Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5879/20.7T8ALM.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: MASSA INSOLVENTE
INVENTÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não sendo a massa insolvente interessada directa na partilha por óbito do cônjuge da insolvente, carece de legitimidade para requerer o inventário respectivo.


(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:


A massa insolvente de Maria P. propôs acção especial de inventário, para partilha da herança deixada por óbito de João P., mais resultando dos documentos juntos com o requerimento inicial que o inventariado faleceu em 3/12/2010, no estado de casado com Maria P., e que em 30/3/2017 foi declarada a insolvência desta.

A referida Maria P. foi nomeada para exercer o cargo de cabeça de casal, tendo prestado compromisso de honra do desempenho dessas funções e tendo ainda prestado declarações.

Após apresentação da relação de bens pela cabeça de casal, por despacho de 17/10/2021 foi ordenada a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a legitimidade da massa insolvente requerente.

A massa insolvente requerente apresentou requerimento onde, em síntese, invoca que o inventário tem por objectivo apurar os bens da insolvente que daí advêm, para que revertam para a massa insolvente, e tendo presente que a insolvente está privada dos poderes de disposição dos seus bens, cabendo o seu exercício ao administrador da insolvência. Conclui, assim, pela sua legitimidade processual.

A cabeça de casal apresentou igualmente requerimento, onde invoca, em síntese, que a massa insolvente requerente não pode ser considerada interessada directa na partilha, assim concluindo pela verificação da excepção da ilegitimidade.

Seguidamente foi proferido despacho em 3/1/2022, com o seguinte dispositivo:
Termos em que julgo verificada a sobredita excepção dilatória de ilegitimidade e, consequentemente, absolvem-se a cabeça-de-casal e demais interessados da instância”.

A requerente recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A-Têm legitimidade processual para requerer a abertura de processo de inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os actos e termos do processo, os interessados directos na partilha.
B-Os interessados directos na partilha serão os sujeitos que, sendo ou não herdeiros, vêem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo medo como se organiza e concretiza a partilha.
C-Não restam dúvidas que a Massa Insolvente de Maria P. e ora Recorrente tem interesse directo na partilha, pelo tem e deve ser qualificada como interessada nos termos da lei do processo de inventário.
D-Compete ao administrador da insolvência os poderes de carácter patrimonial que pertenciam ao insolvente, desde que do interesse da insolvência.
E-Estando os bens que integram o património a partilhar incluídos na massa insolvente, o administrador, enquanto representante do interesse do insolvente, tem interesse em requerer o processo de inventário.
F-Quer isto dizer que, o administrador, enquanto representante da Massa Insolvente tem legitimidade para requerer o processo de inventário de modo a prosseguir os propósitos da insolvência e os bens do credor.
G-No caso sub judice o facto da insolvente intervir nos autos como cabeça de casal não interfere com a legitimidade da massa insolvente.
H-A massa insolvente age em representação apenas para efeitos de relação de bens, determinação de valores dos bens da herança, forma de partilha de bens e bens a adjudicar.
I-Por fim, determinar que a massa insolvente não tem legitimidade para promover o processo de inventário constitui uma violação dos direitos e interesses dos credores, o que contraria toda a finalidade do processo de insolvência.
J-Ou seja, conferindo-se o direito à instauração do processo de inventário apenas aos herdeiros, no qual se incluem a pessoa insolvente, tal realidade significa que se nenhum dos herdeiros promover o dito processo de inventário, nunca os credores receberão qualquer valor ou bem decorrente da liquidação/partilha do quinhão hereditário pertencente à pessoa insolvente.
K-Isto porque, enquanto a herança não estiver partilhada, os herdeiros não têm direitos sobre bens certos e determinados, não dispõem de um direito real sobre bens em concreto e para além disso, também não possuem uma quota parte em cada um deles.
L-Mais se dirá que, a ser assim, tal circunstância ofende gritantemente todo o fim e escopo do processo de insolvência.
M-Daí que, inegavelmente, a ora Recorrente tem legitimidade processual para promover, como promoveu o processo de inventário.

A cabeça de casal apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso prende-se com a determinação da legitimidade processual da massa insolvente requerente.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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No despacho recorrido ficou assim sustentada a falta de legitimidade processual da massa insolvente requerente:
Da leitura do disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 1085.º do Código de Processo Civil resulta que (apenas) têm legitimidade para requerer a instauração de inventário, nele intervindo como parte principal, os interessados directos na partilha, os cônjuges meeiros e, em determinadas circunstâncias, o Ministério Público.
A propósito da definição do conceito indeterminado de “interessado directo na partilha”, referem Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres que estes “… serão (…) os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, vêem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário.”
No caso sub judice, a interessada directa na partilha aberta por óbito de João P., a saber, Maria P., aqui cabeça de casal, foi, como já se referiu supra, declarada insolvente. Por conseguinte, como bem observam os autores acima mencionados , in casu, esta última “… não tem legitimidade para requerer (…) ou para ser requerido no processo de inventário, dado que (…) segundo o estabelecido no artigo 81.º, n.ºs 1 e 6 do CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão.”
Com efeito, considerando a data do óbito do autor da herança (03.12.2010), constata-se que a insolvente foi chamada à sucessão antes de ser declarada a sua insolvência, o que apenas sucedeu em 30.03.2017. Donde, a partir desta última data, o respectivo quinhão hereditário passou a integrar a massa insolvente, perdendo aquela qualquer poder de disposição sobre o mesmo.
Porém, como foi decidido em douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, “… o que passou a estar integrado na massa insolvente foi o direito sobre uma quota-parte da insolvente no património da herança do falecido (…). Pelo facto de o quinhão hereditário da insolvente no património da herança do falecido (…) passar a estar integrado na massa insolvente, não faz desta interessada directa na partilha, de modo a ter legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário. O que está integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança do falecido, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma. Interessada directa na partilha da herança do falecido seria a insolvente, por ser herdeira, e não a massa insolvente, pois, além de não ser sucessora do de cujus, não é directamente beneficiada pela partilha (não é um interessado directo). Ora, como a massa insolvente (…) não é interessada directa na partilha (…), não pode requerer a abertura do respectivo processo de inventário, pois não tem legitimidade para ser parte principal.”
Perfilhando idêntico entendimento, vide o recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no qual se pode ler que “… os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento do quinhão com determinados bens…”, não sendo, pois, “… a massa insolvente do herdeiro (…) interessada directa ou sequer indirecta na partilha da herança.”
Efectivamente, a finalidade inerente à apreensão do quinhão hereditário da insolvente para a respectiva massa prende-se com a possibilidade de vir a ser vendido na fase da liquidação do processo de insolvência, com subsequente reversão do produto da venda favor dos credores.
Conforme referido neste último acórdão, a satisfação dos correspondentes interesses não implica, pois, - contrariamente àqueloutros titulados pela herdeira insolvente - a concretização de tal quinhão hereditário em bens determinados através da partilha (o que, de resto, só serviria para retardar inutilmente a satisfação desses mesmos credores).
Face ao exposto, verificando-se ter sido o presente inventário requerido por quem não possui a qualidade de interessado directo na respectiva partilha, subsiste uma ilegitimidade que, enquanto excepção dilatória de conhecimento oficioso, conduz à absolvição da instância - assim, os artigos 577.º, alínea e) e 578.º do Código de Processo Civil, aplicáveis, in casu, ex vi do artigo 549.º do mesmo diploma legal”.

Na sua alegação de recurso a massa insolvente requerente não adianta qualquer argumento susceptível de contrariar a fundamentação em questão.

Com efeito, a massa insolvente requerente desde logo reconduz a sua argumentação à indistinção entre o património da insolvente e o património hereditário, entendendo que os bens que integram o património a partilhar integram, necessariamente, a massa insolvente.

Só que, como resulta claro da decisão recorrida, aquilo que integra a massa insolvente não são os bens (ou parte deles) que integram o acervo hereditário, mas tão só o direito da insolvente à herança. E como esse direito não incide sobre bens determinados, mas sobre uma quota parte indivisa de uma universalidade de relações jurídicas activas e passivas de carácter patrimonial, não extintas com o óbito do inventariado, logo se alcança que não se considera integrado na massa insolvente qualquer (inexistente) direito da insolvente a bens concretos da herança, mas apenas o quinhão hereditário da insolvente.

Ou seja, aquilo que pode (e deve) ser liquidado, no âmbito da insolvência, tendo em vista a satisfação dos credores da insolvência, é o direito a tal quinhão hereditário, já que só tal situação jurídica é susceptível de integrar a massa insolvente.

E se a insolvente perdeu os poderes de disposição sobre o seu património, aí se incluindo o direito a tal quinhão hereditário, ingressando este na massa insolvente, com vista a ser objecto de liquidação, para satisfação dos credores da insolvente, tal não significa que a massa insolvente passou a deter a qualidade de sucessora do inventariado, desde logo porque o carácter pessoal dessa vocação não se confunde com  a dimensão patrimonial do direito ao quinhão hereditário, continuando a residir aquela qualidade na pessoa da insolvente, tendo presente a sua qualidade de cônjuge sobrevivo.

Ora, como resulta da al. a) do nº 1 do art.º 1085º do Código de Processo Civil (e bem ainda da al. a) do nº 1 do art.º 4º do antecedente Regime Jurídico do Processo de Inventário), a legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervir reside nos interessados directos na partilha. E como do art.º 2101º do Código Civil resulta que o direito a exigir a partilha assiste aos herdeiros e ao cônjuge meeiro, logo se alcança que titulares de um qualquer interesse indirecto ou reflexo na realização da partilha (como a massa insolvente requerente) não podem, desde logo, requerer que se proceda a inventário, por não deterem legitimidade para tanto.

Isso mesmo vem sendo afirmado jurisprudencialmente, como no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/3/2022 (relatado por Raquel Baptista Tavares e disponível em www.dgsi.pt), no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/11/2021 (relatado por Freitas Neto, disponível em www.dgsi.pt e referido na decisão recorrida), ou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24/9/2020 (relatado por Nelson Borges Carneiro, disponível em www.dgsi.pt e igualmente referido na decisão recorrida).

E nem se diga que tal interpretação do disposto na al. a) do nº 1 do art.º 1085º do Código de Processo Civil é violadora dos direitos dos credores da insolvente, já que os mesmos estão devidamente salvaguardados com a apreensão do quinhão hereditário da insolvente e seu ingresso na massa insolvente, para aí ser objecto da liquidação, e sendo o produto dessa liquidação destinado à satisfação dos créditos respectivos, segundo as regras próprias do processo de insolvência.

Ou seja, não apresentando a massa insolvente requerente qualquer argumentação apta a contrariar o referido entendimento jurisprudencial, e não se vendo razão para não acompanhar o mesmo, nos termos acima explanados, logo se alcança que a decisão recorrida não merece qualquer censura, face à improcedência das conclusões do recurso da massa insolvente requerente.
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DECISÃO

Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente requerente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.



Lisboa, 28 de Abril de 2022


António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento