Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
567/2006-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: JOGO CLANDESTINO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. O artº 108º da lei do jogo ( DL 422/89) ao referir: “1 - Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias. ;2 - Será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora”, não pretende que se puna apenas e só porque se é empregado, administrador, director, ou gerente, mas que tal actividade seja dirigidamente orientada de modo a que haja uma colaboração em comparticipação dolosa da exploração dos jogos, por qualquer forma. É este sentido hermenêutico que melhor corresponde ao objectivo da lei.

2. Ao dar-se como provado que - A arguida bem conhecia as características do material apreendido e dos jogos por ele desenvolvidos; De igual modo, bem sabia a arguida que não podia explorar, ou possibilitar a exploração naquele local dos referidos jogos.”, tal afirmação a nada de decisivo conduz. O facto de a arguida saber que não podia explorar máquinas de jogo não é o mesmo que dizer que ficou provado que as explorava ou que fomentava essa exploração e que quis fazê-lo. Não se retirando da matéria assente como ou de que maneira a arguida permitia e fomentava a exploração, não basta para a punição provar-se ser-se empregado de um estabelecimento onde existam máquinas que explorem jogos de fortuna ou azar e que se saiba que tais máquinas têm essas características. Se assim fosse, um simples empregado de limpeza devia ser penalmente imputável. Qualquer trabalhador que nessas condições estivesse e por medo de perder o emprego não fizesse oposição à actividade veria recair sobre si um ónus insuportável.
3.A ligação à actividade deve ser mais íntima e rodeada de circunstâncias que imponham uma maior participação directa na exploração ou no fomento da mesma. Não basta saber que as máquinas existem e ser-se empregado do estabelecimento. Tem de se provar uma conduta activa que permita extrair a conclusão de que a colaboração nessa exploração é importante e relevante, sem a qual a exploração não seria possível ou seria ao menos mais dificultada.

Decisão Texto Integral: (...)2.2-As questões essenciais suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são as seguintes:

1) SE A SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRIDA PADECE DE INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA

2) SE A SENTENÇA CONDENATÓRIA VALOROU INCORRECTAMENTE AS PROVAS PRODUZIDAS, VIOLANDO O PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA (ARTº 127º DO C.P.P.)

3) SE A SENTENÇA CONDENATÓRIA ERRA NA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS JOGOS DENOMINADOS “PIRUÇAS” E “DESFOLHANDO UM MALMEQUER” COMO JOGOS DE FORTUNA OU AZAR, QUANDO TAIS JOGOS DEVERIAM SER QUALIFICADOS COMO MODALIDADES AFINS DE FORTUNA OU AZAR

2.3- Vejamos para já quais os FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA:

“São os seguintes os factos que a sentença recorrida indica como estando provados:

1. A arguida trabalha no estabelecimento de snack-bar denominado “Snack-bar P” sito no mercado municipal de B, desde data não apurada.

2 . No dia 26 de Novembro de 2004, pelas 10:00 horas, no referido estabelecimento, encontravam-se expostas duas máquinas para exploração, sendo uma com expositor contendo um número indeterminado de invólucros de plástico com três senhas de papel no interior de cada um e um cartaz denominado “O Piruças”, bem como um cartaz de cartão com a designação “Desfolhando Malmequer”, a par de uma caixa de cartão com a inscrição “Desfolhando o Malmequer”, contendo no seu interior um número indeterminado de senhas dobradas.

3. Também se encontrava em exploração uma outra máquina de jogo electrónico tipo roleta denominada “Berlindes Decorativos”.

4. Na máquina descrita no ponto 1) dos factos provados, o interessado adquire pelo preço de 0,15€/cada, a quantidade de senhas (cromos) que deseja, em seguida, retira manual e aleatoriamente, de dentro da caixa, a quantidade de senhas compradas.

5. Desdobradas as senhas, mostram motivos florais e apresentam, na parte inferior, as inscrições:

- “RECORTE ESTE CROMO E COLE-O NA CADERNETA” associada a flores que não sejam malmequeres;

- "Série AI 237 Nº” (seguindo-se um número de 3 dígitos) associada ao malmequer;

6. Os números inscritos nas senhas com malmequer, obtidos ao acaso, são conferidos pelos números inscritos no cartaz e, no caso de coincidência, destacam-se pelo picotado os círculos com os números correspondentes, deixando à vista o prémio expresso, em cima, por um número ( “6”, “4”, “3”, etc), e, em baixo, com expressões do tipo “40 cromos”, “25 cromos", “20 cromos”) etc., como é visível no cartaz e de que é exemplo o pormenor da figura ao lado; quando o número saído não constar do cartaz, o jogador tem direito a uma nova senha; finalmente, no caso de sair um motivo floral que não seja malmequer, a senha tem inscrita a expressão “RECORTE ESTE CROMO E COLE-O NA CADERNETA”, nada ganhando;

7. O sorteio dos números premiados ocorre sem que o jogador possa, de algum modo, influenciar a saída dos números, pelo que apenas o acaso da sorte ou do azar determina o resultado;

8. O plano de prémios inscrito no cartaz ("4 x 30 = 200 cromos 6000", "4 x 15 = 100 cromos 3000", "4 x 7,5 = 50 cromos 1500", "10 x 6 = 40 cromos 1200", "8 x 4 = 25 cromos 750" "10 x 3 = 20 cromos 600" "10 x 1,5 =10 cromos 300") é expresso em pontuações;

9. Relacionando as pontuações expressas no plano de prémios com o preço indicado de 0,15€ por senha (cromo) e tomando como exemplo o prémio maior do cartaz (4 x 30 = 200 cromos 6000), fica claro que a leitura a fazer é a seguinte: 4 prémios de 30€ ou 6000$ = 200 cromos, uma vez que 200x0,15€=30€ ou 200x30$=6000.

10. Os valores (pontuações) referidos prestam-se a ser convertidos em dinheiro, dando lugar a prémios no valor correspondente (30 €, 15 €, 7,5 €, 6 €, 4 €, 3 €, 1,5 € ).

A quantidade de senhas sem direito a qualquer prémio é muito elevada, sendo que se o objectivo fosse a colecção de cromos de flores não haveria necessidade de incluir no cartaz uma tabela com os referidos valores, seria suficiente a indicação dos cromos ganhos, após o destacamento do número do cartaz correspondente ao número da senha. Os resultados são totalmente dependentes da sorte, limitando-se o jogador a adquirir uma senha, que será retirada, de forma aleatória, de uma grande quantidade existente na caixa.

11 – A máquina extractora de cápsulas, com estrutura acrílica, campânula transparente o que deixa à vista o respectivo conteúdo, constituído por um número indeterminado de pequenas cápsulas ovais, existindo na parte inferior frontal uma ranhura para introdução de moedas de 0,50€.

12 – Existe um Cartaz rectangular com as seguintes inscrições na parte superior esquerda, "Cada Bola 0,50" e “Série nº” e, ao centro, "O Piruças"; imediatamente abaixo, estão impressos números de 4 dígitos, em pequenos rectângulos destacáveis por picotado; ao lado dos números, encontram-se, de cima para baixo, as expressões “2x50,00”, “5x25,00”, “1x15,00”, “1x10,00” “8x5,00”, 67x2,50 e “Remate Final 50”;

13 - O utilizador (jogador) introduz uma moeda de 0,50€ na ranhura existente para o efeito na máquina extractora;

14 - Seguidamente, acciona o manípulo, rodando-o até que fique bloqueado.

15 - Imediatamente, sai, de forma automática e aleatória, do interior da máquina uma cápsula, quedando-se esta na concavidade existente por baixo do manípulo;

16 - Cada cápsula contem três senhas e cada senha tem impressa uma figura e as expressões "SÉRIE IR511 ", igual nas três senhas, e "Nº" seguido de um número de 4 dígitos, que é diferente em cada uma das três senhas, com mostra a figura.

17 - Os números assim obtidos são confrontados com os que estão impressos nos rectângulos destacáveis do cartaz e, no caso de algum deles coincidir, é destacado pelo picotado o rectângulo correspondente, deixando à vista a pontuação atribuída “2,50”, “5”, “10”, etc.;

18 - O sorteio dos números premiados ocorre sem que o jogador possa, de algum modo, influenciar a sua saída, pelo que apenas o acaso da sorte ou do azar determina o resultado;

19 - O plano de prémios inscrito no cartaz é expresso em pontuações: 2x50,00”, “5x25,00”, “1x15,00”, “1x10,00”, “8x5,00”, “67x2,50”“Remate Final 50,00”.

20 - A intervenção do jogador no jogo, se traduz na introdução de uma moeda de 0,50€ no mecanismo existente para o efeito, e, na posterior confrontação da coincidência, ou não, dos números constantes nas senhas e no cartaz de prémios.

21 – Quanto à Máquina electrónica portátil, referida no ponto 2) dos factos provados, sem referências exteriores quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou de série, com estrutura em metal e madeira de cor cinzenta, nas partes laterais e traseira, e um painel em acrílico azulado, na parte frontal, e ainda as características seguintes: Na parte frontal superior, sobressaem a inscrição “Distribuidor de BERLINDES DECORATIVOS”, uma ranhura para introdução de moedas (de 0,50€, 1€ e 2€), como indica um dístico colado ao lado da ranhura), um dispositivo para desencravamento de moedas e uma concavidade para recolha de moedas rejeitadas.

22 - A parte frontal inferior, é preenchida por um mostrador circular, com um visor digital ao centro, e está marcado, no seu perímetro, em 64 pontos, 8 dos quais são identificados com os números 1, 50, 2, 100, 5, 20, 200 e 10.

23 - Ao lado direito do mostrador circular encontra-se um visor digital encimado pela inscrição “CRÉDITOS”;

Finalmente, no canto inferior esquerdo existe uma pequena concavidade, para saída de berlindes;

24 - Na face lateral esquerda, existe uma ficha para ligar o cabo eléctrico de alimentação da máquina, um interruptor para ligar/desligar e dois pontos metálicos; Nas faces lateral direita, traseira e cimeira existem portas, para acesso ao moedeiro/arrecadação, para acesso ao interior da máquina e para introdução de berlindes, respectivamente;

25 - Ligada a máquina, o mostrador evidencia pontos luminosos gerados pelo acendimento de pontos de luz avermelhada, equidistantes, 64 no total, que formam um círculo luminoso, quando todos se acendem ao mesmo tempo.

26 - O ponto luminoso corresponde ao acendimento de cada um dos pontos de luz que, quando ocorre sequencialmente, parece um ponto luminoso em movimento giratório.

27 - Com a introdução de várias moedas de 0,50€, 1€ e 2€, o visor de créditos incrementa 50 por cada 0;50€ introduzido, até ao limite de 950, sem prejuízo de aceitar moedas para além dos créditos exibidos.

28 - A máquina dispara automaticamente, o ponto luminoso que percorre, rapidamente, por 3 ou 4 vezes todo o círculo de pontos de luz, após o que começa a perder velocidade até se imobilizar, aleatoriamente, numa das 64 posições assinaladas, produzindo a máquina, ao mesmo tempo, um som semelhante ao de uma esfera a girar numa superfície lisa, som que se esbate à medida que o ponto luminoso perdeu velocidade.

29 - Automaticamente, a máquina continua a efectuar jogadas, primeiro por conta de créditos em memória (não visíveis), e depois por conta dos créditos do visor, descontando 50 créditos em cada jogada, até os esgotar.

30 - As jogadas decidem-se, em grande maioria, em pontos do círculo que não conferiam qualquer pontuação; porém, quando o ponto luminoso pára no ponto assinalado no mostrador com um número, ilumina-se todo o círculo de pontos, como mostra a imagem ao lado.

31 - Se o led em que parou o ponto luminoso corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos, o jogador terá direito aos pontos correspondentes (indicado no display), que variam entre 1 e 200, pontos esses que correspondem a um prémio monetário que lhe será pago a € 1,00 por cada ponto e que poderá variar entre um mínimo de € 1,00 e um máximo de € 200.

32 - Se o ponto luminoso para num dos restantes leds, sem qualquer identificação e, então o jogador nada ganha e terá de tentar a sorte novamente, introduzindo nova moeda.

33 - Esgotados os créditos para jogar, o visor digital situado no centro do mostrador circular, exibiu o acumulado de pontuações obtidas nas jogadas efectuadas e o ponto luminoso fica parado no ponto onde se decidiu a última jogada.

34 - No caso de o jogador pretender continuar a jogar, utilizando os pontos obtidos em jogadas anteriores, terá de pressionar o botão que dá início a cada jogada, dando cada ponto ganho direito a duas jogadas o que indica que cada ponto vale o dobro da aposta, sendo esta o equivalente à introdução de uma moeda de € 0,50.

35 - Deste modo a máquina desenvolve um jogo em que o objectivo é o de conseguir que ponto luminoso se imobilize num dos leds com direito a prémio.

36 - A máquina não permite converter as pontuações em jogadas.

37 - As pontuações são desmarcadas através do toque simultâneo, com moeda ou outro objecto metálico, nos pontos metálicos assinalados na figura ao lado, situados na parte lateral esquerda da máquina, junto da ficha para ligar o cabo de alimentação de corrente eléctrica e do botão para ligar/desligar a máquina.

38 - A arguida bem conhecia as características do material apreendido e dos jogos por ele desenvolvidos.

39 - De igual modo, bem sabia a arguida que não podia explorar, ou possibilitar a exploração naquele local dos referidos jogos.

40 - As máquinas estiveram em funcionamento naquele estabelecimento desde data não concretamente apurada, sem que houvesse sido concedida qualquer autorização para o efeito.

41 - As máquinas não estavam registadas na autoridade competente.

42 - À data da prática dos factos a arguida era empregada no estabelecimento referido no ponto 1. dos factos provados.

43 - A arguida sabia que tal máquina desenvolvia temas próprios dos jogos de fortuna ou azar e que não havia autorização para o desenvolvimento de tal actividade no referido estabelecimento.

44 - A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

45 - A arguida não tem antecedentes criminais.

46 - A arguida vive com o marido (que se encontra desempregado).

47 - O seu agregado familiar despende mensalmente a prestação de 310€ pelo mútuo contraído na aquisição de casa própria.

48 - A arguida aufere mensalmente quantia mensal em montante não concretamente apurado.

2.4- FACTOS CONSIDERADOS NÃO PROVADOS

O tribunal “a quo” considerou não provado que:

- a arguida era gerente do estabelecimento referido no ponto 1. dos factos provados.
- em data não apurada mas compreendida no mês de Setembro/Outubro de 2004, a arguida com o objectivo de obter proventos monetários par si, aceitou a proposta que lhe foi feita por pessoas não identificadas de colocar no seu estabelecimento as máquinas que vieram a ser apreendidas.
- a arguida retirou das máquinas e fez seus, montantes em dinheiro do B.C.E., aí pago pelos seus utilizadores para desenvolver aqueles jogos.
- a arguida agiu com o intuito de obter proventos económicos e que os obteve.
- até ao mês de Novembro de 2004 os individuos que acordaram com a arguida a exploração das máquinas mantiveram no estabelecimento o referido material de jogo, em exploração pública para benefício económico, proporcionando aos seus clientes a utilização do mesmo, mediante retribuição monetária e pagamento dos prémios em dinheiro.
- conforme previamente combinado a arguida e os outros indivíduos dividiram entre si os proventos monetários daquela exploração, em proporção não apurada.“


A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO PROFERIDA PELO TRIBUNAL “A QUO

O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua convicção quanto aos factos que considerou provados e não provados:

O Tribunal formou a sua convicção com base no critério enunciado no art.127.º do C.P.P..

O Tribunal deu relevância ao depoimento de V ... (agente da GNR) interveniente na acção de fiscalização ao estabelecimento no dia 26 de Novembro de 2004, que descreveu, de forma isenta, imparcial e completa, o modo como procederam à fiscalização. Mais referiu que a arguida se encontrava no estabelecimento e que esta se identificou como responsável.

A arguida não prestou declarações, não se produzindo qualquer prova sobre a origem das máquinas. Contudo, sobre o dolo da arguida acerca da exploração das máquinas, sendo que as regras de funcionamento das máquinas não dispensam explicações de quem as explora aos clientes, tal exigência, segundo as regras da experiência comum, torna a arguida, ainda que como empregada, a par da actividade de exploração das referidas máquinas, até porque segundo foi referido pela testemunha de acusação, a arguida no decurso da operação de fiscalização assumiu-se como a responsável pelo estabelecimento, pese embora a gerência não se lograsse provar, a presença da arguida e a sua atitude de identificação na relação com o estabelecimento (que transmitiu ao agente fiscalizador) é insofismável, convencendo-se o Tribunal que a mesma fosse empregada do estabelecimento, sendo no momento responsável, por ausência do hipotético gerente.

Ainda para prova dos pontos 2) a 37) dos factos provados, o tribunal considerou também o exame pericial realizado à máquina (cfr. relatório de fls.26 a 33, onde é pormenorizadamente explicado o desenvolvimento dos jogos).

No que se refere aos antecedentes criminais da arguida, a convicção do Tribunal baseou-se na análise do certificado de registo criminal junto a fls.68.

Quanto à situação económica da arguida, o Tribunal atendeu às declarações da própria.

Quanto aos factos não provados, o Tribunal baseou-se na falta de prova dos mesmos.”

2.5 - O MÉRITO DO RECURSO DO ARGUIDO

1) DA PRETENSA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA

«Para se verificar este fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito» (1)

«É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada»(2)

«Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição» (Ac. do STJ de 6/4/2000, publicado in BMJ nº 496, pp. 169-180).

«Há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido» - Ac. da Rel. de Lisboa de 19/7/2002, proferido no Proc. nº 128169 in site htpp//www.dgsi.pt).

Essa insuficiência tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» - GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. cit., p. 340.

Na verdade, «o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada tem de resultar do texto da decisão recorrida e só existe quando o tribunal de recurso se vê perante a impossibilidade da própria decisão, ou decisão justa, por insuficiência da matéria de facto provada» - Ac. do STJ de 1/4/1993 (in BMJ nº 426, p. 132). No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. do STJ de 24/2/1993 (in BMJ nº 424, p. 413), de 4/2/1993 (in BMJ nº 424, p. 376) e de 30/11/1993 (in BMJ nº 431, p. 404).

Porém, «o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a eventual omissão de apuramento de factos ou circunstâncias que seriam susceptíveis de conferir à decisão um sinal ou sentido diferente; nessa hipótese, a decisão não assenta em matéria fáctica deficitária, insuficiente para a suportar, mas podia ser outra se não tivesse havido omissão de investigação de alguns dos vários factos susceptíveis de concorrer para a correcta decisão da questão» (Ac. da Rel. do Porto de 10/12/1997, proferido no Proc. nº 9610493 no site htpp//www.dgsi.pt).

De notar que «a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida» (GERMANO SILVA ibidem. e., no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 13/2/1991 (sumariado in Actualidade Jurídica, nºs 15/16, p. 7) e o Ac. do STJ de 3/11/1999 (in BMJ nº 491, p. 173).

Na verdade, «a insuficiência a que se refere a alínea a), do artigo 410º, nº 2, do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre facto(s) alegado(s) ou resultante(s) da discussão da causa que sejam relevante(s) para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão» (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 7/7/1999, proferido no Proc. nº 99P348 no site htpp//www.dgsi.pt).

«Logo, o vício em apreço não tem nada a ver nem com a insuficiência da prova produzida (se, realmente, não foi feita prova bastante de um facto e, sem mais, ele é dado como provado, haverá, antes, um erro na apreciação da prova […]), nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão proferida (em que, também, há erro, já não na decisão sobre a matéria de facto mas, sim, na qualificação jurídica desta(Ibidem).

Por isso, também «não integra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem qualquer dos outros previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, o facto de o recorrente pretender “contrapor às conclusões fácticas do Tribunal a sua própria versão dos acontecimentos, o que desejaria ter visto provado e não o foi”» (Ac. do STJ de 25/5/1994 (in BMJ nº 437, p. 228).

Ora, descendo ao caso concreto, verifica-se que forma ponderados os elementos elencados na discussão da causa e da controvérsia acusatória. O tribunal partiu porém de uma factualidade delineada para uma conclusão jurídico-penal que não lhe corresponde. Comos e verá de seguida.

No caso sub judicio, sustenta a Arguida/Recorrente M.. que a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão por isso que alguns dos factos dados como provados o foram com base em provas insuficiêntes, já que a única testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento limitou-se a referir o que consta no auto de notícia, nada mais acrescentando, sendo que, quando questionada sobre a fonte do conhecimento desses factos, limitou-se a referir que tinha sido a ora Recorrente a referir-lhe os elementos que do auto constam.

Pelo que – na tese da Recorrente - do depoimento desta testemunha só era susceptível de se retirar o seguinte facto como provado: “ A máquina encontrava-se no estabelecimento em causa”, nada mais.

É manifesto o erro de perspectiva em que labora a Recorrente, ao confundir o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão com uma pretensa insuficiência da prova produzida. Ainda mesmo que, porventura, as provas produzidas fossem insuficientes para o tribunal recorrido poder dar como provados todos os factos que considerou assentes – incluindo aqueles concretos factos que a recorrente considera indevidamente dados como provados, designadamente os descritos nos pontos 38, 39, 42, 43 e 44 da sentença recorrida -, não se trataria de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, mas, quando muito, de erro na apreciação da prova.

O recurso improcede, portanto, quanto a este específico fundamento.

2) A PRETENSA AVALIAÇÃO INCORRECTA DA PROVA PRODUZIDA

A ora Recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto:

38 - A arguida bem conhecia as características do material apreendido e dos jogos por ele desenvolvidos.

39 - De igual modo, bem sabia a arguida que não podia explorar, ou possibilitar a exploração naquele local dos referidos jogos.

42 - À data da prática dos factos a arguida era empregada no estabelecimento referido no ponto 1. dos factos provados.

43 - A arguida sabia que tal máquina desenvolvia temas próprios dos jogos de fortuna ou azar e que não havia autorização para o desenvolvimento de tal actividade no referido estabelecimento.

44 - A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Segundo a Arguida/Recorrente, o tribunal a quo, ao considerar provados estes factos, incorreu em erro de julgamento, por isso que:

a) A única testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento limitou-se a referir o que consta no auto de notícia; quando questionada sobre a razão de ciência, a mesma referiu que havia sido a arguida ora Recorrente a referir-lhe todos os elementos que daquele auto constam.

b) A qualidade de empregada ou “responsável” do estabelecimento apenas poderia resultar de elemento documental e não das declarações da testemunha. Do depoimento da testemunha ouvida, não resultou qualquer facto relevante que permitisse fundamentar a prova de que a Recorrente era a proprietária, gerente ou empregada do estabelecimento em causa.

c) O Tribunal a quo limitou-se a considerar uma pretensa “confissão” da Recorrente no inquérito e a transpô-la para a audiência de julgamento sem que a Recorrente tivesse prestado declarações em audiência.

d) O elemento subjectivo do tipo legal pelo qual a arguida Recorrente veio a ser condenada foi aferido apenas no depoimento da única testemunha ouvida, a qual se limitou a referir o local onde a máquina se encontrava, não tendo resultado do seu depoimento, que a máquina tenha ali sido colocada pela ora Recorrente, que esta retirasse os proveitos da mesma, e que soubesse ser proibida naquele local.

Quid juris ?

Os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito (artº 428º, nº1, do CPP), o que significa que, em regra, e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

Dito em síntese, isto quer dizer que os Tribunais da Relação são hoje os tribunais por excelência e, em princípio, os únicos com poderes de cognição irrestritos em matéria de recursos, apenas com a ressalva de que, no âmbito da matéria de facto, o seu poder cognoscitivo pressupõe que a prova produzida em audiência de 1ª instância tenha sido gravada e constem dos autos as transcrições dos respectivos suportes técnicos (cfr. artºs 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Simplesmente, embora as Relações gozem, em princípio, de um amplo poder de cognição, este fica desde logo limitado pelas conclusões da motivação do recorrente, sabido como é que são estas que definem e balizam o objecto do recurso (cfr. o artº 412º, nº 1, do CPP).

Ou seja: o recorrente pode condicionar o âmbito da reapreciação que pede, restringindo-o, por exemplo, a uma determinada parte da decisão, desde que com observância das regras limitativas inscritas no artº 403º daquele Código.

Isto sem prejuízo de o tribunal de recurso poder e dever conhecer oficiosamente de qualquer dos vícios indicados nos nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP - conforme se decidiu no Acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/1995 (publicado in Diário da República, I Série-A, de 28 de Dezembro do mesmo ano e também in BMJ nº 450, p. 72).

Porém, além do referido condicionamento ao âmbito de reapreciação da matéria de facto adveniente do teor das conclusões do recorrente, outra ordem de razões, esta de ordem prática, concorre decisivamente para limitar a possibilidade de as Relações, apoiadas na extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova aos tribunais de recurso, alterarem a matéria de facto dada como provada pelos tribunais de 1ª instância.

De facto, nesta sede, «não se concebe como seja possível, sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9/7/2003, proferido no Proc. nº 02P3100 e relatado pelo Conselheiro LEAL HENRIQUES, cujo texto integral pode ser consultado no site http://www.dgsi.pt.

Cfr., igualmente no sentido de que «a matéria de facto fixada na 1ª instância pelo tribunal colectivo só deve ser alterada existindo elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação», o Ac. da Rel. de Coimbra de 9/2/2000 (in Col. Jur., 2000, tomo I, p. 51). Isto porque, ao apreciar a matéria de facto, o tribunal de segunda instância «está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão» (ibidem).

É que - tal como se salientou no Ac. da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2000, In Col. de Jurispª. 2000, tomo 4º, pág. 28.-, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas que está deferido à 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador, entram necessariamente elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, por mais fiel que ela seja.

Na verdade, na formação da convicção do juiz não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos intraduzíveis e subtis, tais como mímica e todo o aspecto exterior do depoente e mesmo as próprias reacções quase imperceptíveis do auditório, que vão agitando o espírito de quem julga. «Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador» (cit. Ac. da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2000).

O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal de 1ª instância indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. Donde - remata-se no mesmo aresto - o que o tribunal de segunda jurisdição vai à procura, não é de uma nova convicção, mas de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Cfr., também no sentido de que «a garantia do duplo grau de jurisdição relativamente a matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre determinados pontos da matéria de facto», o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/11/2002 proferido no Proc. nº 0020409 e relatado pela Desembargadora MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).

Cfr., igualmente no sentido de que «o recurso - a audiência de recurso - não pode ser entendida como um mecanismo surrogatório da audiência de 1ª instância, mas antes como um juízo de controlo crítico do mérito da decisão de 1ª instância», pelo que «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) só verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1ª instância», o Ac. da Rel. de Coimbra de 6/12/2000, proferido no Proc. nº 733/2000 e relatado pelo Desembargador MAIO MACÁRIO (cujo texto integral está disponível para consulta no site http://www.dgsi.pt.).

Daqui decorre que o conhecimento de factum do tribunal de 2ª instância é, necessariamente, limitado. E isto, à partida, impõe que a matéria de facto só possa ser alterada quando o registo da prova o permita com toda a segurança, Cfr. também no sentido de que «a apreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas, dado que a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação», o Ac. da Rel. do Porto de 5/6/2002, proferido no Proc. nº 0210320 e relatado pelo Desembargador COSTA MORTÁGUA (cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.).

Cfr., igualmente no sentido de que, como «a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas; [visto que] por vezes o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios que tenham merecido a confiança do tribunal», isto consequencia que «a reapreciação das provas gravadas pelo tribunal superior só pode abalar a convicção acolhida na 1ª instância caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.», o Ac. da Rel. do Porto de 3/7/2002, proferido no Proc. nº 0210417e relatado pelo Desembargador ANDRÉ DA SILVA (cujo sumário está disponível no site htpp://www.dgsi.pt).

Cfr., de igual modo no sentido de que «se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso», o Ac. da Rel. do Porto de, proferido no Proc. nº e relatado pelo Desembargador ORLANDO GONÇALVES (cujo sumário está disponível no site htpp://www.dgsi.pt).

Por outro lado – como bem se observou no Acórdão da Relação do Porto de 10/10/2001, Proferido no Proc. nº 0140385 e relatado pelo Desembargador JOSÉ INÁCIO RAÍNHO, cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt. - muito embora livre apreciação de provas (princípio que vigora plenamente em processo penal, salvaguardadas as excepções legais: cfr. o art. 127º do CPP) não se possa confundir com apreciação arbitrária de provas - do que se trata é antes de uma apreciação que, liberta de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, dessa forma determinando uma convicção racional, objectivável e motivável -, não pode nem deve olvidar-se que «dificilmente o julgador dos factos lidará com a prova cem por cento segura ou certa». «Inevitavelmente terá que conviver com a ausência de certeza absoluta e com a dúvida» Cit. Acórdão da Relação do Porto de 10/10/2001. «Mas nem por isso se pode demitir de, com recurso à experiência comum e à lógica das coisas, porfiar por uma certeza relativa sobre os factos (tenha-se em atenção que "certeza relativa" não equivale a "certeza dominada por incertezas"; significa antes "convicção honesta e responsável da realidade ou irrealidade do facto")» Ibidem. «Se conseguir superar o umbral da dúvida razoável, de modo a sentir a necessária segurança sobre a realidade ou irrealidade de um facto, então tem que o assumir». Ibidem.

Efectivamente, «as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artº 341º do Código Civil), mas esta demonstração da realidade não visa a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)». Cit. Acórdão da Relação do Porto de 10/10/2001. «Os factos que interessam ao julgamento da causa são, de ordinário, ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais» Ibidem, «A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça» Ibidem, «A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [V. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 434]» Ibidem.

De modo que «dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados, como são dados como provados» Ibidem. «Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa» Ibidem .«A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas» Ibidem.

«Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente» - Ibidem. «Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa (a tal convicção honesta e responsável de que se falou atrás), dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define». Ibidem.

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Isto posto: Tanto quanto a matéria de facto extractada nos depoimentos oralmente produzidos em audiência de julgamento (com as limitações supra expostas), conjugada com a prova documental constante dos autos, nos permite (re)apreciar a prova que esteve presente ao tribunal a quo, nada, mas absolutamente nada, permite concluir que o tribunal a quo tenha feito uma incorrecta aplicação do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do CPP, isto é, que tenha apreciado mal a prova.

Efectivamente, o Tribunal a quo não se limitou a indicar, explicita e exaustivamente, os meios de prova (isto é, os documentos, os depoimentos testemunhais, os exames, etc.) fundamentadores da convicção do julgador, antes procedeu a um rigoroso exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção. E fê-lo, aliás, de modo absolutamente cabal, explicitando cristalinamente todos os critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal recorrido se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos em audiência, dando assim escrupuloso cumprimento às exigências que, em sede de fundamentação de facto, são actualmente colocadas pelo art. 374º-2 do CPP (na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto).

Ora, as razões pelas quais o tribunal a quo veio a considerar provados aqueles concretos factos supra elencados que a Arguida/Recorrente ora põe em crise, reputando-os incorrectamente julgados são várias e, todas elas, coerentes, lógicas e ponderosas. Assim:

A convicção do tribunal a quo quanto à realidade dos factos assentes como provados está fundamentada na sentença recorrida de forma coerente, lógica e concisa, e em conformidade com as regras da experiência.

Com efeito, e neste item importa evidenciar a fundamentação da matéria de facto efectuada na sentença recorrida, onde se pode ler: “ O Tribunal deu relevância ao depoimento de V ... (agente da GNR) interveniente na acção de fiscalização ao estabelecimento no dia 26 de Novembro de 2004, que descreveu, de forma isenta, imparcial e completa, o modo como procederam à fiscalização. Mais referiu que a arguida se encontrava no estabelecimento e que esta se identificou como responsável.

A arguida não prestou declarações, não se produzindo qualquer prova sobre a origem das máquinas. Contudo, sobre o dolo da arguida à cerca da exploração das máquinas, sendo que as regras de funcionamento das máquinas não dispensam explicações de quem as explora aos clientes, tal exigência, segundo as regras da experiência comum, torna a arguida, ainda que como empregada, a par da actividade de exploração das referidas máquinas, até porque segundo foi referido pela testemunha de acusação, a arguida no decurso da operação de fiscalização assumiu-se como a responsável pelo estabelecimento, pese embora a gerência não se lograsse provar, a presença da arguida e a sua atitude de identificação na relação com o estabelecimento (que transmitiu ao agente fiscalizador) é insofismável, convencendo-se o Tribunal que a mesma fosse empregada do estabelecimento, sendo no momento responsável, por ausência do hipotético gerente.

Ainda para prova dos pontos 2) a 37) dos factos provados, o tribunal considerou também o exame pericial realizado à máquina (cfr. relatório de fls.26 a 33, onde é pormenorizadamente explicado o desenvolvimento dos jogos).

Do exposto ressalta que o depoimento do agente V ... não se limitou a reproduzir o auto de notícia, assim como o mesmo não adquiriu conhecimento dos factos unicamente por intermédio das declarações prestadas pela Recorrente no momento da fiscalização, já que – segundo o relato feito por aquela testemunha durante a sua inquirição em audiência de julgamento – a ora Recorrente foi a pessoa que, no dia e hora em que teve lugar a acção de fiscalização empreendida pela G.N.R., além de estar presente no estabelecimento, se apresentou aos agentes de autoridade como a “encarrregada” do estabelecimento, respondendo ao que então lhe foi perguntado. Ora, segundo as regras da experiência, se a ora Recorrente não fosse, de facto, a responsável pela gestão do estabelecimento naquela concreta ocasião, o normal seria que tivesse declinado responder a qualquer pergunta que lhe fosse feita acerca da natureza e das características das máquinas de jogo existentes naquele local, invocando para tanto qualquer motivo plausível (designadamente, ser uma mera cliente do estabelecimento, estar ali a exercer meras tarefas de limpeza enquanto mulher-a-dias, ser a porteira do prédio, etc.).

Assim sendo, a conclusão a que chegou o tribunal “a quo” quanto às funções da Arguida ora Recorrente de empregada do estabelecimento não se fundou exclusivamente na pretensa confissão de tal facto feita pela Arguida ao agente V ... no momento da acção de fiscalização, antes se baseou sobretudo no relato por este feito em audiência de factos por ele mesmo constatados com os seus próprios olhos aquando da sua deslocação ao estabelecimento, conjugado com as regras da experiência da vida.

E o mesmo se aplica ao conhecimento, pela Arguida ora Recorrente, das características das máquinas existentes no estabelecimento e do seu carácter legalmente proíbido. Na verdade, tratando-se de máquinas cujas regras de funcionamento não dispensam explicações de quem as explora aos clientes, a simples presença da Arguida no interior do estabelecimento, numa altura em que este estava aberto ao público, num contexto em que não era evidente que ela ali se encontrasse por razões meramente fortuitas, permitia, razoavelmente, inferir – como o fez o tribunal “a quo” – que ela estava em condições de esclarecer quaisquer dúvidas que porventura lhe fossem colocadas por qualquer candidato à utilização das máquinas que entrasse no estabelecimento, acerca do modo de funcionamento das mesmas.

Porém, saber se essa possbilidade pode conduzir ou não à afirmação de uma conduta activa fomentadora da exploração das máquinas e penalmente punível é, contudo, questão que será apreciável em sede de qualificação juridica, face ao elenco dos factos provados. Mais adiante o explicaremos.

Todas estas razões, expressamente invocadas pelo tribunal a quo para fundamentar a sua convicção quanto à realidade dos factos supra referidos - que a ora Recorrente sustenta terem sido indevidamente considerados provados na sentença sob censura - são, evidentemente, lógicas, razoáveis e plausíveis.

Não se evidencia, pois, que o tribunal a quo tenha violado qualquer regra jurídica na apreciação da prova.

Efectivamente, a convicção expressa pelo tribunal recorrido não deixa de ter suporte razoável naquilo que de probatório contêm os autos.

Ora, sendo indubitável que «há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução», «se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável pois foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção», Ac. da Rel. do Porto de 19/3/2003, proferido no Proc. nº 0310070 e relatado pelo Desembargador FERNANDO MONTERROSO, cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.

E «isto é assim mesmo quando tiver sido feito o registo das declarações orais prestadas no julgamento, pois, de outro modo, seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova», Ibidem. Cfr., também no sentido de que, «tendo o tribunal formado a sua convicção com provas não proibidas por Lei, prevalece a convicção que da prova teve o julgador sobre a formulada pelo recorrente, que é irrelevante, de acordo com o príncipio da livre apreciação da prova», o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/11/2002, proferido no Proc. nº 0020409 e relatado pela Desembargadora MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).

Cfr., igualmente no sentido de que «limitado o recurso a materia de facto, na solução da questão posta atentar-se-á nos dois principios fundamentais que norteiam a apreciação da prova:

- o de que ela é apreciada, salvo quando a lei disponha diferentemente, segundo as regras da experiencia e a livre convicção do julgador - principio da livre apreciação da prova;

- o de que o tribunal, ao decidir, não tem de formular um juizo de certeza, bastando-se a lei com a convicção da ocorrência», pelo que, «respeitados estes principios pela sentença recorrida, como se extrai do contexto da prova produzida, não pode a mesma sentença deixar de ser confirmada», o Ac. da Rel. do Porto de 18/3/92 proferido no Proc. nº 9210093 e relatado pelo então Desembargador PEREIRA MADEIRA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).

O presente recurso improcede, portanto, quanto à impugnação da matéria de facto (por violação do princípio da livre apreciação da prova) que se contém na motivação da Recorrente.

3) SE OS FACTOS PROVADOS FORAM ERRONEAMENTE QUALIFICADOS, DO PONTO DE VISTA JURÍDICO (OS JOGOS DENOMINADOS “PIRUÇAS” E “DESFOLHANDO UM MALMEQUER” DEVERIAM SER QUALIFICADOS COMO MODALIDADES AFINS DE FORTUNA OU AZAR).

Antes, porém , de entrarmos nesta questão, uma outra a ela prévia e eventualmente prejudicial tem de ser analisada.

Trata-se do problema de saber se, com os factos assentes, ainda assim a arguida pode ser responsabilizada. Desde logo, entendemos que não.

Qualifique-se ou não a utilização das máquinas como crime, nos termos nomeadamente proferidos na decisão recorrida, a posição provada da arguida não aponta decisiva e cabalmente para a sua imputação juridico-penal.

Nos factos provados diz-se:

“ 38 - A arguida bem conhecia as características do material apreendido e dos jogos por ele desenvolvidos.

39 - De igual modo, bem sabia a arguida que não podia explorar, ou possibilitar a exploração naquele local dos referidos jogos.”

Esta afirmação a nada de decisivo conduz. O facto de a arguida saber que não podia explorar não é o mesmo que dizer que ficou provado que explorava ou que fomentava essa exploração e que quis fazê-lo. Não se retira da matéria assente que e de que maneira a arguida permitia e fomentava a exploração. Não basta ser-se empregado de um estabelecimento onde existam máquinas que explorem jogos de fortuna ou azar e que se saiba que tais máquinas têm essas características. Se assim fosse, um simples empregado de limpeza devia ser penalmente imputável. Qualquer trabalhador que nessas condições estivesse e para não perder o emprego por não oposição à actividade veria recair sobre si um ónus insuportável.

A ligação à actividade deve ser mais íntima e rodeada de circunstâncias que imponham uma maior participação directa na exploração ou no fomento da mesma. Não basta saber que as máquinas existem e ser-se empregado. Tem de se provar uma conduta activa que permita extrair a conclusão de que a colaboração nessa exploração é importante e relevante, sem a qual a exploração não seria possível ou seria ao menos mais dificultada.

Ora , nada dos autos releva que se tenha provado que a arguida teve essa conduta.

Ficou apenas assente que:

“ 42 - À data da prática dos factos a arguida era empregada no estabelecimento referido no ponto 1. dos factos provados.

43 - A arguida sabia que tal máquina desenvolvia temas próprios dos jogos de fortuna ou azar e que não havia autorização para o desenvolvimento de tal actividade no referido estabelecimento. “

44 - A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

Mas qual conduta?

A de, como empregada, saber que eram máquinas de jogos sem autorização? Mas se nada se provou em como ela explorava ou fomentou nesse sentido, então que responsabilidade assacar-lhe? É que dizer que sabia que não podia explorar ou fomentar não é o mesmo que dizer que explorou e fomentou.

Ficamos pois na mesma. O artº 108º da lei do jogo ( DL 422/89) ao referir:

1 - Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.

2 - Será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora”,

não pretende que se puna apenas e só porque se é empregado, administrador, director, ou gerente, mas que tal actividade seja dirigidamente orientada de modo a que haja uma colaboração em comparticipação dolosa da exploração dos jogos, por qualquer forma. É este sentido hermenêutico que melhor corresponde ao objectivo da lei.

Não se compreende de que forma foi essa exploração ou fomento dela por parte da arguida e que se lhe imputou. Ser empregada, só por si, não basta. Teria de haver mais factos que impusessem a conclusão em como a sua participação era relevante ou determinante. Factos esses que não lhe estão assacados.

E, perante , isto, a conclusão só pode ser a da absolvição.

III- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes em darem provimento ao recurso, absolvendo a arguida.

Sem tributação

Voto de Vencido:

Teve voto de vencida da Exm.ª Desembargadora Margarida Bacelar que concluindo pela absolvição do crime entendeu estar verificado um ilícito de mera ordenação social, mas não excedendo o limite máximo da coima aplicável o valor previsto no n.º 1 do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (cfr. o art. 163º, nº 1, do cit. Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro), o prazo de prescrição do procedimento era de 1 ano (artigo 27º, alínea b), por referência ao n.º 1 do artigo 17º do referido diploma) pelo que tendo-se a mesma consumado no dia 26/11/2004 e visto o disposto no art. 28º, nº 3, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, concluiu que tal procedimento se encontrava extinto por prescrição.


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(GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. cit., p. 340)
GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. cit., p. 339 in fine.