Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
866/12.1TVPRT.L1-1
Relator: GRAÇA ARAÚJO
Descritores: EFICÁCIA DO NEGÓCIO
OBRIGAÇÃO PRINCIPAL
FIANÇA
REDUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. 1. Não basta afirmar estarmos perante uma relação contratual “complexa” para afastar o princípio da eficácia relativa dos contratos, sendo necessário invocar a lei que especialmente prevê o afastamento desse princípio (parte final do nº 2 do artigo 406º do Cód. Civ.)
II.1.O significado e alcance do preceituado no artigo 631º do Cód. Civ. é clarificado na consequência legalmente prevista para uma fiança que exceda a obrigação principal, ou seja, contraída em condições mais onerosas, traduz-se na redução da fiança (nº 2 do mesmo preceito).
II.2. Ora, o que os autores pretendem não é reduzir a sua obrigação na medida em que excede a obrigação dos mutuários perante o mutuante, mas conseguir a extinção da sua obrigação por via da extinção da obrigação dos mutuários, alcançada esta à custa do pagamento pela 1ª ré que apenas perante os mutuários se comprometeu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
CC e mulher, FC propuseram contra BV, Companhia de Seguros, S.A. e Banco E, S.A. acção declarativa de condenação, sob forma comum e processo ordinário.
Alegaram, em síntese, que: em 4.4.95 e através de escritura pública, AS e mulher, DS adquiriram uma dada fracção autónoma para sua habitação, através de crédito bonificado concedido pelo Banco C, S.A. – que, entretanto, se fundiu, por incorporação, no 2º réu; nessa escritura, os autores assumiram-se como fiadores e principais pagadores de tudo o que viesse a ser devido por força do empréstimo; nos termos do clausulado no contrato de mútuo, os mutuários celebraram com a 1ª ré (à data denominada Companhia de Seguros T, S.A.) um seguro de vida que cobria os riscos morte, invalidez absoluta e definitiva por doença e invalidez total e permanente por acidente de cada um deles e cujo beneficiário era o Banco mutuante; os autores desconhecem o preciso teor do contrato de seguro, porquanto os réus não lho deram a conhecer; a mutuária Deolinda faleceu no dia 19.9.10 devido a insuficiência renal, infecção urinária, pneumonia e choque séptico; ainda antes do referido falecimento, os mutuários haviam deixado de liquidar as prestações do empréstimo, tendo os autores, em Agosto de 2010, sido notificados para o fazer; assim, desde 19.9.10 e até Agosto de 2012, os autores já pagaram ao 2º réu a quantia global de 7.023,66€, pagamento em que não teriam tido a necessidade de incorrer caso a 1ª ré tivesse assumido a sua obrigação de pagar ao 2º réu o capital seguro por se ter verificado o risco coberto.
Concluíram os autores, pedindo que a 1ª ré seja condenada:
i) A pagar ao 2º réu, a título de importância segura, o saldo devido pelos mutuários à data do falecimento da mutuária Deolinda e relativo ao mútuo bancário em causa, deduzido da quantia de 7.023,66€, saldo esse a indicar pelo 2º réu ou, se não houver indicação, a liquidar em execução de sentença;
ii) A reembolsar os autores, por força da importância segura, dos valores que estes venham ainda a ser obrigados a pagar no âmbito do contrato de mútuo, desde a presente data até ao pagamento integral referido em i);
iii) A pagar aos autores a quantia de 7.023,66€;
iv) A pagar aos autores juros de mora vencidos e vincendos sobre cada uma das parcelas que compõem o total referido em iii) e desde a data em que cada um dos pagamentos foi efectuado, cujo valor exacto se relega para execução de sentença.
A 1ª ré contestou, invocando que, em 30.1.10, operou a resolução do contrato de seguro levada a cabo por falta de pagamento dos respectivos prémios. Referiu, além disso, que os autores não são partes no contrato de seguro, pelo que não só não tinham de conhecer o respectivo clausulado, como não têm legitimidade para pedir o cumprimento do contrato. Impugnou alguns dos factos alegados e concluiu pela procedência da excepção resolutiva e improcedência dos pedidos.
Também o 2º réu contestou, invocando, por excepção: i) a incompetência territorial do tribunal; ii) a ineptidão da petição inicial, por ausência de pedido que contra si seja dirigido; iii) a ilegitimidade dos autores por não serem titulares de qualquer interesse directo no âmbito da relação de seguro; e iv) a sua própria ilegitimidade, por inexistência de interesse em contradizer. Impugnou alguns dos factos alegados e concluiu pela remessa do processo para o tribunal competente e pela sua absolvição da instância, ou, subsidiariamente, do pedido.
Os autores replicaram, refutando as excepções invocadas. Disseram, nomeadamente, que o grupo E é detentor de 50% da 1ª ré, que a relação jurídica trazida aos autos é complexa, posto que integrada pelo mútuo, pela hipoteca, pela fiança e pelo seguro e que a resolução do contrato de seguro é ineficaz, uma vez que a interpelação admonitória não foi dirigida aos autores. Mais alteraram a causa de pedir, alegando que, devido a acidente de viação ocorrido em 5.8.04, a mutuária Deolinda ficou total e permanentemente inválida.
O 2º réu treplicou, invocando o desconhecimento da situação de invalidez.
A 1ª ré treplicou em idênticos termos, acrescentando nunca lhe ter sido participado o alegado sinistro que, aliás, não está coberto pela apólice.
Julgada procedente a excepção de incompetência territorial, os autos foram remetidos ao tribunal competente.
Realizada a audiência preliminar e admitida a alteração da causa de pedir, veio a ser proferida saneador/sentença que:
a) Julgou verificada a ineptidão da petição inicial no tocante ao 2º réu, anulando quanto a ele todo o processado e, consequentemente, absolvendo-o da instância;
b) Julgou os autores parte legítima;
c) Absolveu a 1ª ré dos pedidos.
Os autores interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
a) A relação contratual, aqui em questão, é composta pelo contrato principal - mútuo - e pelo contratos colaterais: - hipoteca; - fiança; - seguro de vida;
b) A relação controvertida é complexa não se limitando ao contrato de seguro de vida;
c) O contrato de seguro de vida constitui uma obrigação estabelecida na cláusula 34ª do contrato de mútuo em causa;
d) Enquanto fiadores e como titulares da sobredita relação contratual complexa, têm os Recorrentes legitimidade para accionar o contrato de seguro de vida identificado nos autos;
e) Podendo, em consequência, ser exigido tanto pelo devedores mutuários, como pelos fiadores Recorrentes a prestação contratual a que a Ré BV, S.A. se obrigou no contrato de seguro de vida em apreço;
f) Esta interpretação é a única que permite respeitar o estatuído no art. 631º-1 CC;
g) Sob pena, se se optar por entendimento diverso, de se gerar uma assimetria entre as condições de onerosidade da dívida principal e aquelas, mais penalizadoras, proporcionadas à fiança;
h) A fiança não pode ser contraída em condições mais onerosas que a dívida principal;
i) Ao fiador são assegurados todos os meios de defesa que competem ao devedor;
j) O direito a accionar o contrato de seguro de vida em causa, não é incompatível com a obrigação do fiador;
l) Foi violado o disposto nos arts. 631º e 637º C.Civil;
m) Mesmo entendendo-se que o contrato de seguro em apreço será subsumível à espécie contrato a favor de terceiro, ainda assim, os comandos do art. 444º C. Civil deviam ser interpretados como prevendo o direito do fiador a accionar o contrato de seguro de vida subscrito no cumprimento de uma obrigação constituída no âmbito do contrato que afiançou.
n) Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente proferindo-se acórdão que revogue a decisão que absolveu a Ré BV Companhia de Seguros, S.A. dos pedidos, ordenando-se, em consequência, o prosseguimento dos autos até final.
A 1ª ré apresentou contra-alegações, defendendo a confirmação da sentença.
São os seguintes os factos que a 1º instância considerou provados:
1. Por escritura pública lavrada no dia … de 1995, no 2º Cartório Notarial de …, FF e mulher, MF, declararam vender a AS e mulher, DS, pelo preço de Esc. 9.500.000$00, a fracção autónoma designada pela letra “C“, correspondente ao 1º andar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no …, …, V…, descrito na C. R. Predial sob o nº … e inscrito na matriz sob o artº ….
2. No dia, hora e local referidos em 1., AS e mulher, DS, declararam aceitar a venda referida em 1. e confessar-se devedores ao Banco C, S.A. da quantia de Esc. 8.500.000$00 que do mesmo declararam ter recebido a título de empréstimo, no regime do crédito bonificado.
3. No dia, hora e local referidos em 1. e 2., AS e mulher, DS declararam ainda que em caução e garantia do pagamento da importância mutuada davam de hipoteca ao Banco C, S.A. a fracção autónoma aludida em 1. e 2..
4. No dia, hora e local referidos em 1. e segs., os autores declararam constituir-se fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido ao Banco C em consequência do empréstimo contraído por AS e mulher, DS, mais declarando expressamente renunciar ao benefício da excussão prévia.
5. No dia, hora e local referidos em 1. e segs., os autores declararam ainda que a fiança aludida em 4. manter-se-ia plenamente em vigor enquanto subsistisse qualquer dívida de capital, de juros ou de despesas, constituída por qualquer forma, imputável aos referidos AS e mulher, DS.
6. No dia, hora e local referidos em 1. e segs., … declarou - na qualidade de procurador do Banco C, S.A. - aceitar, para a sua representada, a confissão de dívida, hipoteca e fiança referidas.
7. O empréstimo supra referido, para aquisição de habitação própria e permanente, foi concedido ao abrigo do regime de crédito bonificado, devia ser amortizado por AS e mulher, DS, em trezentas prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira um mês após a data referida em 1. e as demais em igual data de cada um dos meses subsequentes.
8. De acordo com a cláusula 34ª do documento complementar anexo à escritura pública referida em 1. e segs., AS e mulher, DS, ficavam obrigados a efectuar um seguro de vida, que deveria cobrir os riscos de morte, invalidez absoluta e definitiva por doença e invalidez total e permanente por acidente de qualquer um dos mutuários, seguro esse do qual seria beneficiário o Banco C, S.A., na qualidade de credor hipotecário privilegiado, pelo valor mínimo do montante do empréstimo, sendo irrevogável a cláusula referente à qualidade do beneficiário do mesmo.
9. Em 2005, ocorreu a fusão, por incorporação, do Banco C, S.A. no Banco E, S.A..
10. AS e mulher, DS, subscreveram, em 4 de Abril de 1995, uma proposta de seguro de vida apresentada à Companhia de Seguros T, S.A., proposta essa aceite pela mesma seguradora.
11. A proposta de seguro referida em 10. visava a adesão dos referidos AS e mulher, DS, ao seguro de vida grupo temporário contributivo, referente ao crédito à habitação, regime geral, apólice essa de que era tomador de seguro o Banco C e a que podiam aderir os clientes daquela entidade bancária aderentes a tal tipo de crédito e seus cônjuges, assumindo os mesmos a qualidade de segurados, seguro esse a que correspondia a apólice de seguro de grupo com o nº 551.
12. Na sequência do aludido em 10. e 11., ao seguro em causa, de que eram segurados AS e mulher, DS, correspondia a apólice de seguro com o nº …, a qual se regia pelas respectivas condições particulares, gerais e especiais.
13. O capital a indemnizar por cada pessoa segura abrangida pela apólice aludida em 11. a 12. era o valor em dívida à entidade bancária concessionária do empréstimo à data da ocorrência da morte do ou dos segurados/pessoas seguras por doença ou acidente e ou sua invalidez absoluta e definitiva ou total e permanente, por doença ou por acidente.
14. A Companhia de Seguros T, S.A. alterou a sua denominação para BV, Companhia de Seguros, S.A..
15. DS faleceu, no estado de casada com AS, no dia … de Setembro de 2010.
16. Do certificado de óbito referente à morte de DS consta que a mesma se deveu a choque séptico, consecutiva a pneumonia, consecutiva de infecção urinária e insuficiência renal.
*
A única questão a decidir é a de saber se, no circunstancialismo dos autos, os fiadores dos mutuários podem exigir da seguradora, uma vez verificado o sinistro, o cumprimento do contrato de seguro do ramo vida, associado àquele mútuo mas em que não são partes.
Respondendo negativamente a tal questão, a 1ª instância alicerçou a sua posição nas seguintes ideias-força:
- Entre AS e DS, por um lado, e o 2º réu, por outro, foi celebrado um contrato de mútuo hipotecário;
- Em garantia da restituição do montante mutuado e respectivos juros, os mutuários constituíram hipoteca sobre a fracção que, na mesma data, compraram e os autores constituíram-se fiadores e principais pagadores, com renúncia ao benefício da excussão prévia, de tudo o que fosse devido ao Banco em consequência do mútuo;
- Em cumprimento da obrigação assumida pelos mutuários na cláusula 34ª do contrato de mútuo com hipoteca, aqueles celebraram um contrato de seguro com a 1ª ré, por força do qual em caso de morte (por doença ou acidente), invalidez absoluta e definitiva (por doença) ou invalidez total e permanente (por acidente) de qualquer um dos mutuários, o capital em dívida à entidade bancária em causa seria pago, uma vez accionado o seguro;
- O facto de os autores se terem constituído fiadores no contrato de mútuo cujo capital haveria de ser pago pelas forças do seguro, em caso de sinistro, não os converteu em partes do aludido contrato de seguro;
- O pagamento pela 1ª ré do montante em dívida ao 2º réu, em caso de sinistro, apenas representaria para os autores um benefício indirecto;
- Os pedidos formulados pelos autores assentam num contrato de seguro em que não são partes e cuja eficácia se restringe aos respectivos sujeitos (nº 2 do artigo 406º do Cód. Civ.), pelo que não podem exigir o respectivo cumprimento;
- A verificação de qualquer das circunstâncias previstas no contrato de seguro como constituindo um sinistro não constitui um qualquer direito de defesa do devedor de que o fiador também possa lançar mão;
- Tal entendimento não desprotege os autores em caso de inércia dos mutuários nem torna, por isso, a sua obrigação mais onerosa do que a destes, uma vez que o fiador tem o direito de exigir ao devedor o pagamento dos valores por si satisfeitos ao credor em cumprimento da fiança (artigo 644º do Cód. Civ.);
- Aos autores falece legitimidade substantiva.
Concordamos com a posição da 1ª instância, remetendo para o que, mais desenvolvidamente, se escreveu na sentença, uma vez que os apelantes também não suscitam questões que a decisão recorrida não tenha tratado.
Resta-nos, assim, acrescentar, em primeiro lugar, que não basta afirmar estarmos perante uma relação contratual “complexa” para afastar o princípio da eficácia relativa dos contratos, sendo necessário invocar a lei que especialmente prevê o afastamento desse princípio (parte final do nº 2 do artigo 406º do Cód. Civ.). O que os apelantes não fazem.
Em segundo lugar, o que os autores afiançaram foi “tudo quanto venha a ser devido ao Banco (…) em consequência do empréstimo” (o sublinhado é nosso), não se encontrando qualquer diferença qualitativa ou quantitativa entre as responsabilidades dos mutuários e as responsabilidades dos fiadores perante o 2º réu. Não há, consequentemente, qualquer violação do nº 1 do artigo 631º do Cód. Civ..
O significado e alcance de tal preceito é clarificado na consequência legalmente prevista para uma fiança que exceda a obrigação principal ou seja contraída em condições mais onerosas, que é a redução da fiança (nº 2 do mesmo preceito). Ora, o que os autores pretendem não é reduzir a sua obrigação na medida em que excede a obrigação dos mutuários perante o mutuante, mas conseguir a extinção da sua obrigação por via da extinção da obrigação dos mutuários, alcançada esta à custa do pagamento pela 1ª ré que apenas perante os mutuários se comprometeu.
Desiderato que – e em terceiro lugar – não podem conseguir sem a intervenção do segurado/mutuário (cabendo até perguntar porque razão ele não o faz), já que ao caso se não aplica o disposto no artigo 637º do Cód. Civ..
Com efeito, não se trata aqui de opor ao credor Banco quaisquer meios de defesa que assistam ao mutuário perante aquele credor e no âmbito do mútuo. Tanto que o 2º réu foi absolvido da instância por nenhum pedido contra ele ter sido formulado, absolvição de que os autores não recorreram. O que os autores fazem é invocar uma outra relação, a de seguro, a que são alheios, mas de que, indirectamente, poderiam retirar vantagens.
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Por todo o exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantemos a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 9 de Dezembro de 2014
Maria da Graça Araújo
José Augusto Ramos
João Ramos de Sousa