Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73/21.2PBSNT.L1-9
Relator: PAULA SOFIA ALBUQUERQUE
Descritores: RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
INTERESSE EM AGIR
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEIÇÃO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I-Na interposição de recurso, as vestes de «garante da legalidade» que cobrem o corpo do Ministério Público visam a tutela de direitos e princípios fundamentais, onde não se incluem a defesa de meras concepções subjectivas de um mesmo direito.
II-O Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisão tomada a seu pedido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA

RELATÓRIO:
No âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra/ J 3, realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença final que condenou o arguido nos seguintes termos:
«a) Condenar o arguido AA, na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal.
b)Suspender a execução da pena de prisão em que o Arguido AA foi condenado, pelo período de 2 (dois) anos, subordinada à obrigação de frequência de Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), de acordo com o n.º 4, do artigo 152.º, do Código Penal, em horário e locais a articular com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e sob fiscalização desta entidade.»
Inconformada com tal condenação, veio a digna magistrada do Ministério Público interpor o presente recurso, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
«CONCLUSÕES
1- Nos termos do artigo 152º do Código Penal, o agente para ser condenado tem de acordo com o seu número 1, de modo reiterado ou não infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, as vítimas elencadas nas suas alíneas.
2- No caso dos autos resultou apenas provado da matéria de facto que o arguido AA viveu em condições análogas a dos cônjuges e que dessa relação nasceram três filhos todos menores.
3- No período abrangida na coabitação e de acordo com o indicado nos factos dados como provados, o arguido no âmbito de uma discussão, com a ofendida BB, em que esta lhe atirou pratos de vidro na sua direção que poderiam ter atingido os seus filhos menores, este lhe desferiu um soco, e que esta também lhe bateu.
4- Igualmente no período indicado em 2 , numa viagem de comboio , a ofendida puxou os cabelos ao arguido , e que este em acto continuo , lhe desferiu um soco na barriga.
5- Entende-se que as referidas condutas não possuem as exigências punitivas do tipo penal relativo ao crime de violência doméstica, considerando o circunstancialismo em que ocorreram, designadamente a avaliação do comportamento da vítima.
6- Pese embora tenham relevo penal, afastam-se do amago do crime de violência doméstica, nos conceitos desenvolvidos pela Jurisprudência, situação degradante, que limite a sua dignidade, liberdade e vida humana, evidente domínio do agressor, desejo de prevalência, aviltamento da dignidade humana.
7- O tribunal não efectuou uma correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 152º nº 1 b) e 2 a) do CP
8- A circunstancia relativa a especial censurabilidade prende-se com o facto a que se refere a alínea b ) do nº 2 do artigo 132 do C.P , considerando a existência de uma relação análoga a dos cônjuges .
9- Deve o tribunal revogar a decisão e substituir por outra que condene o arguido por dois crimes p.p nos termos dos artigos 145º nº 1 a) , 2 e artigo 132º nº 1 e 2 do Código Penal.»
O recurso foi admitido por despacho sob Ref.ª ..., e remetidos os autos a esta Relação, o Ex. º Procurador Geral Adjunto apôs o seu Visto.
Considera-se que o recurso deve ser decidido por decisão sumária da Relatora nos termos conjugados dos arts.º 417º, n.º 6, al. a) e b) e 420º, nº 1, a), do C.P.P.
Com relevo para a decisão importa ter presente o teor da sentença recorrida, que se transcreve na íntegra:
«SENTENÇA
I. RELATÓRIO
Para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra:
AA, solteiro, filho de CC e DD, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na ..., imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal.
*
Foi o Arguido notificado para se pronunciar quanto à eventual condenação, nos termos do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º112/2009, de 16/09.
*
O Arguido apresentou não contestação nem arrolou testemunhas.
*
Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme se alcança da respetiva ata. *
A instância mantém a validade a regularidade nela oportunamente afirmadas.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Matéria de facto provada
Discutida a causa e produzida a prova, com interesse para a decisão da causa, resultam provados os seguintes factos:
Do crime
1. O Arguido e BB viveram um com o outro, em comunhão de mesa, leito e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, durante cerca de 6 anos e até, sensivelmente, meados de 2019, além do mais, no ....
2. Dessa relação nasceram, EE, FF e GG, em ........2015, ........2016 e ........2019, respetivamente.
3. No dia 22.04.2018, cerca das 16 horas, no interior da residência comum, no contexto de uma discussão entre ambos, o arguido desferiu um murro no rosto de BB, causando-lhe, designadamente, dores nessa parte do corpo e, bem assim, hematomas no sobrolho esquerdo e nariz.
4. -Em meados de 2019, BB passou a residir na “...”, em ... (Instituição de Inserção para Mulheres em Risco).
5. No dia 18.02.2021, cerca das 13:30 horas, após prévia combinação entre eles, BB e o Arguido encontraram-se na HH.
6. Cerca das 13:52 horas, apanharam o comboio com destino a ....
7. No trajeto percorrido entre a HH e ..., iniciaram uma discussão, um com o outro, no contexto da qual o Arguido desferiu um murro no estomago da Ofendida, causando-lhe, designadamente, dores nas partes do corpo atingidas.
8. O Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir, designadamente, a integridade física, a honra, a consideração e a saúde psíquica/mental de BB.
9. Bem como de lhe causar medo e inquietação e perturbar a sua liberdade de determinação.
10. O Arguido sabia que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei. Das condições pessoais do Arguido
11. O Arguido reside com os pais.
12. O Arguido é servente na construção civil, auferindo cerca de €1.085,00. 13. Contribui com cerca de €150/€200,00 para as despesas do seu agregado familiar. 14. Não tem atualmente contacto com qualquer dos filhos.
15. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido nada consta.
II.2. Matéria de facto não provada
Discutida a causa e produzida a prova, com interesse para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:
1. Enquanto residiam juntos, o Arguido dirigia a BB constantemente expressões como “és uma puta”, “és uma filha da puta”, “és uma cabra”, “és uma vaca” e “andas a trair-me”.
2. E, com foros de seriedade, designadamente: “dou cabo de ti”, “ficas sem o menino”, “eu fodo-te” e “eu mato-te”.
3. – O Arguido molestou a Ofendida fisicamente, por diversas vezes, designadamente, com pontapés, murros, chapadas e cabeçadas, em diversas partes do corpo.
4. Altura a partir da qual o Arguido continuou a maltratá-la, deslocando-se por diversas vezes à referida instituição, telefonando-lhe constantemente, insistindo em falar com ela e dirigindo-lhe expressões como as sobreditas.
5. De igual modo, sempre que, por qualquer razão, BB saía da instituição, o Arguido encontrava-se à sua espera, abordando-a e seguindo-a para onde quer que a mesma se deslocasse, procurando, assim, controlar os seus passos.
6. Em data não concretamente apurada, mas situada em Dezembro de 2019, BB encontrava-se nas ....
7. Nessa altura, a mesma foi abordada pelo arguido, que, dirigindo-se-lhe, logo lhe desferiu uma chapada na face, causando-lhe dores. 8. Na circunstância referida no ponto 3. da matéria de facto provada, o Arguido apertou o pescoço da Ofendida e desferiu-lhe vários murros e chapadas na face.
9. Em data não concretamente apurada, mas situada em novembro de 2020, por ocasião de uma videochamada entre ambos, BB despiu-se e mostrou-se, ao Arguido, completamente desnudada.
10. Aproveitando o Arguido tal facto para, a partir daí, anunciar, por diversas vezes, a BB, no contexto de discussões que mantinha com ela,
11. que publicaria tais imagens nas redes sociais.
12. No dia ........2021, cerca das 20 horas, BB recebeu uma chamada telefónica do Arguido, no contexto da qual o mesmo lhe disse: “tu andas a falar com outros”, “eu quero o meu telemóvel”,
 “eu vou aí e parto isso tudo”, “agora, se eu estivesse ao pé de ti, rebentava-te toda”, “quando te apanhar, vou te rebentar toda” e “vou mostrar a toda a gente as tuas fotos”.
13. Instantes após, BB foi informada por outra residente da referida instituição de que o arguido se encontrava junto ao portão, exigindo que aquela lhe devolvesse um telemóvel que havia emprestado à mesma.
14. Na mesma data, cerca das 11:41 horas, o arguido remeteu a BB, através da rede social instagram, uma mensagem escrita com o seguinte teor: “então é desta sua monte de merda ele ate dis que já te comeu fdp Vou-te matar”.
15. O encontro referido no ponto 4. da matéria de facto provada ocorreu nas imediações do local de trabalho da Ofendida, por o Arguido alegar que precisava de falar com a mesma sobre os filhos de ambos.
16. Na circunstância referida no ponto 7. da matéria de facto provada, o Arguido desferiu vários murros e puxões de cabelos, bem como apertões no pescoço, em BB, causando-lhe hematomas no braço direito e ferida no lábio inferior.
17. O Arguido fez a Ofendida temer, inclusivamente, pela própria vida. Os demais pontos da acusação que não constam como provados ou não provados, foram considerados pelo Tribunal como conclusivos, nomeadamente o ponto 3. da acusação.
*
II.3. Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base na conjugação das declarações do Arguido, com as declarações da testemunha II, nos termos infra especificados.
Tomou, ainda, em consideração o Tribunal os documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente, os assentos de nascimento juntos aos autos a fls. 104/106 e fls. 187/188, auto de noticia e anexo de fls. 131/135, aditamento n.º 7, de fls. 256, nos termos infra especificados.
No que respeita aos pontos 1. e 1. da matéria de facto provada, atinentes ao início da relação entre o Arguido e a Ofendida, e o nascimento dos filhos em comum, atendeu o Tribunal às declarações do Arguido, conjugadas com os assentos de nascimento juntos aos autos a fls. 104/106 e 187/188.
No que concerne à factualidade constante dos pontos 3. a 10. da matéria de facto provada, teve o tribunal em consideração o, auto de noticia e anexo de fls. 131/135, aditamento n.º 7, de fls. 256 (quanto às datas dos eventos e lesões da Ofendida), bem como às declarações do Arguido, que admitiu o desferimento dos murros e, ainda, da testemunha II.
De facto, explicou o Arguido a existência das discussões entre casal, referindo que no primeiro episódio apenas os filhos mais velhos eram nascidos, e se encontravam presentes, sendo essa informação confirmada pela testemunha II que, apesar de não ter visualizado o Arguido, ouviu a Ofendida a gritar e chamou a GNR, sendo clara ao explicar que os dois filhos do casal se encontravam em casa.
No que respeita às dores sentidas pela Ofendida, teve o Tribunal em consideração as regras da experiência comum, conjugadas com o anexo de fls. 135 onde são descritas as lesões, na medida em que resulta evidente que as condutas do Arguido (ao desferir dois murros em duas ocasiões diferentes), e sabendo ele que a Ofendida era sua companheira mãe dos seus filhos, eram passíveis de lhe afetar a saúde física e mental, sendo humilhante para ela o comportamento do Arguido, ainda para mais sendo o segundo episódio num local público..
Já no que se refere às conduções pessoais do Arguido e aos seus antecedentes criminais, constantes dos pontos 11. a 15. da matéria de facto provada, atendeu o Tribunal às suas declarações que, nesta parte e pela forma como foram prestadas, se reputam de credíveis, bem como ao seu certificado do registo criminal, que, como se explicou, apesar de encontrar averbada a prática de crimes, a mesma já não devia constar.
*
No que concerne à matéria de facto considerada como não provada, nos pontos 1. a 17. da matéria de facto não provada, entendeu-a dessa forma o Tribunal por não ser sido produzido qualquer acerca da mesma.
De facto, não só não prestou a Ofendidas declarações, uma vez que não compareceu, nem tão pouco foram reproduzidas as suas declarações (por oposição da defesa), como o Arguido negou a prática dos factos em causa.
Inexistiu, pois, qualquer outra prova, documental ou testemunhal, que contrarie a versão apresentada pelo Arguido, quanto aos pontos em análise.
No que se refere à mensagem constante do ponto 14. da matéria de facto não provada, entendeu o Tribunal que não resultou provado que tivesse sido o Arguido a enviá-la na medida em que, apesar de constar dos autos auto de transcrição, a fls. 50, o auto apenas de refere a um perfil de instagram “...”, não tendo sido realizada qualquer diligência de modo a aferir a quem pertencia tal perfil, tendo o Arguido, em julgamento, negado o envio da mesma.
Por todo o exposto, formou o Tribunal a sua convicção
III. DIREITO
1. Enquadramento jurídico-penal
Dispõe o artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal que, “quem, de modo reiterado ou não,
infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) Ao progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Por seu turno, o n.º 2, do mesmo artigo estipula que “no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco ano”.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a saúde, abrangendo quer a saúde física, quer psíquica e mental. (Assim, AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 512.)
Também a jurisprudência tem considerado que o bem jurídico visado pela norma não se restringe à integridade física da vítima, considerando uns que o bem jurídico protegido é a saúde. (Assim, Acórdão do TRP de 06.02.2013; relator: COELHO VIEIRA; processo: 2167/10.0PAVNG.P1. Acórdão do TRP de 10.07.2013; relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS; processo: 413/11.2GBAMT.P1. Acórdão do TRE de 08.01.2013; relator: JOÃO GOMES DE SOUSA; processo: 113/10.0TAVVC.E1.)
E outros que é a dignidade humana (Acórdão do TRC de 16.01.2013; relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA; processo: 486/08.5GAPMS.C1.)
No que se refere ao tipo objetivo de ilícito, este crime pressupõe “um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo dos comportamentos” descritos no artigo 152.º, do Código Penal, podendo ser uma relação conjugal ou análoga, atual ou passada [alíneas a) e b)], mas também uma relação parental [alínea c)] ou relação de coabitação [alínea d)]. (Assim, AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 513.)
As condutas elencadas no normativo legal são meramente exemplificativas, podendo existir outras que se enquadrem no crime em causa.
No que respeita à vítima, esta pode ser cônjuge, ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha, ou tenha mantido relação análoga, podendo, ainda, ser progenitor de descendente comum em 1.º grau e pessoa particularmente indefesa que coabite com o agente.
Como já referido, sendo as condutas elencadas meramente exemplificativas, a punição abrange condutas de várias naturezas, como “humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si de crime de ameaça”, “tratamento cruel”, e também condutas omissivas, não carecendo estas últimas de “constituírem um perigo próximo para a saúde”.
No que se refere à reiteração, ou não, do comportamento, para que o agente possa ser punido pelo crime de violência doméstica, refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que a querela existente antes de 2007 está resolvida, pela alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, uma vez que o normativo em causa passou a prever “de modo reiterado ou não”.
No entanto, da análise da doutrina e jurisprudência afere-se que a reiteração continua a ser um requisito para certas situações, em que a gravidade da conduta não permite, só por si, considerar a existência de um crime de violência doméstica.
Pelo contrário, perante comportamentos gravosos, ainda que isolados, tem-se defendido a desnecessidade de reiteração, para que seja enquadrável no crime em causa.
No caso ora em apreço verifica-se, em primeiro lugar, que o Arguido e a vítima, eram, à data dos primeiros factos, em 2018, viviam juntos, com os dois filhos mais velhos, pelo que se verifica a existência de uma relação compreendida na alínea b) do artigo 152.º, do Código Penal.
No que se refere às condutas levadas a cabo pelo Arguido, contra a vítima, as mesmas consistiram em agressões físicas, nomeadamente o desferimento de dois murros, no estômago e na face, em dois momentos distintos.
Entende o tribunal que o desferimento de um soco na companheira, nas zonas em que o foram (face e estomago) é suficientemente gravoso, mesmo desacompanhado de mais factos para que se considere preenchido o elemento objetivo do tipo.
Neste caso, infligindo o Arguido, ainda que de modo não reiterado, dois socos à sua companheira, considera o Tribunal que se encontra preenchido o elemento objetivo, no que se refere ao n.º 1, alínea b) e n.º 2, já que alguns dos factos foram perpetrados na casa de família do casal, enquanto aí moravam e na presença dois filhos mais velhos do casa.
Já no que concerne ao tipo subjetivo, este crime de violência doméstica só pode ser praticado dolosamente11, sendo necessário o agente ter conhecimento da sua especial relação com a vítima, ter vontade de realizar a conduta e de obter o resultado, “consoante os comportamentos subsumíveis ao âmbito teleológico-normativo do art. 152.º configurem tipos de crimes formais ou materiais”12.
O Arguido, no caso concreto, não só tinha, obviamente, conhecimento da relação subjacente à incriminação ora em causa, uma vez que era companheiro da Ofendida (num primeiro momento) e esta era mãe dos seus filhos, como atuou consciente de que as suas condutas consistiam em agressões, das quais resultariam danos psíquicos e físicos para a companheira.
Por isto, considera o Tribunal estar preenchido o tipo subjetivo. Em sede de culpa, que tem como elementos a imputabilidade, a consciência da ilicitude e a exigibilidade de comportamento diferente, o comportamento do Arguido merece censura, na medida em que o mesmo teve consciência de que a sua conduta não seria permitida e, por outro lado, não se verificou nenhuma circunstância que afaste a exigibilidade de um comportamento lícito.
Assim, preenchidos que estão os requisitos deste tipo de crime, verifica-se que o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal.
*
2. Do concurso de crimes
Segundo o disposto no artigo 30.°, n.° 1 do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Deste modo, há que atender à pluralidade ou unicidade de tipos legais efetivamente violados para aferir se existe uma unicidade ou pluralidade de crimes.
No caso ora em apreço, verifica-se que as condutas empreendidas pelo Arguido, em si mesmo consideradas, constituem crimes autónomos, ofensa à integridade física qualificada.
No que se refere à relação entre o crime de violência doméstica, pelo qual o Arguido vem acusado, e o crime de ofensa à integridade física qualificada, a doutrina não é consensual acerca da mesma, havendo quem defenda a existência de uma relação de consunção13, enquanto, por outro lado, é defendida a existência de uma relação de especialidade14.
Considera o Tribunal, que, no fundo, a divergência acima referida não é significativa, do ponto de vista prático, pois, como refere FIGUEIREDO DIAS15, trata-se de “classificações logico-formais, antes que de distinções que conduzam a um diferente tratamento jurídico-penal do caso em apreço: classifique-se este como de especialidade, de subsidiariedade, etc., a conclusão será sempre a de que é só aplicada a norma prevalecente” Assim, certo é que o agente, caso tenha levado a cabo agressões enquadráveis no crime de violência doméstica e noutro crime, por exemplo o crime de injúria ou ofensa à integridade física16,será apenas punido por aquele crime, tratando-se de um concurso aparente de crimes.
No caso em apreço, será o Arguido punido, à luz do artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, pelo crime de violência doméstica.
3. Determinação da medida concreta da pena
O Arguido praticou, assim, em autoria material e na forma consumada, um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo n.º 1, alínea b) e n.º 2, do artigo 152.º, do Código Penal, sendo o mesmo punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Por, neste caso não existir alternativa à pena de prisão, será esta a aplicada ao ora Arguido.
Deste modo, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar ao Arguido, pena essa que é limitada pela sua culpa revelada nos factos, de acordo com o artigo 40º, n.º 2 do Código Penal, e terá de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos. 40º, n.º 1 e 71º, ambos do Código Penal.
Para tal, há que ponderar, na determinação daquela medida, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o Arguido, nomeadamente, as enumeradas no artigo 71º, nº 2 do referido diploma.
Assim, em face da factualidade apurada importa ponderar:
No que respeita ao grau de ilicitude do facto, verifica-se o grau de ilicitude é mediano, por se terem apurado apenas duas situações de violência física.
No que se refere à intensidade do dolo, a mesma depõe contra o Arguido, uma vez que agiu com dolo direto, querendo e atingindo o objetivo de agredir a vítima física e psiquicamente.
No que se refere aos antecedentes criminais, os mesmos favorecem o Arguido, uma vez que este não tem qualquer antecedente criminal registado. Há que ter, também, em consideração as elevadas exigências de prevenção geral no que se refere ao crime de violência doméstica, concretamente ao cometido por um homem (cônjuge ou em relação análoga) contra a vítima do sexo feminino.
No que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas não se afiguram elevadas, já que o Arguido não tem antecedentes criminais registados, denotando, ainda, consciência crítica fase ao seu comportamento.
Ademais, deve ser valorizado, positivamente, o contributo do Arguido para a descoberta da verdade, na medida em que, no caso concreto e face à demais escassez de prova, tal se mostrou essencial.
Também situação económica e social do Arguido deve ser considerada na determinação da medida da pena. *
Assim, ponderados todos os fatores acima referidos, e estipulando o artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, que a pena de prisão para este crime de dois a cinco anos de prisão, decide o Tribunal aplicar a pena dois de prisão.
*
Da suspensão ou substituição da execução da pena
A aplicação de uma pena de substituição depende, não só de considerações de prevenção especial, nomeadamente das exigências de socialização, como de prevenção geral, em função das expectativas da comunidade e da garantia de defesa do ordenamento jurídico.
Tendo sido fixada a pena de dois anos de prisão a aplicar ao Arguido, há que aferir da viabilidade de suspensão da execução da mesma, já que esta não pode, á luz do que dispõe o artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade.
Consagra o n.º 1, do artigo 50.º do Código Penal que, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Este instituto da suspensão da execução da pena de prisão visa, nas palavras de FIGUEIREDO DIAS17, “o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes”, havendo uma tentativa de sociabilização que previna a reincidência.
Em primeiro lugar, verifica-se que se encontra preenchido o pressuposto formal, de a pena aplicada não ser superior a 5 anos, uma vez que, no caso em apreço, o Tribunal entendeu aplicar ao Arguido a pena de prisão de dois anos.
No que concerne ao pressuposto material, que consiste num prognóstico favorável relativamente ao comportamento do Arguido, tendo em conta os fatores descritos na norma supra citada, o mesmo também se encontra preenchido, sendo a suspensão em causa necessariamente acompanhada de frequência de curso para agressores de violência doméstica, não só porque o impõe o artigo 34.º-B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de/09, mas também porque se mostra relevante para uma total consciencialização, por parte do Arguido, do desvalor da sua conduta.
Há que atender, ainda, ao facto de o Arguido se encontrar inserido no meio em que vive, estando a trabalhar e ajudando os pais com as despesas do respetivo agregado.
Deste modo, considera que a aplicação da suspensão da pena de prisão se impõe-se in casu, dado os juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, permitem fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas, pelo que basta a mera censura do facto e a ameaça da pena de prisão para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim entende o Tribunal suspender a pena de prisão aplicada pelo período de dois anos, à luz do disposto no n.º 5, do artigo 50.º do Código Penal.
Não obstante, pode ainda o tribunal julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, que se determine o acompanhamento da suspensão de regime de prova, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 2 do Código Penal, sendo, no caso do crime dos autos, tal acompanhamento obrigatório, como supra ferido.
No caso ora em apreço, e tendo ainda presente as necessidades de prevenção especial positiva, entende-se que a suspensão da pena deverá ser acompanhada:
- de pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, de acordo com o n.º 4, do artigo 152.º, do Código Penal, em horário e locais a articular com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e sob fiscalização desta entidade.
De referir que, no que concerne à frequência no curso relativo à temática da violência doméstica, entende o Tribunal ser crucial a sua efetivação, para que o Arguido entenda e interiorize o desvalor da sua conduta e as consequências da mesma para a vítima e para o agregado familiar, nomeadamente os filhos menores de idade.
No caso concreto, não será aplicada a pena acessória de proibição de contactos do Arguido com a Ofendida, na medida em que, por um lado, não ocorreram mais contactos desde os últimos factos dados como provados (há mais de dois anos) e, por outro, desconhecesse o atual paradeiro da Ofendida.
Da indemnização à vítima
Dispõe o artigo 21.°, n.° 1, da Lei n.° 112/2009, de 16/09 que “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”, estipulando o n.° 2 que “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.
Nesta medida, tem a jurisprudência entendido que “em caso de condenação por crime de violência doméstica há sempre que arbitrar uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou, não o tendo feito e não se tendo oposto ao seu arbitramento expressamente (...)”18.
De facto, “por regra para que possa haver lugar a determinação de uma indemnização é necessário que oportunamente o/a lesado/a tenha formulado pedido cível”, sendo que “essa regra comporta excepções. Desde logo, a prevista no nº1 do artº 82-A do C.P. Penal, de carácter genérico, potencialmente aplicável às vítimas de qualquer tipo de crime, cujo requisito de aplicabilidade é a existência de particulares exigências de protecção da vítima”.
Ora, a norma “constante do artº 21 da Lei nº 112/09, que impõe aquele arbitramento, excepto quando a vítima do crime expressamente a tal se opuser”19.
O referido artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, estabelece que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”.
Há, pois, que apurar o montante a atribuir, no caso em apreço, à Ofendida, a título de indemnização.
Dispõe o artigo 129.º do Código Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Têm aplicação, assim, as regras da responsabilidade civil previstas nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil (CC), e da obrigação de indemnizar previstas nos artigos 562.º e seguintes do mesmo Código.
De acordo com o preceituado no primeiro referido comando legal, são pressupostos da responsabilidade civil: (i) a existência de um facto voluntário do agente;
(ii) a ilicitude de tal facto (mediante a violação de um direito de outrem ou violação de lei que protege interesses alheios);
(iii) a culpa (ou nexo de imputação do facto ao lesante, enquanto juízo ou censura ético-jurídica por o mesmo não ter agido de modo diverso ao exigido pela ordem jurídica);
(iv) o dano (isto é, que o facto ilícito tenha causado um prejuízo a alguém);
(v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Sendo que nos deparamos perante o instituto da responsabilidade civil subjetiva, por vezes denominada aquiliana ou delitual, é fundamental a existência de um comportamento dominável pela vontade e que possa ser imputado a um ser humano, facto esse que surge como uma expressão da conduta do agente responsável. Nas palavras de ANTUNES VARELA “o elemento básico da responsabilidade é o facto do agente – um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana”20.
Basta, assim, que exista uma conduta que possa ser imputada em virtude de um ser humano estar sob o controlo da sua vontade, não sendo necessário um facto intencional. Existindo domínio da vontade poderá sempre haver responsabilidade, claro está condicionada essa obrigação à verificação dos restantes pressupostos da responsabilidade civil. Por isso, facto voluntário significa apenas facto objetivamente controlável ou dominável pela vontade, não se exigindo uma conduta predeterminada, no fundo uma ação ou omissão orientada para um determinado fim.
No que concerne às diversas formas que o facto voluntário do agente pode revestir, elas são tipicamente duas: a ação (artigo 483.º do CC) e a omissão (artigo. 486.º do CC).
No que concerne à ilicitude do facto, a sua primeira variante traduz-se na violação de direitos subjetivos, estando abrangidos por esta modalidade de ilicitude os direitos sobre bens jurídicos pessoais como a vida, o corpo, a saúde ou a liberdade, aliás todos eles dignos de proteção constitucional.
Como nota ANTUNES VARELA “os direitos subjectivos aqui abrangidos [...] são, principalmente, os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas (corpóreas ou incorpóreas) ou direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares, e a propriedade intelectual”21.
No que respeita à segunda variante da ilicitude abrangida pela disposição do artigo 483.º do Código Civil, a mesma relaciona-se com a violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. O dolo ou mera culpa é o terceiro pressuposto da responsabilidade civil exigido pelo artigo 483.º, n.º 1 do Código. Culpa essa que deve ser entendida em sentido normativo22, como “juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente”23, ou, nas palavras de ANTUNES VARELA “agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo”.
Outro dos pressupostos da responsabilidade civil é a existência de um dano.
Por fim, e no que ao nexo de causalidade diz respeito, a posição maioritariamente defendida consiste na teoria da causalidade adequada, segundo a qual o nexo de causalidade existe na medida em que o facto que concretizou o dano seja adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas. A averiguação da adequação abstrata só pode ser feita a posteriori, através da avaliação se seria previsível que a prática daquele facto originasse aquele dano, o que vale por dizer que terá de ser levado a cabo pelo julgador um juízo de prognose póstuma.
Os defensores da teoria da adequação tem entendido que tal avaliação não leve apenas em linha de consideração as circunstâncias normais, mas também as anormais, desde que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente25.
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 28.11.12 “para que um facto seja causa de um dano é necessário que, no plano naturalístico ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo, traduzindo-se, essa adequação, em termos de probabilidade fundada nos conhecimentos médios, de harmonia com a experiência comum, atendendo às circunstâncias do caso”
Ora, no caso sub judice, ficou demonstrada a responsabilidade penal do Arguido, tendo ficado preenchidos os supra referidos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual no que respeita ao facto, à ilicitude e à culpa.
No que se refere à existência de dano, resultou demonstrado que a situação ocorrida provocou na Ofendida dores, nas zonas atingidas pelos murros.
Encontra-se, deste modo, também preenchido o pressuposto da existência de dano.
Também o nexo de causalidade entre as atuações do Arguido e o dano se encontra preenchido, já que as dores sentidas advieram das acções do Arguido, sendo tais atuações adequadas a produzir tal resultado.
Encontram-se reunidos, assim, todos os pressupostos da responsabilidade aquiliana acima elencados, pelo que impende sobre o Arguido a obrigação de indemnizar a demandante pelos prejuízos causados, cumprindo-lhe reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo, em conformidade com o disposto nos artigos 562.º e 563.º do CC.
Por existir manifesta dificuldade na quantificação exata da quantia indemnizatória, atento o cariz não patrimonial do dano, os artigos 496.º n.º 3 e 494.º, ambos do CC, preveem que a sua fixação seja feita de acordo com juízos de equidade, devendo atender-se, nessa tarefa, não só à extensão e gravidade dos danos, mas também ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Nestes termos, tendo em conta a factualidade provada, e nomeadamente por se tratar de duas situações concretas, de desferimento de murros, reputa-se equitativamente justa, adequada e suficiente a fixação de uma indemnização no valor de €700,00 (setecentos euros).
São ainda devidos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, atualmente fixada em 4% sobre o valor acima referido, desde a data da presente decisão e até efetivo e integral pagamento, ao abrigo do que dispõem os artigos 559.º, 804.º, n.º 1, 805.º, n. 3 e 806.º n.º 1, todos do Código Civil.
IV. DECISÃO
IV. Parte penal
Por todo o exposto julgo a acusação procedente por provada e, em consequência decido:
a) Condenar o Arguido AAna pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal.
b) Suspender a execução da pena de prisão em que o Arguido AA o foi condenado, pelo período de 2 (dois) anos, subordinada à obrigação de frequência de Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), de acordo com o n.º 4, do artigo 152.º, do Código Penal, em horário e locais a articular com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e sob fiscalização desta entidade.
c) Condenar o Arguido AA nas custas do processo, fixando em 2UC a taxa de justiça, nos termos do e 513.º do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, com referência à Tabela III do Regulamento das Custas Processuais
IV. Parte cível : Condeno o Arguido AA no pagamento à Ofendida BB da quantia de €700,00 (setecentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros legais, à taxa de 4%, devidos desde o trânsito em julgado da sentença até integral pagamento, à luz do disposto no artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e 82.º-A, do Código de Processo Penal.»
(Fim de transcrição).
Por se entender relevante à decisão, transcreve-se a acusação pública deduzida pelo recorrente Ministério Público, do seguinte teor:
«O Ministério Público acusa, para julgamento em Processo Comum perante Tribunal Singular:
- AA, solteiro, filho de CC e DD, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na ..., porquanto:
1 - O arguido e BB viveram um com o outro, em comunhão de mesa, leito e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, durante cerca de 6 anos e até, sensivelmente, meados de 2019, além do mais, no .... Dessa relação nasceram, EE, FF e GG, em ........2015, ........2016 e ........2019, respectivamente.
3 - Desde, praticamente, o início da relação entre ambos, que o arguido maltratou física e psicologicamente, BB.
4 - Dirigindo-lhe constantemente expressões como “és uma puta”, “és uma filha da puta”, “és uma cabra”, “és uma vaca” e “andas a trair-me”.
5 - E, com foros de seriedade, designadamente: “dou cabo de ti”, “ficas sem o menino”, “eu fodo-te” e “eu mato-te”.
6 - Molestando-a fisicamente, por diversas vezes, designadamente, com pontapés, murros, chapadas e cabeçadas, em diversas partes do corpo.
7 - No dia 22.04.2018, cerca das 16 horas, no interior da residência comum, no contexto de uma discussão entre ambos, o arguido aproximou-se de BB, apertou-lhe o pescoço e desferiu-lhe vários murros e chapadas na face, causando-lhe, designadamente, dores nessa parte do corpo e, bem assim, hematomas no sobrolho esquerdo e nariz
8 - Em meados de 2019, BB passou a residir na “...”, em ... (Instituição de Inserção para Mulheres em Risco). Altura a partir da qual o arguido continuou a maltratá-la, deslocando-se por diversas vezes à referida instituição, telefonando-lhe constantemente, insistindo em falar com ela e dirigindo-lhe expressões como as sobreditas.
10 - De igual modo, sempre que, por qualquer razão, BB saía da instituição, o arguido encontrava se à sua espera, abordando-a e seguindo-a para onde quer que a mesma se deslocasse, procurando, assim, controlar os seus passos.
11 - Em data não concretamente apurada, mas situada em Dezembro de 2019, BB encontrava-se nas ....
12 - Nessa altura, a mesma foi abordada pelo arguido, que, dirigindo-se-lhe, logo lhe desferiu uma chapada na face, causando-lhe dores.
13 - Em data não concretamente apurada, mas situada em Novembro de 2020, por ocasião de uma videochamada entre ambos, BB despiu-se e mostrou-se, ao arguido, completamente desnudada.
14 - Aproveitando o arguido tal facto para, a partir daí, anunciar, por diversas vezes, a BB, no contexto de discussões que mantinha com ela, que publicaria tais imagens nas redes sociais.
15 - No dia ........2021, cerca das 20 horas, BB recebeu uma chamada telefónica do arguido, no contexto da qual o mesmo lhe disse: “tu andas a falar com outros”, “eu quero o meu telemóvel”, “eu vou aí e parto isso tudo”, “agora, se eu estivesse ao pé de ti, rebentava-te toda”, “quando te apanhar, vou-te
rebentar toda” e “vou mostrar a toda a gente as tuas fotos”.
16 - Instantes após, BB foi informada por outra residente da referida instituição de que o arguido se encontrava junto ao portão, exigindo que aquela lhe devolvesse um telemóvel que havia emprestado à mesma.
17 - Na mesma data, cerca das 11:41 horas, o arguido remeteu a BB, através da rede social instagram, uma mensagem escrita com o seguinte teor: “então é desta sua monte de merda ele ate dis que já te comeu fdp Vou-te matar”.
18 - No dia 18.02.2021, cerca das 13:30 horas, após prévia combinação entre eles, BB e o arguido encontraram-se na HH, nas imediações do local de trabalho daquela, por aquele alegar que precisava de falar com a mesma sobre os filhos de ambos.
19 - Cerca das 13:52 horas, apanharam o comboio com destino a ....
20 - No trajecto percorrido entre a HH e ..., iniciaram uma discussão, um com o outro, no contexto da qual o arguido desferiu vários murros e puxões de cabelos, bem como apertões no pescoço, em BB, causando-lhe, designadamente, dores nas partes do corpo atingidas, hematomas no braço direito e ferida no lábio inferior. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir, designadamente, a integridade física, a honra, a consideração e a saúde psíquica/mental de BB.
22 - Bem como de lhe causar medo e inquietação e perturbar a sua liberdade de determinação. 23 - Fazendo-a temer, inclusivamente, pela própria vida.
24 - O arguido sabia que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Desta forma, incorreu o arguido na prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, e 82º - A do Código de Processo Penal.»
(Fim de transcrição).
Fundamentação
Apreciando.
Compaginada a acusação pública e a sentença condenatória recorrida, resulta à saciedade que o tribunal a quo veio a julgar a acusação procedente por provada e, em consequência, a condenar o arguido nos exactos termos constantes da aludida peça acusatória.
Defende, porém, o autor da acusação e ora recorrente, nas suas conclusões recursórias, que o tribunal não efectuou uma correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 152º nº 1 b) e 2 a) do CP, devendo este tribunal ad quem «revogar a decisão e substituir por outra que condene o arguido por dois crimes p.p nos termos dos artigos 145º nº 1 a) , 2 e artigo 132º nº 1 e 2 do Código Penal.»
Vejamos.
Para a admissibilidade de um recurso torna-se necessário que, para além da comprovação da legitimidade de quem pretenda recorrer, isto é, que ficou vencido pela decisão recorrida por esta ter sido proferida contra si -art. 401º, n.º 1, do Código de Processo Penal-, que se demonstre ainda um interesse relevante em agir -n.º 2 do mesmo preceito legal-, ou seja, que se demonstre a necessidade de lançar mão do recurso para tutelar um direito.
A legitimidade resulta directamente da norma legal que confere esse direito ao recorrente, sendo que o interesse em agir é aferido pela necessidade de tutela dos interesses da pessoa visada, sendo analisado em função da posição concreta do sujeito em relação à decisão. Estamos aqui no domínio da materialização do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conforme art. 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
«O interesse em agir reporta-se à justificação do motivo para a interposição do recurso, com um conteúdo específico, no processo penal, em face da sua formulação negativa, impedindo de recorrer, «quem não tenha interesse em agir» e, portanto, associando a necessidade ou utilidade do recurso penal a um princípio de proibição de comportamento contraditório por parte dos sujeitos processuais (princípio da preclusão ou da auto-vinculação) no decurso do processo.» (cfr. Acórdão do TRL de 16-10-2019, proc. 345/18.3IDLSB.L1-3, in www.dgsi.pt).
O «interesse em agir» consiste assim na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que só por essa via pode ser tutelado, sendo que a ausência de tal interesse é, assim, um pressuposto excludente do direito de recorrer, que acresce ao da legitimidade.
No caso concreto dos autos, é o próprio recorrente que, na acusação pública, pugna pela condenação do arguido como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal.
E, na sentença de que recorre, é condenado o arguido como autor material e na forma consumada, com base nos mesmos factos descritos naquela acusação (ainda que parte deles tenham sido dados como não provados), pelo mesmíssimo crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, do Código Penal.
Ora, se assim é, e tendo sido acolhida a pretensão do Ministério Público nos concretos moldes assinalados, não temos dúvidas de que estamos no âmbito de uma falta de interesse em agir na dedução do presente recurso.
E ainda que dúvidas houvesse, e não as há como assinalado, o caso Sub Júdice convoca necessariamente a aplicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2011, de 27 de Janeiro, in Diário da República n.º 19/2011, Série I de 2011-01-27, no termos do qual:
«Fixa jurisprudência no seguinte sentido: Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.»
Note-se que, no caso concreto, o recorrente nem sequer discorda da qualificação jurídica do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado, com base nos factos provados constantes da sentença recorrida.
O que vem defender é que com base em novos factos, que não constam nem da acusação pública, nem da decisão sindicada, e cujo aditamento também não requer, e por isso também não dando cumprimento ao triplo ónus previsto no art. 412º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o tribunal a quo «não efectuou uma correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 152º nº 1 b) e 2 a) do CP», devendo «o tribunal revogar a decisão e substituir por outra que condene o arguido por dois crimes p.p nos termos dos artigos 145º nº 1 a) , 2 e artigo 132º nº 1 e 2 do Código Penal.»
Ora, não olvidando as vestes de «garante da legalidade» que cobrem o corpo do Ministério Público, sempre será de assinalar, a todo o exposto, que a materialização de tal garantia na interposição de recurso há-de ter por base violações flagrantes da lei, de atropelo de princípios fundamentais, enfim, de erros notórios, nada disso aqui estando em causa no caso concreto.
Conforme exarado no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2011, citando o Professor Figueiredo Dias:
«(…) refere Figueiredo Dias - pudesse o Ministério Público livremente venire contra factum proprium - e ter-se-ia inclusivamente de suportar consequências que a prazo minariam a seriedade da instituição pelo absurdo. Teria de admitir-se, por exemplo, que o Ministério Público pudesse recorrer de decisões que houvessem sido tomadas a seu pedido ou sob seu requerimento.»
Em suma, entende-se que o recurso interposto pela digna magistrada do Ministério Público não é legalmente admissível, devendo ser rejeitado por falta de interesse em agir, nos termos do disposto no artº 401º, nº 2 do Código de Processo Penal.
E a tal não obsta o facto de tal recurso ter sido admitido pelo tribunal a quo por despacho sob Ref.ª ..., uma vez que a sua admissão pela 1ª Instância não faz caso julgado e não vincula o tribunal superior -n.º 3 do artigo 414.º do CPP.

DISPOSITIVO
Termos em que se decide rejeitar o recurso interposto pela digna magistrada do Ministério Público, por falta de interesse em agir, nos termos conjugados dos arts. 401º, n.º 2, 417º, n.º 6, al. a) e b) e 420º, nº 1, a), todos do C.P.P.
Sem custas.
Registe e notifique, nos termos legais.

Lisboa, 11 de Março de 2024
Paula Sofia Albuquerque