Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
159/19.3YUSTR-E.L3-PICRS
Relator: PAULA POTT
Descritores: CONFIDENCIALIDADE
SEGREDOS DE NEGÓCIO
CORRESPONDÊNCIA
PROVA PROIBIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA EM MATÉRIA DE CONTRAORDENAÇÕES
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: Decisão interlocutória da Autoridade da Concorrência – Tratamento confidencial - Vícios decisórios – Segredos de negócio – Perda do carácter secreto da troca de informação entre empresas concorrentes – Inconstitucionalidade do artigo 30.º do Regime Jurídico da Concorrência – Apreensão de correspondência electrónica – Impugnação da decisão que valorou a prova apreendida – Proibição de prova relativa – Recusa inequívoca em aceitar os efeitos do acto anulável – Reserva de intimidade da vida privada e direito ao processo equitativo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa


Antecedentes do litígio

1.–Os 348 documentos em causa no presente recurso são mensagens de correio electrónico e respectivos anexos, objecto de busca e apreensão levadas a cabo pela AdC, mediante mandado emitido pelo digno magistrado do Ministério Público, na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação PRC/2019/02, instaurado contra a recorrente/visada e outras co-visadas – cf. parágrafo 19 da nota de ilicitude inserida como Documento 7 no disco externo junto aos autos a fls. 198, dada por assente no facto provado h).

2.–O processo de contraordenação instaurado pela AdC, PRC/2019/02, tem por objecto práticas restritivas da concorrência previstas no artigo 9.º n.º 1 – a) e b) da Lei 19/2012 de 8 de Maio, que estabelece o Regime Jurídico da Concorrência (RJC) – cf. parágrafo 1849 da nota de ilicitude inserida como Documento 7 no disco externo junto aos autos a fls. 198, dada por assente no facto provado h).

3.–O mandado de busca, emitido pelo digno magistrado do Ministério Público em 6.5.2019, referido no parágrafo 19 da nota de ilicitude dada por assente no facto provado h), contém a autorização de busca e apreensão de “(...) designadamente mensagens de correio electrónico (...) “– cf. mandado  de busca e apreensão, a que se refere o parágrafo 19 da nota de ilicitude mencionada no facto provado h), constante do Documento 1 junto às alegações da AdC em primeira instância, com a referência citius 312760 e certidão junta para instruir o presente recurso, constante do termo lavrado em 19.6.2023, com a referência citius 419909.

4.–A recorrente, na impugnação judicial em primeira instância, alegou que a apreensão dos documentos aqui em crise, foi impugnada junto do 1.º Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no processo 3039/19.9T9LSB, tendo esse Juízo de Instrução Criminal declarado nula a apreensão de tais documentos/mensagens de correio electrónico – cf. sentença junta à impugnação judicial com a referência citius 312759, como Documento 1.

5.–No âmbito da informação prestada pela recorrente, constante do parágrafo que antecede, é do conhecimento funcional deste Tribunal que, da decisão mencionada no parágrafo anterior foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que correu na presente secção com o número 3039/19.9T9LSB-A.L1 (ao qual este Tribunal tem acesso via citius), onde  foi proferido acórdão que julgou que o Tribunal de Instrução Criminal “se imiscuiu numa área de competência que não é sua, enfermando a sua decisão de nulidade insanável, enunciada no art. 119º al. e) do CPP aplicável ex vi do art.41º do RGCO e 83º da LdC”. Nesse recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu “declarar a nulidade prevista no art. 119.º, al. e) do CPP e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, considerando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas em ambos os recursos”. Desse acórdão do Tribunal da Relação foi Interposto recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, que correu termos com o número 3039/19.9T9LSB-A.L1-F.S1 (ao qual este Tribunal tem acesso via citius) e foi rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça, por ter sido intentado fora de prazo.

6.–Nos presentes autos de recurso interlocutório, o Tribunal de primeira instância repetiu o julgamento duas vezes, no âmbito de dois recursos, respectiva e sucessivamente interpostos para este Tribunal da Relação, dos quais resultou a anulação das sentenças impugnadas e a baixa dos autos para apreciação da matéria de facto relevante e das questões objecto do recurso de impugnação, tendo sido esta a terceira vez que o Tribunal de primeira instância proferiu sentença, no âmbito da impugnação judicial da decisão interlocutória da AdC sobre o tratamento confidencial dos documentos aqui em causa e que, da respectiva sentença da primeira instância, é interposto recurso para o Tribunal da Relação – cf. acórdão de 1.6.2022, proferido nestes autos com a referência citius 18559094 e decisão sumária de 6.4.2023 proferida nestes autos com a referência citius 19416896.

7.–Segundo informação prestada pelo digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal de primeira instância, no processo de contraordenação PRC/2019/02 a AdC já proferiu decisão final da qual foram interpostos recursos pendentes no Tribunal de primeira instância – cf. resposta ao recurso junta pelo Ministério Público com a referência citius 74238. Este Tribunal não tem acesso via citius aos recursos da decisão final da AdC pendentes na primeira instância.

Alegações da recorrente/visada

8.–A recorrente/visada, veio interpor o presente recurso da sentença do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferida em 25.5.2023, com a referência citius 415608, que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão interlocutória da AdC, constante do ofício de 6.7.2021, com a referência S-AdC/2021/1883 e da tabela Excel a ele anexa, que indeferiu o pedido de protecção de informações confidenciais constantes de 348 documentos.

9.–No presente recurso a visada pede a este Tribunal se digne:

i- declarar a nulidade da Sentença por violação das regras da competência hierárquica do tribunal, nos termos do artigo 119.º, alínea e) do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO;

Subsidiariamente,

ii- declarar a nulidade da Sentença por omissão de pronúncia ou, pelo menos, caso se entenda que tal omissão não ocorreu, por falta de fundamentação das questões que a Recorrente crê não terem sido objeto de pronúncia pelo Tribunal a quo, ordenando a sua substituição por outra que conheça, de forma efetiva, do mérito do recurso interposto pela Lusíadas e aprecie a natureza confidencial e a necessidade de proteção da informação que consta dos documentos que constituem o objeto do recurso, bem como a questão de constitucionalidade suscitada;

Subsidiariamente,

iii- revogar a Sentença e ordenar a sua substituição por outra que anule a Decisão de Indeferimento das Confidencialidades da AdC, na parte em que indeferiu os pedidos de proteção de informação confidencial constante dos documentos mencionados no presente recurso, e ordene à AdC que profira decisão expurgada dos vícios de violação de lei supra invocados, declarando a confidencialidade das informações cuja proteção a Recorrente requereu”.

10.–A recorrente/visada alega fundamentos, vertidos nas conclusões do recurso, que se prendem com (i) o desrespeito pelo acórdão do Tribunal da Relação de 1.6.2022*, (ii) a nulidade da sentença por omissão de pronuncia, falta e contradição da fundamentação, (iii) e o erro de direito ou de julgamento, que o Tribunal sintetiza como se segue:

*A recorrente refere 2.6.2022 certamente por lapso de escrita manifesto, pois resulta da referência citius 18559094 que o acórdão em causa data de 1.6.2022.

Desrespeito pelo acórdão do Tribunal da Relação de 1.6.2022
  • Contrariamente ao ordenado pelo Tribunal da Relação, no acórdão proferido em 1.6.2022, o Tribunal a quo não apreciou duas questões objecto do recurso, nomeadamente, a questão de saber se a circunstância de a informação constante dos documentos consubstanciar uma infracção impede a sua protecção enquanto segredo de negócio e se os elementos fornecidos pela recorrente foram suficientes para demonstrar que a divulgação de tais documentos prejudica a sua capacidade competitiva;
  • O que torna a sentença recorrida nula por violação do disposto no artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), por violação da Lei n.º 21/85 de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais) e por violação das regras da competência hierárquica do Tribunal, previstas no artigo 119.º, alínea e) do Código de Processo Penal (CPP), ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações (RGCO).

Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, falta e contradição da fundamentação
  • O Tribunal a quo não apreciou os concretos documentos e a respetiva informação, que fundamentaram a impugnação judicial da decisão da AdC que indeferiu o seu tratamento confidencial;
  • A recorrente qualifica este vício à luz do disposto no artigo 379.º n.º 1 - a) e c) do CPP, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO (falta de fundamentação e omissão de pronuncia);
  • Ao julgar que os motivos apresentados pela recorrente para o tratamento confidencial dos documentos se limitaram aos que constam do parágrafo 18 da sentença recorrida, o Tribunal a quo incorreu em contradição insanável da fundamentação uma vez que, dos factos provados, nomeadamente do teor da tabela Excel anexa à decisão da AdC, dada por reproduzida na sentença, resulta que a recorrente apresentou motivos adicionais para justificar o pedido de tratamento confidencial dos 348 documentos em crise;
  • A recorrente qualifica este vício à luz do disposto no artigo 410.º n.º 2-b) do CPP, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO (contradição insanável da fundamentação).

Erro de direito ou de julgamento
  • A recorrente impugna o segmento da sentença recorrida que julgou que a circunstância de os 348 documentos aqui em crise conterem informação relacionada com o comportamento ilícito, impede o tratamento de tais documentos como segredos de negócio;
  • Segundo defende, por um lado, o regime previsto nos artigos 30.º n.º 1, 31.º n.º 3 e 33.º n.º 4 do RJC (na redacção anterior à Lei 17/22 de 17 de Agosto), permite o tratamento confidencial da informação aqui em crise;
  • Alega que o artigo 30.º, n.º 1 do RJC é inconstitucional quando interpretado no sentido de que a informação relacionada com o comportamento ilícito investigado não pode ser objeto de classificação como informação confidencial, na medida em que tal interpretação viola os direitos fundamentais da recorrente e os princípios consagrados nos seguintes preceitos da Constituição da República Portuguesa (CRP):
1)- Direito à livre iniciativa económica privada – artigo 61.º da CRP;
2)- Direito de propriedade sobre os segredos comerciais – artigo 62.º da CRP;
3)- Direito à reserva de intimidade da vida privada – artigo 26.º da CRP;
4)- Princípio da presunção de inocência – previsto no artigo 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP;
5)-Acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, nomeadamente, direito a um processo justo e equitativo – artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP;
  • Adicionalmente, a recorrente impugna o segmento da sentença recorrida que julgou que a recorrente/visada não comprovou que a divulgação da informação contida em 273 dos 348 documentos apreendidos lhe retira capacidade competitiva;
  • Segundo defende, o conceito de segredo de negócio previsto no artigo 30.º do RJC não se restringe à informação cuja divulgação retira capacidade competitiva à própria empresa mas abrange igualmente os casos em que a divulgação da informação é susceptível de atribuir vantagens competitivas a terceiros ou causar prejuízos económicos a terceiros; pelo que, a interpretação feita nos pontos 23 e 24 da sentença recorrida é contrária ao princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, na medida em que restringe a protecção legalmente prevista para os segredos de negócio;
  • A recorrente, invoca as inconstitucionalidades acima referidas nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 70.º e 71.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

11.– A AdC respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso, concluindo, em síntese, que:
  • Para ser considerada segredo de negócio, é necessário que a informação que se quer confidencial cumpra, cumulativamente, três requisitos: seja do conhecimento restrito de certas pessoas; possa causar um prejuízo sério à empresa caso seja divulgada; e os interesses que possam ser lesados pela divulgação da informação sejam objetivamente dignos de proteção;
  • De acordo com a jurisprudência europeia e nacional, a informação que ateste práticas comerciais ilícitas não poderá consubstanciar interesses dignos de proteção e, por isso, não cumpre o terceiro requisito enunciado supra;
  • O ónus de demonstrar que a informação aqui em causa é digna de tratamento confidencial impende sobre a recorrente que não logrou cumpri-lo;
  • A AdC não antevê qualquer vício ou erro de julgamento na sentença recorrida.

12.–O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal de primeira instância respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, defendendo, em síntese, que:
  • Os vícios invocados pela recorrente foram sanados pelo Tribunal de primeira instância;
  • De acordo com a jurisprudência, a informação que integra a prática da infracção ao direito da concorrência não merece proteção como segredo de negócio;
  • O Tribunal a quo interpretou e aplicou correctamente o quadro legal, constitucional e jurisprudencial relevante.

13.–O digno magistrado do Ministério Público na segunda instância emitiu parecer de que deve improceder o recurso, acompanhando a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância.

14.–Foi cumprido o disposto no artigo 417.º n.º 2 do CPP.

15.–Admitido o recurso, mantido o seu efeito e corridos os vistos, cumpre decidir.

Delimitação do âmbito do recurso

16.–São as seguintes, as questões suscitadas, que o Tribunal julga terem relevo para a decisão do recurso:

A.- Desrespeito pelo acórdão do Tribunal da Relação de 1.6.2022

B.-Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, falta e contradição da fundamentação

C.-Erro de julgamento na apreciação do regime dos segredos de negócio

D.-Inconstitucionalidade do artigo 30.º do RJC

E.-Violação do direito à reserva de intimidade da vida privada e do direito a um processo equitativo

Factos provados constantes da decisão recorrida

Nota preliminar: as alíneas indicadas na decisão recorrida mantêm-se infra, para facilitar a leitura e remissões.

17.–a)O PRC 2019/2 corre termos na Autoridade da Concorrência visando, entre outras, LUSÍADAS, SA, pelo incurso em alegadas práticas restritivas da concorrência.

18.–b)A Autoridade da Concorrência notificou a recorrente, através do ofício 2020/5558, datado de 21 de dezembro de 2020, com vista a iniciar o procedimento de classificação de eventuais segredos de negócio, assim identificando, de maneira fundamentada, as informações apreendidas consideradas confidenciais por motivo de segredo de negócio, e sendo o caso juntarem versão não confidencial desses documentos (mais se informando as empresas de que, nos termos da lei, a não identificação de eventuais confidencialidades, a falta de fundamentação ou a falta de envio de versão não confidencial de documentos confidenciais determina a publicidade da informação), bem como para identificarem, de maneira fundamentada, as informações constantes das respostas aos pedidos de elementos consideradas confidenciais, constante do ficheiro: Tabela confidencialidades Eletronicos_Decisao Buscas LusíadasSA.xlsx, na pasta “Anexo ao Doc. n.º 6 - S-AdC_2021_1883” da PEN USB junta a folhas 198, cujo conteúdo se considera reproduzido, nomeadamente quanto às colunas M, O e P.

19.–c)-(…) E quanto aos documentos identificados como LusiadasSA-0004, LusiadasSA-0006, LusiadasSA-0032, LusiadasSA-0040, LusiadasSA-0375, LusiadasSA-0381, LusiadasSA-0476, LusiadasSA-0480, LusiadasSA-0482, LusiadasSA-0483, LusiadasSA-0484, LusiadasSA-0532, LusiadasSA-0550, LusiadasSA-0593, LusiadasSA-0665, LusiadasSA-0674, LusiadasSA-0675, LusiadasSA-0682, LusiadasSA-0700, LusiadasSA-0755, LusiadasSA-0779, LusiadasSA-0835, LusiadasSA-0839, LusiadasSA-0854, LusiadasSA-0868, LusiadasSA-0869, LusiadasSA-0885, LusiadasSA-0956, LusiadasSA-1001, LusiadasSA-1004, LusiadasSA-1006, LusiadasSA-1009, LusiadasSA-1019, LusiadasSA-1027, LusiadasSA-1028, LusiadasSA-1032, LusiadasSA-1063, LusiadasSA-1070, LusiadasSA-1074, LusiadasSA-1080, LusiadasSA-1452, LusiadasSA-1453, LusiadasSA-1474, LusiadasSA-1475, LusiadasSA-1563, LusiadasSA-1575, LusiadasSA-1581, LusiadasSA-1583, LusiadasSA-1587, LusiadasSA-1588, LusiadasSA-1592, LusiadasSA-1593, LusiadasSA-1594, LusiadasSA-1595, LusiadasSA-1604, LusiadasSA-1606, LusiadasSA-1612, LusiadasSA-1915, LusiadasSA-2037, LusiadasSA-2051, LusiadasSA-2107, LusiadasSA-2116, LusiadasSA-2122, LusiadasSA-2131, LusiadasSA-2132, LusiadasSA-2133, LusiadasSA-2135, LusiadasSA-2177, LusiadasSA-2181, LusiadasSA-2201, LusiadasSA-2245, LusiadasSA-2253, LusiadasSA-2254, LusiadasSA-2257, LusiadasSA-2259, e como LusiadasSA-0129, LusiadasSA-0138, LusiadasSA-0188, LusiadasSA-0232, LusiadasSA-0246,   LusiadasSA-0254, LusiadasSA-0330, LusiadasSA-0358, LusiadasSA-0398, LusiadasSA-0469, LusiadasSA-0472, LusiadasSA-0498, LusiadasSA-0514, LusiadasSA-0561, LusiadasSA-0570,    LusiadasSA-0579, LusiadasSA-0595, LusiadasSA-0600, LusiadasSA-0614, LusiadasSA-0618, LusiadasSA-0624, LusiadasSA-0629, LusiadasSA-0634, LusiadasSA-0649, LusiadasSA-0657,            LusiadasSA-0711,             LusiadasSA-0712, LusiadasSA-0732, LusiadasSA-0733, LusiadasSA-0756, LusiadasSA-0767, LusiadasSA-0771,   LusiadasSA-0831, LusiadasSA-0837,            LusiadasSA-0865,        LusiadasSA-0888, LusiadasSA-0983, LusiadasSA-1043, LusiadasSA-1044, LusiadasSA-1046, LusiadasSA-1069,   LusiadasSA-1088, LusiadasSA-1090,  LusiadasSA-1091,      LusiadasSA-1096, LusiadasSA-1100, LusiadasSA-1110, LusiadasSA-1115, LusiadasSA-1122, LusiadasSA-1124,   LusiadasSA-1126, LusiadasSA-1131,            LusiadasSA-1135,        LusiadasSA-1143, LusiadasSA-1149, LusiadasSA-1158, LusiadasSA-1176, LusiadasSA-1206, LusiadasSA-1209,   LusiadasSA-1212, LusiadasSA-1215, LusiadasSA-1218,    LusiadasSA-1223, LusiadasSA-1239, LusiadasSA-1241, LusiadasSA-1248, LusiadasSA-1253, LusiadasSA-1256,   LusiadasSA-1257, LusiadasSA-1260, LusiadasSA-1261,    LusiadasSA-1266, LusiadasSA-1272, LusiadasSA-1289, LusiadasSA-1291, LusiadasSA-1292, LusiadasSA-1295,   LusiadasSA-1296, LusiadasSA-1308,  LusiadasSA-1315,      LusiadasSA-1333, LusiadasSA-1334, LusiadasSA-1341, LusiadasSA-1344, LusiadasSA-1348, LusiadasSA-1356,   LusiadasSA-1361, LusiadasSA-1364, LusiadasSA-1385,     LusiadasSA-1386, LusiadasSA-1388, LusiadasSA-1392, LusiadasSA-1397, LusiadasSA-1403, LusiadasSA-1407,   LusiadasSA-1413, LusiadasSA-1418,  LusiadasSA-1419,       LusiadasSA-1424, LusiadasSA-1466, LusiadasSA-1467, LusiadasSA-1481, LusiadasSA-1483, LusiadasSA-1512,   LusiadasSA-1517, LusiadasSA-1522, LusiadasSA-1526,    LusiadasSA-1527, LusiadasSA-1528, LusiadasSA-1535, LusiadasSA-1552, LusiadasSA-1554, LusiadasSA-1599,   LusiadasSA-1600, LusiadasSA-1618,            LusiadasSA-1620,   LusiadasSA-1626, LusiadasSA-1628, LusiadasSA-1632, LusiadasSA-1634, LusiadasSA-1635, LusiadasSA-1637,   LusiadasSA-1645, LusiadasSA-1664,            LusiadasSA-1666, LusiadasSA-1677, LusiadasSA-1678, LusiadasSA-1680, LusiadasSA-1681, LusiadasSA-1709, LusiadasSA-1715,   LusiadasSA-1722, LusiadasSA-1723,            LusiadasSA-1728, LusiadasSA-1729, LusiadasSA-1732, LusiadasSA-1735, LusiadasSA-1737, LusiadasSA-1738, LusiadasSA-1739,   LusiadasSA-1740, LusiadasSA-1741,            LusiadasSA-1742, LusiadasSA-1747, LusiadasSA-1750, LusiadasSA-1751, LusiadasSA-1752, LusiadasSA-1753, LusiadasSA-1754,   LusiadasSA-1757, LusiadasSA-1759,            LusiadasSA-1760, LusiadasSA-1761, LusiadasSA-1762, LusiadasSA-1763, LusiadasSA-1764, LusiadasSA-1784, LusiadasSA-1789,   LusiadasSA-1797, LusiadasSA-1800,            LusiadasSA-1801, LusiadasSA-1804, LusiadasSA-1810, LusiadasSA-1813, LusiadasSA-1816, LusiadasSA-1817, LusiadasSA-1821,   LusiadasSA-1825, LusiadasSA-1826,            LusiadasSA-1828, LusiadasSA-1831, LusiadasSA-1834, LusiadasSA-1835, LusiadasSA-1836, LusiadasSA-1837, LusiadasSA-1838,   LusiadasSA-1843, LusiadasSA-1856,            LusiadasSA-1858, LusiadasSA-1863, LusiadasSA-1867, LusiadasSA-1869, LusiadasSA-1872, LusiadasSA-1874, LusiadasSA-1875,   LusiadasSA-1876, LusiadasSA-1877,            LusiadasSA-1881, LusiadasSA-1882, LusiadasSA-1883, LusiadasSA-1895, LusiadasSA-1896, LusiadasSA-1900, LusiadasSA-1905,   LusiadasSA-1907, LusiadasSA-1913,            LusiadasSA-1918, LusiadasSA-1921, LusiadasSA-1922, LusiadasSA-1934, LusiadasSA-1939, LusiadasSA-1941, LusiadasSA-1942,   LusiadasSA-1944, LusiadasSA-1950,            LusiadasSA-1955, LusiadasSA-1957, LusiadasSA-1962, LusiadasSA-1964, LusiadasSA-1968, LusiadasSA-1969, LusiadasSA-1972,   LusiadasSA-1977, LusiadasSA-1987,            LusiadasSA-1990, LusiadasSA-1991, LusiadasSA-1993, LusiadasSA-1995, LusiadasSA-1996, LusiadasSA-1997, LusiadasSA-2000,   LusiadasSA-2001, LusiadasSA-2002,            LusiadasSA-2008, LusiadasSA-2015, LusiadasSA-2017, LusiadasSA-2022, LusiadasSA-2023, LusiadasSA-2024, LusiadasSA-2029,   LusiadasSA-2030, LusiadasSA-2032,            LusiadasSA-2034, LusiadasSA-2035, LusiadasSA-2036, LusiadasSA-2057, LusiadasSA-2062, LusiadasSA-2068, LusiadasSA-2069,   LusiadasSA-2072, LusiadasSA-2073,            LusiadasSA-2086, LusiadasSA-2087, LusiadasSA-2088, LusiadasSA-2090, LusiadasSA-2100, LusiadasSA-2127, LusiadasSA-2129,   LusiadasSA-2130, LusiadasSA-2145,            LusiadasSA-2146, LusiadasSA-2151, LusiadasSA-2165, LusiadasSA-2175, LusiadasSA-2186, LusiadasSA-2188, LusiadasSA-2191,   LusiadasSA-2193, LusiadasSA-2206,            LusiadasSA-2209, LusiadasSA-2211, LusiadasSA-2216, LusiadasSA-2239, LusiadasSA-2242, LusiadasSA-2244, LusiadasSA-2251,   LusiadasSA-2260, LusiadasSA-2288,            LusiadasSA-2320, LusiadasSA-2322, LusiadasSA-2323, LusiadasSA-2327, LusiadasSA-2329, e constantes dos vários ficheiros com o mesmo nome constantes da pasta: Anexo ao Doc. n.º 2 - S-AdC_2020_5558/Prova digital, da PEN USB junta a folhas 198, cujo conteúdo se considera reproduzido.

20.–d)-A Recorrente, após o deferimento de prorrogações de prazo, apresentou pronúncia a 20 de abril de 2021.

21.– e)-A Autoridade da Concorrência apresentou, a 28 de maio de 2021 (ofício número 2021/1491), o sentido provável de decisão, concedendo uma nova oportunidade à recorrente para se pronunciar e bem assim remeter as versões não confidenciais.

22.–f)-A recorrente, a 22 de junho de 2021, respondeu ao ofício mencionado.

23.–g)-A Autoridade da Concorrência veio a proferir decisão final, através do ofício com o número 2021/1883, de 6 de julho de 2021, na qual indeferiu o pedido de proteção de confidencialidades da recorrente.

24.–h)-A 29.07.2021, Autoridade da Concorrência adotou nota de ilicitude contra, entre outras, a aqui recorrente.

Factos não provados
25.–Nenhuns.

Apreciação do recurso

26.–Quadro legal relevante para a decisão:

Convenção Europeia dos Direitos do Homem

Artigo 6º
Direito a um processo equitativo
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa
da acusação contra ele formulada;
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um
defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.

Artigo 8º
Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver
prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

Artigo 47.º
Direito à ação e a um tribunal imparcial
Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem
direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.
Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num
prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a
pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.
É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que
essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça.

Constituição da Republica Portuguesa ou CRP

Artigo 12.º
(Princípio da universalidade)
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.

Artigo 18.º
(Força jurídica)
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Artigo 20.º
(Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

Artigo 26.º
(Outros direitos pessoais)
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.
4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.

Artigo 32.º
(Garantias de processo criminal)
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Artigo 34.º
(Inviolabilidade do domicílio e da correspondência)
1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.
2. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.
3. Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.
4. É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Artigo 61.º
(Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária)
1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.
2. A todos é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativas, desde que observados os princípios cooperativos.
3. As cooperativas desenvolvem livremente as suas actividades no quadro da lei e podem agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de organização legalmente previstas.
4. A lei estabelece as especificidades organizativas das cooperativas com participação pública.
5. É reconhecido o direito de autogestão, nos termos da lei.

Artigo 62.º
(Direito de propriedade privada)
1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização

Negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) - Anexo 1 - Anexo 1C - Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (OMC) OMC aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994 (Jornal Oficial L 336, página 1)

Artigo 39º
1. Ao assegurar uma protecção efectiva contra a concorrência desleal, conforme previsto no artigo 10º bis da Convenção de Paris (1967), os membros protegerão as informações não divulgadas em conformidade com o disposto no nº 2 e os dados comunicados aos poderes públicos ou organismos públicos em conformidade com o disposto no nº 3.
2. As pessoas singulares e colectivas terão a possibilidade de impedir que informações legalmente sob o seu controlo sejam divulgadas, adquiridas ou utilizadas por terceiros sem o seu consentimento de uma forma contrária às práticas comerciais leais (10), desde que essas informações:
a) Sejam secretas, no sentido de não serem geralmente conhecidas ou facilmente acessíveis, na sua globalidade ou na configuração e ligação exactas dos seus elementos constitutivos, para pessoas dos círculos que lidam normalmente com o tipo de informações em questão;
b) Tenham valor comercial pelo facto de serem secretas; e
c) Tenham sido objecto de diligências consideráveis, atendendo às circunstâncias, por parte da pessoa que detém legalmente o controlo das informações, no sentido de as manter secretas.
3. Sempre que subordinem a aprovação da comercialização de produtos farmacêuticos ou de produtos químicos para a agricultura que utilizem novas entidades químicas à apresentação de dados não divulgados referentes a ensaios ou outros, cuja obtenção envolva um esforço considerável, os membro protegerão esses dados contra qualquer utilização comercial desleal. Além disso, os membros protegerão esses dados contra a divulgação, excepto quando necessário para protecção do público, ou a menos que sejam tomadas medidas para garantir a protecção dos dados contra qualquer utilização comercial desleal.

Directiva (EU) 2016/943, relativa à proteção de know-how e de informações comerciais confidenciais (segredos comerciais) contra a sua aquisição, utilização e divulgação ilegais, doravante Directiva 2016/943

Artigo 2.º
Definições
Para efeitos da presente diretiva, entende-se por
1)«Segredo comercial», as informações que cumprem cumulativamente os requisitos seguintes:
a)serem secretas, no sentido de, na sua globalidade ou na configuração e ligação exatas dos seus elementos constitutivos, não serem geralmente conhecidas pelas pessoas dos círculos que lidam normalmente com o tipo de informações em questão, ou não serem facilmente acessíveis a essas pessoas;
b)terem valor comercial pelo facto de serem secretas
c)terem sido objeto de diligências razoáveis, atendendo às circunstâncias, para serem mantidas secretas pela pessoa que exerce legalmente o seu controlo;
2)«Titular do segredo comercial», a pessoa singular ou coletiva que exerce legalmente o controlo de um segredo comercial;
3)«Infrator», a pessoa singular ou coletiva que tenha adquirido, utilizado ou divulgado ilegalmente um segredo comercial;
4)«Mercadorias em infração», mercadorias cuja conceção, características, funcionamento, processo de produção ou comercialização beneficiam significativamente de segredos comerciais adquiridos, utilizados ou divulgados ilegalmente.

Código da Propriedade Industrial ou CPI
Artigo 313.º
Objeto de protecção
1- Entende-se por segredo comercial e são como tais protegidas as informações que reúnem cumulativamente os seguintes requisitos:
a)Sejam secretas, no sentido de não serem geralmente conhecidas ou facilmente acessíveis, na sua globalidade ou na configuração e ligação exatas dos seus elementos constitutivos, para pessoas dos círculos que lidam normalmente com o tipo de informações em questão;
b)Tenham valor comercial pelo facto de serem secretas;
c)Tenham sido objeto de diligências razoáveis, atendendo às circunstâncias, por parte da pessoa que detém legalmente o controlo das informações, no sentido de as manter secretas.
2- A proteção é extensiva aos produtos cuja conceção, características, funcionamento, processo de produção ou comercialização beneficia significativamente de segredos comerciais obtidos, utilizados ou divulgados ilicitamente.
3- Entende-se por titular do segredo comercial a pessoa singular ou coletiva que exerce legalmente o controlo de um segredo comercial.

Regime Jurídico da Concorrência ou RJC [redacção anterior à Lei 17/2022 de 17 de Agosto cujas alterações não se aplicam aos presentes autos ratione temporis como resulta do artigo 9.º dessa lei]
Artigo 9.º 
Acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas
1-São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que consistam em:
a)Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou quaisquer outras condições de transação;
b)Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
c)Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
d)Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;
e)Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
2- Exceto nos casos em que se considerem justificados, nos termos do artigo seguinte, são nulos os acordos entre empresas e as decisões de associações de empresas proibidos pelo número anterior.

Artigo 13.º n.º 1
1- Os processos por infração ao disposto nos artigos 9.º, 11.º e 12.º regem-se pelo previsto na presente lei e, subsidiariamente, pelo regime geral do ilícito de mera ordenação social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
(...)

Artigo 30.º
Segredos de negócio
1- Na instrução dos processos, a Autoridade da Concorrência acautela o interesse legítimo das empresas, associações de empresas ou outras entidades na não divulgação dos seus segredos de negócio, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo seguinte.
2- Após a realização das diligências previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 18.º, a Autoridade da Concorrência concede ao visado pelo processo prazo, não inferior a 10 dias úteis, para identificar, de maneira fundamentada, as informações recolhidas que considere confidenciais por motivo de segredos de negócio, juntando, nesse caso, uma cópia não confidencial dos documentos que contenham tais informações, expurgada das mesmas.
3- Sempre que a Autoridade da Concorrência pretenda juntar ao processo documentos que contenham informações suscetíveis de ser classificadas como segredos de negócio, concede à empresa, associação de empresas ou outra entidade a que as mesmas se referem a oportunidade de se pronunciar, nos termos do número anterior.
4- Se, em resposta à solicitação prevista nos n.os 2 e 3 ou no artigo 15.º, a empresa, associação de empresas ou outra entidade não identificar as informações que considera confidenciais, não fundamentar tal identificação ou não fornecer cópia não confidencial dos documentos que as contenham, expurgada das mesmas, as informações consideram-se não confidenciais.
5- Se a Autoridade da Concorrência não concordar com a classificação da informação como segredos de negócio, informa a empresa, associação de empresas ou outra entidade de que não concorda no todo ou em parte com o pedido de confidencialidade.

Artigo 31.º
Prova
1- Constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a demonstração da existência ou inexistência da infração, a punibilidade ou não punibilidade do visado pelo processo, a determinação da sanção aplicável e a medida da coima.
2- São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
3- Sem prejuízo da garantia dos direitos de defesa do visado pelo processo, a Autoridade da Concorrência pode utilizar como meios de prova para a demonstração de uma infração às normas da concorrência previstas na presente lei ou no direito da União Europeia a informação classificada como confidencial, por motivo de segredos de negócio, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 15.º e dos n.os 2 e 3 do artigo anterior.
4- Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da Autoridade da Concorrência.
5- A informação e a documentação obtida no âmbito da supervisão ou em processos sancionatórios da Autoridade da Concorrência podem ser utilizadas como meio de prova num processo sancionatório em curso ou a instaurar, desde que as empresas sejam previamente esclarecidas da possibilidade dessa utilização nos pedidos de informação que sejam dirigidos e nas diligências efetuadas pela Autoridade da Concorrência.

Artigo 33.º
Acesso ao processo
1- O visado pelo processo pode, mediante requerimento, consultar o processo e dele obter, a expensas suas, extratos, cópias ou certidões, salvo o disposto no número seguinte.
2- A Autoridade da Concorrência pode, até à notificação da nota de ilicitude, vedar ao visado pelo processo o acesso ao processo, caso este tenha sido sujeito a segredo de justiça nos termos do n.º 2 do artigo anterior, e quando considerar que tal acesso pode prejudicar a investigação.
3- Qualquer pessoa, singular ou coletiva, que demonstre interesse legítimo na consulta do processo pode requerê-la, bem como que lhe seja fornecida, a expensas suas, cópia, extrato ou certidão do mesmo, salvo o disposto no artigo anterior.
4- O acesso a documentos contendo informação classificada como confidencial, independentemente de ser utilizada ou não como meio de prova, é permitido apenas ao advogado ou ao assessor económico externo do visado e estritamente para efeitos do exercício de defesa nos termos do n.º 1 do artigo 25.º e da impugnação judicial da decisão da Autoridade da Concorrência, não sendo permitida a sua reprodução, total ou parcial por qualquer meio, nem a sua utilização para qualquer outro fim, sem prejuízo do disposto no n.º 7 do artigo 12.º, e nos artigos 14.º e 16.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.

Artigo 83.º
Regime processual
Salvo disposição em sentido diverso da presente lei, aplicam-se à interposição, à tramitação e ao julgamento dos recursos previstos na presente secção os artigos seguintes e, subsidiariamente, o regime geral do ilícito de mera ordenação social.

Regime Geral das Contraordenações ou RGCO
Artigo 41.º n.º 1
1- Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
(...)

Artigo 74.º n.º 4
(...)
4- O recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma.

Artigo 75.º
Âmbito e efeitos do recurso
1- Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2- A decisão do recurso poderá:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72.º-A;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.

Código de Processo Penal ou CPP
Artigo 1.º, b)
Definições legais
Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:
(...)
b) «Autoridade judiciária» o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência;
(...)

Artigo 118.º
Princípio da legalidade
1- A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2- Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
3- As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.

Artigo 119.º
Nulidades insanáveis
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.

Artigo 121.º
Sanação de nulidades
1- Salvo nos casos em que a lei dispuser de modo diferente, as nulidades ficam sanadas se os participantes processuais interessados:
a) Renunciarem expressamente a arguí-las;
b) Tiverem aceite expressamente os efeitos do acto anulável; ou
c) Se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia.
2- As nulidades respeitantes a falta ou a vício de notificação ou de convocação para acto processual ficam sanadas se a pessoa interessada comparecer ou renunciar a comparecer ao acto.
3- Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o interessado comparecer apenas com a intenção de arguir a nulidade.

Artigo 122.º
Efeitos da declaração de nulidade
1- As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
2- A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3- Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

Artigo 126.º
Métodos proibidos de prova
1- São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2- São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3- Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4- Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.

Artigo 374.º nº 2
Requisitos da sentença
(...)
2-Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
(...)

Artigo 379.º
Nulidade da sentença
1- É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2- As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3- Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.

Artigo 410.º
Fundamentos do recurso
1- Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3- O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

Apreciação das questões suscitadas pelo recurso

A. Desrespeito pelo acórdão do Tribunal da Relação de 1.6.2022

27.–A recorrente/visada alega que a sentença recorrida não apreciou duas questões suscitadas no recurso de impugnação judicial em primeira instância, a saber: se os elementos fornecidos pela recorrente foram suficientes para demonstrar que a divulgação de tais documentos prejudica a sua capacidade competitiva e se a circunstância de a informação constante dos documentos consubstanciar uma infracção, impede a sua protecção enquanto segredo de negócio.

28.–Segundo defende a recorrente, a sentença recorrida violou, por isso, o disposto no artigo 4.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, infringiu o Estatuto dos Magistrados Judiciais e as regras da competência hierárquica do Tribunal, previstas no artigo 119.º, alínea e) do CPP (que aqui seria aplicável ex vi artigos 83.º do RJC e 41.º, n.º 1 do RGCO).

29.–Com efeito, nos parágrafos 22 e 23 e no dispositivo, o acórdão do Tribunal da Relação, proferido neste processo, em 1.6.2022 (referência citius 18559094), ordenou ao Tribunal de primeira instância que repetisse o julgamento a fim de apreciar as duas questões acima enunciadas no parágrafo 27.

30.–Ora, nos parágrafos 16 a 23 e 24 a 37 da sentença recorrida, o Tribunal a quo apreciou, respectivamente, cada uma das questões acima enunciadas no parágrafo 27, tendo interpretado os preceitos legais que julgou relevantes para resolver tais questões, à luz da jurisprudência que aí indicou. Nesse contexto, a motivação que consta do parágrafo 38 da sentença recorrida e exprime uma interpretação adicional do quadro jurídico relevante, contém um argumento que não prejudica a apreciação das questões aqui em causa, feita nos locais acima indicados.

31.–Pelo que, improcede este segmento da argumentação da recorrente.

B. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, falta e contradição da fundamentação

32.–A titulo liminar, convém recordar que os vícios previstos no artigo 410.º n.º 2 do CPP podem ser invocados e apreciados nos presentes autos força do disposto no artigo 74.ºn.º 4 do RGCO, aplicável ex vi artigo 83.º do RJC.

33.– A este propósito, a recorrente defende que o Tribunal a quo não apreciou os concretos documentos, nem a informação que a visada forneceu sobre os mesmos à AdC; adicionalmente, alega que, ao julgar que a fundamentação constante do parágrafo 18 da sentença recorrida foi a única fornecida pela visada à AdC para motivar o pedido de confidencialidade, o Tribunal a quo incorreu em contradição uma vez que dos factos provados, a saber, da tabela Excel dada por reproduzida na matéria assente, constam outros motivos justificativos fornecidos pela visada.

34. Para resolver esta controvérsia, importa começar por sublinhar que nos parágrafos 3 e 4 da sentença recorrida, o Tribunal a quo, deu por reproduzidos, nos factos provados, os 348 documentos aqui em crise, assim como a informação fornecida pela visada à AdC para justificar a respectiva confidencialidade constante da tabela Excel/tabela de confidencialidades, aí mencionada. Adicionalmente, o Tribunal a quo expôs os motivos que fundamentaram a sua convicção de facto e a apreciaão jurídica desses elementos, nos parágrafos 4 e 18 a 23 da sentença recorrida. É certo que nos factos provados g) e h), o Tribunal de primeira instância não dá por reproduzidas a decisão da AdC, impugnada, nem a nota de ilicitude emitida pela AdC, que ai menciona, respectivamente, mas dá como provada a existência de tais documentos que consistem em actos  processuais praticados na fase orgânicamente administrativa, juntos aos presentes autos (cf. Documento 6 junto com a referência citius 312760 e Documento 7 no disco externo junto a fls. 198); o que é suficiente para que o respectivo conteúdo seja levado em conta na apreciação do Tribunal. Pelo que, no que diz respeito aos elementos relativamente aos quais são invocados os vicios de omissão de pronúncia e falta de fundamentação, afigura-se que não existem tais vícios. Com efeito, quanto aos factos mencionados no parágrafo 33, a sentença recorrida contém fundamentação que este Tribunal julga suficiente, à luz do critério previsto no artigo 374.º n.º 2 do CPP, para compreender as razões da decisão e exercer o direito ao recurso. Em conformidade, não se verificam os vícios previstos no artigo 379.º n.º 1 - a) e c) do CPP.

35. Quanto à alegada contradição entre os fundamentos da decisão, o que resulta da leitura conjugada dos parágrafos 18 e 22 da sentença recorrida, é que o Tribunal a quo concluiu,  da análise da informação fornecida pela visada à AdC para justificar a confidencialidade de cada um dos 348 documentos, que(...) com mais ou menos extensão argumentativa, o quadro fundamental é o mesmo (...)”. Assim, contrariamente ao que alega a recorrente, o Tribunal recorrido analisou a informação fornecida e explicou que, existindo maior ou menor extensão argumentativa, segundo a apreciação do Trinunal, o quadro fundamental era o mesmo. Pelo que, não se verifica o vício previsto no artigo 410.º n.º 2 – b) do CPP.

36.Motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação da recorrente.

C.Erro de julgamento na apreciação do regime dos segredos de negócio

37.–Antes de mais, importa levar em conta que o processo de contraordenação aqui em causa, em que é visada a recorrente, foi instaurado pela AdC com base na infracção ao artigo 9.º n.º 1 – a) e b) do RJC.

38.–Segundo este Tribunal julga perceber, na nota de ilicitude mencionada no facto provado h), a AdC não se refere à aplicação do artigo 101.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), nomeadamente para efeitos do artigo 3.º do Regulamento 1/2003.

39.–Em qualquer dos casos, sem prejuízo do que vier a ser decidido a final quanto ao mérito da contraordenação, no que releva para decisão da questão agora em análise, importa levar em conta que, o artigo 9.º do RJC contém a norma correspondente ao artigo 101.º do TFUE, que proíbe, no plano interno, os acordos restritivos da concorrência por objecto. A este propósito, o Tribunal recorda que o critério jurídico essencial para determinar se um acordo contém uma restrição da concorrência por objecto consiste na verificação de que esse acordo apresenta, em si mesmo, um grau de nocividade suficiente para a concorrência, para se considerar que não é necessário provar os seus efeitos – cf. acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), C-469/15, parágrafo 104.

40.–Dito isto, do elenco dos factos provados, incluindo dos documentos que o Tribunal a quo dá como reproduzidos e/ou cuja existência menciona nos factos provados e estão juntos aos autos, como acima explicado no parágrafo 34, resulta que:
  • A apreensão dos 348 documentos aqui em crise foi autorizada por mandado de busca e apreensão emitido em 6.5.2019, assinado pelo Ministério Público, no âmbito do processo de contraordenação PRC/2019/02, instaurado pela AdC contra várias co-visadas, entre as quais a recorrente (cf. factos provados b), c), d) e h) e documentos/actos processuais mencionados nesses factos provados, juntos aos autos nos locais indicados nos parágrafos 1, 2, 3, 18 e 19, resultando do ponto 6.1.6 da nota de ilicitude mencionada no facto provado h),  que as diligências de busca e apreensão tiveram lugar nos dias 10, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21 e 22 de Maio de 2019);
  • Além dos 348 documentos objecto deste recurso, a AdC apreendeu à visada outros documentos, cujo tratamento confidencial deferiu (cf. factos provados b) a g) e documentos juntos aos autos, aí mencionados);
  • A AdC indeferiu o tratamento confidencial dos 348 documentos aqui em crise, solicitado pela recorrente, por decisão de 6.7.2021, repartida entre o ofício 2021/1883 e uma tabela Excel junta aos autos em 12.7.2022, com a referência citius 63759 (cf. factos provados c) a g) e documentos juntos aos autos, aí mencionados);
  • Na coluna “Fundamentação Confidencialidade” da tabela Excel acima referida, estão indicados os fundamentos pelos quais a recorrente requer o tratamento confidencial, respectivamente, de cada um dos 348 documentos em crise;
  • Nessa tabela Excel, a AdC, indicou os motivos pelos quais indeferiu a confidencialidade de tais documentos e a decisão de indeferimento, mediante o preenchimento das colunas “Motivo de indeferimento”, “Falta de fundamentação: justificação”, “Notas” e “Decisão”, remetendo adicionalmente, na coluna “Falta de fundamentação: justificação”, para os fundamentos constantes do ofício dado por assente no facto provado g), junto aos autos com a referência citius 312760;
  • Os 348 documentos aqui em crise são mensagens de correio electónico (e-mails) que nalguns casos foram enviadas com documentos anexos.

41.–Da análise do conteúdo de cada um dos 348 e-mails (anexos incluídos, consoante o caso), dados por reproduzidos nos factos provados, extrai-se que os mesmos contêm  mensagens trocadas entre a recorrente/visada e as co-visadas ou entre a recorrente/visada e/ou as co-visadas e terceiros, nomeadamente o que versam sobre: cartas enInstituto de Proteção e Assistência na Doença, I.P. (ADSE),viadas pela ADSE; propostas de acordo entre as co-visadas sobre a resposta a enviar por cada uma à ADSE quanto a negociações, propostas de preços e métodos de facturação de medicamentos e/ou actos médicos e/ou utilização de dispositivos médicos; troca de informação entre as co-visadas sobre a posição a adoptar face às novas tabelas de preços da ADSE; tabelas de preços; agendamento/preparação de reuniões/grupos de trabalho, para discutir preços e margens de lucro; divergências entre as co-visadas e sugestões trocadas entre elas para alinhar posições quanto à tabela de preços da ADSE; actas de reuniões com comentários inseridos pelas co-visadas sobre esses assuntos; métodos de facturação; valores de preços acordados; reuniões sobre facturação; troca de informação entre as co-visadas sobre a estratégia a acordar perante o que consideram a contenção de despesa por parte da administração e a maximização de prejuízo  dos operadores privados, que resulta da tabela de preços da ADSE.

42.–Da análise da nota de ilicitude junta aos autos, dada como provada no facto h) (cf. Documento 7, no disco externo junto a fls. 198), resulta que, o objecto de investigação no processo de contraordenação, é a troca de informação entre empresas concorrentes com vista à fixação de preços por acordo, para falsearem a concorrência e afectarem o funcionamento da regra da regularização praticada pela ADSE, que consiste em comparar os preços de medicamentos/actos médicos/dispositivos, praticados pelos diferentes prestadores e solicitar a devolução do dinheiro, quando existem desvios significativos entre os preços praticados por uns e outros; dai resultando a possibilidade de a ADSE reduzir, retroactivamente, os preços que paga aos prestadores de serviços pelos medicamentos/actos médicos/dispositivos.

43.–Da análise do ofício da AdC mencionado no facto provado g) (junto aos autos com a referência citius 312760), extrai-se que, além do mais, foi a seguinte a motivação da decisão da AdC, impugnada em primeira instância:

3.- (...) O preenchimento com indeferido traduz, para os pedidos de protecção de confidencialidade identificados em linha, a manutenção das razões subjacentes ao indeferimento por falta de fundamentação e/ou de descritivo (identificado na coluna “Motivo de Indeferimento”) comunicado em sede de sentido provável da decisão.

A identificação do motivo de indeferimento como “Falta de fundamentação” revela que a AdC entende que a fundamentação apresentada não permite concluir que a informação em causa seja confidencial, por não consubstancuar um segredo comercial na acepção do n.º 1 do artigo 313.º do Código da Propriedade Industrial ou por não permitir a demonstração cumulativa das seguintes condições: (i) a informação deve ser do conhecimento de apenas um número restrito de pessoas; (ii) a sua divulgação é susceptível de produzir um prejuízo grave para o seu titular e/ou terceiros; (iii) e os interesses susceptíveis deserem prejudicados com a divulgação da informação são legítimos e objectivamente dignos de protecção.
(...)”

44.–Conjugada a motivação da decisão da AdC, acima citada, com os elementos de decisão constantes da tabela Excel que a complementa, junta com a referência citius 63759 (cf. factos provados b) e g) acima transcritos), daí resulta que, relativamente aos 348 documentos aqui em crise, foi indicado o seguinte motivo, comum a todos eles, para recusar o respectivo tratamento confidencial:

“É entendimento da AdC que este pedido não poderá ser objeto de deferimento, uma vez que a informação em causa está relacionada com o comportamento ilícito objeto de investigação”

45.–Quanto a 273 desses documentos, a AdC indicou, adicionalmente, um segundo motivo de indeferimento que se prende com a falta de preenchimento dos requisitos do segredo de negócio que constam do ofício dado por assente no facto g), nomeadamente, por falta de comprovação, pela recorrente, de que a divulgação desses documentos é capaz de produzir um prejuízo grave para o seu titular e/ou para terceiros (cf. ponto 3 do ofício acima transcrito no parágrafo 43).

46.–Tendo a decisão da AdC sido confirmada pelo Tribunal a quo, a recorrente defende existir erro de direito da decisão recorrida quando julgou, em primeiro lugar, que pelo facto de a informação constante dos 348 documentos constituir uma infracção, não merece tratamento confidencial e, em segundo lugar, que a recorrente não comprovou os requisitos dos segredos de negócio quanto a 273 desses documentos.

47.–Antes de mais, importa esclarecer que, contrariamente ao que parece alegar a recorrente, no ponto 3 do ofício citado no parágrafo 43, a AdC indica expressamente que o prejuízo grave causado pela divulgação dos documentos pode ser para a titular ou para terceiros. De onde resulta que o que importa é provar que a informação tem valor comercial pelo facto de ser secreta, como será explicado a seguir nos parágrafos 53 e 54.

48.–Feita esta clarificação, para resolver a discórdia manifestada pela recorrente o Tribunal leva em conta a jurisprudência do TJUE e do Tribunal Geral da União Europeia (TG), nomeadamente, nos processos C-209 a 215 e 218/78 (parágrafo 46), T- 353/94 (parágrafo 87), T-345/12 (cf. parágrafos 63, 64, 79 a 85 e 123 a 125) e T- 462/12 (parágrafos 27, 58, 61 a 64, 66, 70, 71, 83 a 85), da qual se extraem os seguintes princípios interpretativos:
  • A decisão da autoridade da concorrência deve conter elementos que permitam ao Tribunal e à recorrente identificar as razões pelas quais a autoridade da concorrência concluiu pela natureza não confidencial dos documentos controvertidos, quer essas razões sejam específicas para um determinado documento, quer evoquem as características de uma série de documentos;
  • Não são secretas nem confidenciais as informações que, tendo tido carácter confidencial, datem de há cinco anos ou mais (o que não sucedia com a informação aqui em crise nas datas mencionadas no parágrafo 40, em que ocorreu a apreensão) já que, por essa razão, devem ser tidas por históricas, a menos que, excepcionalmente, o interessado demonstre que, apesar da sua antiguidade, tais informações ainda constituem elementos essenciais da sua posição comercial ou do terceiro em causa;
  • As disposições legais em vigor no domínio da propriedade intelectual, sobre a noção de segredos de negócio, devem ser levadas em conta na apreciação da confidencialidade por motivo de segredo de negócio, na medida em que permitem ao Tribunal considerar os meios em que normalmente se utiliza o tipo de informações em causa;
  • Dado que, não só foram trocadas entre os concorrentes como também são o resultado das trocas entres eles, designadamente quanto a preços e métodos de facturação acordados, as informações constantes dos documentos controvertidos constituem a própria essência da infração investigada, mencionada nos parágrafos 37 a 39 e 42;
  • Ao comunicar essas informações aos seus concorrentes, a recorrente revelou-as precisamente às pessoas responsáveis, na empresa a que pertencem, pelo tratamento das informações correspondentes;
  • Dai resulta que a recorrente não se esforçou minimamente por manter secretas essas informações relativamente às pessoas e às entidades em relação às quais elas devem, por excelência, ser mantidas confidenciais;
  • Quando as informações em causa resultam de um contexto que exclui o segredo relativamente aos concorrentes, conforme imposto pelo artigo 101.° TFUE (o que vale para a regra nacional correspondente, consagrada no artigo 9.º do RJC) e, portanto, existiram graças à inobservância desse segredo, não merecem protecção;
  • Nem todas as informações podem ser ocultadas por razões ligadas à protecção da identidade das pessoas;
  • Na divulgação das decisões que condenam por infracção ao direito da concorrência, deve ser observado um juízo de proporcionalidade entre os interesses legítimos em não permitir o acesso a certas informações e o interesse público, na maior transparência possível da actividade das instituições;
  • O interesse de uma empresa já condenada, em manter a confidencialidade sobre elementos que constituem práticas anticoncorrenciais, não merece particular protecção depois de a decisão condenatória se ter tornado definitiva.

49.–Adicionalmente, o Tribunal recorda que, de acordo com a jurisprudência mencionada no parágrafo anterior, quer as regras de acesso ao processo da Comissão Europeia, no plano da União, quer as linhas de Orientação da AdC, no plano nacional, não são vinculativas para o Tribunal, mas delas resulta que as autoridades da concorrência se auto limitam no que diz respeito à condução dos processos por infracção.

50.–Dito isto, no plano interno, o artigo 31.º n.º 3 do RJC prevê que a AdC pode utilizar como meios de prova da infracção ao direito da concorrência, informação classificada como confidencial. Neste contexto, a questão colocada ao Tribunal no presente recurso é desde logo a de saber se os documentos em crise, devem ser protegidos como confidenciais, por motivo de segredos de negócio (sem prejuízo do acesso aos mesmos, pela defesa, no caso de existirem co-visados, nos termos e com as limitações previstas no artigo 33.º n.º 4 do RJC). 

51.–A este propósito, é forçoso reconhecer, da análise dos documentos em crise, que os mesmos contêm informação comercial trocada entre a recorrente e empresas concorrentes e/ou terceiros, conforme já foi acima sintetizado no parágrafo 41. Isto com excepção de uma pequena parte da mensagem LusíadasSA2201,que se reporta a circunstâncias de um familiar do remetente da mensagem, que em nada relevam para a investigação da infracção objecto do processo de contraordenação e não tem conteúdo comercial, como a seguir será explicado.

52.–Relativamente à informação comercial que consta da totalidade dos documentos apreendidos (com a ressalva mencionada no parágrafo anterior), embora o RJC não defina a noção de segredos de negócio, o Tribunal leva em conta os preceitos do domínio da propriedade intelectual que, no plano da União Europeia e no plano nacional, consagram a noção de “segredo comercial” – cf. T- 462/12, parágrafo 63 e T- 235/15, parágrafos 108, 112 e 114.  Tais preceitos são, o artigo 39. ° n.º 2 do Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade intelectual relacionados com o Comércio, que constitui o anexo 1 C do acordo que institui a OMC (Organização Mundial do Comércio), aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, o artigo 2.º da Directiva 2016/943 e o artigo 313.º do Código da Propriedade Industrial (CPI), que transpõe o artigo 2.º daquela directiva. Estes preceitos contêm uma definição de segredo comercial ou segredo de negócio que tem sido interpretada de maneira uniforme pelo TG. Em regra, o segredo comercial inclui toda a informação relativa a actividades empresariais que não seja do domínio público, nem evidente para um perito na matéria, que o seu titular pretenda preservar como tal e de que possa extrair uma vantagem competitiva em virtude dessa circunstância – cf. Código da Propriedade Industrial Anotado, Coordenação Luís Couto Gonçalves, Almedina, página 1185.

53.–À luz do critério, da jurisprudência e das disposições legais mencionados no parágrafo anterior, são protegidas como segredos de negócio as informações que preencham cumulativamente os seguintes requisitos:
  • Sejam secretas na medida em que não sejam geralmente conhecidas ou facilmente acessíveis, na sua globalidade ou na configuração ou ligação exactas dos seus elementos constitutivos, para pessoas dos círculos que lidam normalmente com o tipo de informações em questão;
  • Tenham valor comercial pelo facto de serem secretas;
  • Tenham sido objecto de diligências razoáveis por parte da pessoa que legalmente detém o controlo das informações, para as manter secretas, atendendo às circunstâncias.

54.–Daqui extrai-se que, contrariamente ao que parece pretender a recorrente, a informação comercial não é protegida em si mesma. Também não basta, quer no caso da comunicação interna, quer da externa, que essa informação tenha valor económico (eg. por conferir vantagem competitiva ao seu titular ou a terceiros). É necessário que a recorrente demonstre que adoptou um mínimo de cautelas aptas a preservar a confidencialidade, por meio de actos materiais (como a criação de passwords/códigos de acesso) ou jurídicos (como a celebração de acordos de confidencialidade com aqueles com quem trocou a informação)cf. Código da Propriedade Industrial Anotado, Coordenação Luís Couto Gonçalves, Almedina, página 1186.

55.–Ora, não ficou provado (e impendia sobre a recorrente esse ónus, como será explicado infra, na análise da questão D) que a recorrente tenha adoptado alguma destas cautelas (cf. tabela Excel junta com a referência citius 63759). A este propósito, a circunstância de numa das mensagens apreendidas (cf. LusíadasSA0682) ser mencionado no assunto “confidencial” ou de algumas das mensagens apreendidas conterem, junto ao local da assinatura, uma advertência de que o seu conteúdo é confidencial, não constituem medidas técnicas, nem acordos, aptos a preservar a confidencialidade, nos termos enunciados no parágrafo 54.

56.–Pelo que, nessa parte, a sentença recorrida não enferma de erro de direito, já que, os 273 documentos relativamente aos quais foi recusado o tratamento confidencial com base na falta do preenchimento de todos requisitos necessários para serem protegidos como segredos comerciais, não preenchem efectivamente todos esses requisitos, desde logo por não se ter provado o seu carácter secreto, uma vez que a recorrente não provou ter adoptado medidas aptas, de um ponto de vista técnico, ou jurídico, a manter o caracter secreto desses documentos – cf. C- 209 a 215 e 218/78, parágrafo 46 e T-353/94, parágrafo 87.

57.–Acresce que, como a seguir será explicado, os motivos aqui impugnados pela recorrente que estiveram na base da decisão de recusa do tratamento confidencial, reconduzem-se afinal a um só e mesmo motivo, indicado no que diz respeito à totalidade dos 348 documentos aqui em crise, a saber, a falta de caracter secreto desses documentos. Isto porque, tratando-se de mensagens trocadas com os concorrentes e/ou com terceiros mediante acordo com os concorrentes, tais documentos deixaram igualmente de ser secretos, pelo facto de constituírem uma infracção, como resulta da jurisprudência acima mencionada no parágrafo 48. Com efeito, essa informação foi partilhada entre concorrentes graças à inobservância do segredo imposto pelo artigo 101.º do TFUE ou, neste caso, pelo artigo 9.º do RJC, pelo que, não merece protecção por não preencher um dos requisitos previstos seja pelo artigo 39.º do anexo 1 C do Acordo que institui a OMC, aprovado pela Decisão 94/800/CE, seja pelo artigo 2.º da Directiva 2016/943, seja pelo artigo 313.º n.º 1 do CPI, que é o carácter secreto – cf. T-462/12, parágrafo 61 a 65.

58.–Na verdade, segundo a interpretação feita pelo Tribunal Geral da União Europeia sobre o tratamento confidencial da informação em processos por infração ao artigo 101.º do TFUE, as informações aqui em causa, pelo facto de estarem relacionadas com o comportamento ilícito investigado, não merecem proteção a título de segredo de negócio porque já foram divulgadas a terceiros/outros concorrentes, sem que fossem tomadas especiais cautelas para proteger a sua confidencialidade e/ou porque o seu valor não merece protecção legal uma vez que resultam de práticas que (indiciariamente) visam eliminar a incerteza inerente ao sistema de concorrência, já que o artigo 101.º do TFUE exclui, quanto a elas, o segredo. É o que resulta, em particular, dos parágrafos 61, 64 e 65 do acórdão T-462/12, a seguir citados:
61- Em concreto, as informações em causa resultam de um contexto que exclui o segredo relativamente aos concorrentes, conforme imposto pelo artigo 101. ° TFUE, e, portanto, existiram graças à inexistência desse segredo. Por conseguinte, o valor dessas informações para a recorrente residia precisamente no facto de serem resultantes de um acordo que eliminava a incerteza inerente ao sistema de concorrência estabelecido pelo Tratado. Assim, o auditor não cometeu nenhum erro de direito ao realçar a natureza dessas informações, dado que constituem a própria essência da infração, para evitar que sejam conhecidas por um número restrito de pessoas.
(...)
64- Ora, ao comunicar essas informações aos seus concorrentes, a recorrente revelou-as precisamente às pessoas responsáveis, na empresa a que pertencem, pelo tratamento das informações correspondentes. Acresce que, por definição, a recorrente não se esforçou minimamente por manter secretas essas informações relativamente às pessoas e às entidades em relação às quais elas devem, por excelência, ser
mantidas confidenciais (v. n.ºs 60 e 61, supra).

65- Tendo em conta a análise anterior, não se pode aceitar que as informações em causa apenas sejam conhecidas por um número restrito de pessoas na aceção da jurisprudência referida no n.°45, supra. Os argumentos da recorrente de que, primeiro, as informações em causa apenas são conhecidas por um número restrito de pessoas e, segundo, o critério utilizado pelo auditor relativo ao facto de essas informações configurarem factos constitutivos da infração não é relevante devem, por conseguinte, ser afastados.”

59.–Isto é assim, como já foi dito, com excepção do trecho inserido no início da mensagem LusíadasSA2201, que se reporta a circunstâncias de um familiar do remetente dessa mensagem. Quanto a esse documento, afigura-se que a AdC tem o dever de tornar confidencial essa parte da mensagem, deferindo parcialmente ao solicitado pela recorrente, à luz do disposto nas obrigações que resultam para a AdC do artigo 6.º n.º 1 – e) e n.ºs 2, 3 e 4 do Regulamento 2016/679 (relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais). Apesar de à data da apreensão ainda não ter sido aditado ao RJC o artigo 30.º -A e de o mesmo não se aplicar ratione temporis neste caso, como resulta do artigo 9.º da Lei 17/2022, afigura-se que os dados pessoais familiares acima referidos não têm qualquer relevo para as finalidades legais prosseguidas pela AdC e, por isso a sua divulgação é desnecessária para alcançar tais finalidades. Esta questão fica, porém, prejudicada, pela apreciação da questão E.

60.–Assim, pelos motivos acima enunciados e sem prejuízo do que foi referido no parágrafo anterior, a informação comercial constante dos 348 documentos aqui em crise, não merece protecção como segredo de negócio por não revestir caracter secreto, que é um dos requisitos dessa protecção. Por tais motivos, contrariamente ao que pretende a recorrente, não há que aplicar o regime previsto nos artigos 31.º n.º 3 e 33.º n.º 4 do RJC (na redacção anterior à lei 17/2022 de 17 de Agosto, uma vez que resulta do artigo 9.º dessa lei que a mesma não é aqui aplicável ratione temporis).

D. Inconstitucionalidade do artigo 30.º do RJC

61.–A recorrente invoca expressamente a inconstitucionalidade do artigo 30.º do RJC, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 70.º e 71.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Defende que a interpretação do artigo 30.º do RJC feita pelo Tribunal a quo infringe o direito à livre iniciativa económica privada (artigo 61.º da CRP), o direito de propriedade sobre os segredos comerciais (artigo 62.º da CRP), o direito à reserva de intimidade da vida privada (artigo 26.º da CRP), o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), o direito a um processo justo e equitativo que resulta do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP) e o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º n.º 2 da CRP).

62.–A este propósito, a recorrente defende nas suas conclusões, o seguinte:

24.- A norma constante do artigo 30.º, n.º 1 da LdC é inconstitucional se e quando dela se extraia que “a informação relacionada com o comportamento ilícito objeto de investigação” não pode ser objeto de classificação como informação confidencial por não ser digna de tal tutela, por violação dos direitos fundamentais da Recorrente à livre iniciativa económica privada e à proteção dos seus segredos comerciais (cfr. artigos 62.º e 61.º, n.º 1 da CRP), à privacidade e à reserva da sua vida privada (cfr. artigo 26.º da CRP), bem como por violação do princípio da presunção de inocência (cfr. 32.º, n.º 2 da CRP), das suas garantias de defesa em processos de cariz sancionatório (cfr. artigo 32.º, n.º 10 da CRP) e, bem assim, do seu direito a um processo justo e equitativo (cfr. artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP) – inconstitucionalidade que se deixa, desde já, arguida nos termos e para os efeitos previstos, nomeadamente, nos artigos 70.º e 71.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
(...)
31.- Pelos motivos melhor evidenciados nas motivações supra, o entendimento expresso pelo Tribunal a quo, designadamente nos pontos 23 e 24 da Sentença Recorrida, torna materialmente o ónus de demonstração da verificação dos requisitos necessários à proteção de informação confidencial num autêntico exercício de diabolica probatio para a Recorrente e para os demais requerentes de proteção neste âmbito, em termos incompatíveis com o princípio da proporcionalidade (cfr. art. 18.º, n.º 2 da CRP) e que redundam na transformação do regime de proteção de segredos de negócio instituído pelo legislador num regime substancialmente diminuído e incapaz de acautelar satisfatoriamente os desígnios para que foi arquitetado, assim acarretando restrição ilícita dos direitos fundamentais da Recorrente à livre iniciativa económica privada e à proteção dos seus segredos comerciais (cfr. artigos 62.º e 61.º, n.º 1 da CRP), à privacidade e à reserva da sua vida privada (cfr. artigo 26.º da CRP), em atropelo do disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

63.–Para analisar os motivos da discordância da recorrente com a sentença recorrida, o Tribunal divide a apreciação das inconstitucionalidades suscitadas, acima sintetizadas no parágrafo 61, em dois momentos. Na presente questão, o Tribunal apreciará as inconstitucionalidades que resultam do alegado erro na interpretação da noção de segredo de negócio e da aplicação das regras do ónus da prova, previstas no artigo 30.º do RJC. Na questão E, o Tribunal apreciará se, tendo sido constatada a violação de algumas das garantias constitucionais invocadas pela recorrente, embora por motivos não coincidentes com os alegados, e resultando daí uma proibição de prova relativa, que o Tribunal pode apreciar se for invocada, basta, para permitir ao Tribunal apreciar esse vício, à luz do disposto no artigo 410.º n.º 3 do CPP aplicável ex vi artigos 83.º do RJC e 41.º n.º 1 do RGCO, que a recorrente manifeste que não aceita os efeitos do acto viciado, através do pedido de anulação da decisão da AdC feito no presente recurso.

64.–Feita esta clarificação, no que diz respeito ao direito à livre iniciativa económica privada, previsto no artigo 61.º da CRP e ao princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, o Tribunal considera aqui os factos provados, em particular o conteúdo das mensagens juntas como documentos LusíadasSA 0682 e LusíadasSA 1593 dados por reproduzido nos factos provados, que reflectem a preocupação das empresas co-visadas com os prejuízos que, na sua óptica, seriam causados ao sector privado devido à contenção de despesa por parte da  ADSE e a intenção de, por acordo, reagirem à tabela proposta pela ADSE.

65.–Neste contexto, se à luz da livre iniciativa económica privada prevista no artigo 61.º da CRP, é compreensível a preocupação das empresas com eventuais prejuízos, manifestada nas trocas de mensagens, o certo é que, os acordos e práticas concertadas entre a recorrente e as co-visadas, com vista a fazer face a tais preocupações, para serem considerados justificados, teriam de cumprir os requisitos previstos no artigo 10.º do RJC, o que não sucede no caso em análise.

66.–Em tais circunstâncias, por aplicação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, a protecção da livre iniciativa privada prevista no artigo 61.º da CRP cede perante outro princípio constitucional, previsto no artigo 81.º - f) da CRP, que atribui ao Estado a incumbência prioritária de [a]ssegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”.

67.–Motivos pelos quais, não se afigura que a interpretação do artigo 30.º do RJC tenha violado o direito à iniciativa privada previsto no artigo 61.º da CRP, nem o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

68.–Quanto à alegada infracção ao artigo 62.º da CRP, a recorrente defende que foi violado o seu direito de propriedade sobre os segredos comerciais e que a interpretação dos artigos 30.º n.º 1, 31.º n.º 3 e 33.º n.º 4 do RJC (na redacção aqui aplicável, anterior à Lei 17/2022 de 17 de Agosto) foi errada e contraditória, na medida em que, de tais preceitos resulta que deveria ter sido assegurado o tratamento confidencial aí previsto, à informação aqui em crise. Ora, pelos motivos já expostos na análise da questão C, não se verificando o carácter secreto da informação, a mesma não preenche todos os requisitos da protecção a título de segredos de negócio e, portanto, não tem de ser assegurado o seu tratamento confidencial com tal fundamento. Pelo que, nessa parte a sentença recorrida não merece censura, nem foi violado o artigo 62.º da CRP.

69.–No que respeita à alegada violação do princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.ºs 2 e 10 e da CRP e do direito a um processo justo e equitativo previsto no artigo 20.º da CRP, segundo este Tribunal julga perceber (cf. artigos 141 a 143 das alegações da recorrente), a recorrente invoca a violação do princípio da presunção da inocência e do direito a um processo justo e equitativo, a propósito da interpretação do artigo 30.º do RJC que fez impender sobre ela o ónus de provar o caracter confidencial dessa informação.

70.–Nesse contexto, o que se afigura estar em causa é o direito à não autoincriminação, que tem uma matriz constitucional processualista assente no processo equitativo previsto no artigo 20.º da CRP e nas garantias processuais reconhecidas ao arguido pelo artigo 32.º da CRP, que, por força do número 10 deste último preceito, se estendem ao presente processo de contraordenação (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, página 55).

71.–As pessoas colectivas, como sucede no caso da recorrente, gozam dos direitos consagrados nos artigos 20.º e 32.º da CRP, por força do artigo 12.º n.º 2 da CRP (princípio da universalidade).

72.É à luz deste enquadramento que importa então apreciar se as restrições que a recorrente aqui põe em crise,  impostas pelo artigo 30.º do RJC, são constitucionalmente válidas. A este propósito, há que levar em conta que o direito à não incriminação admite restrições, as quais, para serem constitucionalmente válidas, têm de respeitar dois requisitos essenciais: estarem previstas em lei expressa; e serem impostas em nome da protecção de interesses constitucionalmente protegidos e em obediência ao princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, página 55).

73.–Ora, em matéria de tratamento confidencial da informação, resulta da jurisprudência do Tribunal Geral da União Europeia que o ónus da prova incumbe ao requerente do tratamento confidencial, sem que isso infrinja o princípio da proporcionalidade – cf. acórdãos T-462/12, parágrafo 47 e T- 345/12, parágrafo 63. No plano interno, o dever de fundamentação por parte da recorrente/visada e o ónus da prova da confidencialidade que sobre ela impende,  encontram-se consagrados em lei expressa, no artigo 30.º n.ºs 2 e 4 do RJC, em nome da protecção de interesses constitucionalmente protegidos (cf. artigo 81.º - f) da CRP já acima mencionado).

74.–Assim sendo, na medida em que os dois requisitos enunciados no parágrafo 72 são respeitados, afigura-se que o dever de fundamentação e a regra do ónus da prova, consagrados no artigo 30.º n.ºs 2 e  4 do RJC são constitucionalmente válidos.

75.–Em consequência, contrariamente ao que alega a recorrente, não se afigura que o disposto no artigo 30.º n.ºs 2 e 4 do RJC, na medida em que impõem à recorrente o dever de fundamentar o tratamento confidencial da informação e o ónus de provar que a informação preenche os requisitos dos segredos de negócio, infrinja o disposto nos artigos 20.º e 32.º n.ºs 2 e 10 da CRP.

76.–Assim, não se verifica nenhuma das inconstitucionalidades aqui analisadas, invocadas pela recorrente com base no erro de direito na apreciação da noção de segredos de negócio e na interpretação das regras sobre o dever de fundamentação e o ónus da prova, previstas no artigo 30.º do RJC. Isto, sem prejuízo de alguns dos preceitos constitucionais acima mencionados terem sido postos em crise, não pelo sentido da valoração feita pela AdC, mas pelo método de obtenção da prova que foi objecto de valoração pela AdC, como a seguir será explicado.  

E. Violação do direito à reserva de intimidade da vida privada e do direito a um processo equitativo

77.–Segundo defende a recorrente, a interpretação do artigo 30.º do RJC feita pela AdC foi contrária ao disposto no artigo 26.º da CRP, que consagra o direito à reserva de intimidade da vida privada e infringiu o direito a um processo equitativo, que resulta do artigo 20.º da CRP.

78.–Tal como já foi acima referido, os preceitos do RJC aqui aplicados têm a redacção anterior à Lei 17/2022 de 17/8, uma vez que, como resulta do artigo 9.º dessa lei, as alterações por ela introduzidas não se aplicam ratione temporis ao processo de contraordenação que esteve na origem do presente recurso interlocutório.

79.–Dito isto, o direito à reserva de intimidade da vida privada é um dos direitos pessoais previstos no artigo 26.º da CRP que, por força do princípio da universalidade, o artigo 12.º n.º 2 da CRP visa garantir também às pessoas colectivas, como é o caso da recorrente, na medida em que esse direito se mostra adequado à prossecução dos fins da pessoa colectiva. O respeito pela intimidade das pessoas, incluindo das pessoas colectivas, cuja violação aqui é alegada, é igualmente protegido pelo artigo 34.º da CRP, na vertente da inviolabilidade da correspondência (cf. Jorge Miranda, Direitos Fundamentas, 3.ª Edição, Almedina, páginas 243 a 244 e 296 a 297).

80.–Às garantias previstas no artigo 34.º da CRP, estão ligadas as garantias processuais previstas no artigo 32.º n.º 8 da CRP (aplicável ao processo de contraordenação por força do n.º 10 desse preceito) e o direito ao processo justo e equitativo que resulta do artigo 20.º da CRP, do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União europeia e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). O direito ao respeito pela vida privada encontra-se igualmente consagrado no artigo 8.º da CEDH.

81.–Feito este enquadramento, resulta da matéria de facto provada que os 348 documentos aqui em causa, foram apreendidos em cumprimento de um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, conforme se extrai, quer do parágrafo 19 da nota de ilicitude mencionada no facto provado h), junta aos autos como Documento 7, no disco externo de fls. 198, quer da referência a “Decisão Buscas LusíadasSA”, constante do facto provado b); e são todos eles mensagens de correio electrónico (e-mails), aos quais, em certos casos, foram anexos documentos à mensagem enviada, como se extrai dos ficheiros mencionados nos facto provado c), juntos aos autos como Anexo ao Documento 2, no disco externo de fls. 198. Assim sendo, a informação apreendida, cuja valoração pela AdC a recorrente impugna, está coberta pelo princípio da inviolabilidade da correspondência previsto no artigo 34.º n.ºs 1 e 4 da CRP, independentemente de esses e-mails terem ou não sido abertos/lidos ou de o seu teor dizer respeito a aspectos da vida privada, pessoal, profissional ou comercial (cf. jurisprudência do Tribunal Constitucional indicada infra no parágrafo 84).

82.–Os artigos 18.º e 20.º do RJC prevêem a possibilidade de realização de buscas e apreensões em processos de contraordenação por infracção ao direito da concorrência. Em particular, o artigo 18.º n.º 2 do RJC prevê que as buscas levadas a cabo pela AdC “dependem de decisão da autoridade judiciária competente”.

83. Para este efeito, a autoridade judiciária competente é a que consta da seguinte definição: “«Autoridade judiciária» o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência;”artigo 1.º - b) do CPP, aplicável na fase organicamente administrativa, por força do disposto nos artigos 13.º n.º 1 e 2 do RJC e 41.º n.º 1 do RGCO.

84.Resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional que:

“(…) é inevitável concluir que, também em processo contraordenacional por prática restritiva da concorrência, a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico marcadas como abertas apenas será constitucionalmente viável se for, em regra, precedida da intervenção do juiz de instrução”.

cf. acórdão do Tribunal Constitucional, TC 91/2023, parágrafo 26; a mesma interpretação resulta da jurisprudência aí citada, nomeadamente a constante do acórdão do Tribunal Constitucional TC 687/2021, parágrafos 45 e 46.

85.Pelo que, embora o regime da apreensão de correspondência apareça sistematicamente associado ao regime das buscas, as formalidades da busca, que aqui foi ordenada pelo Ministério Público, não se estendem à apreensão de correspondência, uma vez que, é da competência exclusiva do juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão dos e-mails aqui em crise.  A imposição prevista no artigo 32.º n.º 8 da CRP encontra expressão no artigo 179.º do CPP (aplicável, com as necessárias adaptações, ex vi artigos 13.º n.º 1 do RJC e 41.º do RGCO) já que, a apreensão de correspondência no direito português está sujeita a um regime de catálogo, semelhante, embora mais amplo, ao que vigora para as escutas telefónicas (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Gestlegal, páginas 286 e 287).

86.Apesar de não estarem reproduzidas no RJC, afigura-se que as regras sobre proibições de prova constantes dos artigos 126.º e 449.º n.º 1 – e) e n.º 4 do CPP são aplicáveis ao processo de contraordenação ao direito da concorrência, por força dos artigos 13.º n.º 1 do RJC e 41.º n.º 1 do RGCO (cf. Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2ª Edição, Almedina página 443). Acresce que, este Tribunal, embora conheça apenas da matéria de direito (cf. 75.º n.º 1 do RGCO aplicável ex vi artigo 83.º do RJC), pode aplicar o regime das nulidades consagrado no CPP, nos termos previstos no artigo 410.º n.º 3 do CPP (cf. artigo 74.º n.º 4 do RGCO, aplicável ex vi artigo 83.º do RJC).

87.A esse propósito, o direito português associou as proibições de prova à figura e ao regime das nulidades, como forma de dar resposta ao artigo 32.º n.º 8 da CRP, mas, as duas figuras não são homogéneas, já que a lei autonomizou as proibições de prova em relação ao regime das nulidades, como resulta do artigo 118.º n.º 3 do CPP. Em consequência, as proibições de prova têm uma disciplina que transcende a das nulidades quanto aos efeitos que produzem e estão sujeitas a um regime complexo, cuja interpretação nem sempre é fácil para o Tribunal.

88.Para interpretar o regime das proibições de prova, o Tribunal leva em conta que o artigo 126.º do CPP prevê duas categorias de proibições de prova. Às proibições de prova absolutas, ligadas à ofensa à integridade física ou moral, por serem usados os processos referidos no artigo 126.º n.ºs 1 e 2 do CPP, aplica-se o regime das nulidades absolutas, insanáveis, de modo que elas devem ser de conhecimento oficioso; embora isso não esteja expressamente previsto no artigo 119.º do CPP, tal interpretação tem por base a expressão “não podendo ser utilizadas”, constante do artigo 126.º n.º 1 do CPP. Já as proibições de prova relativas, que atingem os direitos de privacidade previstos no artigo 126.º n.º 3 do CPP, como acontece no presente caso, são sanáveis se não forem arguidas pelo interessado, interpretação essa que tem por base o seguinte raciocínio: se a lei admite o consentimento do titular do direito, também deve admitir a renúncia à invocação da nulidade (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, Universidade Católica Editora, páginas 334 a 337 e jurisprudência e doutrina aí citadas, que, porém não são unânimes, já que parte da doutrina aí referida sustenta um entendimento em “sentido forte” da proibição de prova como “uma nulidade absoluta” e, portanto, o conhecimento oficioso das proibições de prova relativas).

89.Em consequência, a dificuldade maior que se coloca a este Tribunal, no caso em análise, é a de saber se, no contexto do presente recurso, o Tribunal da Relação pode tomar conhecimento da existência da proibição de prova relativa – que, em regra, tem de ser arguida pelo interessado – resultante da apreensão de correspondência sem observância das garantias previstas nos artigos 32.º n.ºs 8 e 10 e 34.º n.ºs 1 e 4 da CRP, quando o interessado invocou a violação dessas garantias constitucionais noutras vertentes, não atacando o método de obtenção de prova mas recusando-se a aceitar os efeitos do acto da administração que a valorou ao abrigo do artigo 30.º do RJC. Ou, dito por outras palavras, saber se o Tribunal pode considerar que a recorrente/visada, se recusa de forma inequívoca a aceitar os efeitos do acto viciado ao invocar a proibição de invasão da sua privada e a violação do direito a um processo equitativo e ao dirigir ao Tribunal o pedido iii acima transcrito no parágrafo 9, no qual pugna pela anulação da decisão da AdC que, na fase de investigação da infracção, valorou, ao abrigo do artigo 30º do RJC, a prova obtida mediante violação daquelas garantias constitucionais. Pois, nesse caso, ao apreciar a questão, é forçoso concluir que tal prova não pode ser valorada pela AdC por ser proibida e, consequentemente, a decisão da AdC adoptada ao abrigo do disposto no artigo 30.º do RJC é nula por incidir sobre prova que a AdC não podia tomar em consideração. Caso contrário, se apesar de a recorrente impugnar os efeitos do acto viciado, o Tribunal julgar que ela aceitou esse acto, então, pelos motivos acima expostos na análise da questão D, mantém-se válida a decisão da AdC que, incidindo sobre informação apreendida na fase da investigação, indeferiu o seu tratamento confidencial.

90.A solução do problema enunciado no parágrafo anterior, tal como já foi dito, não está isenta de dificuldades. Para as resolver o Tribunal levará em conta os factos provados, as circunstâncias particulares deste processo concreto, o regime previsto no artigo 121.º do CPP e a jurisprudência do TJUE que a seguir será citada.

91.Assim, dos factos provados b) e d) a g) extrai-se que, nas colunas da tabela Excel aí dada por reproduzida, preenchidas pela recorrente, a mesma manifestou a sua discordância quanto ao tratamento não confidencial da informação apreendida, constante dos 348 e-mails e respectivos anexos. Adicionalmente, resulta dos parágrafos 50 e 52 da nota de ilicitude mencionada no facto provado h), que a visada apresentou vários requerimentos onde arguiu nulidades ou irregularidades das diligências de busca e apreensão levadas a cabo pela AdC, aos quais a AdC respondeu. Tal como mencionado no parágrafo 19 dessa nota de ilicitude, a apreensão da correspondência teve lugar coercivamente, através da execução de um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público. Na notificação contante do facto provado b), a AdC comunicou à recorrente, em síntese, que a falta de identificação da informação confidencial, de fundamentação do pedido de tratamento confidencial ou de junção das versões não confidencias, por parte da recorrente, determinaria a publicidade da informação.

92.Em segundo lugar, o Tribunal considera que, sendo de aplicar aqui o regime das nulidades sanáveis, como já foi explicado, há que levar em conta o disposto no artigo 121.º nº 1 do CPP, nos termos do qual, tais nulidades ficam sanadas se os participantes processuais interessados: renunciarem expressamente a argui-las; tiverem aceite expressamente os efeitos do acto anulável; ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia.

93.Dos factos acima mencionados no parágrafo 91 resulta que, nem a recorrente renunciou expressamente a arguir a nulidade, uma vez que arguiu nulidades e irregularidades referentes às diligências de busca e apreensão, junto da AdC, nem aceitou expressamente os efeitos do acto anulável, uma vez que impugna esses efeitos no presente recurso, nem, ao identificar junto da AdC a informação confidencial, pretendeu prevalecer-se de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia. Com efeito, esta última causa de sanação diz respeito apenas àqueles actos que se destinam a garantir faculdades, o que não é o caso da apreensão de correspondência destinada à prova da infracção (cf. José da Costa Pimenta, Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Rei dos Livros, página 387).

94.Acresce que, a situação mencionada no parágrafo 91 foi enganosa, na medida em que, a consequência da falta de resposta à notificação prevista no artigo 30.º n.º 2 do RJC, feita pela AdC à visada (cf. facto provado b) transcrito supra), não podia ser, sem mais (sem que a recorrente tivesse renunciado, de forma esclarecida, a invocar a proibição de prova), o tratamento não confidencial da prova apreendida.

95.É que, se o ónus de indicação e prova, previsto no artigo 30.º n.ºs 2 e 4 do RJC não viola a proibição de autoincriminação, como já foi acima explicado na análise da questão D, o mesmo não sucede quando o que está em causa é a liberdade de declaração da recorrente/visada. Na verdade, a liberdade de declaração da recorrente assume aqui uma dupla dimensão: positiva, na medida em que confere à recorrente/visada a oportunidade efectiva de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados; e negativa ou de um verdadeiro direito de defesa contra o Estado, na medida em que veda à AdC a obtenção de declarações autoincriminatórias através de meios enganosos, de coacção ou dos métodos proibidos elencados na lei. Ora, é nesta dimensão negativa, associada ao brocardo latino nemo tenetur se ipsum acusare, que a liberdade de declaração da visada assume relevo como critério operativo em matéria de proibições de prova (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Gestlegal, página 127).

96.À luz do critério enunciado no parágrafo anterior, as declarações da recorrente, feitas para identificar e justificar o pedido de tratamento confidencial da correspondência apreendida, foram obtidas pela AdC em circunstâncias enganosas e de incerteza jurídica acerca, não só da existência do vício de que enfermava o método de obtenção da prova, como também da forma processualmente adequada de o invocar, como resulta do conjunto dos factos analisados supra e da subsequente adopção, pelo legislador nacional, do artigo 87-A do RJC, com a epígrafe Reacção a decisões no âmbito de diligências de busca e apreensão”, que visou por termo a essa incerteza jurídica, mas que não é aqui aplicável ratione temporis (cf. artigo 9.º da Lei 17/2022 de 17 de Agosto). Em tais circunstâncias, afigura-se que as declarações da recorrente para justificar a confidencialidade da informação, feitas ao abrigo da notificação que recebeu da AdC, no contexto do artigo 30.º do RJC, não podem ser consideradas equivalentes a uma renúncia esclarecida à invocação da nulidade da prova, à luz do disposto no artigo 121.º n.º 1 do CPP. Pelo contrário, o teor da notificação constante do facto provado b) foi de modo a levar a recorrida a convencer-se de que a impugnação do sentido da decisão da AdC que valorou essa prova era o único meio de recurso processualmente viável.

97.Adicionalmente, o Tribunal leva em conta as circunstâncias particulares do processo concreto (cf. C-682/20 P, parágrafos 55 a 57), que neste caso são: a falta de fiscalização jurisdicional prévia; a consumação do vício por violação do disposto nos artigos 32.º n.º 8 e 10, 34.º n.º 1 e 4 da CRP e 126.º n.º 3 do CPP; a impugnação, mediante pedido de anulação, da decisão da AdC que se seguiu à apreensão viciada e classificou a correspondência à luz do regime previsto no artigo 30.º do RJC; a invocação, pela recorrente, da violação das garantias constitucionais ligadas aos direitos à reserva de intimidade da vida privada e a um processo equitativo; a constatação da violação de tais garantias constitucionais ocorrida por motivos diversos dos alegados pela recorrente; a falta de comprovação de que a recorrente tenha renunciado à invocação da proibição de prova relativa, aqui em causa, por uma das formas previstas no artigo 121.º n.º 1 do CPP.

98.Perante as circunstâncias concretas deste processo, enunciadas no parágrafo anterior, há que decidir se a medida adoptada no decurso da investigação é, no seu todo, controvertida, nela se incluindo a apreensão da prova que foi objecto da decisão da AdC impugnada, uma vez que, ao impugnar tal decisão a recorrente demonstra expressamente que não aceita os efeitos do acto anulável (cf. artigo 121.º n.º 1, do CPP, a contrario). Nesse contexto, importa assegurar à recorrente uma fiscalização jurisdicional eficaz, nas circunstâncias particulares do processo concreto acima enunciadas, através do sistema de recursos disponíveis. É o que se extrai da interpretação feita pelo TJUE, no acórdão C-682/20-P, parágrafo 57, a seguir citado, que se pronuncia sobre o direito ao recurso das medidas de investigação adoptadas num processo por infracção ao direito da concorrência:
 
57-A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 6.º, n.º 1, ou ao artigo 8.º da CEDH que, em matéria de visitas domiciliárias, a não emissão prévia de uma autorização de inspeção por um juiz, que pudesse circunscrever o âmbito ou fiscalizar o desenrolar dessa inspeção, pode ser compensada por uma fiscalização jurisdicional ex post facto sobre a legalidade e a necessidade dessa medida de instrução, na condição de essa fiscalização ser eficaz nas circunstâncias particulares do processo concreto. Tal implica que as pessoas em causa possam obter uma fiscalização jurisdicional efetiva, tanto de facto como de direito, da medida controvertida e da forma como esta se desenrola. Quando uma operação considerada irregular já tenha ocorrido, o ou os recursos disponíveis devem permitir fornecer ao interessado uma reparação adequada (TEDH, 2 de outubro de 2014, Delta Pekárny a.s. c. República Checa, CE:ECHR:2014:1002JUD000009711, § 86 e § 87 e jurisprudência referida).

99.Assim, estando vedado à AdC proceder à valoração da prova aqui em causa no âmbito da classificação dos segredos de negócio prevista no artigo 30.º do RJC, pelo facto de o método utilizado para apreender essa prova ser proibido à luz do disposto no artigo 126.º n.º 3 do CPP, afigura-se que a recorrente, ao atacar a validade da decisão interlocutória da AdC que classifica a correspondência apreendida à luz do regime dos segredos de negócio, se recusa a aceitar os efeitos do acto anulável praticado durante a investigação e, portanto, se o Tribunal constata que a nulidade da decisão que a recorrente aqui pede que seja declarada, não resulta do sentido da valoração feita pela AdC, mas da proibição de a AdC proceder a essa valoração, afigura-se que deve, ainda que com base em interpretação jurídica diversa da alegada, declarar a nulidade da decisão impugnada, na medida em que isso corresponda efectivamente à pretensão recursiva formulada nos autos (cf. pedido iii, enunciado supra no parágrafo 9). Nas circunstâncias particulares do processo concreto, essa solução assegura que o controlo jurisdicional ex post facto da legalidade da medida de investigação cujos efeitos a recorrente se recusa a aceitar, é eficaz, no contexto das vias de recurso disponíveis.
 
100.Acresce que, as proibições de prova consagradas no artigo 126.º do CPP e as suas consequências, não dependem de uma ponderação entre, por um lado, os bens jurídicos subjacentes às proibições de prova e, por outro lado, os valores intra processuais atinentes à perseguição e punição de violações ao direito da concorrência (cf. artigo 7.º n.º 2 do RJC). De onde resulta que, existindo uma proibição de prova, a mesma não cede perante a gravidade da infracção em causa (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Gestlegal, páginas 205 a 208).

101.Enfim, a proibição de valoração da prova resultante do artigo 126.º n.º 3 do CPP abrange não só a prova imediata, os 348 e-mails apreendidos, mas também, em consequência do efeito à distância, a prova mediata, que inclui todos os documentos enviados como anexos aos e-mails apreendidos, dados por reproduzidos no facto provado c) – cf. solução que se extrai do artigo 122.º do CPP. Em particular, tratando-se da utilização de métodos proibidos de prova contra o arguido, o efeito à distância torna-se nuclear para alcançar o objectivo da protecção conferida pelo artigo 126.º do CPP na direcção do arguido (aqui, a visada), que é prevenir uma violação frontal do princípio nemo tenetur se ipsum acusare. Isto, porque a valoração de provas obtidas à custa de meios enganosos ou proibidos, como acontece no presente caso, equivale a compelir a visada a colaborar na sua própria condenação (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Gestlegal, página 324).

102.Não sendo uma nulidade em sentido técnico processual, mas uma proibição de prova, o seu efeito específico é o previsto no artigo 126.º n.º 3 do CPP, ou seja, as 348 mensagens de correio electrónico e respectivos anexos, aqui em crise, não podem ser utilizados pela AdC, sem que haja necessidade de qualquer declaração de nulidade da prova apreendida. A proibição de prova implica que nenhuma decisão da AdC pode ser tomada com base em tais provas (cf. José da Costa Pimenta, Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Rei dos Livros, páginas 378 e 397 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, página 337).

103.Em consequência, a decisão da AdC mencionada no facto provado g), proferida ao abrigo do artigo 30.º do RJC, que indeferiu o tratamento confidencial das 348 mensagens de correio electrónico apreendidas e respectivos anexos, dados por reproduzidos no facto provado c), é nula porque incide sobre prova que a AdC está proibida de valorar.

104.À luz do disposto nos artigos 84.º n.º 1 e 85.º do RJC, o recurso da decisão interlocutória da AdC aqui em crise tem por objecto a fiscalização jurisdicional dessa decisão, podendo o Tribunal mantê-la ou anulá-la, mas não podendo substituí-la. Nesse sentido, trata-se de um recurso de anulação. Pelo que, procede parcialmente o pedido subsidiário feito pela recorrente com o número iii, citado supra no parágrafo 9, a saber, na parte em que a recorrente pede que seja revogada a decisão recorrida e susbstituída por outra que declare nula (anule), a decisão da AdC. Improcede tudo o mais que é pedido pela recorrente.

Em síntese

105.Improcedem os segmentos da argumentação da recorrente assentes no desrespeito pelo acórdão do Tribunal da Relação de 1.6.202, na nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, falta e contradição da fundamentação e no erro de julgamento quanto ao regime dos segredos de negócio.

106.Improcedem as alegadas inconstitucionalidades do artigo 30.º do RJC com excepção do desrespeito pelos direitos de privacidade constitucionalmente consagrados (apreciados na vertente prevista no artigo 34.º da CRP) e da violação do direito a um processo equitativo (apreciado na vertente das garantias procesuais previstas no artigo 32.º n.ºs 8 e 10 da CRP).

107.Resulta dos factos provados que a informação objecto da decisão da AdC tomada ao abrigo do disposto no artigo 30.º do RJC, consiste em correspondência electrónica apreendida mediante um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público sem que tenha existido autorização judicial prévia para essa apreensão, como exige o artigo 34.º n.ºs 1 e 4 da CRP e resulta da jurisprudência constante do TC, acima citada.

108.Em conformidade, não tendo as garantias constitucionais previstas no artigo 34.º n.ºs 1 e 4 e 32.º n.ºs 8 e 10 da CRP, sido respeitadas e não tendo, no presente recurso, sido sanado o vício mediante consentimento da recorrente por uma das formas previstas no artigo 121.º n.º 1 do CPP (aplicável ex vi artigo 13.º n.º 1 do RJC e 41.º do RGCO), afigura-se que a AdC não pode valorar essa prova no âmbito da decisão de classificação dos segredos de negócio prevista no artigo 30.º do RJC, por se tratar de prova proibida à luz do disposto no artigo 126.ª do CPP, aplicável ex vi artigo 13.º n.º 1 do RJC e 41.º do RGCO.

109.Sendo a proibição de prova aqui em causa relativa, ela pode ser sanada pelo consentimento da interessada, pelo que este Tribunal só pode conhecer desse vicio mediante invocação da recorrente, aplicando o regime da proibição de prova previsto no artigo 126.º n.º 3 do CPP (cf. artigos 13.º n.º 1 do RJC e 41.º do RGCO) e o regime das nulidades sanáveis, previsto no artigo 121.º do CPP, tal como resulta do artigo 410.º n.º 3 do CPP (cf. artigos 83.º do RJC e 41.º do RGCO).

110.Nesse contexto, afigura-se que a recorrente, ao atacar a validade da decisão interlocutória da AdC que classifica a correspondência electrónica apreendida à luz do regime dos segredos de negócio, está a demonstrar de modo inequívoco a sua recusa em aceitar os efeitos do acto anulável (cf. artigo 121.º n.º 1 – b) do CPP, a contrario) e, portanto, se o Tribunal constata que a nulidade da decisão que a recorrente aqui pede que seja declarada, não resulta do sentido da valoração feita pela AdC, mas da proibição de a AdC proceder a essa valoração, afigura-se que deve, ainda que com base em interpretação das normas aplicáveis diversa da alegada, declarar a nulidade da decisão impugnada, na medida em que isso corresponde efectivamente à pretensão que a recorrente formula no presente recurso (cf. parágrafo 9, pedido iii).

111.Não sendo isenta de dificuldades, a interpretação que o Tribunal aqui faz permite, em consonância com a jurisprudência do TJUE acima citada, assegurar que o sistema de recursos disponíveis oferece à recorrente uma fiscalização jurisdicional eficaz da legalidade do método de obtenção de prova, nas circunstâncias particulares deste processo concreto e com respeito pela pretensão recursiva.

112.Por tais motivos, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declara nula a decisão da AdC constante do facto provado g), transcrito supra no parágrafo 23, por tal decisão ter incidido sobre prova cuja valoração é proibida. improcede tudo o mais que é pedido pela recorrente.

Decisão

Acordam os juízes que compõem a presente secção em conceder provimento parcial ao recurso e em conformidade:

I.–Revogar a sentença recorrida e substituí-la por outra que declara nula a decisão da AdC mencionada no facto provado g), transcrito supra no parágrafo 23, que indeferiu o tratamento confidencial das 348 mensagens de correio electrónico e respectivos anexos, mencionados no facto provado c), transcrito supra no parágrafo 19.

II.–Sem custas – artigo 513.º do CPP aplicável ex vi artigo 83.º do RJC e 74.º n.º 4 do RGCO e artigo 4.º n.º 1 – g) do Regulamento das Custas Processuais.



Lisboa, 23.10.2023


Paula Pott - (relatora)
Carlos M.G. de Melo Marinho - (1.º adjunto)
José Paulo Abrantes Registo - (2.º adjunto)