pelo R. marido e pela chamada - assume-se como perfeitamente autónomo em relação ao contrato de mútuo ajuizado, a que, juntamente com a sua violação contratual, se atém a causa de pedir nesta acção, não sendo, por isso, de configurar qualquer situação de litisconsórcio, necessário ou voluntário, entre as primitivas partes e a chamada.
Nem os RR. se podem fazer substituir por quem eles pensam que é responsável pelo facto danoso, pois quem quem escolhe os agentes processuais é o autor da acção: por isso, a legitimidade das partes se afere pela forma como ele configura a relação material controvertida.
Por outro lado, na reconvenção que deduziram não evidenciaram qualquer dúvida sobre a respectiva relação jurídica, quer do lado activo, quer do lado passivo, deixando bem claro que o pedido reconvencional apenas envolve a chamada, a quem pretendem responsabilizar pelo seu incumprimento contratual, não se estando, portanto, perante qualquer situação de pluralidade subjectiva ou, minime, de “dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida”.
Sendo de rejeitar a intervenção principal provocada da chamada, será de aceitar a sua intervenção acessória, como parece transparecer do despacho censurando, quando se adianta que “está justificado o interesse no chamamento por parte do Réu”?
A reforma adjectiva de 95 veio privilegiar os aspectos de ordem substancial em detrimento das questões de naturêza meramente formal, de que é corolário o princípio da adequação formal (artº 265º-A do CPC) e daí que se aceite não haver obstáculo à correcção oficiosa da forma incidental desde que, óbviamante, o respectivo requerimento comporte os elementos fundamentais da forma incidental que se mostre adequada.
O incidente que agora nos ocupa visa permitir a participação de um terceiro em relação ao qual o réu possui direito de regresso, para o caso de vir a perder a demanda, sendo de notar que não basta, para justificar a intervenção, um simples direito de indemnização contra o terceiro, já que igualmente se torna necessário que exista uma relação de conexão entre o objecto da acção pendente e o da acção de regresso (arts. 330º, 1 e 331º, 2 do CPC).
Daí que se tenha vindo a entender que a admissibilidade da intervenção provocada acessória (que substituíu o antigo incidente do chamamento à autoria, inspirado na romana litis denuntiatio) de terceiro ao lado do réu, depende forçosamente da articulação de factos que relevem a existência de uma relação jurídica material conexa com a que é objecto da respectiva acção, envolvente do réu e de um terceiro, bem como factos reveladores de que, perdida a demanda, o réu tem direito de regresso contra o terceiro, visando a indemnização pelo prejuízo derivado da perda da acção.
Não é o caso.
Os RR. em parte alguma do seu articulado se referiram ao seu direito de regresso contra a chamada pela perda da demanda, nem adiantaram factos donde tal se possa inferir, antes surgindo a eventual responsabilização da chamada sustentada no seu incumprimento contratual, independentemente dos prejuízos decorrentes daquela perda e tanto assim que contra ela deduziram pedido reconvencional, o que a própria estrutura e escopo finalístico do incidente não lhes permitia, pois a intervenção acessória provocada não permite que o terceiro interveniente assuma a qualidade de parte principal, sendo apenas chamado para auxiliar o réu na sua defesa, limitando tal auxílio à discussão das questões que possam ter repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento e sendo a consequência da omissão deste apenas a eventual sentença de condenação não produzir efeito de caso julgado na acção de regresso (arts. 330º e 332º do CPC).
Tal, extinto que foi o incidente de chamamento à autoria, se mostra claramente justificado no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12/12, onde, nomeadamente, se refere que “relativamente às situações presentemente abordadas e tratadas sob a égide do chamamento à autoria, optou-se por acautelar os eventuais interesses legítimos que estão na base e fundam o chamamento nos quadros da intervenção acessória, admitindo, deste modo, em termos inovadores, que esta possa comportar, ao lado da assistência, também uma forma de intervenção (acessória) provocada ou suscitada pelo réu da acção principal. Considera-se que a posição processual que deve corresponder ao titular da relação de regresso, meramente conexa com a controvertida - invocada pelo réu como causa do chamamento - é a de mero auxiliar na defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual efectivação da acção de regresso pelo réu de demanda anterior, e não a de parte principal: mal se compreende, na verdade, que quem não é reconhecidamente titular ou contitular da relação material controvertida (mas tão somente sujeito passivo de uma eventual acção de regresso ou indemnização configurada pelo chamante) e que, em nenhuma circunstância, poderá ser condenado caso a acção proceda (ficando tão somente vinculado, em termos reflexos, pelo caso julgado, relativamente a certos pressupostos daquela acção de regresso, a efectivar em demanda ulterior) deva ser tratado como parte principal. A fisionomia atribuída a este incidente traduz-se, nesta perspectiva, numa intervenção acessória ou subordinada, suscitada pelo réu na altura em que deduz a sua defesa, visando colocar o terceiro em condições de o auxiliar na defesa, relativamente à discussão das questões que possam ter repercussão na acção de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento".
Por isso, Teixeira de Sousa adianta que o terceiro é, neste incidente, chamado, "para auxiliar o réu na sua defesa e a sua actividade não pode exceder a discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso que fundamenta a intervenção (art. 330°, n° 2). Com este chamamento, o demandado obtém não só o auxílio do terceiro interveniente, como também a vinculação deste último à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 332°, n° 4). Portanto, a intervenção do terceiro não é acompanhada de qualquer alteração no objecto da causa e, menos ainda, de qualquer cumulação objectiva". (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª ed., pág. 179).
E Lopes do Rego refere que "na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexa com a controvertida - e invocada pelo réu como causa do chamamento - é a de mero auxiliar na defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo no improcedência de pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto da ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal” (Comentários ao CPC, 1999, pág. 253).
Seja, o que se visa com este incidente e tal como acontecia com o chamamento à autoria não é condenar o chamado, antes estender a este os efeitos do caso julgado da decisão proferida na causa (cfr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2ª ed., pág. 121).
Como começou por se adiantar, os RR. não foi assim que perspectivaram o chamamento, antes pretenderam a imediata condenação da chamada.
Por outro lado, ainda que titular de um direito de indemnização contra terceiro, tal não basta ao réu para fazer intervir este acessoriamente nos autos, pois exige ainda a lei (artº 331º, 2 do CPC) a existência de uma relação de conexão entre o objecto da acção pendente e o da acção de regresso, no entendimento de que tal conexão será de configurar quando a relação controvertida surgir como questão condicionante ou prejudicial à existência do invocado direito de regresso ou, nas palavras de Teixeira de Sousa, “essa conexão está assegurada sempre que o objecto da acção pendente seja prejudicial relativamente à apreciação do direito de regresso contra terceiro” (in ob. cit., pág. 178).
Não existe conexão entre a relação controvertida e o eventual direito de regresso do R. marido contra a chamada, não obstante o imputado incumprimento por esta do contrato de compra e venda do veículo cuja aquisição foi financiada pela A..
São contratos distintos, celebrados entre pessoas distintas, sendo certo que a procedência ou improcedência desta acção em nada afecta o direito de indemnização que o R. marido possa ter contra a chamada pelo eventual incumprimento por esta do contrato de compra e venda da viatura dos autos ou qualquer outro na órbita deste.
E nem mesmo a indicação - que, diga-se, os RR. nem fizeram - do disposto no nº 2 do art. 12º do DL Nº 359/91, de 21/9 permite configurar uma situação de direito de regresso e a sua conexão com a relação de crédito ao consumo, pois continua a estar-se perante contratos distintos, sem prejuízo de, no caso de se verificarem os requisitos impostos por aquele normativo, o consumidor poder opor ao financiador a excepção de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda financiado.
Era, pois, de indeferir o chamamento requerido pelos RR., devendo a acção apenas prosseguir entre as partes primitivas, que o mesmo é dizer que assiste total razão à agravante.
Procedente, por isso, o agravo, a sua procedência, com o consequente afastamento da lide da chamada, torna nula e de nenhum efeito a sentença no que a ela diz respeito, com o prejuízo do conhecimento da sua apelação.
Resta a apreciação do recurso de apelação da A..
O contrato de crédito ao consumo está regulado no citado DL nº 359/91, de 21/9, que o define como “o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante” (art. 2º, 1, al. a)), sendo “«consumidor», a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. b)) e “«credor», a pessoa singular ou colectiva que, no exercício da sua actividade comercial ou profissional, concede o crédito” (al. c)).
No que à venda de bens ou prestação de serviços por terceiros respeita, estabelece o art. 12º do mesmo diploma legal que “se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito” (nº 1) e que “o consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;
b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior” (nº2).
Na sentença sindicanda, considerou-se resolvido o contrato de mútuo ajuizado, com a consequente desoneração do R. marido do pagamento do peticionado pela A., por força da resolução que se operou do contrato de compra e venda por aquele financiado, por incumprimento da vendedora, no entendimento de que o pressuposto na al. c), do nº 2 do art. 12º do DL 359/91, supra transcrito, não se confunde com uma relação de exclusividade entre o credor e o vendedor, exigindo apenas a lei que o crédito se destine exclusivamente a financiar a aquisição.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar tal interpretação.
Nem a letra, nem o espírito da lei a consentem.
Sendo aqui o destino do mútuo o pagamento do preço de um bem fornecido ou vendido, é natural que exista sempre uma qualquer união entre esse contrato e o contrato de compra e venda que está na sua génese negocial e, por isso, o disposto no nº 1 do art. 12º do DL 359/91, que faz depender a validade e eficácia do contrato de compra e venda da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e vendedor na preparação ou conclusão do contrato de crédito, sem que tal perda de autonomia signifique que, para lá dessa relação de dependência, não continuem a aplicar-se a cada um dos contratos as regras que lhe são próprias (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., págs. 289 e sgs. e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 88).
Esta ligação funcional dos contratos respeita apenas e só à dependência e subordinação - ao nível da sua validade e eficácia - do contrato de compra e venda em relação ao contrato de crédito; já o inverso - na ausência de qualquer intenção e acordo dos contraentes noutro sentido -, isto é, a dependência do contrato de crédito em relação ao contrato de compra e venda, se coloca, não no domínio da validade e eficácia, mas no do cumprimento, como se colhe do nº 2 daquele mesmo normativo, subordinada, todavia e sempre, à existência de um “acordo prévio”, vinculativo, de colaboração exclusiva, duma “close connection” (ligação estreita) entre o mutuante e o vendedor (cfr. Ac. do STJ, de 22-6-2005, Processo nº 1618/05, com cópia junta a fls. 326 e sgs.).
Ora, se na estabelecida dependência da validade e eficácia do contrato de compra e venda em relação ao contrato de crédito (nº 1 do art. 12º), a interpretação avançada na sentença recorrida (que a exigência legal se atém a que o crédito se destine exclusivamente a financiar a aquisição de um qualquer concreto bem) se poderá aceitar, mau grado a ainda necessária mínima colaboração entre o mutuante e o vendedor na preparação ou conclusão do contrato de crédito, já que aí apenas se exige que o financiamento se destine ao pagamento de um qualquer bem vendido, pois o que, em última análise, se financia é o próprio contrato de compra e venda, já aqui, isto é, na dependência do contrato de crédito das vicissitudes do cumprimento do contrato de compra e venda, tal interpretação não colhe, exigindo a lei à possibilidade do consumidor opor ao credor o incumprimento deste último contrato, ter sido o respectivo crédito obtido no âmbito do sobredito acordo prévio exclusivo de financiador e fornecedor.
Nem o texto, nem o espírito da lei permitem outra interpretação, pois, doutra forma, o mutuante ficava colocado, sem ser visto nem achado, na mão do consumidor quanto à fiabilidade do vendedor, podendo impor-lhe, no limite, em quaisquer circunstâncias, o incumprimento deste, o que, há-de convir-se, não se coaduna com os princípios subjacentes à boa interpretação das leis e, nomeadamente com a regra base de que “ na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3 do art. 9º do CC).
Posto isto, porque na atenção dos factos provados, se não verificam os condicionalismos do art. 12º, nº 2 do DL 359/91 - antes e até se provou que a “A. não ajustou com o fornecedor qualquer acordo em que se tenha comprometido a financiar, em regime de exclusividade, as aquisições a crédito pelos clientes compradores deste dos bens ou equipamentos que este lhes fornece” (resposta ao quesito 15º) -, é de afastar qualquer relação de dependência entre o contrato de crédito ajuizado e as vicissitudes do cumprimento do contrato de compra e venda financiado, não legitimando, por isso, o incumprimento ou cumprimento defeituoso deste pelo vendedor o incumprimento daquele pelo R. marido (neste sentido, o Ac. do STJ de 2-11-2004, CJ, STJ, XII, III, pág. 104).
Em conclusão, a base fáctica apurada impunha, ao contrário do decidido, a improcedência da excepção de incumprimento alegada pelos RR. e a resolução do contrato de mútuo, por incumprimento do R. marido, com a consequente condenação destes no pedido formulado pela A. (condições especificas e cláusula 8ª, a), b) e c) das condições gerais do contrato e arts. 405º, 406º, 1, 798º, 799º, 1, 801º, 804º, 805º, 2, a), 808º e 810º do CC).

Pelo exposto, acorda-se, na procedência dos recursos de agravo e de apelação interpostos pela A. em:
a) revogar o despacho que deferiu o incidente de intervenção provocada da Auto, Ldª, não se admitindo a requerida intervenção desta nos autos, ficando, por tal, prejudicado o conhecimento do recurso que a mesma da sentença interpôs;
b) revogar a sentença recorrida e, julgando a acção procedente por provada, condenar os RR. solidariamente no pedido formulado pela A..

Custas do agravo e da apelação pelos RR..
Lisboa, 19-10-2006
Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues