Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SIMONE ABRANTES DE ALMEIDA PEREIRA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES CRIME EXAURIDO ACTOS DIVERSOS LOCAIS BUSCA DOMICILIÁRIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/02/2025 | ||
Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | CONFLITO DE COMPETÊNCIA | ||
Decisão: | DIRIMIDO | ||
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Sumário: | 1. É consensual na doutrina e na jurisprudência que o crime de tráfico de droga é um crime exaurido, isto é, um crime que fica consumado através da comissão de um só acto de execução, ainda que sem chegar à realização completa e integral do tipo legal preenchido pelo agente. Basta, para a consumação do crime, a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido (a saúde pública). O crime consuma-se em qualquer (e em todos) os momentos em que o agente pratique alguma das acções típicas descritas no artigo 21º, n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 de 22.01; 2. Uma busca domiciliária e a subsequente apreensão do produto estupefaciente não pode ser tido como “último acto ou tiver cessado a consumação” a que alude o artigo 19º, nº 3 do CPP. Tal acto corresponde a uma diligência de obtenção de prova e não a um acto de execução ou de cessação perpretado pelo arguido; 3. Estando imputada nos autos a prática de actos com relevância criminal prevista no artigo 21º do DL n° 15/93 em diversas localidades e concelhos do distrito de Lisboa, está afastado o campo de aplicação do artigo 19º do CPP, havendo que convocar a norma que respeita à fixação de competência em situações de "crime de localização duvidosa ou desconhecida" a que se refere o artigo 21°. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Decisão: I. RELATÓRIO: No âmbito do processo 2491/220T9AMD, foram acusados e pronunciados [decisão com Referência cititus 153773026] para julgamento, em processo comum, perante Tribunal colectivo, AA [pela prática em autoria material e co-autoria e na forma consumada, um crime de Tráfico e outras actividades ilícitas de substâncias estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º1 e 24.º al. c) do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-B, I-C, anexas a este diploma e um crime de Detenção de arma proibida, nos termos dos artigos 2.º, n.º 3, al. m), u), al. ac), 3.º, n.º 3, al. b) e n.º 4, al. b) 86.º, n.º1, al. c) e d) da Lei 5/2006,de 23 de Fevereiro, como reincidente nos termos do artigo 75.º e 76.º do Código Penal], BB [pela prática em autoria material e co-autoria e na forma consumada, um crime de Tráfico e outras actividades ilícitas de substâncias estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º1 do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, anexa a este diploma e um crime de Detenção de arma proibida, nos termos dos artigos 3.º, n.º 4, al. b) e 86.º, n.º 1, al. c) e d) e n.º2 da Lei 5/2006,de 23 de Fevereiro], CC [pela prática em autoria material e co-autoria e na forma consumada, um crime de Tráfico e outras actividades ilícitas de substâncias estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º al. c) do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C anexa a este diploma], DD [pela prática em autoria material e co-autoria e na forma consumada, um crime de Tráfico e outras actividades ilícitas de substâncias estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º al. c) do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C anexa a este diploma, como reincidente nos termos do artigo 75.º e 76.º do Código Penal] e EE [pela prática em autoria material e co-autoria e na forma consumada, de um crime de Tráfico e outras actividades ilícitas de substâncias estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, anexa a este diploma]. Os autos foram remetidos à distribuição para julgamento ao Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 1), que se declarou incompetente, por despacho de 08.01.2025, e ordenou a remessa dos mesmos ao Juízo Central Criminal de Loures, sendo aí distribuídos ao Juiz 5, que igualmente se declarou incompetente, por despacho de 22.01.2025, considerando competente o Juízo Central Criminal de Loures e suscitando o conflito negativo de competência junto deste Tribunal da Relação de Lisboa. * Os despachos de declaração de incompetência transitaram em julgado, daí decorrendo um conflito negativo de competência (artigo 34º, nº 1 do CPP). * Neste Tribunal foi cumprido o disposto no artigo 36º, nº 1 do CPP, tendo os sujeitos processuais tomado a posição expressa nas peças processuais juntas, pugnando o Ministério Público, no seu parecer, pela atribuição da competência ao Juízo Central Criminal de Sintra, com base na seguinte argumentação [transcrição na parte relevante]: «(…) emite parecer no sentido de que o tribunal competente para proceder ao julgamento é o Juízo Central Criminal de Sintra – Lisboa Oeste, não só pelas razões aduzidas no douto despacho de Despacho de 22/1/2025 do Juiz 5 Juízo Central Criminal de Loures , as quais, por merecerem a nossa concordância, aqui damos por reproduzidas, mas também porque em casos como o presente, idêntica solução tem sido tomada pelos Tribunais superiores (cfr., Decisão do STJ de 24/4/2023 proferida em sede de Conflito Negativo, consultável nas bases da DGSI). emite parecer no sentido de que o tribunal competente para proceder ao julgamento é o Juízo Central Criminal de Sintra – Lisboa Oeste, não só pelas razões aduzidas no douto despacho de Despacho de 22/1/2025 do Juiz 5 Juízo Central Criminal de Loures , as quais, por merecerem a nossa concordância, aqui damos por reproduzidas, mas também porque em casos como o presente, idêntica solução tem sido tomada pelos Tribunais superiores (cfr., Decisão do STJ de 24/4/2023 proferida em sede de Conflito Negativo, consultável nas bases da DGSI).». II. Apreciação: Nos termos da regra geral constante do art.º 19.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação". É com base nos factos descritos na acusação/pronúncia – que fixa em primeira linha o objecto do processo – que deve ser decidida a questão da competência [Ac. do STJ, de 4 de Julho de 2007, proc. 1502/07 – 3ª Secção]. Os arguidos mostram-se pronunciados, para além do mais, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, na sua forma simples e agravada, conforme descrição individualizada consignada no relatório. É consensual na doutrina e a jurisprudência que o crime de tráfico de droga é crime exaurido, isto é, um crime que fica consumado através da comissão de um só acto de execução, ainda que sem chegar à realização completa e integral do tipo legal preenchido pelo agente. Basta pois, para a consumação do crime a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido (a saúde pública)- vd. art 21° n° 1 do DL n° 15/93. O crime consuma-se em qualquer (e em todos) os momentos em que o agente pratique alguma das acções típicas descritas no artigo 21º, n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 de 22.01, que estabelece que quem "sem para tal se encontrar autorizado cultivar, produzir, fabricar, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver produtos estupefacientes”, integra aquela previsão, sem que a lei distinga a qualidade da pessoa a quem é cedida ou proporcionada a substância. Este normativo tipifica uma plêiade de acções e não apenas o tráfico em sentido estrito e desenha um crime de perigo abstracto, em que se procurou tipificar todas as formas de contacto com produtos estupefacientes, desde o produtor até ao consumidor final, potencialmente lesivas do bem jurídico tutelado - a saúde pública. Como refere Carmona Salgado [in "Curso de Derecho Penal Espanol, Parte Especial", Marcial Pons, 1997, Vol.11, pág. 157), procura punir-se todo o comportamento capaz de contribuir para o consumo, por mais leve que seja, pois a saúde pública sofre de forma idêntica com a transmissão onerosa ou gratuita de estupefacientes (Cfr. igualmente Lourenço Martins, "Droga e Direito", Aequitas, 1994, pág. 123, Ganzenmuller, Frigola, Escudero, "Drogas, substancias psicotrópicas y estupefacientes", Ed. Bosch, 1997, pág. 68 e Claus Roxin, "Derecho Penal - Parte General", Tomo 1, Ed. Civitas, 1997, pág. 89]. Como se afirmou no Ac. do STJ de 16.06.2010 [processo nº 273/08.0 JELSB-B.E1-A.S1, publ. In www.dgsi.pt], citando o acórdão recorrido, «o facto de o crime de tráfico de estupefacientes ter a natureza de crime exaurido, obsta por natureza a que possa ter a natureza de crime continuado no entanto, não impede que, por se tratar de um crime de actividade que ele possa ser igualmente um crime de execução continuada, em que são praticados vários actos de execução, que integram um só crime.». Extrai-se do despacho judicial proferido pelo Juízo Central de Sintra, que declinou a sua competência para julgar a causa, que tal decisão assenta no argumento de que “o crime de tráfico de estupefacientes implicou a prática de diversos actos de consumação, ou seja, (…) a imputação da prática de crime que se consumou por actos sucessivos e reiterados”, sendo, por isso, competente “o local do último acto ou a cessação da consumação” – que, na sua interpretação, ocorreu em ........2024, na ... [jurisdição do Tribunal de Loures]. Com relevância para a aferição da competência, extrai-se da pronúncia a prática pelos arguidos de diversas acções típicas cometidas em diversas localidades da área Metropolitana de Lisboa, a que acresce o transporte do produto estupefaciente adquirido em ... para revenda em Portugal. O Tribunal Central Criminal de Sintra, erigiu como critério relevante para a fixação da competência, por referência ao disposto no artigo 19º, nº 3 do CPP, a factualidade descrita no ponto 350 do despacho de pronúncia, com o seguinte teor «No dia ........2024, pelas 7h20m, no interior da sua residência sita na ..., o arguido EE tinha na sua posse e de sua pertença (auto de apreensão de fls. 4876 e 4877; auto de busca e apreensão de fls. 4880 a 4882, relatório do LPC de fls. 5244 e 5244 verso): - um telemóvel de marca ..., modelo ... No sótão: - 02 balanças de precisão com vestígios de produto estupefaciente; - 1 embalagem contendo no interior Canábis (folhas e sumidades); - diversas embalagens em plástico ZIP, - 1 agenda, identificada na primeira página com o nome do visado EE, e respectivo contacto telefónico (...) com vários apontamentos correspondentes a transacções de estupefacientes com anotações “FF”; “GG”; “HH”; “II”, “JJ”, “KK”, “LL”, “MM”, “NN”, “OO”, “JJ”, “PP”, datas correspondentes a transacções, assim como valores monetários correspondentes; - 20 frascos em vidro/plástico contendo no interior vários pedaços de Canábis (folhas e sumidades); - 5 frascos em vidro, contendo no interior vários pedaços de Canábis (folhas e sumidades); Em cima do cofre em metal, fixado na parede: - uma embalagem em plástico contendo no seu interior vários pedaços de Canábis (folhas e sumidades); - 3 embalagens em plástico com vestígios de produto estupefaciente; No interior do cofre: - 1 embalagem de pequenas dimensões contendo no seu interior 2 pedaços de Canábis (resina); - a quantia de 5250,00€ fraccionado em notas; Na parede localizada junto ao cofre: - um calendário em papel com apontamentos manuscritos e associados a pessoas e valores correspondentes a vendas de estupefacientes, à semelhança dos apontamentos na agenda.». Ora, tal como bem referiu o Juiz do Tribunal Central Criminal de Loures, não se afigura que uma busca domiciliária e a subsequente apreensão do produto estupefaciente possa ser tido como “último acto ou tiver cessado a consumação” a que alude o artigo 19º, nº 3 do CPP. Tal acto corresponde a uma diligência de obtenção de prova e não a um acto de execução ou de cessação perpretado pelo arguido. Assim sendo, os elementos que temos por seguros relativamente à prática de actos com relevância criminal prevista no artigo 21º do DL n° 15/93 apontam para diversas localidades e concelhos do distrito de Lisboa, afastando-nos do campo de aplicação do artigo 19º do CPP. Não sendo possível aplicar as regras gerais do artigo 19° afigura-se que a solução, nas circunstâncias, passa pelo recurso à norma que respeita à fixação de competência estando em causa "crime de localização duvidosa ou desconhecida" a que se refere o artigo 21°. Dispõe o referido artigo: 1 — Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime. 2 — Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.» A jurisprudência, por seu turno, vem entendendo que a acção penal se inicia no momento em que é dado conhecimento do facto criminoso à autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédios dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. O que significa que o processo se inicia com a aquisição da notícia do crime, nos termos do art. 241º e ss CPP, pelo que a partir daí existe inequivocamente uma acção penal pendente. No caso presente, os autos tiveram início com uma certidão extraída do inquérito nº 641/22.5 PDAMD, que corria termos na 3ª secção do DIAP da Amadora que, por sua vez, teve início com uma informação do Comando Metropolitano de Lisboa- Divisão da Amadora, dando notícia da factualidade susceptível de integrar o crime objecto do processo. Pelo que, atento o critério exposto se determina a competência territorial para o julgamento ao Juízo Central Criminal de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste. IV. Decisão: Pelo exposto, decide-se dirimir o conflito negativo de competência, atribuindo a competência para julgamento da causa ao Juízo Central Criminal de Sintra, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste [Juiz 1]. Sem tributação. Cumpra o artigo 36º, nº 3 CPP. * Informe de imediato os Tribunais conflituantes. Lisboa, 2 de Abril de 2025, Simone Abrantes de Almeida Pereira Consigna-se que a presente decisão foi elaborada e revista pela signatária. |