Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
250/06.6PCLRS.L1-3
Relator: RUI GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO PENAL
NE BIS IN IDEM
CRIME CONTINUADO
UNIDADE DE INFRACÇÕES
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
PLURALIDADE DE RESOLUÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – A excepção de caso julgado materializa o disposto no art. 29.º, n.º 5 da CRP quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
II – O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).
III – Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.
IV – Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.
V – Caso julgado em substância significa decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz).
VI – Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída. As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas:
(i) Para que proceda a excepção de caso julgado requere-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória.
(ii) A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.
VII – Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado.
VIII – O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.
IX – Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".
X – A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal.
XI – Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.
XII – Um terceiro requisito de procedibilidade, que tem relação estreita com a natureza do caso julgado, respeita a que o primeiro processo tenha sido findo totalmente e que não seja susceptível de meio impugnatório algum, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.
XIII – Para a determinação de identidade de facto é essencial considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsunção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez.
XIV – Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem". Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal.
XV – No crime continuado encontramo-nos diante de uma pluralidade de factos aos que, por força da lei, corresponde uma unidade de acção e portanto o tratamento como um único crime. O crime continuado pode entender-se como uma pluralidade de acções semelhantes objectiva e subjectivamente, que são objecto de valoração jurídica unitária.
XVI – Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva.
XVII – O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
XVIII – Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.
XIX – Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.
XX – In casu, as circunstâncias são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa. É o próprio arguido a determinar o cenário, o agente actuou aperfeiçoando a realidade exterior aos seu desígnios e propósitos sendo ele a dominá-la, e não esta a dominá-lo. Não há circunstância exterior, mas sim uma predisposição anterior do agente.
XXI – Assim, estando o “núcleo duro” da continuação criminosa na diminuição considerável da culpa – e esta entendida na sua concepção normativa, e não apenas psico-fisiológica –, a menor exigência de actuação do arguido/recorrido de acordo com o direito devido a uma situação objectiva exterior com que se depara, operar-se-ia um absoluto desvirtuar da figura se se entendesse actuar com culpa diminuída o agente que se depara com uma circunstância facilitadora do crime que, afinal, tinha sido ele a criar.
XXII – Quando o decurso do tempo entre cada uma das condutas, nunca inferior a um mês e chegando a ser de quase oito anos, é de tal modo expressivo, de acordo com as regras da experiência comum, não pode deixar de se afirmar que a cada nova conduta o agente se determinou a preencher o tipo legal de crime em causa, venceu uma e outra vez as contramotivações éticas que o tipo legal de crime transporta.
XXIII – Almejar como o faz o arguido/recorrido que, apesar dos largos lapsos temporais decorridos entre cada uma das condutas, e da sua heterogeneidade comissiva, estamos perante uma única resolução criminosa, seria como convolar o crime de falsificação de documentos, nomeadamente aqueles actualmente previstos e punidos pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal, em crime exaurido, cuja consumação se esgota com uma primeira acção, o que nitidamente, não é o caso dos autos.
XXIV – A falta de um elemento subjectivo do tipo legal de crime afasta a sua tipicidade. Ora, mesmo que a conduta seja típica, objectiva e subjectivamente, se o tribunal sentencia não ser punível é já o bastante para se entender não poder fazer parte de uma continuação criminosa, por não ser, em rigor, ela mesma, crime. E assim é porque se protege com tal entendimento o caso julgado, que nasceu da necessidade de segurança jurídica nas decisões dos tribunais.
Decisão Texto Parcial:TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

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Acordam, em conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de Instrução nº 250/06.6PCLRS dos Juízos Criminais e de Pequena Instância Criminal de Loures, 2.º Juízo Criminal, por decisão instrutória de 21DEZ2010, foi decidido, no que ao caso releva: “[…] julgo verificada a excepção de caso julgado e, em consequência, não pronuncio o arguido H […] pela prática, em autoria material, de doze crimes de falsificação, p. e p., à data dos factos, pelo art. 256.º, n.º 1 als. b) e c) e n.º 3 do Código Penal e actualmente, pelo art. 256.º, n.º 1, als. d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal e, em consequência, determino o arquivamento dos autos.”.
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1.2. Inconformado com a referida decisão instrutória proferida pela Senhora Juíza de Instrução Criminal, dela recorreu em 24JAN2011 o Ministério Público, remata a sua motivação recursória com as seguintes conclusões (transcrição):
“1) O arguido requereu a abertura da instrução nos presentes autos porquanto entende ter já sido julgado pela prática dos mesmos factos, mormente no processo que correu termos no 6.º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Lisboa sob o n.º 8776/04.0TDSLSB.
2) Alega que as diversas condutas por si empreendidas, objecto destes autos e dos mencionados em 1), constituem uma única resolução criminosa, pois que a actuação do arguido, embora se consubstancie em várias actuações, é determinada por um só desígnio criminoso pré-orientado para a consecução de um mesmo objectivo: "não ser localizado pela justiça brasileira e autoridades judiciais portuguesas".
3) Concluindo que há que afastar tanto a realização plúrima como o crime continuado, pois em causa está um só crime, decorrente de uma só intenção criminosa, pelo qual o arguido já foi julgado, logo não poderá ser julgado novamente sem violação do princípio "ne bis in idem" previsto constitucionalmente no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
4) Compulsadas as diversas condutas constantes da acusação deduzida no processo que correu termos no 6.º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca de Lisboa sob o n.º 8776/04.0TDSLSB e as constantes da acusação deduzidas nos presentes autos, logo se verifica que há apenas identidade histórica no que respeita à emissão em 17 de Dezembro de 1999, mediante apresentação de documentação forjada em nome de J[…] perante a Direcção-Geral de Viação, da carta de condução da República Portuguesa com o número L – 1591964 2, havendo apenas nesta parte caso julgado.
5) Quanto aos demais factos elencados em ambas as peças acusatórias, não só aquela identidade histórica não ocorre como os períodos que medeiam entre as diversas comissões criminosas são de tal forma alargados que não permitem concluir pela unidade criminosa.
6) O Direito Penal encarna um conjunto de normas que visa obstar os indivíduos a formular resoluções criminosas: estes têm que vencer as contra-motivações éticas subjacentes à prática do ilícito, violar a função de determinação do tipo, para praticar um determinado crime.
7) Refere Eduardo Correia que “pode suceder, e sucede com frequência, que o momento psicológico, correspondente à realização de uma série de actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal, se estruture de tal forma que esse concreto juízo de reprovação tenha de ser formulado várias vezes”, resultando que “o todo formado por tais actividades se fragmenta agora, na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura (…)”.
8) É o caso destes autos, em que o arguido por diversas vezes, decorridos diversos períodos de tempo nunca inferiores a um mês, tomou a resolução de violar o tipo de ilícito previsto actualmente pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal, actualizando repetidamente a sua vontade criminosa, obstando assim à eficácia determinadora das normas infringidas.
9) Acresce que o decurso do tempo entre cada uma das condutas - in casu, nunca inferior a um mês e chegando a ser de quase oito anos - é de tal modo significativo que, de acordo com as regras da experiência comum, não pode deixar de se afirmar que a cada nova conduta o agente se determinou a preencher o ilícito típico em causa.
10) Tal conclusão é, em concreto, suportada pela heterogeneidade de documentos que o agente falsificou.
11) Fica por isso afastada a unidade criminosa, tendo-se por estabelecida a diversidade histórica e a pluralidade de resoluções criminosas que presidiu à comissão de cada um dos crimes pelos quais o arguido vem acusado nos presentes autos.
12) Não estamos, assim, perante o mesmo crime, não havendo, consequentemente, violação do caso julgado pela submissão do arguido a julgamento pelos factos – descontada a emissão da carta de condução – constantes da acusação deduzida nestes autos.
13) A decisão de que se recorre aventou, para ter como verificada a excepção de caso julgado e decidir pela não pronúncia do arguido, a existência, in casu, de uma continuação criminosa.
14) Contudo, não há homogeneidade na forma de execução do crime, pois, para lá da circunstância de preencherem o mesmo ilícito típico, não há semelhança fáctica, revelada no plano comissivo, entre celebrar matrimónio, requerer licença de uso e porte de arma, a emissão de cartões de crédito, de documentos de identificação civil, como o passaporte e o Bilhete de Identidade, proceder ao registo da paternidade de quatro filhos, requerer a emissão do cartão de contribuinte, de cartões de crédito, de cartão de utente, outorgar escritura de contrato de sociedade comercial por quotas e obter livrete de manifesto de armas e diversos cheques.
15) O “telos” da figura do crime continuado é, como se sabe, a diminuição considerável do grau da culpa do agente.
16) Só ocorre diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.
17) E isto porque se na base da continuação criminosa está a diminuição da culpa, operar-se-ia um absoluto entorse da figura se se entendesse actuar com culpa diminuída o agente que se depara com uma circunstância facilitadora do crime que, afinal, houvera sido ele a criar.
18) No caso dos autos, como a própria sentença reconhece, foi o arguido quem obteve o registo de nascimento falso no Brasil e o Bilhete de Identidade de cidadão estrangeiro, também falso, em Portugal e foi ainda ele quem solicitou a emissão de todos os outros documentos, mediante a apresentação daquele registo de nascimento de daquele BI falsificados.
19) Em suma, foi o arguido quem, activamente, as provocou, violando consecutivamente, maugrado os lapsos temporais decorridos e que lhe permitiam mover a sua consciência crítica para os actos que empreendia, as normas jurídico-penais que lhe exigiam comportamento diverso. Não há circunstância exterior, nem culpa diminuída.
20) Concluindo-se pela inexistência, in casu, do crime continuado, violando a decisão recorrida a norma ínsita no n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal.
21) E tal conclusão é ainda reforçada quando se atenta na longevidade espácio-temporal das plúrimas violações, todas elas distantes umas das outras mais de um mês o que permitiria ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo, já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída mas com um dolo empedernido.
22) Não há, como [se] demonstrou, entre os factos constantes de ambos os processos, unidade criminosa ou crime continuado, pelo que o tribunal da primeira decisão jamais poderia ter conhecido dos factos objecto dos presentes autos.
23) Assim, haverá que concluir ter violado a decisão recorrida o disposto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, e no artigo 30.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, uma vez que não estamos na presença, nos dois processos, nem do mesmo crime nem de um crime continuado.
24) Acresce que, ainda que assim se não entenda, uma vez que nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB o arguido foi absolvido, entender, como o faz a decisão recorrida, que as condutas objecto destes autos estão em continuação criminosa com aqueloutras é, isso sim, violação do caso julgado, pois contraria frontalmente uma decisão judicial já transitada, violando assim frontalmente o disposto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
25) Pelo que deve a decisão instrutória recorrida ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida nestes autos, descontando a emissão, em 17.12.1999, de carta de condução da República Portuguesa com o número L-1591964.
Porém, Vossas Excelências, apreciando, farão a costumada JUSTIÇA!
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1.3. Na 1.ª instância, não foi apresentada qualquer resposta pelo arguido.
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1.4. Foi cumprido na oportunidade o disposto no art. 416.º do Código de Processo Penal, tendo em 06ABR2011 a Ex.ma Magistrada do Ministério Público (P.G.A.) junto deste Tribunal aposto o seu “Visto”.
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1.5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência neste Tribunal, a qual veio a decorrer com observância do legal formalismo, cumprindo decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DA QUESTÃO DE FACTO
Comecemos por nos deter sobre as ocorrências relevantes para decisão do presente recurso:
2.1.1. O arguido H[…] foi nos Autos de Inquérito n.º 250/06.6PCLRS, em 08JUN2009, acusado pelo Ministério Público, da prática dos factos descritos a fls. 155 a 160, dos presentes autos, e consequentemente, da prática em autoria material e em concurso real, de 12 (doze) crimes de falsificação de documento, previsto e punível, à data dos factos, pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 3 do Código Penal e, actualmente, pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal.
2.1.2. Na base da imputação referida em 2.1.1. estão os seguintes factos:
“No ano de 1991, de modo a conseguir encetar fuga do seu país em direcção a Portugal com outra identidade, H[…]decidiu solicitar o registo de nascimento e outra documentação em nome de J[…], o que obteve em lugar incerto sito no Brasil.
Tal decisão prendia-se com o facto de H[…] ser perseguido pela justiça brasileira para efeitos de investigação de prática de crime de homicídio.
Assim, entre 1991 e até 14.03.2006, […] apresentou-se perante as autoridades públicas portuguesas e diversas empresas, em Portugal, com documentação em nome J[…], de modo a iludi-las relativamente à sua verdadeira identidade e de modo a não ser localizado pela justiça brasileira e autoridades judiciais portuguesas.
Actuando conforme o plano anteriormente delineado, decidiu apresentar-se perante diversas instituições, da seguinte forma:
Em 15.01.1992, apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a Direcção-Gera1 de Impostos tendo-lhe sido emitido cartão de contribuinte com o número fiscal 208461175, pela última vez em 05.07.2000 (doc. A2).
Em 17.12.1999, apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a D.G.V., tendo-lhe sido emitida carta de condução da República Portuguesa com o número L-1591964 2 (doc. AI).
Mais se apresentou, no ano de 1999, perante o banco "C…BANK", com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido o cartão de crédito VISA com o número 4194 0300 4341 9006 (doe. A4).
Em 5.02.2000, apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a Administração de Saúde tendo-lhe sido emitido cartão utente com o número 374658310 (doc. A3).
Em 29.12.2000, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a notária do cartório notarial do centro de formalidades das empresas de Lisboa, nomeadamente com bilhete de identidade de cidadão estrangeiro número 161.646.68, emitido pelo SIC de Lisboa em 19 de Setembro de 1996. Nessa data, e utilizando a documentação pessoal que bem sabia não corresponder à sua verdadeira identidade, outorgou contrato de sociedade comercial por quotas para constituição de sociedade com a firma "POR… - CONSTRUÇÕES, LDA.".
Em 15.03.2002, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante o Consulado Geral do Brasil em Lisboa, nomeadamente com passaporte com o número CJ9 […], tendo-lhe sido emitida Cédula de Matrícula de Cidadão Brasileiro com o número 2034/1[…] (doc. A10).
 Em 7.05.2002, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a Direcção Nacional da "Polícia de Segurança Pública, nomeadamente com bilhete de identidade de cidadão estrangeiro número 161.646[…], tendo-lhe sido emitido livrete de manifesto de armas relativo a uma Espingarda de Caça de marca Sarsilmaz, com o número M79246 (doc. A9).
Pelo menos em Março de 2004, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a companhia de seguros "Bonan[…]", tendo-lhe sido emitido cartão da rede "American[…]", com o número 37557102152[…]89 (doc. A5).
Mais se apresentou, perante o Hospital Santa Maria com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido cartão de utente com o número 796631 (doc. A6).
Mais se apresentou, perante a "U[…]Express Card" com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido o cartão de crédito com o número 929816 (doc. A. 7).
Mais se apresentou, perante a empresa "A[…]", com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido o cartão de crédito com o número U919801 (doc. A8).
Mais se apresentou, perante o banco "B[…]", com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitidos diversos cheques da conta com o número 23852850001 (doc. A12).”.
2.1.3. O arguido H[…], em 14JUL2009, requereu a abertura de instrução aduzindo:
Tais factos [os constantes da acusação], resumem-se às circunstâncias de o arguido munido de documentação forjada em nome de J[…] se apresentar perante diversas instituições solicitando a emissão de diversos documentos.
Todavia, o Arguido já foi julgado pela prática dos mesmos factos, conforme sentença proferida pelo 6.º Juízo Criminal do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa no processo n.º 8776/04.0TDSLSB (…).
Ora, de acordo com o princípio "ne bis in idem" previsto constitucionalmente no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser julgado duas vezes pela prática do mesmo crime.
[…]
“Estamos face a um único crime e não a uma multiplicidade.
No caso vertente, os factos apontam indiscutivelmente para a unidade da resolução criminosa, conforme se pode extrair do excerto supra transcrito da acusação.
O provado evidencia uma actuação do arguido que, embora se consubstancie em várias actuações, é determinada por um só desígnio criminoso pré-orientado para a consecução de um mesmo objectivo "não ser localizado pela justiça brasileira e autoridades judiciais portuguesas".
O arguido agiu com a intenção de obter para si um único benefício ilegítimo, que foi aquele que efectivamente veio a conseguir. Tendo este requisito subjectivo, consistente num dolo específico, do tipo legal de crime de falsificação (…) sido preenchido uma única vez, haverá que excluir a pluralidade de crimes, sob pena de violação do princípio "ne bis in idem".
Há, assim, que afastar tanto a realização plúrima como o crime continuado. Em causa está um só crime, decorrente de uma só intenção criminosa, pelo qual o arguido já foi julgado.
Concluindo que “tendo já o arguido sido julgado pela prática do mesmo crime não poderá ser julgado novamente, propondo-se a provar todos os factos supra alegados.”.
2.1.4. Refere aquela acusação proferida no âmbito do processo n.º 8776/04.0TDSLSB do 6.º Juízo Criminal do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa, no que à materialidade fáctica respeita:
“Na sequência de factos ocorridos em 1991 em Minas Gerais no Brasil e que determinaram a perseguição do arguido pelas autoridades brasileiras, o arguido, ainda no Brasil veio a obter passaporte brasileiro em nome de J[…], filho de J[…] e de A[…].
Assim na posse de tal passaporte em 30 de Agosto de 1991 deslocou-se para Portugal sob a referida identidade, aqui ficando a residir e constituindo família até dia 23 de Junho de 2004, data em que foi detido para efeitos de extradição.
Desta forma, como meio de garantir a sua vivência em território nacional, deslocou-se aos Serviços de Identificação Civil de Lisboa e ali preencheu o impresso de concessão de BI Estrangeiro, juntando cópia da certidão de nascimento de fls. 146 em nome de J[…], sendo-lhe emitido o BI de cidadão estrangeiro n.º 16164668.
Documento que passou a transportar consigo e a exibir em actos públicos e com que logrou obter licença de uso e porte de arma com o número 1079, emitida pela Divisão de Loures em 29 de Março de 2001 (fls. 120).
Carta de condução n.º L1591964 emitida em 17/12/1999 pela Direcção Geral de Viação e Autorização de Residência também em nome de J[…] emitida pelo SEF em 28 de Agosto de 2003 (fls. 137).
Vindo, sempre com a referida identidade, a casar catolicamente com A[…] em 23 de Junho de 2002 bem como a registar quatro filhos resultado da união com a mesma.
[…]
Pelo exposto, agindo em unidade de determinação e acção cometeu o arguido, como autor material, um só crime de falsificação, na forma consumada, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código Penal.”.
2.1.5. Tendo o arguido confessado os factos, foi proferida sentença de 13MAR2009, que os declarou provados tais como constantes da acusação, absolvendo o arguido, após também considerar estarmos perante um caso de unidade criminosa, por não bastar invocar-se a lesão do “interesse público subjacente à incriminação para se afirmar que foi querido o prejuízo do Estado. Para tal será necessário que o agente actue visando, pretendendo causar ao Estado, um concreto prejuízo ou, pelo menos, que actue determinado por essa intenção de pôr em causa a fé pública merecida pelo documento que falsifica ou que usa sabendo ser falsificado.” 
“É que, em especial quando estão em causa documentos emanados de organismos oficiais, necessariamente, se actuar o agente com dolo genérico e com consciência da ilicitude, estará ciente da lesão do interesse público (na forma genérica e vaga como é a invocada na acusação ou similar - de afectação da credibilidade merecida por tais documentos, dotados de fé pública e conformar -á com tal resultado. Por isso, entender tal circunstancialismo como a "intenção de causar prejuízo […] ao Estado” “é, na prática, retirar autonomia ao dolo específico expressamente previsto e cumulativamente exigido no tipo legal, que, ainda que na vertente da lesão do interesse do Estado, terá que concretizar-se em algo mais do que uma genérica e algo abstracta alegação da consciência de pôr em causa a credibilidade merecida por documentos desta natureza.”
“Pelo exposto, a não verificação no caso em apreço do elemento subjectivo - dolo específico - previsto no tipo legal impõe a conclusão pela necessária absolvição do arguido.” (cf. fls. 179-183, 208-212)
2.1.6. Na decisão instrutória de 21DEZ2010, proferida no âmbito dos autos de Instrução n.º250/06.6PCLRS, que consubstancia a decisão recorrida, foi no que ao caso releva, expresso o seguinte (transcrição parcial):
[…]
“Em face do teor da acusação e sentença proferidas nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB, não restam dúvidas de que os factos ali julgados e aqueles pelos quais é deduzida acusação nos presentes autos, se situam num mesmo contexto e em idêntico período temporal.”
“Efectivamente, os factos imputados ao arguido reportam-se, em ambos os casos, a datas situadas entre 1991 e 2004 (pois que a acusação nos presentes autos não localiza temporalmente quaisquer factos posteriormente a Março desse ano), período ao longo do qual o arguido teria vivido em Portugal sob a falsa identidade de J[…], obtida através de registo de nascimento falso produzido no Brasil, a fim de se eximir à acção da justiça naquele país e evitar a sua localização em Portugal. Nesse período, o arguido ter-se-ia identificado perante diversas entidades, em Portugal, como J[…], obtendo diversos documentos emitidos por aquelas com base na documentação apresentada.”
“Do confronto dos factos imputados ao arguido num e noutro processo, verifica-se que apenas coincide em ambos a menção à emissão de carta de condução em nome de J[…], não restando dúvidas de que se trata do mesmo documento, emitido na mesma data e com o mesmo número.”
“Quanto ao mais, e muito embora alguns documentos apresentem uma especial similitude (cfr. a licença de uso e porte de arma nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB e a emissão de livrete de manifesto de arma nos presentes), verifica-se não haver qualquer coincidência entre os documentos a que se reportam aqueles e estes autos.”
“Contudo, parecem não restar dúvidas em afirmar que se trata do mesmo “pedaço de vida”, ou seja, que os factos cuja apreciação se pretende nos presentes autos, foram com aqueles outros (julgados nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB) uma unidade de sentido, no sentido de poder afirmar-se que se não foram apreciados e julgados naqueles autos, tal ficou a dever-se unicamente à forma, porventura menos diligente, como decorreu a investigação naqueles autos, mas que não pode justificar uma nova submissão a julgamento do arguido por aqueles factos. Há identidade do agente, identidade dos meios usados, identidade temporal e acima de tudo identidade da motivação que presidiu ao comportamento do arguido.”
“Aliás, compulsados os autos, constata-se que a presente acusação funda-se, essencialmente nos documentos que foram apreendidos em busca domiciliária a que o arguido foi sujeito. Quer isto dizer, que se tal diligência tivesse sido levada a cabo nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB (e, naturalmente, em face do objecto do processo tal como levado à acusação, era previsível que o arguido tivesse obtido outros documentos para além daqueles aí elencados), muito provavelmente o arguido teria respondido pela sua emissão e utilização, no âmbito daqueles autos.”
“Por outro lado, constata-se que a emissão dos diversos documentos com que o arguido fazia a sua vida em Portugal, foi considerada, no âmbito do processo n.º 8776/04.0TDLSB, como uma única actuação criminosa, à qual presidia um único desígnio, numa verdadeira unidade de determinação e acção.”
“Ora, assim sendo, não pode deixar de considerar-se que, à luz do entendimento expendido naquela sentença, os factos ora imputados ao arguido, teriam necessariamente de integrar essa mesma e única conduta típica, por terem sido praticados no mesmo contexto e visando o mesmo fim.”
“Dir-se-á, também, que muito embora não partilhemos daquela concreta posição quanto à qualificação jurídica dos factos, é nosso entendimento que a actuação do arguido (nestes e naqueles autos) integra o cometimento de um crime de falsificação de documento na forma continuada, senão vejamos:
“São pressupostos do crime continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de “uma linha psicológica continuada”;
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado) ;
- persistência de uma “situação exterior” que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.”
“Eduardo Correia (Direito Criminal, II, 210 ) indica algumas das situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa:
§ ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos;
§ voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;
§ perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa.
§ a circunstância de o agente , depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.”
“Neste mesmo sentido, referindo-se ao crime continuado, aponta douto aresto do STJ de 13/09/2007 (doc SJ200709130027955 in www.dgsi.pt).”
“No caso concreto, muito embora a actuação do arguido se reconduza a várias resoluções criminosas (tantas quantos os documentos cuja emissão o arguido solicitou), a respectiva censurabilidade é cada vez menor por força de um particular condicionalismo exterior que, de maneira considerável, facilita a repetição da actividade criminosa, ou seja, o registo de nascimento obtido pelo arguido no Brasil, facilitou a emissão de documentos de identificação em Portugal (designadamente o bilhete de identidade de cidadão estrangeiro), que viriam a ser consecutivamente utilizados aquando da solicitação de outros documentos, sendo certo que o arguido actuava motivado por um mesmo fim, qual seja, a sua vivência em Portugal, onde se encontrava estabelecido em termos sociais, familiares e profissionais.”
“As circunstâncias que envolvem a prática dos factos implicam, desta forma, uma cada vez menor energia criminosa, e traduzem uma diminuição da culpa do agente.”
“Temos, pois, que os factos pelos quais é deduzida acusação nestes autos, não obstante não terem sido concretamente julgados nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB (à excepção da emissão da carta de condução), estão em relação àqueles outros numa relação de unidade, de continuação criminosa, pois que, a estes como àqueles, está subjacente uma mesma motivação e um mesmo circunstancialismo exógeno que determinou aqueles vários comportamentos por parte do arguido, apenas ali não tendo sido julgados, por omissão da própria investigação levada a cabo e que, aliás, se ali fossem apreciados, seriam necessariamente englobados na unidade criminosa que ali se entendeu existir.”
“Não obstante então não se ter sido concretamente apreciada a conduta do arguido no respeitante aos documentos ora discriminados na acusação, resulta claro que todos integram uma mesma unidade de sentido e que, se como tal não foram então conhecidos ou tomados em consideração, poderiam e deveriam tê-lo sido, não podendo agora ser autonomamente apreciados.”
“Recorrendo à terminologia supra mencionada, a força consuntiva da sentença proferida naqueles autos, terá de abarcar também os factos ora trazidos à acusação, na medida em que estes se reconduzem ainda àqueles até onde se podia e devia ter estendido o poder cognitivo do tribunal, pois que não restam dúvidas de que foram praticados no espaço temporal ali considerado, e até à decisão final, relacionando-se directamente com o pedaço da vida apreciado e com ele formando uma unidade de sentido.”
“Questionar-se-á ainda da possibilidade de verificação da excepção de caso julgado, quando se verifica que a sentença proferida nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB foi absolutória.”
“A este propósito, lê-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/04/2010 (proc 976/08.OTAFUN.L1-3) in www.dgsi.pt que: “I – «O crime continuado, por definição, supõe uma continuação de actividades criminosas. Ora se sucede que por sentença se consideram uma ou várias condutas como criminalmente inexistentes, fica com isso excluída a possibilidade de estas poderem considerar-se em qualquer relação de unidade com outras».”
“II – «Deste modo, se, com base em actividades que não foram objecto do conhecimento do juiz num processo anterior que terminou pela absolvição do arguido, é proposta uma nova acção penal, nunca se poderá opor-lhe, com fundamento na unidade resultante de uma relação de continuação criminosa entre essas novas actividades e as apreciadas naquele processo, a excepção do caso julgado»”.
“Contudo, tal não é – em nosso entendimento – o que sucede nos presentes autos.”
“Na verdade, constata-se que nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB, o Tribunal conheceu efectivamente da conduta criminosa, concluindo que a factualidade descrita na acusação integra objectivamente a conduta típica, constituindo, por isso, crime. Contudo, acabou por concluir pela absolvição do arguido por entender estarem em falta factos concretizadores do elemento subjectivo do tipo.”
“Quer isto dizer que os factos (relativamente aos quais os ora descritos na acusação integram a mesma continuação criminosa) foram efectivamente apreciados e julgados, entendendo-se consubstanciadores do elemento objectivo do crime de falsificação de documento e apenas não dando lugar à condenação do arguido, por circunstâncias formais, que dariam lugar à declaração de nulidade da acusação ou mesmo à rejeição da mesma nos termos do art. 311.º do Código de Processo Penal.”
“Ora, perante uma tal decisão, tem de concluir-se que a actividade criminosa cuja unidade agora é reconhecida constituiu efectivamente objecto do conhecimento do juiz nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB, sendo abarcada pelo caso julgado ali formado.”
“Partilhando do entendimento de Eduardo Correia, “renovar o procedimento criminal pela simples adição de qualquer elemento novo aos factos de que o arguido foi absolvido num processo anterior traria consigo a negação de toda a paz jurídica e a permanente possibilidade de sucessivos vexames do arguido como novos processos e julgamentos” – Cfr. Eduardo Correia, Unidade, cit., p. 407.”
“Na prática, admitir a possibilidade em causa nos presentes autos, de o arguido ser novamente sujeito a julgamento, por factos que formavam uma continuação criminosa com aqueles objecto dos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB, mas sendo agora melhor concretizados os factos consubstanciadores do elemento subjectivo do tipo, não poderia deixar de ser entendido como uma nova oportunidade concedida ao Ministério Público de acusar, num mecanismo em tudo semelhante a um despacho de aperfeiçoamento, que se entende legalmente inadmissível à luz dos princípios que regem o direito processual penal.”
“Não pode, pois, deixar de se considerar consumido o respectivo direito de acusação, pois a todos estes factos se deve ter por estendido o valor da sentença proferida nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB.”
“Conclui-se, pois, que relativamente aos factos que na acusação são imputados ao arguido, verifica-se a exceptio judicati, razão pela qual não poderão ser considerados nos presentes autos, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, havendo que proferir despacho de não pronúncia.”
“De referir ainda, que para além de entendermos inaplicável aos presentes autos o aditamento do actual n.º 2 do art. 79º do Código Penal, por traduzir, à luz da norma contida no art. 2º, n.º 4, do mesmo código, um regime menos favorável ao arguido, sempre estaria afastada a possibilidade a ele atender por nenhuma das condutas aqui imputadas ao arguido ser mais grave que aquelas pelas quais o mesmo já foi julgado nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB.”
*
“Nesta conformidade, julgo verificada a excepção de caso julgado e, em consequência, não pronuncio o arguido H[…] pela prática, em autoria material, de doze crimes de falsificação, p. e p., à data dos factos, pelo art. 256.º, n.º 1 als. b) e c) e n.º 3 do Código Penal e actualmente, pelo art. 256.º, n.º 1 als. d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal e, em consequência, determino o arquivamento dos autos.” (cf. fls. 255-267).
*
2.2. DA QUESTÃO DE DIREITO
2.2.1. Conforme jurisprudência consolidada pelo Acórdão do Plenário das Secções Criminais do S.T.J. de 19OUT1995 ([1]), é nas conclusões da motivação que se delimita, se fixa o objecto do recurso, o qual pode restringir-se a questões específicas, revestidas de alguma autonomia decisória – artigo 403.º n.ºs 1 e 2, e artigo 412.º, ambos do Código do Processo Penal –, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente, a verificação da existência, ou não, dos vícios elencados no n.º 2, do art. 410.º, do Código de Processo Penal.
2.2.2. O objecto do presente recurso delimitado pelas respectivas conclusões acima indicadas prende-se no seu “núcleo duro” com o seguinte:
§ Será operante a excepção de caso julgado?
§ […]
*
Da análise da decisão impugnada, do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores à mesma não se indicia a existência de qualquer um dos vícios da previsão das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal.
***
A instrução é uma fase facultativa, necessariamente cometida a um juiz, visando a comprovação da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cf. arts. 286º n.ºs 1 e 2 e 288.º, ambos do Código de Processo Penal).
Constitui assim, no Código de Processo Penal, uma actividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito preliminar, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
Nos termos do art. 308.º, n.º 1 do referido Código de Processo Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.
Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 283.º, n.º 2, do referido Corpo de Leis "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".
A referida “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospectivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabido que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração.
Sendo certo que, salvo casos excepcionais, os meios de prova produzidos nas fases de instrução e de inquérito não serão reforçados até à audiência de julgamento. Pelo contrário, a tendência será no sentido do enfraquecimento dessas provas, quer pela natural erosão do tempo quer porque, em julgamento, aquelas provas irão ser submetidas ao exercício efectivo do direito de defesa que nas fases anteriores do processo se encontra limitado, pelo envolvimento sistemático da defesa em contraditar e causticar as provas da acusação, bem como na procura de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa ou da justificação do facto.
Acresce que o referido juízo retrospectivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto.
Exigindo-se pois, quer da parte do Ministério Público, quer da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objectividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e proibições de valoração da provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova.
Assim a “possibilidade razoável” que o n.º 2 do art. 283.º do Código de Processo Penal exige não se reporta à convicção que a autoridade competente tem de efectuar em relação aos elementos probatórios recolhidos. Reporta-se antes à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento.
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SERÁ OPERANTE A EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO?
Antes de respondermos directamente à questão enunciada necessário se torna fazer um breve bosquejo sobre a figura do caso julgado.
Vejamos.
I — NATUREZA DA EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
A excepção de caso julgado materializa o disposto no art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Por isso, o caso julgado é considerado como uma causa de extinção da acção penal.
O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). Neste último caso, o efeito do caso julgado material manifesta-se fora do processo penal, e para o futuro, impedindo a existência de um ulterior julgamento sobre os mesmos factos.
Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.
Isso implica que existe a necessidade de que a perseguição penal, com tudo o que ela significa - a intervenção do aparato estatual com vista à obtenção de uma condenação -, só se pode pôr em marcha uma vez, o poder do Estado é tão forte que um cidadão não pode estar submetido a essa ameaça dentro de um Estado de Direito.
Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural ([2]). Por isso acertadamente se afirma que esta garantia fundamental deve impedir a múltipla perseguição penal, simultânea ou sucessiva, por um mesmo facto.
Em consequência, como assinala Giovanni Leone: o caso julgado deve identificar-se na imutabilidade da decisão. Caso Julgado, em substância significa decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz) ([3]).
Da mesma opinião é Binder para quem o princípio ne bis in idem tem efeitos muito concretos no processo penal. O primeiro deles é a impossibilidade de modificar uma sentença transitada em julgado contra o acusado. O acusado que foi absolvido não pode ser condenado num segundo julgamento; o que foi condenado, não pode ser novamente condenado por uma sentença mais grave. Por força deste princípio ne bis in idem, a única revisão possível é uma revisão a favor do condenado ([4]).
O caso julgado é uma instituição processual irrevogável e imutável. Traduz o valor que o ordenamento jurídico dá ao resultado da actividade jurisdicional, consistente na subordinação aos resultados do processo, por converter-se em irrevogável a decisão do órgão jurisdicional.
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II — REQUISITOS DE PROCEDIBILIDADE DA EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída. As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas:
Para que proceda a excepção de caso julgado requere-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória. A identidade da pessoa, refere-se só a do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.
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IDENTIDADE DE FACTOS
No segundo limite objectivo do caso julgado, os factos objecto do processo penal anterior devem ser os mesmos que são a base do novo processo penal, independentemente da qualificação jurídica que tiverem merecido em ambas causas. Assim, se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado; inclusive se a qualificação no primeiro processo foi uma simples contra-ordenação ou se tratou de tipificação errónea. O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.
Para a identificação de facto, consequentemente tem que tomar-se em linha de conta os critérios jurídicos de "objecto normativo", "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado", etc. Por conseguinte, parece haver caso julgado quando no segundo processo aparecem uns factos que foram julgados no primeiro, ainda que se apresentem com um aspecto de um crime distinto, se o "objecto normativo" é o mesmo: ofensa à integridade física, em vez de homicídio; e, também, se na mudança de um processo a outro, se refere à forma de autoria ou consiste em variar de esta para a cumplicidade: entra em jogo o critério do "bem jurídico violado" ou o da conexão.
A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto, não vale para consentir uma nova acção penal.
Ora, quando nos referimos “aos factos”, estamos a referir na realidade uma hipótese. Com efeito, o processo penal funda-se sempre em hipóteses fácticas com algum tipo de significado jurídico. A exigência de eadem res significa que deve existir correspondência entre as hipóteses que fundam os processos em questão. Trata-se, em todo caso, de uma identidade fáctica, e não de uma identidade de qualificação jurídica. Não é certo que possa admitir-se um novo processo sobre a base dos mesmos factos e uma qualificação jurídica distinta. Se os factos são os mesmos, a garantia do ne bis in idem impede a dupla perseguição penal, sucessiva ou simultânea.
Em face do exposto, há que ter presente que também existem casos claros como o concurso de normas, subsidiariedade ou consumpção, donde em última instância existe só uma distinção de qualificação jurídica e nenhum tipo de discussão sobre os factos. Por exemplo, um mesmo facto pode constituir uma burla ou uma entrega de cheques sem provisão; evidentemente, esta diferente qualificação jurídica não produz uma excepção ao princípio ne bis in idem porque nos factos – v.g. a entrega de um cheque que cujo pagamento resultou rejeitado – não existe diferença alguma.
Em consequência, do que até agora dissemos, podemos concluir que para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito. Quer se lhe impute que a prática dos factos denunciados foram executados na qualidade de autor ou que noutro caso se precise que esses mesmos factos foram executados só a título de cumplicidade, e inclusive qualificados num distinto tipo penal o que interessa em suma é que ao mesmo sujeito se lhe impute os mesmos factos (apresentado o mesmo comportamento) pelos que se quer de novo submeter a um processo penal.
um terceiro requisito de procedibilidade, que tem relação estreita com a natureza do caso julgado, que respeita a que o primeiro processo tenha sido findo totalmente e que não seja susceptível de meio impugnatório algum, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.
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CASO JULGADO E CRIME CONTINUADO
No crime continuado encontramo-nos diante de uma pluralidade de factos aos que por força da lei corresponde uma unidade de acção e portanto o tratamento como um único crime. Para esse tratamento unitário a lei exige a concorrência de dois elementos indispensáveis a existência de uma pluralidade de resoluções conglobantes de todas as condutas e a uniformidade no ataque da mesma lei penal ou uma de igual o semelhante natureza. Em consequência, que sucederia se o mesmo sujeito é processado primeiro por uma pluralidade de factos que configuram um crime continuado, e logo noutro processo se pretende julgar por um ou alguns dessa pluralidade de factos que configuram esse crime continuado: estaríamos ante um duplo julgamento?
Para responder a esta pergunta, devemos precisar a estruturação normativa e jurisprudencial do crime continuado tal como se encontra positivado no nosso Código Penal. E fazendo uma breve sinopse da doutrina mais autorizada para estabelecer se se pode excepcionar o caso julgado quando se pretende tornar a julgar um mesmo sujeito por um ou mais factos que em conjunto constituem uma unidade como delito continuado.
O crime continuado pode entender-se como uma pluralidade de acções semelhantes objectiva e subjectivamente, que são objecto de valoração jurídica unitária.
Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva.
Ora, para a determinação de identidade de facto, é a nosso ver imprescindível considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsumpção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez. Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem". Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal.
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A excepção de caso julgado é aplicável quando existe identidade de factos ou objecto do processo, identidade do acusado e resolução transitada em julgado ou definitiva.
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À luz do que dito fica vejamos o caso dos autos:
Como emerge das ocorrências relevantes acima fixadas o arguido/recorrido H[…] foi nos presentes autos acusado, em autoria material e em concurso real, da prática de 12 (doze) crimes de falsificação de documento, previsto e punido, à data dos factos, pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 3 do Código Penal e, actualmente, pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal.
No alicerce de tal imputação residem os diversos factos apontados na peça acusatória e que se mostram acima descritos e que aqui cabe relembrar que são os seguintes:
 — “ No ano de 1991, de modo a conseguir encetar fuga do seu país em direcção a Portugal com outra identidade, H[…] Nunes Brandão decidiu solicitar o registo de nascimento e outra documentação em nome de J[…], o que obteve em lugar incerto sito no Brasil.
— Tal decisão prendia-se com o facto de H[…] ser perseguido pela justiça brasileira para efeitos de investigação de prática de crime de homicídio.
— Assim, entre 1991 e até 14.03.2006, H[…] apresentou-se perante as autoridades públicas portuguesas e diversas empresas, em Portugal, com documentação em nome J[…], de modo a iludi-las relativamente à sua verdadeira identidade e de modo a não ser localizado pela justiça brasileira e autoridades judiciais portuguesas.
— Actuando conforme o plano anteriormente delineado, decidiu apresentar-se perante diversas instituições, da seguinte forma:
— Em 15.01.1992, apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a Direcção-Gera1 de Impostos tendo-lhe sido emitido cartão de contribuinte com o número fiscal 208461175, pela última vez em 05.07.2000 (doc. A2).
— Em 17.12.1999, apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a D.G.V., tendo-lhe sido emitida carta de condução da República Portuguesa com o número L-1591964 2 (doc. AI).
— Mais se apresentou, no ano de 1999, perante o banco "C…BANK", com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido o cartão de crédito VISA com o número 4194 0300 4341 […] (doe. A4).
— Em 5.02.2000, apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a Administração de Saúde tendo-lhe sido emitido cartão utente com o número 374658[…] (doc. A3).
— Em 29.12.2000, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a notária do cartório notarial do centro de formalidades das empresas de Lisboa, nomeadamente com bilhete de identidade de cidadão estrangeiro número 161.646.[…], emitido pelo SIC de Lisboa em 19 de Setembro de 1996. Nessa data, e utilizando a documentação pessoal que bem sabia não corresponder à sua verdadeira identidade, outorgou contrato de sociedade comercial por quotas para constituição de sociedade com a firma "POR… - CONSTRUÇÕES, LDA.".
— Em 15.03.2002, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante o Consulado Geral do Brasil em Lisboa, nomeadamente com passaporte com o número CJ929816, tendo-lhe sido emitida Cédula de Matrícula de Cidadão Brasileiro com o número 2034/1991 (doc. A10).
 — Em 7.05.2002, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a Direcção Nacional da "Polícia de Segurança Pública, nomeadamente com bilhete de identidade de cidadão estrangeiro número 161.6[…], tendo-lhe sido emitido livrete de manifesto de armas relativo a uma Espingarda de Caça de marca Sarsilmaz, com o número M79246 (doc. A9).
— Pelo menos em Março de 2004, H[…] apresentou-se com a documentação forjada em nome de J[…] perante a companhia de seguros "Bom[…]", tendo-lhe sido emitido cartão da rede "Ame[…] Express", com o número 37557102152[…] (doc. A5).
— Mais se apresentou, perante o Hospital Santa Maria com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido cartão de utente com o número 796631 (doc. A6).
— Mais se apresentou, perante a "U[…] Card" com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido o cartão de crédito com o número 929816 (doc. A. 7).
— Mais se apresentou, perante a empresa "A[…]", com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitido o cartão de crédito com o número U919801 (doc. A8).
— Mais se apresentou, perante o banco "B[…]", com a documentação forjada em nome de J[…], tendo-lhe sido emitidos diversos cheques da conta com o número 23852850001 (doc. A12).”.
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 O arguido/recorrido requereu a abertura de instrução aduzindo:
“Tais factos [os constantes da acusação] resumem-se às circunstâncias de o arguido munido de documentação forjada em nome de J[…] se apresentar perante diversas instituições solicitando a emissão de diversos documento.
Todavia, o Arguido já foi julgado pela prática dos mesmos factos, conforme sentença proferida pelo 6.º Juízo Criminal do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa no processo n.º 8776/04.0TDSLSB […].
Ora, de acordo com o princípio "ne bis in idem" previsto constitucionalmente no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser julgado duas vezes pela prática do mesmo crime.
[…]
Estamos face a um único crime e não a uma multiplicidade.
No caso vertente, os factos apontam indiscutivelmente para a unidade da resolução criminosa, conforme se pode extrair do excerto supra transcrito da acusação.
O provado evidencia uma actuação do arguido que, embora se consubstancie em várias actuações, é determinada por um só desígnio criminoso pré-orientado para a consecução de um mesmo objectivo "não ser localizado pela justiça brasileira e autoridades judiciais portuguesas".
O arguido agiu com a intenção de obter para si um único benefício ilegítimo, que foi aquele que efectivamente veio a conseguir. Tendo este requisito subjectivo, consistente num dolo específico, do tipo legal de crime de falsificação (…) sido preenchido uma única vez, haverá que excluir a pluralidade de crimes, sob pena de violação do princípio "ne bis in idem".
Há, assim, que afastar tanto a realização plúrima como o crime continuado. Em causa está um só crime, decorrente de uma só intenção criminosa, pelo qual o arguido já foi julgado.
Concluindo que “tendo já o arguido sido julgado pela prática do mesmo crime não poderá ser julgado novamente, propondo-se a provar todos os factos supra alegados.”.
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DA UNIDADE OU PLURALIDADE DE CRIMES
No seu R.A.I. o arguido/recorrido pugna no sentido de que, não obstante a diversidade naturalística dos factos, expressa desde logo na multiplicidade histórica, na distância temporal e na divergência comissiva, estamos perante a prática de um único crime, há uma única resolução criminosa, nem sequer prefigurando ou admitindo a continuação criminosa.
Unidade criminosa essa que a seu ver integra a já julgada nos autos que correram termos sob o n.º 8776/04.0TDLSB, no 6.º Juízo Criminal de Lisboa, concluindo pela patenteada violação do princípio ne bis in idem, da previsão do art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que reza assim: “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”
Para podermos verificar se entre a acusação proferida nestes autos (Proc. n.º 250/06.6PCLRS) e o objecto daquele processo (n.º8776/04.0TDSLSB) existe uma relação de identidade objectiva cabe, desde já, relembrar a acusação ali proferida e a sentença que sobre a mesma recaiu:
Aquela acusação, no que tange à materialidade fáctica expressa:
“Na sequência de factos ocorridos em 1991 em Minas Gerais no Brasil e que determinaram a perseguição do arguido pelas autoridades brasileiras, o arguido, ainda no Brasil veio a obter passaporte brasileiro em nome de J[…], filho de J[…] e de A[…].
Assim na posse de tal passaporte em 30 de Agosto de 1991 deslocou-se para Portugal soba referida identidade, aqui ficando a residir e constituindo família até dia 23 de Junho de 2004, data em que foi detido para efeitos de extradição.
Desta forma, como meio de garantir a sua vivência em território nacional, deslocou-se aos Serviços de Identificação Civil de Lisboa e ali preencheu o impresso de concessão de BI Estrangeiro, juntando cópia da certidão de nascimento de fls. 146 em nome de J[…], sendo-lhe emitido o BI de cidadão estrangeiro n.º 1616[…].
Documento que passou a transportar consigo e a exibir em actos públicos e com que logrou obter licença de uso e porte de arma com o número 1079, emitida pela Divisão de Loures em 29 de Março de 2001 (fls. 120).
Carta de condução n.º L1591964 emitida em 17/12/1999 pela Direcção Geral de Viação e Autorização de Residência também em nome de J[…]e emitida pelo SEF em 28 de Agosto de 2003 (fls. 137).
Vindo, sempre com a referida identidade, a casar catolicamente com A[…]em 23 de Junho de 2002 bem como a registar quatro filhos resultado da união com a mesma.
[…]
Pelo exposto, agindo em unidade de determinação e acção cometeu o arguido, como autor material, um só crime de falsificação, na forma consumada, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código Penal.”
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Tendo o arguido confessado os factos, em 13MAR2009, foi no âmbito dos referidos autos de Proc. n.º 8776/04.0TDSLSB, do 6.º Juízo do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa proferida sentença, que os declarou provados tais como constantes da acusação, absolvendo o arguido, depois de considerar estarmos perante um caso de unidade criminosa, por não bastar «(…) invocar-se a lesão do "interesse público subjacente à incriminação para se afirmar que foi querido o prejuízo do Estado. Para tal será necessário que o agente actue visando, pretendendo causar ao Estado, um concreto prejuízo ou, pelo menos, que actue determinado por essa intenção de pôr em causa a fé pública merecida pelo documento que falsifica ou que usa sabendo ser falsificado. 
É que, em especial quando estão em causa documentos emanados de organismos oficiais, necessariamente, se actuar o agente com dolo genérico e com consciência da ilicitude, estará ciente da lesão do interesse público (na forma genérica e vaga como é a invocada na acusação ou similar - de afectação da credibilidade merecida por tais documentos, dotados de fé pública e conformar -á com tal resultado. Por isso, entender tal circunstancialismo como a "intenção de causar prejuízo (...) ao Estado" é, na prática, retirar autonomia ao dolo específico expressamente previsto e cumulativamente exigido no tipo legal, que, ainda que na vertente da lesão do interesse do Estado, terá que concretizar-se em algo mais do que uma genérica e algo abstracta alegação da consciência de pôr em causa a credibilidade merecida por documentos desta natureza.
Pelo exposto, a não verificação no caso em apreço do elemento subjectivo - dolo específico - previsto no tipo legal impõe a conclusão pela necessária absolvição do arguido.» (cf. fls. 181).
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Cotejando os factos que estiveram na origem dos autos que correram termos sob o n.º 8776/04.0TDLSB, no 6.º Juízo Criminal de Lisboa, e os que destes autos (Proc. n.º 250/06.6PCLRS) constituem objecto, salta aos olhos, que apenas há identidade histórica no que respeita à emissão em 17DEZ1999, mediante apresentação de documentação forjada em nome de J[…] perante a Direcção-Geral de Viação, da carta de condução da República Portuguesa com o número L – 1591964 2, havendo, quanto a este, realmente, caso julgado.
Contudo, salvo o devido respeito por opinião em contrário, quanto aos demais factos elencados em ambas as peças acusatórias, não só aquela identidade histórica não acontece como os períodos que decorrem entre as diversos factos tipificados na lei como crime são de tal forma prolongados que não permitem concluir — seja quando se olha somente para cada uma das acusações, seja quando se opera o mesmo juízo tomando por objecto ambas — pela unidade criminosa.
E isto mesmo para quem, como nós, na esteira de Eduardo Correia ([5]), continue a entender que a unidade ou pluralidade de infracções se afere à luz do concreto número de tipos legais de crime, enquanto portadores de valores jurídico criminais distintos negados, que um determinado comportamento humano viola.
Na verdade, àquela conclusão sempre há que acrescentar dois limites, enxergados em momentos analíticos posteriores: a culpa do agente e a conexão temporal.
Com efeito, o Direito Penal consubstancia um conjunto de normas que visa obstar os indivíduos a formular resoluções criminosas, estes têm que vencer as contramotivações éticas subjacentes à prática do ilícito, violar a função de determinação do tipo, para praticar um determinado crime.
Ora, se bem vemos, uma vez preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime, é nesse exacto momento, aquando da resolução criminosa, da perda de eficácia da norma penal, que se actualiza o juízo de censura e se tem por preenchido.
Expressa Eduardo Correia que “pode suceder, e sucede com frequência, que o momento psicológico, correspondente à realização de uma série de actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal, se estruture de tal forma que esse concreto juízo de reprovação tenha de ser formulado várias vezes,” resultando que “o todo formado por tais actividades se fragmenta agora, na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura (…)([6]).
Afigura-se-nos ser o caso dos presentes autos, em que o arguido/recorrido por diversas vezes, findos diversos períodos de tempo nunca inferiores a um mês, como melhor veremos mais abaixo, tomou a resolução de violar o tipo legal de crime previsto actualmente pelo art. 256.º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal, actualizando repetidamente a sua vontade criminosa, obstando assim à eficácia determinadora do mesmo.
*
A QUESTÃO DA CONEXÃO TEMPORAL
Neste particular, cabe encarar cada facto concreto imputado ao arguido/recorrido considerando que se encontram pormenorizados no tempo e actuando sobre ambas peças acusatórias - por ordem cronológica, expondo-se na primeira coluna a data da prática do facto e na 2.ª coluna o tempo que decorreu até à prática do facto seguinte:


DATA DA PRÁTICA DO FACTOTEMPO QUE DECORREU ATÉ À PRÁTICA DO FACTO SEGUINTE
15/01/19927 anos, 11 meses e 2 dias
17/12/19991 mês e 17 dias
5/02/200010 meses e 24 dias
29/12/20003 meses
29/03/200111 meses e dezasseis dias
15/03/20021 mês e dezasseis dias
07/05/20021 mês e dezasseis dias
23/06/20021 ano, dois meses e 5 dias
28/08/2003-


Ora, se é certo que a mera descontinuidade temporal não ocasiona, infalivelmente, a existência de diversas resoluções criminosas, não há como não ver na estreita conexão temporal a medida para aferir da unidade ou pluralidade de condutas.
Como refere Eduardo Correia “A experiência e as leis da psicologia ensinam-nos que, em regra, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta então que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades do agente, uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal de vida e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação." ([7]).
A esta luz, in casu o decurso do tempo entre cada uma das condutas, nunca inferior a um mês e chegando a ser de quase oito anos, é de tal modo expressivo que, de acordo com as regras da experiência comum, não pode deixar de se afirmar que a cada nova conduta o agente se determinou a preencher o tipo legal de crime em causa, venceu uma e outra vez as contramotivações éticas que o tipo legal de crime transporta.
Na verdade, o decurso de longos períodos de tempo é indiciador, nas palavras de Eduardo Correia, de diversas resoluções criminosas, levando mesmo este autor a afirmar que nestes casos nenhuma prova se deve admitir com vista a demonstrar que a resolução inicialmente tomada se prolonga para além dos limites apontados pela relação no tempo entre as diversas fases da conduta ([8]).
Esta conclusão no caso vertente é, em concreto, sustentada pela multiplicidade heterogénea de documentos que o agente falsificou, determinando-se a tanto à medida que deles precisava, tendendo acorrer a necessidades específicas: identificação civil (Bilhete de Identidade e passaporte), licença de uso e porte de arma, celebração de casamento civil, registo da paternidade de quatro filhos, emissão do cartão de contribuinte, de cartões de crédito, de cartão de utente, outorga de escritura de contrato de sociedade comercial por quotas, livrete de manifesto de armas e diversos cheques.
Ora, almejar como o faz o arguido/recorrido que, apesar dos largos lapsos temporais decorridos entre cada uma das condutas, e da sua heterogeneidade comissiva, estamos perante uma única resolução criminosa, seria como convolar o crime de falsificação de documentos, nomeadamente aqueles actualmente previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e n.º 2 do Código Penal, em crime exaurido, cuja consumação se esgota com uma primeira acção, o que nitidamente, não é o caso dos autos.
Mostra-se, assim, arredada a unidade criminosa, tendo-se por estabelecida a diversidade histórica e a pluralidade de resoluções criminosas que presidiu à comissão de cada um dos crimes pelos quais o arguido vem acusado nos presentes autos (n.º 250/06.6PCLRS).
Não estamos in casu perante o mesmo crime, não havendo, naturalmente, violação do caso julgado pela submissão do arguido a julgamento pelos factos – contanto que abatida seja a emissão da carta de condução – constantes da acusação deduzida nestes autos.
Diga-se em abono da verdade que isso mesmo entendeu a decisão impugnada que de forma dissonante com a decisão (Sentença de 13MAR2009 – Proc. n.º 877/04.OTDSLSB) que integra a matéria prima essencial para a verificação da operacionalidade da excepção de caso julgado, aventou, a existência da figura do crime continuado, a qual pela sua própria natureza implica sempre pluralidade de resoluções.
Com efeito, se tiver havido uma só resolução criminosa a dominar e a presidir a toda a actuação, o crime há-de ser inevitavelmente único, não se colocando a hipótese de pluralidade de infracções nem sequer de crime continuado.
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OPERA OU NÃO IN CASU A FIGURA DO CRIME CONTINUADO?
A decisão impugnada sem ter levado a efeito qualquer diligência instrutória e apesar de tal nunca ter sido invocado nas diversas peças processuais e contrariamente ao aduzido pelo arguido no seu R.A.I. [cf. art. 9.º “(…) os factos apontam indiscutivelmente para a unidade da resolução criminosa”; E 13.° “Há, assim, que afastar tanto a realização plúrima como o crime continuado. Em causa está um só crime, decorrente de uma só intenção criminosa, pelo qual o arguido já foi julgado.”] considerou que, embora ocorra diversidade resolutiva na base da comissão de cada uma das condutas pelas quais o arguido vem acusado, estas se encontram numa relação de continuação com os factos pelos quais o arguido foi acusado, e absolvido, nos autos que correram termos sob o n.º 8776/04.0TDLSB, no 6.º Juízo Criminal de Lisboa.
Ora, analisados uns e outros, vistos já pela óptica naturalística e normativa, concluindo-se, num caso e noutro, pela pluralidade das infracções, importa agora verificar se, em concreto, estes se encontram com aqueles numa relação de continuação.
No que a este aspecto concerne deixou-se plasmado na decisão impugnada:
“Em face do teor da acusação e sentença proferidas nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB, não restam dúvidas de que os factos ali julgados e aqueles pelos quais é deduzida acusação nos presentes autos, se situam num mesmo contexto e em idêntico período temporal.
Efectivamente, os factos imputados ao arguido reportam-se, em ambos os casos, a datas situadas entre 1991 e 2004 (pois que a acusação nos presentes autos não localiza temporalmente quaisquer factos posteriormente a Março desse ano) período ao longo do qual o arguido teria vivido em Portugal sob a falsa identidade de J[…], obtida através de registo de nascimento falso produzido no Brasil, a fim de se eximir à acção da justiça naquele país e evitar a sua localização em Portugal. Nesse período, o arguido ter-se-ia identificado perante diversas entidades, em Portugal, como J[…], obtendo diversos documentos emitidos por aquelas com base na documentação apresentada.
Do confronto dos factos imputados ao arguido num e noutro processo, verifica-se que apenas coincide em ambos a menção à emissão de carta de condução em nome de J[…], não restando dúvidas de que se trata do mesmo documento, emitido na mesma data e com o mesmo número.
Quanto ao mais, e muito embora alguns documentos apresentem uma especial similitude (cfr. a licença de uso e porte de arma nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB e a emissão de livrete de manifesto de arma nos presentes), verifica-se não haver qualquer coincidência entre os documentos a que se reportam aqueles e estes autos.
Contudo, parecem não restar dúvidas em afirmar que se trata do mesmo "pedaço de vida", ou seja, que os factos cuja apreciação se pretende nos presentes autos, formam com aqueles outros (julgados nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB) uma unidade de sentido, no sentido de poder afirmar-se que se não foram apreciados e julgados naqueles autos, tal ficou a dever-se unicamente à forma, porventura menos diligente, como decorreu a investigação naqueles autos, mas que não pode justificar uma nova submissão a julgamento do arguido por aqueles factos. Há identidade do agente, identidade dos meios usados, identidade temporal e acima de tudo identidade da motivação que presidiu ao comportamento do arguido.
Aliás, compulsados os autos, constata-se que a presente acusação funda-se, essencialmente nos documentos que foram apreendidos em busca domiciliária a que o arguido foi sujeito. Quer isto dizer, que se tal diligência tivesse sido levada a cabo nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB (e, naturalmente, em face do objecto do processo tal como levado à acusação, era previsível que o arguido tivesse obtido outros documentos para além daqueles aí elencados), muito provavelmente o arguido teria respondido pela sua emissão e utilização, no âmbito daqueles autos.
Por outro lado, constata-se que a emissão dos diversos documentos com que o arguido fazia a sua vida em Portugal, foi considerada, no âmbito do processo n.º 8776/04.0TDLSB como uma única actuação criminosa, à qual presidia um único desígnio, numa verdadeira unidade de determinação e acção.
Ora, assim sendo, não pode deixar de considerar-se que, à luz do entendimento expendido naquela sentença, os factos ora imputados ao arguido, teriam necessariamente de integrar essa mesma e única conduta típica, por terem sido praticados no mesmo contexto visando o mesmo fim.
Dir-se-á, também, que muito embora não partilhemos daquela concreta posição quanto à qualificação jurídica dos factos, é nosso entendimento que a actuação do arguido (nestes e naqueles autos) integra o cometimento de um crime de falsificação de documento na forma continuada, senão vejamos:
São pressupostos do crime continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- Unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de "uma linha psicológica continuada";
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);
- persistência de uma "situação exterior" que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Eduardo Correia (Direito Criminal, II, 210) indica algumas das situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa:
- ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos;
- voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;
- perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa;
- a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.
Neste mesmo sentido, referindo-se ao crime continuado, aponta douto aresto do STJ de 13/09/2007 (doc SJ200709130027955 in www.dgsi.pt).
No caso concreto, muito embora a actuação do arguido se reconduza a várias resoluções criminosas (tantas quantos os documentos cuja emissão o arguido solicitou), a respectiva censurabilidade é cada vez menor por força de um particular condicionalismo exterior que, de maneira considerável, facilita a repetição da actividade criminosa, ou seja, o registo de nascimento obtido pelo arguido no Brasil, facilitou a emissão de documentos de identificação em Portugal (designadamente o bilhete de identidade de cidadão estrangeiro) que viriam a ser consecutivamente utilizados aquando da solicitação de outros documentos, sendo certo que o arguido actuava motivado por um mesmo fim, qual seja, a sua vivência em Portugal, onde se encontrava estabelecido em termos sociais, familiares e profissionais.
As circunstâncias que envolvem a prática dos factos implicam, desta forma, uma cada vez menor energia criminosa, e traduzem uma diminuição da culpa do agente.
Temos, pois, que os factos pelos quais é deduzida acusação nestes autos, não obstante não terem sido concretamente julgados nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB (à excepção da emissão da carta de condução), estão em relação àqueles outros numa relação de unidade, de continuação criminosa, pois que, a estes como àqueles, está subjacente uma mesma motivação e um mesmo circunstancialismo exógeno que determinou aqueles vários comportamentos por parte do arguido, apenas ali não tendo sido julgados, por omissão da própria investigação levada a cabo e que, aliás, se ali fossem apreciados, seriam necessariamente englobados na unidade criminosa que ali se entendeu existir.
Não obstante então não se ter sido concretamente apreciada a conduta do arguido no respeitante aos documentos ora discriminados na acusação, resulta claro que todos integram uma mesma unidade de sentido e que, se como tal não foram então conhecidos ou tomados em consideração, poderiam e deveriam tê-lo sido, não podendo agora ser autonomamente apreciados.”,
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Salvo o devido respeito por opinião em contrário, não é de aceitar este entendimento.
Vejamos sucintamente o porquê desta afirmação.
In casu dúvidas não se colocam de que estamos na presença da realização plúrima do mesmo tipo legal de crime e da lesão do mesmo bem jurídico.
 Porém, salvo o devido respeito por opinião em contrário, do simples esmiuçar dos factos plasmados nas peças acusatórias facilmente se enxerga que não há — como erradamente se afirma na decisão recorrida —, homogeneidade na forma de execução do crime.
Na verdade, para além da circunstância de preencherem o mesmo tipo legal de crime não vislumbramos, porquanto realmente não existe, qualquer similitude fáctica, patenteada no plano comissivo, entre:
— Celebrar matrimónio;requerer licença de uso e porte de arma; — a emissão de cartões de crédito; — de documentos de identificação civil, como o passaporte e o Bilhete de Identidade; — proceder ao registo da paternidade de quatro filhos; — requerer a emissão do cartão de contribuinte, de cartões de crédito, de cartão de utente; — outorgar escritura de contrato de sociedade comercial por quotas; e — obter livrete de manifesto de armas e diversos cheques.
A diversidade de formas revelada pela dissemelhança na execução do crime é nesta sede relevante na medida em que contraria o pressuposto na base do crime continuado: o facto de a circunstância exterior ser o verdadeiro substrato que determina a comissão do ilícito.
Contudo, estando-se perante um conceito elástico-casuístico, haverá que o conjugar com outros, como a homogeneidade na lesão do bem jurídico, a existência de uma “linha psicológica continuada”, ou unidade do dolo, e a presença de uma circunstância exterior que diminua sensivelmente a culpa, só assim se podendo concluir definitivamente num e noutro sentido. 
O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Na verdade, de harmonia com uma concepção normativa pura da culpa, vê-se nesta não somente uma demonstração da vontade interior mas ainda, e também, o resultado da situação ambiente exterior.
Ora o agente, na acção penalmente relevante, é motivado não só pelo processo psico-fisiológico de motivação da vontade, mas também pelas reais circunstâncias que, a cada vez, encara.
Em sede de crime continuado o quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
Eduardo Correia fala da disposição exterior das coisas para o facto, da existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilita a repetição da actividade criminosa ([9]).
Assim, só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.
Paulo Pinto de Albuquerque, em OUT2010, na esteira da Jurisprudência uniforme do S.T.J. há muito cimentada, ([10]) refere  “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. No caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa não há diminuição sensível da culpa. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.” ([11]).
Ora, a nosso ver, sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.
In casu, se bem vemos, as circunstâncias são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa.
Ora, se no “núcleo duro” da continuação criminosa está a diminuição considerável da culpa – e esta entendida na sua concepção normativa, e não apenas psico-fisiológica –, a menor exigência de actuação do arguido/recorrido de acordo com o direito devido a uma situação objectiva exterior com que se depara, operar-se-ia um absoluto desvirtuar da figura se se entendesse actuar com culpa diminuída o agente que se depara com uma circunstância facilitadora do crime que, afinal, tinha sido ele a criar.
Na verdade, na situação dos autos é o próprio arguido/recorrido a determinar o cenário, o agente actuou aperfeiçoando a realidade exterior aos seu desígnios e propósitos sendo ele a dominá-la, e não esta a dominá-lo.
Na decisão impugnada, ora em crise, ali se expressou que “a respectiva censurabilidade é cada vez menor por força de um particular condicionalismo exterior que, de maneira considerável, facilita a repetição da actividade criminosa, ou seja, o registo de nascimento obtido pelo arguido no Brasil, facilitou a emissão de documentos de identificação em Portugal (designadamente o bilhete de identidade de cidadão estrangeiro) que viriam a ser consecutivamente utilizados aquando da solicitação de outros documentos, sendo certo que o arguido actuava motivado por um mesmo fim, qual seja, a sua vivência em Portugal, onde se encontrava estabelecido em termos sociais, familiares e profissionais.”.
Ou seja, como a própria decisão impugnada reconhece:
(i) foi o arguido quem obteve o registo de nascimento falso no Brasil e o Bilhete de Identidade de cidadão estrangeiro, também falso, em Portugal.
(ii) Quem solicitou a emissão de todos os outros documentos, mediante a apresentação daquele registo de nascimento e daquele B.I. falsificados.
Assim, nenhuma oportunidade se lhe apresentou, se verificou.
Na verdade, se bem vemos, foi o arguido/recorrido quem, activamente, as provocou, violando sucessivamente, e apesar dos lapsos temporais decorridos e que lhe permitiam mover a sua consciência crítica para os actos que empreendia, as normas jurídico-penais que lhe exigiam comportamento diverso.
Não há circunstância exterior, mas sim uma predisposição anterior do agente. Nem há culpa diminuída. Sendo consabido que para a verificação do pressuposto do crime continuado não se mostra suficiente que se verifique uma situação exterior normal ou geral que facilite a reiteração. Na verdade, quando a situação exterior é normal ou geral não pode ser considerada como diminuidora da culpa arredando desde logo a figura do crime continuado.
Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque ([12]), na esteira da orientação uniforme do S.T.J., “no caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa não há diminuição sensível da culpa. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.”
Pelo que dito fica, no caso em apreço não é operante a figura do crime continuado positivada no n.º 2 do art. 30.º do Código Penal.
À mesma conclusão chegamos se tivermos presente a longevidade espácio-temporal das plúrimas violações.
Seguimos Eduardo Correia quando este menciona que a proximidade temporal entre as diversas condutas não é factor decisivo para afastar ou concluir pela continuação criminosa. Contudo, a evidência da possibilidade do agente reiterar a sua conduta “no quadro de uma mesma situação exterior” não é quanto a nós temporalmente ilimitada, impõe que por ser tão larga a distância temporal entre os vários actos, se deve considerar afastada a possibilidade de a mesma situação exterior ter presidido a todos, reconhecendo-se nesse caso o papel decisivo na exclusão da figura do crime continuado.
In casu, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não vislumbramos como é realizável, em que nunca dista, entre as infracções mais próximas, menos de um mês, concluir por uma diminuição da culpa.
Como assevera Paulo Pinto de Albuquerque ([13]), na esteira do Ac. do S.T.J. de 20OUT1999 ([14]), “a mediação de um período de tempo tão dilatado [uma semana ou um mês] entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo, já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída mas com um dolo empedernido no crime.”.
Afigura-se-nos que no caso sub judice não há uma linha psicológica continuada, não há um só juízo de censura.
Na verdade, quando observamos mais de perto o objecto destes autos e o objecto do processo que correu termos sob o n.º 8776/04.0TDLSB, no 6.º Juízo Criminal de Lisboa, não estamos nem perante um único crime nem perante um crime continuado.
Com efeito, por uma banda, não há identidade histórica, critério que o Ac. desta Relação de Lisboa de 28ABR2010 (Carlos Almeida) ([15]), já estabeleceu  e que temos por correcto,  e que, com as devidas adaptações se aplica ao caso vertente, onde se sentenciou:
A recorrente suscita, como questão prévia, a existência de um caso julgado absolutório que impediria a apreciação dos factos que lhe foram imputados nos autos principais e no processo a eles apenso, pelos quais foi condenada em 1.ª instância.
Não tem, porém, manifestamente, qualquer razão.
Se analisarmos a acusação proferida no processo com o NUIPC 143/06.7TAFUN (fls. 447 a 456), da qual ela veio a ser absolvida por sentença proferida em 11 de Janeiro de 2008 (fls. 386 a 392), verificamos que os factos que nela lhe eram imputados, embora integrando tipos de crime com o mesmo “nomen iuris”, são, na sua identidade histórica, completamente diferentes dos que constituem o objecto deste processo.
Não existe, por isso, identidade entre os factos que constituem o objecto dos dois processos, razão pela qual o princípio “ne bis in idem” não impede o julgamento e subsequente condenação nestes autos.
Não é pelo facto de o Ministério Público ter qualificado aqueles factos, cuja prática pela arguida não se veio a provar, como integrando um crime continuado de peculato e um crime de falsificação de documentos ou pela circunstância de na sentença recorrida se ter considerado que as várias apropriações de dinheiro constituíam um único crime continuado de peculato que o Estado estava impedido de perseguir e punir estes últimos factos, que são naturalisticamente autónomos e que foram praticados pela arguida em momentos distanciados no tempo, quando nada apontava nem aponta no sentido de que os poderes cognitivos do tribunal de 1.ª instância que julgou aquele outro processo se pudessem ter estendido aos factos que constituem o objecto destes autos.”.
Por outra, como vimos, não há na situação em apreço, unidade criminosa, ou crime continuado.
Não se está perante o mesmo “pedaço de realidade”.
Na verdade, o Tribunal da primeira decisão não poderia ter conhecido dos factos objecto dos presentes autos.
Na verdade, mesmo que exista essa coincidência entre os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado, e ainda limitado que esteja o tribunal pelo princípio acusatório, a sua actividade cognitiva deve, contudo, exercer-se esgotantemente e, portanto, alargar-se não só ao facto que na acusação se descreve mas a tudo que com ele constitua uma unidade jurídica, a mesma infracção.
Como escreveu na obra que vimos indicando Eduardo Correia “logo se vê que a solução do problema dos limites da unidade do objecto processual terá que socorrer-se dos critérios de distinção entre unidade e pluralidade de infracções que o direito substantivo fornece. Só quando estes mostrem que se está em face duma infracção autónoma e diversa da acusada cessa, pelo menos vistas as coisas de um certo lado, o poder e dever de cognição do tribunal.”.
Continuando, diz que uma prévia absolvição pela prática de um crime continuado pode “vir também a importar a consunção do exercício da acção relativamente a factos nela não apreciados, sempre que num segundo processo se mostre que, verdadeiramente, as condutas por que se absolveu o arguido eram criminalmente relevantes e que entre elas e os novos factos existe uma relação de continuação tal que os polariza numa unidade» ou quando actividades diferentes das descritas se devessem «considerar como realizando justamente a mesma concreta ofensa de valores jurídico-criminais acusada”.
Ora, como vimos, os factos que constituem o objecto dos dois processos não integram uma mesma infracção, nem sequer um crime continuado.
Assim sendo, uma vez que não estamos na presença, nos dois processos, nem do mesmo crime nem de um crime continuado assiste razão ao recorrente quando aduz ter a decisão impugnada violado o disposto no art. 29.º, n.º 5, da CRP, e no art. 30.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
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Noutra ordem de ideias, na esteira do referido – embora não defendido – por Eduardo Correia ([16]), cabe mencionar a força argumentativa apresentada “O crime continuado, por definição, supõe uma continuação de actividades criminosas. Ora se sucede que por sentença se consideram uma ou várias condutas como criminalmente inexistentes, fica com isso excluída a possibilidade de estas poderem considerar-se em qualquer relação de unidade com outras.
Deste modo, se, com base em actividades que não foram objecto do conhecimento do juiz num processo anterior que terminou pela absolvição do arguido, é proposta uma nova acção penal, nunca se poderá opor-lhe, com fundamento na unidade resultante de uma relação de continuação criminosa entre essas novas actividades e as apreciadas naquele processo, a excepção do caso julgado.
Na verdade, uma decisão no sentido de que certos factos estão numa continuação com aqueles por que o mesmo agente foi absolvido num processo anterior parece apenas possível esquecendo-se que todas as condutas que formam um crime continuado devem ser criminosas, ou admitindo que o segundo juiz tome nova posição sobre a natureza penal das actividades apreciadas no primeiro processo. Só nesta última hipótese, ou seja, convencendo-se o tribunal da existência e punibilidade dos factos por que o réu foi absolvido no processo anterior, se poderia efectivamente falar de continuação criminosa. Simplesmente, tal convicção vai de encontro ao que resulta da primeira sentença e, portanto, não pode ser afirmada sem ofensa do princípio do caso julgado” ([17])
Contudo, considerou a decisão impugnada que nos autos com o n.º 8776/04.0TDLSB, o Tribunal “conheceu efectivamente da conduta criminosa, concluindo que a factualidade descrita na acusação integra objectivamente a conduta típica, constituindo, por isso, crime. Contudo, continua, acabou por concluir pela absolvição do arguido por entender estarem em falta factos concretizadores do elemento subjectivo do tipo.
Quer isto dizer que os factos (relativamente aos quais os ora descritos na acusação integram a mesma continuação criminosa) foram efectivamente apreciados e julgados, entendendo-se consubstanciadores do elemento objectivo do crime de falsificação de documento e apenas não dando lugar à condenação do arguido por circunstâncias formais, que dariam lugar à declaração de nulidade da acusação ou mesmo à rejeição da mesma nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal.”.  
Salvo o devido respeito por opinião em contrário, parece-nos não ser correcto tal entendimento.
Com efeito, se na realidade o tribunal conheceu da conduta criminosa, concluindo (…) pela absolvição do arguido por entender estarem em falta factos concretizadores do elemento subjectivo do tipo, não se enxerga como pode daí retirar-se que a factualidade descrita na acusação integra objectivamente a conduta típica, constituindo, por isso, crime.
 Na verdade, a falta de um elemento subjectivo do tipo legal de crime afasta a sua tipicidade.
Ora, mesmo que a conduta seja típica, objectiva e subjectivamente, se o tribunal sentencia não ser punível é já o bastante para se entender não pode fazer parte de uma continuação criminosa, por não ser, em rigor, ela mesma, crime.  
E assim é porque se protege com tal entendimento o caso julgado, que nasceu, como vimos, da necessidade de segurança jurídica nas decisões dos tribunais.
Nesta conformidade, entender, como o faz a decisão impugnada que as condutas objecto destes autos estão em continuação criminosa com aqueloutras – apreciadas nos autos n.º 8776/04.0TDLSB –, onde se concluiu pela absolvição do arguido por falta de um elemento subjectivo do tipo traduz violação do caso julgado, pois contraria uma decisão judicial já transitada, violando assim o disposto no art. 29.º, n.º 5, da CRP.
[…]
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3. DISPOSITIVO
Perante tudo o que exposto fica, acordam os Juízes que compõem a 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
& Em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, revoga-se a decisão impugnada datada de 21DEZ2010, que deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido/recorrido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público nestes autos em 08JUN2009 e constante de fls. 155 a 166, descontando a emissão, em 17DEZ1999, de carta de condução da República Portuguesa com o número L-1591964 2.
& Em declarar que não é devida tributação.
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Lisboa, 13 de Abril de 2011 (processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas)
Rui Gonçalves
Conceição Gonçalves

([1]) In D.R., I.ª Série -A de 28DEZ1995.
([2]) VIVAS USSHER, G.,  Manual de Derecho Procesal Penal, Tomo I. Córdoba: Alveroni, 1999, p. 150
([3]) LEONE, G. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo III. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa - América, 1963, p. 321.
([4]) BINDER, A. Introducción al derecho procesal penal. Buenos Aires: Ad Hoc, 2002, p.  174.
([5]) CORREIA, Eduardo Henriques da Silva, in A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Almedina, Coimbra, 1996,  pp. 84 e ss..
([6]) Idem, pp. 92 e ss., Almedina, Coimbra, 1996.
([7]) Ibidem, pp. 96 e ss., Almedina, Coimbra, 1996.
([8]) Ibidem, pp. 100 e ss., Almedina, Coimbra, 1996.
([9]) CORREIA, Eduardo Henriques da Silva, in Direito Criminal, Vol. II, 211 e ss., Almedina, Coimbra, 1971.
([10]) Cf. a título exemplificativo, os Acs. do S.T.J. de 10ABR1996, Proc. n.º 46 700;  de 10DEZ1997, Proc. 1192/97; 15JUN2000, Proc. n.º176/2000,  e de 16DEZ2000, Proc. n.º1166/99.
([11]) ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pp. 139, Universidade Católica editora, Lisboa, 2008, 2.ª ed. OUT2010, nota  (29) p. 162.
([12]) Ob. cit. p.  162.
([13]) Ob cit. p. 161 nota (25).
([14]) Proc. n.º957/99.
([15]) Proc. n.º 976/08.OTAFUN.L1, desta 3.ª Secção.
([16]) CORREIA, Eduardo, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Livraria Almedina, Coimbra, reimpressão de 1983, pp. 353 e 354.
([17]) Nesta linha, transcrevendo Eduardo Correia, decidiu o Ac. desta Relação de Lisboa de 28ABR2010 (Carlos Almeida), proferido no âmbito do Proc n.º 976/08.OTAFUN.L1, desta 3.ª Secção.
Decisão Texto Integral: