Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | CARLOS VALVERDE | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO FUNÇÃO JURISDICIONAL CADUCIDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/25/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | I – Assentando a responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública nos mesmos pressupostos da responsabilidade por actos de gestão privada (art. 501º do CC), o prazo a considerar, para efeitos de caducidade do respectivo direito Indemnizatório, deve ser o previsto no art. 498º do CC - o prazo de três anos -, por não se encontrarem, antes pelo contrário, razões para tratamento diferenciado de situações semelhantes, acrescendo que, em matéria de responsabilidade extracontratual, o regime regra é o deste normativo. C.V. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: A intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra o Estado Português, representado pelo Mº Pº, pedindo a condenação do R. a pagar-lhe: - os preparos que liquidou no recurso da decisão em causa, no valor de € 178,00, acrescido de juros legais, desde a citação até integral pagamento; - o custo da certidão junta como doc. nº 1, no montante de € 58,74, acrescido de juros legais, desde a citação até integral pagamento; - a quantia de € 83.670,06 pelos danos não patrimoniais resultantes do seu desgosto e sofrimento, em virtude de ter sido condenado a pagar ao R. a quantia de 33.548.681$00 num processo crime, em que não foi acusado nem julgado, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento; e - a devolver-lhe as custas e demais despesas que venha a despender come esta acção, a liquidar a final. Na contestação, excepcionou o R. com a incompetência material do tribunal e a caducidade do direito do A., por esgotado, à data da propositura da acção, o prazo previsto no nº 1 do art. 226º do CPP, que entende dever aplicar-se analogicamente ao caso ajuizado. No despacho saneador, desatendeu-se a excepção dilatória da incompetência material do tribunal, mas acolheu-se a tese do R. no que à excepção peremptória da caducidade respeita, julgando-se esta procedente, em consequência do que se absolveu o R. do pedido. Inconformado com esta decisão, dela o A. interpôs recurso, em cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC -, coloca, nuclearmente, a questão de se saber se, à data da propositura da acção, já havia caducado o direito que pretende fazer valer. O apelado contra-alegou, defendendo o desatendimento do recurso. Para lá dos constantes do relatório que antecede, relevam ao conhecimento do recurso os seguintes factos: - o A. foi condenado, por acórdão de 1-3-2004, proferido no processo 6741/96.8JAPRT, que correu termos na 3ª Secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa, a pagar ao R. o equivalente em euros a 33.548.681$00 (cfr. certidão de fls. 39 e sgs.); - esta decisão foi considerada inexistente, por acórdão desta Relação de 28-11-2004, transitada em julgado em 17-10-2004 (cfr. certidão de fls. 39 e sgs.); - a presente acção foi instaurada em 31-01-2006. O que o recorrente põe em causa é essencialmente uma sentença que lhe impôs a obrigação de pagar ao Estado o equivalente em euros a 33.548.681$00, sem ser parte no respectivo processo e sem que lhe tivesse sido possibilitado o exercício de quaisquer direitos de defesa. É, pois, inquestionável que a causa de pedir em que o recorrente suportou a sua pretensão se atém à responsabilidade extracontratual por ilícito exercício da função jurisdicional. Não se estando perante situação em que a lei ordinária regule - delimitando os seus respectivos pressupostos adjectivos e substantivos - a efectivação do direito de indemnização por danos causados no exercício da função jurisdicional, como é o caso dos arts. 225º e 462º do CPP, em concretização dos comandos constitucionais ínsitos, respectivamente, nos arts. 27º, 5 e 29º ,6 da CR, sobra, como se acolheu na decisão sindicanda, a responsabilização genérica do Estado consagrada no art. 22º da CR, a concretizar por aplicação directa deste que dispõe que “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”. É certo que não é pacífico o entendimento de que na previsão deste normativo constitucional se abranja a responsabilidade civil decorrente da actividade jurisdicional, todavia de acordo com o que pensamos ser a maioria da doutrina, o normativo constitucional em referência tem “em vista todas as funções do Estado (lato sensu) – a administrativa, a jurisdicional, a legislativa e a governativa; tanto danos patrimoniais quanto danos morais resultantes do exercício dessas funções; e tanto o Estado (stricto sensu) como qualquer outra entidade pública” (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3ª ed., pág. 289). Para tal apontam, desde logo, os termos amplos em que a norma está redigida, sem referência a qualquer actividade em particular e nomeadamente a administrativa e, depois, porque não é questionável que o poder judicial é um poder do Estado, não vendo como possa excluir-se da referência às funções estaduais feita na mesma norma esta ou aquela função do Estado, porque todas as funções estaduais aí se visam, nelas se incluindo, como é apodíctico, a função jurisdicional. Ao que vem de dizer-se não parece obstaculizar o facto do preceito aqui considerado não estar incluído no Título II – Direitos, Liberdades e Garantias -, face à análoga natureza dos direitos deste, a impor que o direito nele reconhecido deve ser visto em paralelo com as obrigações de indemnizar que para o Estado podem decorrer do disposto nos arts. 52º, 3 e 62º, 2 da CR, devendo, por isso, estender-se-lhe o regime ditado pelo art. 18º, 3 da CR, nomeadamente a sua aplicação directa, independentemente da existência de lei ordinária que o concretize (cfr. Acs. do STJ de 8-7-97, 12-11-98, 11-3-2003, 27-3-2003 e 31-3-2004, CJ,STJ, respectivamente, V, II, 153, VI, III, 112, XI, I, 116, XI, I, 143 e XII, I, 157). Também neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira quando, a propósito, referem que, na falta de lei concretizadora, cabe aos tribunais criar uma “norma de decisão”, tendente à reparação de danos resultantes de actos lesivos de direitos, liberdades e garantias ou dos interesses juridicamente protegidos dos cidadãos (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág 170) e ainda o primeiro daqueles autores, RLJ, Ano 124, pág. 86, Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, pág. 170, Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, 1992, págs. 86/87 e Fausto Quadros e Maria José Rangel de Mesquita, Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, pgs. 29 e 110, respectivamente. Posto isto, há que responder à questão nuclear do recurso: se o eventual direito indemnizatório do A., à luz do art. 22º da CR, é de considerar caducado, à data da propositura da acção. Não se conhecendo qualquer norma a estabelecer um qualquer prazo para o exercício de tal direito, impõe-se a superação de tal lacuna pelo recurso aos mecanismos previstos no art. 10º do CC. Na decisão censuranda, na consideração de que “na óptica do A., o tribunal praticou um facto íilícito, no âmbito do processo penal e com manifesta ilegalidade”, aplicou-se analogicamente ao caso sub judicio o disposto nos arts. 225º e 226º do CPP, onde se prevê o prazo máximo de um ano para a propositura de acção para a efectivação da indemnização por danos resultantes da privação ilegal da liberdade ou da privação injustificada da liberdade por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, para se concluir pela caducidade do direito do A.. Nos termos do nº 2 do citado art. 10º do CC, “há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”. É, pois, necessário que entre os casos análogos exista um semelhante conflito de interesses, em termos do juízo de valor emitido pela lei acerca de um deles ter plena aplicação ao outro. É nesta semelhança substancial e não na mera semelhança formal das situações que se funda a aplicação analógica da lei (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 59). Aceitando-se que os arts. 225º e 226º do CPP se constituem como normas especiais e, logo, susceptíveis de aplicação analógica (art. 11º do CC), sucede que estas normas apenas se referem à prisão preventiva, mostrando-se, deste modo, menos abrangentes do que é apontado pelo art. 22º da CR, encontrando, de resto, a sua raiz noutro preceito constitucional, o art. 27º, 5, que se posiciona claramente numa relação de especialidade em relação ao art. 22º, razão porque este não parece de ser invocável no campo de actuação daquele. O que está em causa é o ressarcimento de alegados danos causados ao recorrente, não por ter sido ilegal ou grosseiramente privado da sua liberdade, mas por ter sido condenado a pagar ao recorrido uma determinada quantia, em processo em que não era parte e em que não lhe foi possibilitado o exercício do contraditório. Isto é, está-se perante um facto ilícito praticado por um tribunal ou, de outra forma, perante responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito praticado por um seu órgão, não parecendo de relevar ou, minime, não sendo decisivo que tal tenha acontecido no âmbito de um processo penal. Ora, se a responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes - a responsabilidade por actos de gestão pública - assenta nos mesmos pressupostos da responsabilidade civil prevista no Código Civil - a responsabilidade por actos de gestão privada (art. 501º) -, tais sejam o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 444), parece-nos, salvo o devido respeito, que o prazo a considerar deve ser o previsto no art. 498º do CC - o prazo de três anos -, por não se encontrarem, antes pelo contrário, razões para tratamento diferenciado de situações semelhantes, acrescendo que, em matéria de responsabilidade extracontratual, o regime regra é o deste normativo. Neste enquadramento, atenta a data do transito em julgado da decisão do Tribunal da Relação que considerou inexistente a decisão da 1ª instância que condenou o A. nos termos sobreditos (17-10-2004) e a data da instauração da acção (31-01-2006), é de ter como atempadamente exercido pelo A. o seu arrogado direito. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir com a sua normal tramitação. Sem custas (art. 2º, 1, a) do CCJ). Lisboa, 25-10-2007 Carlos Valverde Granja da Fonseca Pereira Rodrigues |