Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2029/20.3T8PDL.L1-6
Relator: JORGE ALMEIDA ESTEVES
Descritores: REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DA TITULARIDADE
DESCRIÇÃO DO PRÉDIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- A finalidade do registo predial é a de permitir a qualquer interessado aferir da existência e titularidade dos direitos reais incidentes sobre prédios, pelo que o objeto do registo, como resulta do art.º 2.º do C. Registo Predial, são os factos jurídicos (a compra e venda, a permuta, a sucessão).
2- A presunção de titularidade constante do art.º 7.º do C. Registo Predial não abarca os elementos da descrição predial, nomeadamente no que respeita à área.
3- Provando-se que o prédio do autor tem efetivamente a área de 2.405 m2, estando fisicamente delimitado em relação ao prédio da ré por um muro que separa ambos os prédios, e não 2.656 m2 como consta do registo, a ação destinada a obter a declaração de propriedade sobre a área correspondente à diferença tem de improceder se o único fundamento invocado é a área mencionada no registo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autor recorrente: N…
Ré recorrida: T…, LDA.
O autor instaurou ação de simples apreciação sob a forma comum de declaração, formulando o seguinte pedido: ser o autor declarado proprietário da área de 244m2, de que a ré se apropriou e acrescentou ao seu prédio, em conformidade com os títulos de registo predial e a posse do antepossuidor. Aquela mencionada área integra o prédio urbano sito em…, Ponta Delgada, descrito na conservatória do registo predial sob o lote nº 1, e inscrito na matriz predial sob o nº XXX, com a área total de 2656 m2, do qual é proprietário.
Para fundamentar o pedido alegou que adquiriu o seu prédio em 2018, o qual havia sido objeto de loteamento em 1987, tendo ordenado a realização de um levantamento topográfico que veio a demonstrar que o seu prédio tem a menos a área de 244 m2, tendo a ré erigido um muro com o qual se apropriou daquela área do seu terreno.
A ré contestou, impugnando o alegado pelo autor, dizendo que, quando este adquiriu o seu prédio, já o prédio da ré se encontrava física e perfeitamente delimitado, tendo adquirido tal prédio conforme viu e com os limites físicos já existentes.
Deduziu reconvenção, tendo formulado o seguinte pedido: ser declarada a propriedade da ré sobre todo o terreno e construções delimitados pelo polígono anexo ao Alvará de Loteamento nº. XX, adquirida por usucapião, que aqui se invoca.
Para fundamentar a reconvenção alegou que adquiriu o seu prédio, com os limites físicos existentes, e sobre o mesmo exerceu atos de posse desde 2007, de forma pública, pacífica e sem oposição de ninguém, ininterruptamente e como se dono, com tais limites, se tratasse.
Na réplica o autor impugnou todo o alegado em sede reconvencional e invocou a exceção de autoridade de caso julgado, em virtude de ação que anteriormente correu no mesmo Juízo e cuja decisão juntou com a petição inicial.
Foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença que absolveu a ré do pedido quanto ao que foi peticionado pelo autor e absolveu este da instância quanto ao pedido reconvencional, por ter considerado procedente a exceção de caso julgado.
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Inconformado com o decidido, apelou o autor, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
a) Os terrenos de A e R eram iguais nos lotes iniciais.
b) Ficou provado, por sentença transitada em julgado que a R. não adquiriu nenhuma área de terreno do A.
c) As áreas de terreno de A. e R. devem ser de 2.656m2.
d) A área de terreno do A. tem agora 2.405m2 e o da R. tem 2.963m2.
e) Deve assim, ser reconhecido ao A., o direito de propriedade, a diferença entre as duas áreas, de molde que cada uma fique com 2.656m2.
Face ao exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada, e ser reconhecido ao A. o direito de propriedade da diferença entre as atuais áreas dos terrenos do A. e R.
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A ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido, concluindo da seguinte forma:
I – Embora sem o dizer expressamente, o recorrente pretende ver modificada a matéria de facto dada como provada no tribunal a quo.
II – Porém, fê-lo em total desrespeito ao comando do nº.1 do art.º 640º do CPC.
III -O que acarreta, como consequência, a sua rejeição.
Sem prescindir
IV – Os factos provados resultaram, nomeadamente, da apreciação crítica das declarações de parte do recorrente, do depoimento da testemunha JP, conjugado com os documentos juntos aos autos, como se constata na motivação dos factos provados feita pelo Tribunal.
V – E o recorrente nem diz a razão pela qual tais declarações e depoimentos devem desmerecer crédito, limitando-se a dizer que os prédios já tiveram a mesma área.
VI – A compra do prédio pelo recorrente foi feita ad corpus, como resulta da sentença.
VII – Pelo que a sentença recorrida não violou qualquer dispositivo legal, limitando-se a aplicar o direito aos factos provados.
VIII – Razão pela qual o presente recurso deve improceder.
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FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a apreciar é unicamente a de determinar se, em face do que consta dos documentos do registo predial relativamente às áreas dos terrenos do autor e da ré, tais documentos determinam por si só decisão diferente e se os factos que se provaram quanto às circunstâncias da compra do prédio pelo autor são irrelevantes.
De referir que, ao contrário do afirmado pela recorrida nas contra-alegações, o recorrente não impugnou a matéria de facto, como resulta de forma evidente das conclusões do recurso.
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Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Encontra-se registada a aquisição por compra, a favor do autor, na C. R. Predial de Ponta Delgada, pela apresentação de …, sob o nº XXX, do prédio inscrito na matriz sob o nº XXX, e descrito como lote nº X, composto de casa destinada a habitação, dependência e quintal, com a área de 2656 m2.
2. Encontra-se registada a aquisição por compra, a favor da ré, na C. R. Predial de Ponta Delgada, pela apresentação de…, sob o nº XXX, do prédio inscrito na matriz sob o nº XXXX, e descrito como terreno destinado a construções urbanas, a confrontar de norte com lote nº X, Sul com AS, Nascente Rua e Poente com servidão e MRC, constituindo o lote nº X, com a área de 2.656 m2.
3. Ambos os prédios referidos em 1) e 2) resultaram do Loteamento com o alvará nº XX, alterado pelo Alvará nº YY, Loteamento este efectuado pelo anterior titular do prédio “mãe” JF e alterado a pedido da ré em 08.07.2013, alteração esta que foi aprovada em 13 de Outubro de 2014.
4. De acordo com os muros existentes no local e que separam fisicamente ambos os lotes, o prédio descrito em 1) tem a área real de 2.405 m2, enquanto o prédio descrito em 2) tem a área de 2.963 m2.
5. Ambos os referidos prédios se encontram actualmente divididos por um muro quase integralmente completo e que foi erigido pela ré.
6. Com a alteração admitida por decisão de 13 de Outubro de 2014, referida em 3), o prédio descrito em 2) ficou com a área de 2.963 m2 (embora no Alvará de alteração tenha ficado com a área de menos 7 m2).
7. A compra a que se refere a descrição e inscrições mencionadas em 2) ocorreu, através de escritura pública de compra e venda, celebrada em 9 de Março de 2007.
8. Na sequência de conversações entre a ré e JF, titular inscrito no registo quanto ao lote nº X, referido em 1), aquele declarou verbalmente ceder à ré uma faixa de terreno na extrema poente, com uma área não concretamente apurada, faixa esta a sair daquele lote 1, na sequência do que a ré construiu na confinância da extrema poente, inclinando para Norte, um muro com cerca de 2 metros de altura e 16 metros de cumprimento, delimitando a Poente a parcela declarada decida.
9. Aquando da aquisição referida em 1) pelo autor, em consequência da construção de muros e da alteração referida em 3) e 6), já o lote adquirido se encontrava fisicamente delimitado nos termos em que se encontra actualmente.
10. Para aquisição do lote X, o autor foi ao local e adquiriu aquilo que lá se encontrava e nos termos físicos que constatou existirem, como referido em 9), pese embora a área do lote anunciada para venda fosse a que consta na descrição predial.
11. Desde a data referida em 7) que a ré passou a ocupar o lote vendido e, desde 2008, a ocupar igualmente a área cedida e mencionada em 8).
12. Após 13 de Outubro de 2014 a ré construiu no terreno com as indicadas delimitações uma moradia de três pisos e com vários espaços T0 e um espaço com tipologia T5 duplex, com alpendre, varandas e terraços, numa área total habitável de 232,34 m2.
13. Na área não habitável igualmente construiu uma churrasqueira, nichos de electricidade e gás, pavimentou parte do piso, cultivou flores e ajardinou, bem como plantou árvores.
14. O referido em 12) e 13) ocorreu a expensas da ré, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e com a convicção de exercer um direito correspondente ao de proprietária conforme delimitação efetuada pelo Alvará nº YY.
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Fundamentação jurídica
Apesar de o recorrente não o dizer expressamente, resulta implícito das conclusões do recurso que o fundamento da pretensão recursiva se baseia no teor da descrição predial, quer do prédio do autor, quer do prédio da ré. O autor considera que, resultando de ambas descrições que os prédios têm a mesma área, constatando-se que na realidade tal situação não se verifica, deve o tribunal declarar existente a realidade resultante do registo.
Acontece, porém, que o direito aplicável não atribui tal efeito jurídico aos elementos da descrição predial, maxime à área que naquela está mencionada. A presunção registal de titularidade constante do art.º 7.º do C. Registo Predial – que estabelece que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” – não abarca os elementos da descrição predial, mas apenas o que resulta do facto jurídico inscrito tal como foi registado.
O C. Reg. Predial, no art.º 1.º, estabelece que “o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Daqui resulta que a finalidade do registo predial é a de permitir a qualquer interessado aferir da existência e titularidade dos direitos reais incidentes sobre prédios. Para tal, o que se regista, o objeto do registo, como resulta do art.º 2.º do C. Registo Predial, são os factos jurídicos (a compra e venda, a permuta, a sucessão). A presunção de titularidade constante do preceito diz unicamente respeito à inscrição predial, uma vez que esta é o único ato registal em causa, pois a descrição não é um registo, mas o suporte para o mesmo. E por isso os elementos da descrição predial não estão abarcados pela presunção de titularidade constante do mencionado art.º 7.º do C. Registo Predial.
Tal conceção é jurisprudência unânime, tendo assim sido decidido no acórdão do STJ de 12.01.2021[1], de cujo sumário consta o seguinte:
A presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é, em regra, constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio”.
No mesmo sentido temos ainda o acórdão do STJ de 14.11.2013[2], que decidiu o seguinte, assim sumariado:
1. A presunção resultante da inscrição do direito de propriedade no registo predial, não abrange a área, limites ou confrontações dos prédios descritos, não tendo o registo a finalidade de garantir os elementos de identificação do prédio.
2. A presunção derivada do registo predial pode entrar em conflito com a presunção da titularidade resultante da posse de outrem sobre o mesmo prédio. Resultando do art.º 1268.º do CC que a presunção derivada do registo apenas prevalecerá se for anterior ao início da posse, pois, de contrário, será a presunção a favor do possuidor que prevalecerá. Significando esta última presunção que o possuidor, numa acção de reivindicação, não tem o ónus da prova, cabeando ao reivindicante esse encargo”.
Subsumindo o enquadramento jurídico assim explicitado ao caso sub juditio, temos de concluir que do facto de a descrição prédio do autor, que consta do registo predial, referir que esse prédio tem a área de 2.656 m2, não resulta qualquer tipo de presunção de que efetivamente assim seja.
Provou-se que o prédio do autor tem efetivamente 2.405 m2, estando fisicamente delimitado em relação ao prédio da ré por um muro que separa ambos os prédios. Tal realidade física já se verificava quando o autor adquiriu o seu prédio (cfr. facto nº 9).
Por via do registo, o autor sabia que a pessoa que lhe vendeu o prédio era o proprietário do mesmo e que o mesmo existia. Mas desse registo não resulta, face a terceiros, que o prédio tenha a área que constava do registo[3].
Deste modo, atendendo aos factos que se provaram – e que o recorrente não impugnou – não resulta que este tenha título para ser declarado proprietário da área de terreno mencionada no pedido. Ou, melhor dizendo, o título invocado – a descrição constante do registo predial – não consubstancia uma forma juridicamente relevante de aquisição de tal direito.
O recurso tem, portanto, de ser considerado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente (art.º 527º/1 e 2 do CPC).

Lisboa, 23mar2023
Jorge Almeida Esteves
Teresa Soares
Octávia Viegas
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[1] Proferido no procº nº 2999/08.0TBLLE.E2.S1 (in www.dgsi.pt).
[2] Proferido no procº nº 74/07.3TCGMR.G1.S1 (in www.dre.pt).
[3] Face ao vendedor a situação poderia ser diferente, mas tal questão situa-se no âmbito obrigacional e não no âmbito dos direitos reais, que são aqueles que neste caso importam.