Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
266/20.0PGLRS.L1-9
Relator: GUILHERME CASTANHEIRA
Descritores: ESTADO DE EMERGÊNCIA - COVID 19
SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA/CALAMIDADE
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA AGRAVADA
VIOLAÇÃO DO DEVER GERAL DE RECOLHIMENTO DOMICILIÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2-B/2020 e 2-C/2020, seu art.º 5º, competindo às forças de segurança zelar e fiscalizar o cumprimento de tal dever, nos termos do art.º 46º do Decreto 2-C/2020;
II-O facto de os arguidos estarem na via pública à conversa com outros indivíduos, em situação de convívio social, não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado os arguidos a tal conduta - art.º 5º, n.º 1, al. u), pelo que deverão ser condenados pela pratica de um crime de desobediência, tendo sido advertidos previamente em data pretérita pelas forças de segurança, quando se encontavam em idêntica situação na via pública;
III- A resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-C/2020, é sancionada nos termos da lei penal - art.º 46º, n.º 7;
IV-Ora, sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, e tendo as forças de segurança cominado/advertido a prática de um crime de desobediência para os cidadãos, estes, quando sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podem e devem  as forças de segurança, nesse caso, proceder desde logo à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário;
V- De facto as autoridades têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime, e a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário. Neste contexto, perante o teor dos Decretos do Presidente da República e das Resoluções da Assembleia da República de 2/4 e 17/4, não é  defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tem qualquer consequência penal,  e que não comporta a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”, pois que estas têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime;
VI-De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre suporte legal nos art.º 7º, da Lei 44/86, art.º 5º do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17/4, art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17/4, art.º 46º, n.º 7, do Decreto 2 C/20202, de 17/4, ainda que se exija a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.º 348º, n.º 1, b), do Código Penal, (como atrás de referiu já) a qual, no presente caso, efectivamente até existiu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO:
No, aqui redistribuído em 2021.04.06, nuipc 266/20.0PGLRS.L1, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Loures, Instância Local, Juízo de Pequena Criminalidade - J2, sob acusação do Ministério Público, foram, em processo sumário, submetidos a julgamento, os arguidos:
- AA;
(nascido em Portugal, …………………………..  Pontinha) 
- BB;
(nascido no Brasil, ………………… Pontinha)
- CC
(nascido em Portugal, ……………………………  Pontinha).
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença pela qual se decidiu absolver “os arguidos AA,BB e CC da prática de um crime de desobediência pelo qual vinham acusados”, i.e, “um crime de desobediência agravada por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.º 348º, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 5º e 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, todos do Decreto 2-C/2020, de 17/4, com o art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9, e com o art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, e ainda art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2000, de 17/4”.
*
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões: “
a) É o presente recurso interposto da douta sentença que absolveu os arguidos da prática de um crime um crime de desobediência agravado, por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.º 348º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 5º, 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, todos do Decreto 2-C/2020, de 17/4, com o art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9, com o art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, e com o art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17/4, por entender, grosso modo, que a deficiente redacção do Decreto 2­C/2020, de 2/4, não permite ao julgador ter uma percepção clara e livre de contradições das condutas que são criminalmente punidas, bem como de quais os poderes que as Forças de Segurança têm para impor o cumprimento aos cidadãos do dever geral de recolhimento domiciliário, decorrente do art.º 5º, do Decreto 2-C/2020.
b) A sentença proferida padece de nulidade prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, pois, entendendo a Mm.ª Juíza a quo que não estavam preenchidos os elementos objectivos do crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por referência à violação do art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, foram ignorados as demais normas e diplomas em que o Ministério Público assentou o seu libelo acusatório.
c) Não se podia ignorar, na sentença recorrida, que a legitimidade da cominação das condutas que violem o dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do Decreto 2-C/2020, não surge exclusivamente da aplicação isolada de tal diploma ou sequer da aplicação única do seu art.º 5º, pois que o mesmo surge enquadrado por um conjunto normativo pré-existente, onde se destaca a Lei 44/86, de 30/9, a qual não foi sequer considerada, bem como o art.º 46º, n.º 7, do mesmo Decreto 2-C/20202, o art.º 5º da Resolução da Assembleia da República 23-A/2020, de 17/4, não sendo sequer aflorado se a factualidade dada como provada podia integrar a prática de um crime de desobediência previsto e punido nos termos do art.º 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal, como constava igualmente da acusação.
d) Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2-B/2020 e 2-C/2020, seu art.º 5º, competindo às forças de segurança zelar e fiscalizar o cumprimento de tal dever, nos termos do art.º 46º do Decreto 2-C/2020.
e) O facto de estar na via pública à conversa com outros indivíduos, em situação de convívio social, não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado os arguidos a tal conduta - art.º 5º, n.º 1, al. u).
f) As forças de segurança têm poder para, legitimamente, ordenar aos cidadãos em violação do dever geral de recolhimento domiciliário que retornem às suas residências – art.º 46º, n.º 1, al. c).
g) A resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-C/2020, é sancionada nos termos da lei penal - art.º 46º, n.º 7.
h) Sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, a única questão juridicamente relevante é saber se as forças de segurança podem cominar a prática de um crime de desobediência para os cidadãos que sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podendo, nesse caso, proceder à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário.
i) No caso concreto, resultou provado que no dia 25 de Abril de 2020 os arguidos foram interceptados na via pública, em situação de convívio social com outros indivíduos, mas que já no dia 31 de Março (no que se refere aos arguidos  BB e CC) e no dia 19 de Abril(no que se refere ao arguido AA) os mesmos foram interceptados na via pública por Agentes da PSP em incumprimento do dever geral de recolhimento ao domicílio, razão pela qual foram devidamente notificados por estes Agentes de que não podiam permanecer na via pública naquelas condições, atento o Estado de Emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar imediatamente à residência, pois caso não o fizessem ou voltassem a incorrer no mesmo tipo de comportamento,  cometiam um crime de desobediência.
j) Sendo lícita a ordem para que os cidadãos regressem ao seu domicílio, a consequência quando voltem a incumprir tal dever não pode deixar de ser o cometimento de um crime de desobediência, tanto mais que, em situação prévia, contemporânea e semelhante, já o mesmo havia sido advertido de que, em caso de futura violação, cometeria o crime de desobediência.
k) - Não se pode conceber que não haja qualquer crime no caso de violação do dever geral de recolhimento, e que tal crime esteja reservado para a violação do disposto no art.º 3º do Decreto 2-C/2020 (confinamento obrigatório) ou, após prévia cominação, apenas para as situações dos artº.s 6º (limitações específicas para o Concelho de Ovar), 9º (encerramento de instalações e estabelecimentos), 10º (suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho) e 11º (suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços), como parece decorrer do teor literal do art.º 46º, n.º 1, al. d), do art.º 46º do Decreto 2-C/2020.
l) Sendo um estado de excepção constitucional, que acarreta a suspensão de vários direitos, liberdades e garantias, o Estado de Emergência, para o que aqui nos interessa, depende do aparecimento de uma situação de calamidade em que a necessidade de salvaguardar a saúde pública e de travar o sistemático contágio do vírus Covid-19, levou ao decretamento de medidas extremas, comportando restrições de direitos liberdades e garantias, restrições essas que, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, se devem limitar, quer pela  sua duração, quer pela sua extensão, quer quanto aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao rápido restabelecimento da normalidade.
m) Ficou bastante restringido o direito de deslocação dos cidadãos, bem como o direito de resistência, ficando impedidos os actos de resistência activa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência.
n) O regime a que obedeceu a concepção e execução do Estado de Emergência teve como ponto de partida e limite a Lei 44/86, de valor reforçado, que dispões, no seu art.º 7, que “a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de desobediência”
o) A revisão introduzida na Lei 44/86 pela Lei 1/2012, de 11/5, alterou expressamente este normativo, o art.º 7º, pois onde se falava em crime de responsabilidade para os titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência fala-se agora de um crime de desobediência, não nos parecendo que os destinatários de tal consequência penal sejam somente os titulares de cargos político-administrativos, nada impedido que se dirija igualmente aos demais cidadãos.
p) O Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de Abril, que renovou o Estado de Emergência, mantendo a restrição ao direito de deslocação e fixação, comportou uma novidade que não poderá deixar de ter consequências a título penal, passando a incluir um art.º 5º, em que expressamente se determina que fica impedido todo e qualquer acto de resistência activa ou passiva exclusivamente dirigido às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência, podendo incorrer os seus autores, nos termos da lei, em crime de desobediência.
q) E este art.º 5º foi mantido na redacção do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17/4, e na Resolução da Assembleia da República n.º 23­A/2020, de 17/4.
r) Neste contexto normativo não nos parece defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tenha qualquer consequência penal, que não comporte a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”.
s) Tais autoridades têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime.
t) De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, o que não se quer, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre arrimo nos citados art.º 7º, da Lei 44/86, art.º 5º do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17/4, art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17/4, e art.º 46º, n.º 7, do Decreto 2-C/20202, de 17/4, ainda que, para alguns dos autores que já se debruçaram sobre tal questão, se deva exigir a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.º 348º, n.º 1, b), do Código Penal, a qual, no presente caso, efectivamente até existiu, nos dias 31 de Março e 19 de Abril, tal como referido na factualidade assente na sentença ora em crise.
u) Assim cremos que fica sobejamente justificada a possibilidade de, em situação de incumprimento do dever geral de recolhimento social, ser cominada, para futuras violações de tal dever, a prática do crime de desobediência, não nos parecendo, ao invés do sustentado na sentença ora recorrida, que cada vez que o cidadão incumpra tal dever tenha sempre de ser novamente sensibilizado e aconselhado para o cumprimento do mesmo, recomendado a voltar ao domicílio e que só perante uma recusa efectiva e naquele mesmo dia pode ser cominada a prática de um crime de desobediência.
v) Tal exigência, que não decorre da lei, frustraria o cumprimento efectivo do dever geral de recolhimento domiciliário pois, na esmagadora maioria das vezes, o cidadão acata momentaneamente a ordem, mas, momentos, horas ou dias volvidos volta a incorrer na mesma violação.
w) Exigir que se repetissem novamente todos preceitos de que o cidadão já está esclarecido - foi ampla a divulgação das excepções ao dever geral de recolhimento domiciliário nos meios de comunicação social -, o novo aconselhamento, a recomendação, a sugestão para voltar ao domicílio, retiraria, como dissemos, toda a eficácia ao dever geral de recolhimento domiciliário como um dos deveres integrantes do Estado de Emergência, tal como este foi decretado pelo Sr. Presidente da República, nos Decretos já mencionados.
x) Por tais motivos, a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário, ao contrário do sustentado na sentença agora recorrida. Sendo o Estado de Emergência uma excepção constitucional que foi decretada e que foi renovada mais duas vezes, tal cominação tem de valer para o futuro.
y) Se o cidadão foi advertido das consequências da sua actuação violadora do dever geral de recolhimento já uma vez, e dela ficou ciente, tal como decorre da factualidade provada, não se vê que as suas garantias de defesa exijam que cada vez que incumpre seja advertido, notificado e cominado para actuações futuras e que quando se coloca outra vez, voluntariamente, na mesma situação de violação tenha de ser sempre advertido, notificado e cominado, num círculo interminável, ante a impossibilidade de as forças de autoridade poderem proceder à sua detenção para serem sujeitos a julgamento”.
Termina por dever ser considerada nula a decisão recorrida ou, não o sendo, deverá ser a mesma substituída por outra, nos termos sustentados na motivação apresentada, que importe a condenação dos arguidos pela prática de um crime de desobediência”.
*
Neste Tribunal, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, referenciando apenas “nada mais se ter a aditar à argumentação da Exmª Magistrada do MP junto da 1ª instância.
Dado cumprimento ao artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Peenal, foi proferido despacho preliminar e colhidos os necessários vistos, tendo, de seguida, lugar a conferência, cumprindo decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO:
1 - Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Mediante o presente recurso, o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior a questão de a sentença revidenda sofrer  “de nulidade, nos termos do art.º 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, por estar fundamentada de forma manifestamente insuficiente, ignorando várias das normas e diplomas em que se estribou a acusação pública, violando ainda, o disposto nos art.ºs 348º, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal, nos art.º 5º e 46º do Decreto 2-C/20202, de 17/4, no art.º 7º da Lei 44/86, de 30/9, e no art.º 5º da Resolução da Assembleia da República 23-A/2000, de 17/4”, formulando a pretensão de dever “a mesma ser declarada nula e substituída por outra que condene os arguidos pela prática do crime pelo qual foram acusados e julgados”, pois que, “ao contrário do sustentado na sentença agora recorrida” (entendendo “grosso modo, que as Forças de Segurança não têm o poder para impor o cumprimento aos cidadãos do dever geral de recolhimento domiciliário, imposto nos termos do art.º 5º, do Decreto 2-C/2020, através da cominação da prática de um crime de desobediência, entendendo que tal normativo, o art.º 5º do Decreto 2-C/2020, não cumpre o princípio da tipicidade imposto às normas com alcance penal e que a cominação, a ser feita e só depois de esgotados todos os mecanismos de cariz essencialmente pedagógico para fazer o cidadão recolher ao seu domicílio, terá de se aplicar àquela circunstância em concreto, não podendo dispor para o futuro”), “a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário”.
*
2. Passemos, pois, ao conhecimento da questão alegada. Para tanto, vejamos o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
a) O Tribunal declarou provados os seguintes factos (transcrição):
1 - No dia 31 de Março de 2020, os arguidos BB e CC foram advertidos que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teriam de “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveriam permanecer”, sob pena de incorrerem no crime de desobediência;
2 - No dia 19 de Abril de 2020, o arguido AA foi advertido que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria que “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveria permanecer”, sob pena de incorrer no crime de desobediência;
3 - Todos os arguidos ficaram cientes de tal advertência;
4 - No dia 25 de Abril de 2020, pelas 16h20, os arguidos encontravam-se na via pública, a conviverem;
5 - Em tal circunstância foram visualizados pela autoridade policial que, imediatamente, procedeu à sua detenção, sem os aconselhar previamente a regressarem às respectivas residências e sem, na data dos factos, os advertirem previamente de que, caso não obedecessem a tal ordem, cometiam um crime de desobediência.
6 - O arguido AA encontra-se desempregado, reside com a mãe que o sustenta, tem dois filhos, respectivamente com 2 e 16 anos de idade, tem o 6º ano de escolaridade e não tem antecedentes criminais.
7 - O arguido BB encontra-se desempregado, reside com a mãe e com o padrasto, tem o 9º ano de escolaridade e tem os antecedentes criminais que constam de folhas 31 e seguintes que se dão aqui por integralmente reproduzidos, que se resumem na prática de um crime de condução sem habilitação legal praticado no ano de 2018.
8 - O arguido CC encontra-se desempregado, reside com os pais e com a irmã, tem o 9º ano de escolaridade e também não tem antecedentes criminais agrupados em seu nome”.
*
b) O Tribunal declarou não provados os seguintes factos:
- Que no dia 25 de Abril de 2020 os arguidos foram aconselhados pela autoridade policial a recolherem ao seu domicílio;
 - Que nesse mesmo dia os arguidos se recusaram a regressar ao seu domicílio;
 - Que nesse dia, 25 de Abril, os arguidos foram advertidos que, caso se mantivessem na via pública, incorriam na prática de um crime de desobediência;
 - Que os arguidos desobedeceram e quiseram desobedecer a tal ordem no dia 25 de Abril;
 - Que os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente”.
*
c) Em sede de motivação da decisão de facto, consignou-se na sentença recorrida:
A motivação do tribunal quanto aos factos provados é feita com base na totalidade da prova realizada nesta audiência de discussão e julgamento conjugada com as regras de experiência comum.
De uma forma muito simples, diríamos que tanto a versão apresentada pelos arguidos, como a versão apresentada aqui pelo Senhor Agente autuante, foi coincidente, portanto todos afirmaram que estavam na via pública a conversar, os arguidos não negaram isso, afirmando também que tinham sido advertidos e notificados da cominação da desobediência, dois arguidos no dia 31 de Março, outro arguido no dia 19 de Abril e compreenderam essa advertência. Foi aqui explicado pelos arguidos e confirmado pelo Senhor Agente autuante que porque os arguidos já tinham sido notificados anteriormente, no dia 25 não voltaram a ser aconselhados a regressarem às casas, nem voltaram a ser advertidos, nem culminados com o crime de desobediência, tendo-se procedido de imediatamente à sua detenção e levados para a esquadra para fazer o expediente e, portanto, daí o tribunal ter dado os factos comprovados e não provados da forma como o fez.
Relativamente às condições socioeconómicas deram-se como provadas com base nas declarações de cada um dos arguidos e levámos ainda em consideração as notificações escritas da cominação de desobediência reportadas a 19 de Abril e 31 de Março que constam do processo e os respectivos certificados de registos criminais de cada um dos arguidos”.
*
3. Apreciação dos fundamentos do recurso:
Em face da natureza e termos do recurso in judice, cumpre dizer que a compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação da decisão revidenda sobre a matéria em análise constitui elemento relevante, dede logo, para o exercício da competência de verificação da existência, ou não, dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, v.g. do erro na apreciação da prova.
Em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas, diga-se, desde já, que o tribunal, ao dispor de prova, produzida contraditoriamente em audiência, não estabeleceu relação de confirmação sequencial das indicações adquiridas através da ponderação do global dessa mesma prova, de resto tendo aferido a decisão à premissa de “que a questão que se levanta é essencialmente uma questão jurídica, mas, algo dissonante, dando como não provado que “os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente” e que “os arguidos desobedeceram e quiseram desobedecer a tal ordem no dia 25 de Abril”, não obstante se ter, também, dado como provado queno dia 31 de Março de 2020, os arguidos BB e CC foram advertidos que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teriam de “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveriam permanecer”, sob pena de incorrerem no crime de desobediência”, que “no dia 19 de Abril de 2020, o arguido AA foi advertido que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria que “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveria permanecer”, sob pena de incorrer no crime de desobediência” e que “todos os arguidos ficaram cientes de tal advertência”.
Ora, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão contrária quanto a esses factos tidos por não provados, os quais, até pela construção jurídica ali adoptada, e para lá da apontada omissão de pronúncia/insuficiência da mesma, e ainda que se considere não ocorrer oposição insanável entre os factos provados e aquele não provado, está, manifestamente, desconforme à fundamentação probatória da matéria de facto e de direito, sem que, no entanto, seja caso de reenvio do processo para novo julgamento, pois que tal pode ser suprido, o mesmo é dizer, decidir da causa - cf. artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, tendo, de resto, a audiência sido documentada, mediante gravação áudio da prova oralmente produzida em audiência.
No caso dos autos, a prova produzida, e a própria fundamentação, conduzem a decisão diversa daquela que foi tomada quanto àqueles factos, os quais, sem natureza conclusiva e/ou redundante, devem ser tidos como provados.
Isso mesmo resulta, aliás, em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas, dos meios de prova produzidos contraditoriamente em audiência, pelo que há que estabelecer relação de confirmação sequencial das indicações adquiridas através da ponderação do global dessa prova, corrigindo-se a inserção desses pontos, que assim deverão ter lugar na factualidade provada, sem o que, e usando um processo racional e lógico, se retiraria dos factos tidos por provados e da subsequente fundamentação uma conclusão contraditória quanto a essa matéria, na referência a que a “a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica” - cf. Maia Gonçalves.  in Código de Processo Penal Anotado, 10.ª edição, p. 322.
Tem-se, pois, como provado que, após, “no dia 31 de Março de 2020, os arguidos BB e CC” terem sido “advertidos que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teriam de “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveriam permanecer”, sob “pena de incorrerem no crime de desobediência”, e de, “no dia 19 de Abril de 2020, o arguido AA” ter sido “advertido que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria que “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveria permanecer”, sob “pena de incorrer no crime de desobediência” e de “todos os arguidos” terem ficado “cientes de tal advertência”, os mesmos, ao agir como descrito, fizeram-no “de forma deliberada, livre e consciente”, desobedecendo e querendo “desobedecer a tal ordem no dia 25 de Abril”, sabendo proibida tal conduta.
É, de resto, nessa medida, que, em vista da realização da justiça e da consagração da verdade material, motiva o Ministério Público:
Cremos ser, antes de mais, nula a decisão que absolveu os arguidos da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
 Entendeu a Mm.ª Juíza a quo que não estavam preenchidos os elementos objectivos do crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por referência à violação do art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, por ter, além de outras, as maiores reservas quanto a quais as condutas que estão concretamente vedadas aos cidadãos no âmbito do dever geral de recolhimento, considerando ainda que as forças de autoridade apenas excepcionalmente podem cominar com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art.º 348º, n.º 1, al. b), atenta a natureza subsidiária de tal preceito.
Consequentemente, apenas o art.º 348º, n.º 1, al. b), e o art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, é analisado, ignorando-se as demais normas e diplomas em que o Ministério Público assentou o seu libelo acusatório.
Entendemos que tal omissão de pronúncia assume o relevo de uma nulidade da sentença, prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, salvo opinião distinta, pois a verdade é que em sede de sentença não foram apreciados os demais normativos, nos quais o Ministério Público sustentou a sua acusação, concretamente:
- Art.º 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal;
- Art.º 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, do Decreto 2-C/2020, de 17/4;
- Art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9;
- Art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, este com menor relevância, pois que apenas aqui interessará na agravação da moldura penal prevista para os crimes praticados em estado de calamidade;
- Art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23A-2020, de 17/4.
Em primeiro lugar, nem sequer foi considerada a previsão do art.º 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ou seja, a possibilidade de que a prática do crime de desobediência resultasse de norma expressa e não de uma cominação das forças policiais.
E não podemos ignorar que a legitimidade da cominação das condutas que violem o dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do Decreto 2-B/2020, não surge exclusivamente da aplicação isolada de tal diploma ou sequer da aplicação única do seu art.º 5º. Tal diploma surge enquadrado por um conjunto normativo pré-existente e que não foi “criado” exclusivamente para o Estado de Emergência, declarado pelo Sr. Presidente da República face à recente situação de calamidade e de pandemia.
Enquadram tal situação jurídico-constitucional, de Estado de Emergência, para além do Decreto 2-C/2020, a Lei 44/86, de 30/9, sob a epígrafe Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, sendo esta uma Lei de valor reforçado, e a Lei 27/2006, de 3/7, a Lei de Bases da Protecção Civil, aplicável em situação de calamidade, como a que se vivenciou durante a declaração do Estado de Emergência, sendo esta também uma lei de valor reforçado.
E é neste acervo legislativo que o Ministério Público fundou a sua acusação, pela prática de um crime de desobediência, sendo certo que a Mm.ª Juíza a quo se absteve de apreciar a cominação da prática de um crime de desobediência quando vista à luz das demais normas e destes outros três diplomas, não aflorando sequer a possibilidade de se estar perante um crime de desobediência em sentido impróprio.
IV - Da última ratio do crime de desobediência e da validade da sua cominação
Entende a Mm.ª Juíza a quo, na fundamentação de direito da sentença ora recorrida, que se levantam muitas dúvidas sobre a criminalização da desobediência por violação das regras impostas em Estado de Emergência quanto ao dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do decreto 2-B/2020, de 2/4, competindo saber, com rigor, quais as condutas realmente proibidas nos termos do art.º 5º do citado decreto e, definidas estas, qual a consequência para o seu não acatamento, tendo sempre como base de partida que o crime previsto no art.º 348º, n.º 1, al. b), tem natureza subsidiária e existe apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente, comportando em si dois passos:
- O desrespeito por uma ordem legítima;
- A cominação da punição da conduta por desobediência.
Não podemos, aqui, deixar de concordar.
Vejamos então se a conduta dos arguidos violou o disposto no art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 2/3.
Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e, ao que nos interessa, foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2-B/2020 e 2-C/2020.
Porque os factos que foram sujeitos a julgamento tiveram lugar na vigência do Decreto 2-C/2020, de 17/4, reproduzindo aqui o normativo legal:
Artigo 5.º
Dever geral de recolhimento domiciliário
1 - Os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos 3.2 e 4.2 só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos seguintes propósitos:
a) Aquisição de bens e serviços;
b) Deslocação para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas;
c) Procura de trabalho ou resposta a uma oferta de trabalho;
d) Deslocações por motivos de saúde, designadamente para efeitos de obtenção de cuidados de saúde e transporte de pessoas a quem devam ser administrados tais cuidados ou dádiva de sangue;
e) Deslocações para acolhimento de emergência de vítimas de violência doméstica ou tráfico de seres humanos, bem como de crianças e jovens em risco, por aplicação de medida decretada por autoridade judicial ou Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, em casa de acolhimento residencial ou familiar;
f) Deslocações para assistência de pessoas vulneráveis, pessoas com deficiência, filhos, progenitores, idosos ou dependentes;
 g) Deslocações para acompanhamento de menores:
i) Em deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre;
ii) Para frequência dos estabelecimentos escolares e creches, ao abrigo do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual;
h) Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva;
i) Deslocações para participação em ações de voluntariado social;
j) Deslocações por outras razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente;
k) Deslocações para visitas, quando autorizadas, ou entrega de bens essenciais a pessoas incapacitadas ou privadas de liberdade de circulação;
l) Participação em atos processuais junto das entidades judiciárias;
m) Deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de corretores de seguros ou seguradoras;
n) Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia e para alimentação de animais;
o) Deslocações de médicos-veterinários, de detentores de animais para assistência médico-veterinária, de cuidadores de colónias reconhecidas pelos municípios, de voluntários de associações zoófilas com animais a cargo que necessitem de se deslocar aos abrigos de animais e serviços veterinários municipais para recolha e assistência de animais;
p) Deslocações por parte de pessoas portadoras de livre-trânsito, emitido nos termos legais, no exercício das respetivas funções ou por causa delas;
q) Deslocações por parte de pessoal das missões diplomáticas, consulares e das organizações internacionais localizadas em Portugal, desde que relacionadas com o desempenho de funções oficiais;
r) Deslocações necessárias ao exercício da liberdade de imprensa;
s) Retorno ao domicílio pessoal;
t) Participação em atividades relativas às celebrações oficiais do Dia do Trabalhador, mediante a observação das recomendações das autoridades de saúde, designadamente em matéria de distanciamento social, e organizadas nos termos do n.º 6 do artigo 46.º;
u) Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados.
2 - Os veículos particulares podem circular na via pública para realizar as atividades mencionadas no número anterior ou para reabastecimento em postos de combustível.
3 - Para os efeitos do presente decreto, a atividade dos atletas de alto rendimento e seus treinadores, bem como acompanhantes desportivos do desporto adaptado, é equiparada a atividade profissional.
4 - Sem prejuízo do estabelecido nos números anteriores, em todas as deslocações efetuadas devem ser respeitadas as recomendações e ordens determinadas pelas autoridades de saúde e pelas forças e serviços de segurança, designadamente as respeitantes às distâncias a observar entre as pessoas.
Para fiscalização do cumprimento deste e dos demais deveres impostos aos cidadãos, prevê o art.º 46º do mesmo Decreto, que agora se reproduz:
Artigo 46.º
Fiscalização
1 - Compete às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante:
a) A sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento;
b) O encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades previstas no anexo I ao presente decreto;
c) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio;
d) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º a 11.º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º;
e) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar ou resultarem da exceção prevista na alínea u) do n.º 1 do artigo 5.º;
f) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º
2 - Compete às juntas de freguesia, no quadro da garantia de cumprimento do disposto no presente decreto:
a) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública;
b) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º;
c) A sinalização junto das forças e serviços de segurança, bem como da polícia municipal, dos estabelecimentos a encerrar, para garantir a cessação das atividades previstas no anexo I ao presente decreto.
3 - Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1, as autoridades de saúde comunicam às forças e serviços de segurança do local de residência a aplicação das medidas de confinamento obrigatório.
4 - As forças e serviços de segurança reportam permanentemente ao membro do Governo responsável pela área da administração interna o grau de acatamento pela população do disposto no presente decreto, com vista a que o Governo possa avaliar a todo o tempo a situação, designadamente a necessidade de aprovação de um quadro sancionatório por violação do dever especial de proteção ou do dever geral de recolhimento domiciliário.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, as entidades do Ministério da Saúde comunicam ao membro do Governo responsável pela área da administração interna as orientações de caráter genérico das autoridades de saúde.
6 - As forças e serviços de segurança articulam com as centrais sindicais a organização e a participação dos cidadãos nas atividades relativas à celebração do Dia do Trabalhador.
7 - A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho.
Da análise dos dois normativos em causa, podemos ter três certezas:
- Que o facto de estar na via pública, em situação de convívio social com outras pessoas, não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado os arguidos a tal conduta - art.º 5º, n.º 1, al. u).
- Que as forças de segurança têm poder para, legitimamente, ordenar aos cidadãos em violação do dever geral de recolhimento domiciliário que retornem às suas residências - art.º 46º, n.º 1, al. c).
- Que a resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-C/2020, é sancionada nos termos da lei penal - art.º 46º, n.º 7.
 Pelo que quanto a nós, sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, a única questão juridicamente relevante é saber se as forças de segurança podem cominar a prática de um crime de desobediência para os cidadãos que sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podendo, nesse caso, proceder à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário.
Entende a Mm.ª Juíza a quo que assim não o é, que perante cada situação concreta de violação de dever de recolhimento domiciliário tem de ser cominada a prática de um crime de desobediência, a qual só é válida naquele momento, que só é válida para aquela situação, pelo que, se só naquele momento não regressar ao domicílio é que o cidadão comete um crime de desobediência, ou seja, ante a cominação que lhe é feita naquela ocasião.
É que, voltando ao caso concreto, resultou provado que no dia no dia 31 de Março de 2020 os arguidos BB e o arguido CC, e, no dia 19 de Abril de 2020 o arguido AA, foram advertidos que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria de “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deve permanecer”, sob pena de incorrerem no crime de desobediência, cominação de que estes ficaram cientes, sendo que no dia 25 de Abril foram novamente interceptados na via pública em situação de convívio social.
Ou seja, por estarem em incumprimento do dever geral de recolhimento ao domicílio no dia 31 de Março e 19 de Abril, foram devidamente notificados por elementos das forças policiais de que não podiam permanecer na via pública naquelas condições, atento o Estado de Emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar imediatamente à residência,  pois caso não o fizessem ou voltassem a incorrer no mesmo tipo de comportamento,  cometiam um crime de desobediência.
E os arguidos ficaram ciente de tal advertência, mas no dia 25 de Abril de 2020 voltaram a ser visualizados numa nova situação de incumprimento, em convívio social.
Sendo lícita a ordem para que os cidadãos regressem ao seu domicílio, qual é a consequência quando voltem a incumprir tal dever?
- Cometem de imediato um crime de desobediência, independentemente de qualquer cominação?
 - Ou só cometem um crime de desobediência se, em situação prévia, contemporânea e semelhante, já haviam sido advertidos de que, em caso de futura violação, cometeriam o crime de desobediência?
- Ou não há qualquer crime no caso de violação do dever geral de recolhimento, estando o crime de desobediência reservado para a violação do disposto no art.º 3º do Decreto 2-C/2020 (confinamento obrigatório) ou, após prévia cominação, apenas para as situações dos artº.s 6º (limitações aplicáveis ao Concelho de Ovar), 9º (encerramento de instalações e estabelecimentos), 10º (suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho) e 11º (suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços), como parece decorrer do teor literal do art.º 46º, n.º 1, al. d), do Decreto 2-C/2020?
Sendo esta a primeira vez que Portugal se vê perante uma situação de Estado de Emergência, a resposta a estas questões, não sendo simples, é possível, sendo, porém, necessário situar os diplomas no ponto de vista temporal e compreender a sua ratio.
- Do Estado de Emergência, em geral
Sendo um estado de excepção constitucional, que acarreta a suspensão de vários direitos, liberdades e garantias, o Estado de Emergência, para o que aqui nos interessa, depende do aparecimento de uma situação de calamidade em que, como no presente caso, a necessidade de salvaguardar a saúde pública e de travar o sistemático contágio do vírus Covid-19, levou ao decretamento de medidas extremas, art.º 1º, n.º 1, da Lei 44/86, de 30/9, Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, adiante Lei 44/86, restrições essas que, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, se devem limitar, quer pela sua duração, quer pela sua extensão, quer quanto aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao rápido restabelecimento da normalidade.
Tal estado de excepção teve na sua base a declaração do Sr. Presidente da República, Decreto do Presidente da República n.º 14-A/20202, de 18/3, que declarou o Estado de Emergência ante a qualificação pela Organização Mundial de Saúde de uma situação de emergência de saúde pública internacional ocasionada pela doença covid-19, como uma pandemia internacional, que constitui uma calamidade pública. Tal estado teria a duração de 15 dias, sem prejuízo de eventuais renovações.
No que aqui nos interessa, o direito de deslocação ficou bastante restringido, decorrendo do seu texto que, “Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde, o estabelecimento de cercas sanitárias, assim como, na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública que não sejam justificadas, designadamente pelo desempenho de atividades profissionais, pela obtenção de cuidados de saúde, pela assistência a terceiros, pelo abastecimento de bens e serviços e por outras razões ponderosas, cabendo ao Governo, nesta eventualidade, especificar as situações e finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente desacompanhada, se mantém”.
Restringido ficou também o direito de resistência: “Fica impedido todo e qualquer acto de resistência activa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência”, mais se determinando que “são ratificadas todas as medidas legislativas e administrativas adotadas no contexto da presente crise, as quais dependam da declaração do estado de emergência”.
A este Decreto seguiu-se a autorização/ratificação por parte da Assembleia da República, Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18/3, que reproduz o decreto presidencial, obtendo exequibilidade através do Decreto n.º 2-A/2020, de 20/3, da lavra do Governo, em sede de Conselho de Ministros, cujos art.º 5º (dever geral de recolhimento domiciliário) e 36º (fiscalização) se mantêm muito idênticos aos art.ºs 5º e 43º do Decreto 2-B/2020, de 2/4, e ao art.º 5º e 46º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, já acima transcritos, os quais nos absteremos aqui de reproduzir.
 Claro que o regime a que obedeceu a concepção e execução do Estado de Emergência não foi qualquer inovação mas teve como ponto de partida e limite a Lei 44/86, de valor reforçado, já acima mencionada, sendo aqui de reter o seu art.º 7, que reproduzimos:
Artigo 7.º
Crime de desobediência
A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência.
Cremos que este normativo é de primordial importância para a questão que cumpre resolver pois, com base no seu teor é possível já afirmar ser absolutamente defensável que, face a este dispositivo, todas as violações às normas jurídicas que regulam o Estado de Emergência comportam a prática de um crime de desobediência, nele se incluindo, por razões óbvias, a violação do dever geral de recolhimento domiciliário – É esta a posição de Vânia Filipe Magalhães, no seu artigo “Reflexões sobre o crime de desobediência em Estado de Emergência”, publicado na Revista “Julgar”, disponível on line, ainda que escrito em data em que vigorava o Decreto 2-A/2020, sustentando que “Reportando-se este art.º (7º da Lei 44/86) à execução da Lei, só pode querer significar que o crime de desobediência é aplicável a todas as violações das normas emanadas na Declaração do Estado de Emergência e na resolução de execução emitida pelo Governo nos termos do art.º 17º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência”.
Pouco ainda se encontra escrito sobre a nova legislação que dá execução ao Estado de Emergência, mas, dos escritos a que tivemos acesso, cremos que não assiste razão a Alexandre Oliveira no seu artigo “O crime de desobediência no actual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação”, publicado no e-book do CEJ “Estado de Emergência - Covid 19 - Implicações na Justiça”, disponível na página daquele Centro de Estudos.
No ponto de vista deste autor, o art.º 7º da Lei 44/86 não está de forma alguma a criminalizar os comportamentos do comum dos cidadãos que violem o estabelecido no Decreto do Presidente da República, na Resolução da Assembleia da República e no Decreto do Governo acima identificados, porquanto não podemos ignorar que na sua versão original este normativo previa exclusivamente a responsabilidade dos titulares dos cargos político-administrativos, sendo, por isso um crime de responsabilidade – dispunha a sua versão original, antes das alterações introduzidas pela Lei 1/2012, de 11/5, sob a epígrafe “Crimes de Responsabilidade” , “A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de responsabilidade”.
Sendo esta a versão inicial do art.º 7º da Lei 44/86, a verdade é que a revisão introduzida pela Lei 1/2012, de 11/5, alterou expressamente este normativo, pois onde se falava em crime de responsabilidade para os titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência, fala-se agora de um crime de desobediência, não nos parecendo que os destinatários de tal consequência penal sejam somente os titulares de cargos político administrativos, nada impedido que se dirija igualmente aos demais cidadãos, optando-se aqui, neste caso, pela posição quanto a esta questão expressa por André Lamas Leite, no seu artigo “Desobediência em tempos de cólera”, in Revista do Ministério Público, número especial Covid-19.
De qualquer forma o Estado de Emergência foi efectivamente renovado, tendo na sua base o Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de Abril, mantendo a restrição ao direito de deslocação e fixação, mas comportando uma novidade que não poderá deixar de ter consequências a título penal.
De facto é criado, neste Decreto, um art.º 5º, com a seguinte redacção:
“Fica impedido todo e qualquer ato de resistência ativa ou passiva exclusivamente dirigido às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência, podendo incorrer os seus autores, nos termos da lei, em crime de desobediência”.
A este Decreto seguiu-se a ratificação por parte da Assembleia da República, Resolução da Assembleia da República n.º 22-A/2020, de 2/4, que reproduz o decreto presidencial, incluindo o acima mencionado art.º 5, obtendo exequibilidade através do Decreto n.º 2-B/2020, de 2/4, da lavra do Governo, em sede de Conselho de Ministros, cujos art.º 5º (dever geral de recolhimento domiciliário) e 43º (fiscalização) já acima tivemos a oportunidade de reproduzir.
Entretanto o Estado de Emergência foi novamente renovado, tendo na sua base o Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de Abril, mantendo a restrição ao direito de deslocação e fixação, e mantendo o seu art.º 5º, que impedia os actos de resistência activa ou passiva dirigidos às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do Estado de Emergência, podendo os seus autores incorrer em crime de desobediência.
A este Decreto seguiu-se a autorização por parte da Assembleia da República, Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17/4, que reproduz o decreto presidencial, incluindo o acima mencionado art.º 5, obtendo exequibilidade através do Decreto n.º 2-C/2020, de 17/4, da lavra do Governo, em sede de Conselho de Ministros, cujos art.ºs 5º (dever geral de recolhimento domiciliário) e 46º (fiscalização) já acima tivemos a oportunidade de reproduzir.
E neste contexto, perante o teor dos Decretos do Presidente da República e das Resoluções da Assembleia da República de 2/4 e 17/4, já não será defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tem qualquer consequência penal, que não comporta a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”, pois que estas têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime.
De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, o que não se quer, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre arrimo nos citados art.º 7º, da Lei 44/86, art.º 5º do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17/4, art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17/4, art.º 46º, n.º 7, do Decreto 2 C/20202, de 17/4, ainda que se exija a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.º 348º, n.º 1, b), do Código Penal, a qual, no presente caso, efectivamente até existiu, nos dias 31 de Março e 19 de Abril, tal como referido na factualidade assente na sentença ora em crise.
Assim cremos que fica sobejamente justificada a possibilidade de, em situação de incumprimento do dever geral de recolhimento social, ser cominada, para futuras violações de tal dever, a prática do crime de desobediência, não nos parecendo, ao invés do sustentado na sentença ora recorrida, que cada vez que o cidadão incumpra tal dever tenha sempre de ser novamente sensibilizado e aconselhado para o cumprimento do mesmo, recomendado a voltar ao domicílio e que só perante uma recusa efectiva e naquele mesmo dia pode ser cominada a prática de um crime de desobediência. Tal exigência, que não decorre da lei, frustraria o cumprimento efectivo do dever geral de recolhimento domiciliário pois, na esmagadora maioria das vezes, o cidadão acata momentaneamente a ordem, mas, momentos, horas ou dias volvidos volta a incorrer na mesma violação. Aqui exigir que se repetissem novamente todos preceitos de que o cidadão já está esclarecido - foi ampla a divulgação das excepções ao dever geral de recolhimento domiciliário nos meios de comunicação social -, o novo aconselhamento, a recomendação, a sugestão para voltar ao domicílio, retiraria, como dissemos, toda a eficácia ao dever geral de recolhimento domiciliário como um dos deveres integrantes do Estado de Emergência, tal como este foi decretado pelo Sr. Presidente da República, nos Decretos já mencionados.
Por tais motivos, a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário, ao contrário do sustentado na sentença agora recorrida. Sendo o Estado de Emergência uma excepção constitucional que foi decretada e que foi renovada mais duas vezes, é óbvio que tal cominação tem de valer para o futuro. Se o cidadão foi advertido das consequências da sua actuação violadora do dever geral de recolhimento já uma vez, e dela ficou ciente, tal como decorre da factualidade provada, não se vê que as suas garantias de defesa exijam que cada vez que incumpre seja advertido, notificado e cominado para actuações futuras e que quando se coloca outra vez, voluntariamente, na mesma situação de violação tenha de ser sempre advertido, notificado e cominado, num círculo interminável, ante a impossibilidade de as forças de autoridade poderem proceder à sua detenção para serem sujeitos a julgamento”.
Como emana, desde logo, do artigo 348.º, do Código Penal, em sede do crime de desobediência são estruturados duas, distintas, valências incriminadoras: uma, relativa aos casos em que a desobediência é expressamente cominada numa disposição legal, e outra, para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente, exigindo-se então, mas apenas aí, que para haver punição o funcionário ou a autoridade cominem no caso a punição da desobediência à ordem por eles ditada.
A desobediência tem duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado.
No caso in judice, o preenchimento dos elementos, objectivos e subjectivos, do tipo legal em referência resulta da apurada conduta, nos termos supra expressos pelo recorrente, em deriva da protecção da autonomia intencional do Estado contida na legislação invocada, pois que desobedecer é, na complexidade da previsão, não cumprir o que, em termos úteis, dela resulta.
Ora, tendo ocorrido quanto aos arguidos, de forma regular, aquela primeira ordem legal, substancial e formalmente transmitida por  autoridade com competência para tanto, e da qual qualquer deles ficou ciente, a posterior violação da mesma consuma, nos termos provados, o tipo legal em causa, pois que a cominação prévia a que, aqui, o legislador confere relevância criminal se reporta somente, respectivamente, ao ocorrido na primeira daquelas situações, com a dignidade penal de cada uma das condutas de violação do dever de obediência a ter essa dupla fonte: por um lado, a provada cominação funcional e, por outro, a, também assente, conduta expressa na articulação das invocadas disposições legais (normas gerais e abstractas anteriores à prática do facto, mesmo que tido por preceitos de direito penal extravagante, mas que não podem ser entendidos como norma penal em branco, no estrito respeito e cumprimento do principio da legalidade, constitucional e legalmente consagrado) que comina no caso punição sem que a segunda das ocorrências de facto tenha de ficar dependente, para a sua relevância penal, de mais uma cominação funcional - cf. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra, 2001, p. 351 a 353.
O teor dos prestados depoimentos implicam conclusões decisivas quanto à, in casu, culpabilidade dos arguidos, AA, BB e CC, apontando, dada a inexistência de outro enquadramento, explicação, valoração e/ou diferentes considerações de valor técnico-legal, em sentido diverso do que resultou da sentença absolutória, sem que, de resto, naquele adjectivo contexto, algum dos arguidos tivesse apresentado qualquer outra versão.
Independentemente da razão de ordem legal, atinente à, nesse particular, invocada nulidade, o que emana da decisão revidenda é não omissão de pronúncia relativa a factos alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, mas, antes, à necessária/suficiente fundamentação para a decisão tomada.
Impôe-se a condenação de AA, BB e CC pelo cometimento do crime de desobediência in judice, pois que resulta da materialidade sedimentada o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo em causa, consubstanciados na violação, consciente e voluntária, do apontado dever, após cada um dos arguidos, como provado, ter sido, anteriormente, advertido de que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria que “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deveria permanecer, sob pena de incorrer no crime de desobediência”, tendo todos ficado “cientes de tal advertência”, nessa medida sabendo que tal conduta era proibida por lei, assim procedendo a pretensão jurisdicional formulada no sentido de dever ser a sentença “substituída por outra, nos termos sustentados na motivação apresentada, que importe a condenação dos arguidos pela prática de um crime de desobediência”.
No caso dos autos, atendendo ao conjunto da materialidade provada, chega-se à conclusão de ser adequada e suficiente a aplicação de uma pena de multa para cada um dos arguidos, AA, BB e CC, nos termos do disposto pelo artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, pois que, pela mesma, se tem, ainda, em vista (na previsão, na aplicação e na execução), em termos da filosofia da lei penal portuguesa expressamente afirmada, a protecção dos bens jurídicos em causa e a reintegração de cada um dos recorridos nos valores sociais afectados.
Afigura-se, assim, justa a medida de 30 (trinta) dias de multa, que se situa na metade inferior e próxima do limite mínimo (dez dias) da moldura penal abstracta da multa em causa, pois que a finalidade da pena (de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização) conjuga-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constituiu o provado crime, tendo cada um dos arguidos, AA, BB e CC, ao agir como descrito, representado perfeitamente a realidade fáctica que provocava, conhecendo com actualidade os elementos objectivos do tipo (normativos, descritivos e previsão do processo causal apto a atingir o resultado representado) e, além de conhecer os elementos essenciais da já descrita factualidade típica, a si referida, ter actuado com a intenção de provocar a sua realização, querendo esse resultado e colocando em marcha o processo causal adequado, agindo nessa medida com dolo directo - cf. artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.
Deste modo, a fundamentação da responsabilidade penal em que cada um dos arguidos, AA, BB e CC, incorreu assenta na realidade descrita integrável na conduta a ele referida, e uma vez que se caracteriza a ilicitude como qualidade do facto, pelo que, em vista do disposto no artigo 71.º, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados por lei, teria de ser feita em função da culpa dos recorridos, tendo em conta as exigências de prevenção e de todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depunham a favor ou contra cada um dos arguidos.
É que, traduzindo-se a culpa jurídico-penal num juízo de censura que funciona ao mesmo tempo como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena, importa fixar a medida concreta da pena na concretização desses vectores à luz da explanada delimitação.
Assim, e em face do circunstancialismo de facto provado, do grau de ilicitude, referida às consequências possíveis, das condições pessoais e situação de cada um dos arguidos, na ponderação das finalidades das penas, e respeitando a medida da culpa, mas concedendo uma projecção saliente às finalidades de prevenção especial de socialização, de prevenção da reincidência e do reencaminhamento possível para os valores e para a sociedade, julga-se adequada à realização concordante das indicadas finalidades, impor a cada um dos recorridos, a pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros), pena de multa esta que, no apurado contexto, exprime já juízo de censura pelas apuradas condutas, cumprindo as finalidades da punição e contribuindo para a reintegração dos mesmos na comunidade onde se inserem, em vista a dissuadi-los, de forma positiva, da prática de novos factos criminosos, sem necessidade ainda de condenação dos arguidos, AA, BB e CC, em penas de prisão, o que apenas sucederá caso a presente multa não seja paga, voluntária ou coercivamente, tendo, então, cada um que cumprir 30 (trinta) dias de prisão subsidiária - cf. Código Penal, artigos, conjugados, 47.º, n.º 2, e 49.º, n.º 1.
Cada uma dessas penas visa satisfazer as necessárias exigências de justiça que o sentimento jurídico da comunidade requer, exprimindo o castigo e reprovação públicas, relembrando que “a pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável”, pois que “em direito penal, a pena, qualquer que seja a óptica por que seja encarada, ainda que com fins meramente preventivos, justamente porque o é, implica sacrifício” - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2004.06.03, in www.dgsi.pt.
*
III. DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em, nesta medida, conceder provimento ao recurso, condenando-se cada um dos arguidos, AA, BB e CC, “pela prática de um crime de desobediência agravada por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.º 348º, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 5º e 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, todos do Decreto 2-C/2020, de 17/4, com o art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9, e com o art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, e ainda art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2000, de 17/4”, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros), sendo que se a multa não for paga, voluntária ou coercivamente, terá cada um que cumprir 30 (trinta) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal, bem como, em consequência, se condenam os mesmos arguidos, solidariamente, nas custas e demais encargos do processo, fixando-se a cada um a menor taxa de justiça.
*
Após trânsito, deverá, na primeira instância, ser remetido boletim à D.S.I.C., nos termos do disposto nos artigos 5.º e 6.º, alínea a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, e 12.º do DL n.º 171/2015, de 25 de Agosto, com nota de que se decide ordenar, para efeitos laborais, a não transcrição da presente condenação nos certificados de registo criminal dos arguidos - cf. Lei n.º 37/2015, artigo 13.º -, atentos a que esta é a primeira condenação daqueles AA e CC em pena não privativa da liberdade e, no que se refere ao arguido BB, a segunda, mas por crime de diferente natureza, nesta medida sendo possível fazer um juízo de prognose favorável no sentido do não cometimento futuro de similares factos.
*
D.N. - notificando-se, ainda, cada um dos arguidos de que, transitada em julgado a presente decisão, pode requerer junto do tribunal de primeira instância - Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - J2 - que a pena de multa em que agora vai condenado (fixada em trezentos euros) seja, total ou parcialmente, substituída por dias de trabalho a favor da comunidade, a ser realizado em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda em instituição particular de solidariedade social, podendo ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, embora neste caso sem que os períodos de trabalho possam prejudicar as actividades escolares (tempos lectivos/aulas) e/ou a sua jornada normal de trabalho, se for o caso, tudo nos termos dos artigos 49.º, n.ºs 1 e 2, e 58.º, n.º 4, ambos do Código Penal.
*
Lisboa, 2021.04.15.
Guilherme Castanheira
Calheiros da Gama