Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6104/2006-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE FAMÍLIA
INVENTÁRIO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
REGISTO CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O Tribunal de Família é competente em razão da matéria para preparar e julgar inventários requeridos na sequência de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na competente Conservatória do Registo Civil (Decreto-Lei nº 272/2001, de 13 de Outubro), aplicando-se ao caso o disposto no artigo 81º, alínea c) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa  

I – RELATÓRIO

P.[…] requereu no Tribunal de Famílias e Menores de Lisboa, contra M.[…], processo de inventário para partilha de bens na sequência do divórcio por mútuo consentimento decretado entre eles por decisão da Srª Conservadora do Registo Civil.

Com fundamento na incompetência em razão da matéria aquele Tribunal absolveu o requerido da instância.

A requerente interpôs recurso de tal decisão que foi admitido como de agravo e efeito suspensivo e de subida imediata, o que nesta instância se manteve.  

Em remate das suas alegações, conclui a recorrente:

1ª A agravante intentou em 17/2/06 nos juízos cíveis de Lisboa (…) o processo de inventário, para partilha de bens, na sequência de divórcio decretado pela Conservatória do Registo Civil da Lourinhã, que veio a declarar-se incompetente e competente o Tribunal de Família.

2ªPor se ter conformado com tal decisão, a agravante intentou agora esta acção no Tribunal de Família que ora decide que não é o competente.

3ª Ora, compete aos Tribunais de Família a liquidação da sociedade conjugal resultantes das acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como a liquidação do seu património, sendo que tais inventários, ainda que versem única e exclusivamente sobre aspectos patrimoniais, inserem-se no âmbito familiar, sendo, por conseguinte, direito da família e, como tal, deve ser regulado nesse Tribunal, por ser de competência especializada.

4ªO legislador ao estabelecer no DL 272/01, de 13/10, a competência exclusiva do CRC na separação e divórcio por mútuo consentimento, não terá querido retirar dos tribunais de família a competência para os processos de divórcio, quer esta assuma a via litigiosa ou não ou seja decidido de harmonia com as diferentes formalidades previstas na lei.

5ªSucede que a referida al.) c do artº81 da Lei 3/99. de 13/1, não foi objecto de qualquer alteração, mormente no que se refere à distinção entre o divórcio por mútuo consentimento, sendo certo que este diploma é anterior ao que delimitou a competência dos conservadores para os divórcios por mútuo consentimento.

6ªAssim, a disposição da al.) c do artº81 da Lei 3/99 deve ser interpretada no sentido de que os tribunais de família são os competentes para decidirem inventários, não por serem sequência apenas de acções de separação de bens e de divórcio, mas fundamentalmente por serem resultantes da dissolução do casamento, independentemente do processo assumir a via litigiosa ab initio a via do mútuo consentimento.

7ªAs decisões proferidas pelo CRC sobre o divórcio produzem todos os efeitos das sentenças judiciais sobre a mesma matéria, conforme expresso no artº1788ª do CPC.  

8ª A decisão ao declarar incompetente o Tribunal de Família confundiu a questão fulcral da dissolução da sociedade conjugal com a questão processual, na medida em que a LOTJ não faz qualquer distinção sobre a forma adoptada para o decreto do divórcio.

9ªHouve assim uma incorrecta aplicação da lei substantiva e da lei processual, designadamente dos artº1773, nº1 e 2, 1775,1778 e 1778 A do CCivil e artº101,105,nº1,404, nº1 e 1327,al) d do CPC e artº81, al.) c da Lei 3/99, de 13/1.

No final pede que a revogação do despacho e a consideração da competência do Tribunal de Família.
 
O Sr. Juiz sustentou tabelarmente a decisão.
 
Corridos os vistos, nada obsta ao conhecimento de mérito.

II-FACTOS

A matéria a considerar reconduz-se ao já constante do relatório.

III-ENQUADRAMENTO JURÍDICO

O thema decidendum é, nunca é demais frisar, delimitado pelo teor das conclusões, à margem das situações de conhecimento oficioso e outras de excepção expressa no texto legal, que do caso em apreço estão arredadas.  

Donde, o que demanda pronúncia por banda deste tribunal:

É o Tribunal de Família o competente para apreciar o inventário para separação de bens sequencial a divórcio por mútuo consentimento decretado pelo Conservador do Registo Civil?  

Passando à apreciação da questão.

A competência judiciária em razão da matéria é questão de ordem pública e apenas decorre da lei.

A sua fixação apreciar-se-á em função da natureza da matéria a decidir, sendo que, no limite, o critério do legislador teve como padrão a atribuição da causa ao tribunal que mais vocacionado (idoneidade do juiz (1)) estiver para conhecer do objecto do pleito em concreto, buscando-se afinal a eficiência da organização judiciária.
 
Quanto aos tribunais da organização judiciária comum, divide a lei em tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada, de acordo com o disposto nos artº72 a 77 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, seguindo-se o estabelecido a propósito no artº211 da Constituição da República Portuguesa.
 
É ponto incontroverso que a regra geral relativa à competência material, é atribuída, globalmente, por via negativa, aos Tribunais Judiciais, conforme estabelecido no artº66 do CPC […] competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. 
 
Vejamos a especificidade no que respeita a cônjuges e ex-cônjuges.
 
Dispõe o art. 81º, c), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), que compete aos Tribunais de Família preparar e julgar inventários requeridos na sequência de acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como os procedimentos cautelares com aqueles relacionados.
 
Com igual alinhamento está o disposto no art.º 1404 do C.P.C., que, sob a epígrafe ‘Partilha de bens em alguns casos especiais’, refere o inventário em consequência do divórcio.
 
No caso dos autos a agravante, entretanto já divorciada do ex-cônjuge requerido, vem requerer inventário para partilha dos bens do dissolvido casal no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que teve lugar na Conservatória do Registo Civil.

Será que continua a existir conexão com a especialidade dos Tribunais de Família que justifique a atribuir-lhe a competência para o inventário?

Na verdade, o legislador após a consagração exclusiva de competência ao Conservador do Registo Civil para dissolver o casamento por mútuo consentimento através do DL 272/2001 de 13/1, não introduziu  alterações na LOTJ, sendo que reconhecemos que a situação não está expressamente definida na mesma.

Donde, terá o intérprete de encontrar a solução mais consentânea com o sistema e os princípios que o informam.
 
Está fora de dúvida que, uma vez decretado o divórcio pelo Tribunal de Família, o inventário que fosse requerido na sequência da respectiva acção para partilha dos bens correria necessariamente por aquele Tribunal, por apenso ao respectivo processo.

Assim sendo, tendo presente uma reflexão quanto à motivação subjacente à especialização dos Tribunais de Família, considerando ainda que o legislador, no âmbito da LOFTJ, atribuiu aos Tribunais de Família a competência para os inventários requeridos na sequência de acções de divórcio, parece razoável que o mesmo legislador, não quisesse excluir da competência daqueles Tribunais a de conhecer os processos de inventário instaurados na sequência de divórcios por mútuo consentimento, cuja competência é actualmente (com os requisitos previstos na lei) exclusiva das Conservatórias do Registo Civil.

Daí que, acolhendo em parte as razões invocadas pela impugnante, se nos afigure aceitável, feita a sobredita interpretação da LOFTJ quanto à problemática em análise, integrar na competência dos Tribunais de Família os processos de inventário para separação do património conjugal na sequência de divórcio por mútuo consentimento, e ora decretado pelo CRC.

Em conclusão.
- A competência material, em questão, pela natureza da relação em conflito, cabe ao Tribunal de Família.

IV-DECISÃO

Do que vem exposto decide-se, em conceder provimento ao agravo, revogar a decisão recorrida, devendo o Sr. Juiz aceitar a competência para a tramitação do processo de inventário.

    Sem custas.

 Lisboa, 21 de Novembro de 2006

 Isabel Salgado
 Soares Curado
 Roque Nogueira  



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1.-Alberto dos Reis, in Comentário ao CPC, I, Pag.106