Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2064/09.2T2SNT.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: EXECUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Numa execução titulada por um contrato de mútuo não cumprido, depois de ter sido vendido o imóvel hipotecado e penhorado e de ter sido deferida pelo tribunal a penhora do único bem penhorável conhecido, constituído pelo vencimento da executada, não há abuso de direito da exequente ao pretender o prosseguimento da execução para cobrança da totalidade da dívida que entretanto foi aumentando com a insuficiência dessa penhora para a satisfação do crédito.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


C…, SA intentou contra JC… e contra BC… acção executiva em 25/09/95, para pagamento da quantia certa de 11 042 645$00, sendo 7 077 390$00 de capital, 3 968 485$00 de juros e 6 770$00 de despesas, alegando ter celebrado um contrato de mútuo com os executados em 30/10/89, por via do qual lhes emprestou 5 000 000$00, por 25 anos, para aquisição de casa própria, tendo sido constituída um hipoteca sobre uma fracção autónoma como garantia de pagamento e tendo os executados deixado de cumprir as obrigações emergentes deste contrato em 30/08/95.

Não tendo sido deduzida oposição à execução e penhorado o imóvel hipotecado em 27/01/97, foi este vendido a terceiro em 18/12/97, mediante venda por propostas em carta fechada, pelo preço de 11 102 000$00, tendo sido passado o respectivo título de transmissão em Janeiro de 1998.

Os autos foram à conta em 10/07/98 e foi entregue à exequente precatório cheque de 10 738 458$00 em 22/03/99, ficando ainda por pagar, da dívida exequenda, a quantia de 3 691 117$00.

Por requerimento de 4/05/99, veio a exequente requerer a extinção da execução por não ter apurado a existência de outros bens, tendo sido proferido despacho a ordenar que os autos aguardassem a deserção da instância, nos termos do artigo 285º do CPC.

Em 19/08/99 a exequente requereu a penhora de 1/3 do vencimento da executada, o que foi deferido e em 1/03/2001 foi declarada extinta a execução relativamente ao executado, por este ter sido declarado falido, continuando a execução contra a executada.

Foi sendo descontado 1/3 do vencimento da executada, no cumprimento da penhora decretada, até que, em 12/11/2008, foi proferido despacho que ordenou a remessa dos autos à conta.

Em 30/03/2009, veio a executada, através de mandatária que entretanto constituiu, opor-se a um novo pedido de penhora de um terço do seu vencimento, alegando que tem de se considerar integralmente paga a quantia exequenda, não sendo possível a contabilização de juros sobre juros.

A exequente respondeu, alegando que os cálculos apresentados pela executada não estão correctos por não ter considerado o regime aplicável do DL 328-B86 de 30/09, com a amortização em prestações progressivas com capitalização de parte dos juros, nada havendo, assim, que rectificar nas sucessivas liquidações efectuadas pelo Tribunal.

Tendo sido ordenado, em 27/04/2015, que fosse feita nova liquidação, foi apurado o valor em dívida de 29 313,96 euros com referência à conta de 10/12/2008 e juros de 30 027,64 euros, de 9/08/2008 a 28/04/2015 à taxa de 15,242%.

Em 20/10/2015 foi então proferido despacho que decidiu nos seguintes termos:
“(…)
Considerando-se o supra exposto, resulta que o contrato de mútuo com hipoteca foi celebrado em 1989. Há 26 anos. A acção executiva foi instaurada em 1995. Há 20 anos. O imóvel penhorado nos autos foi vendido em 1998 pelo valor de 55 587,09 euros. O valor do mútuo foi de 5 000 000$00 (24 939,89 euros). Foi ordenada a penhora sobre o vencimento da executada, tendo sido penhorado o montante de 19 182,43 euros.
Ou seja, a exequente com a venda do imóvel sobre o qual incidia a hipoteca para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo celebrado recebeu montante superior ao valor do mútuo.
Para além disso, recebeu, ainda, o valor penhorado sobre o vencimento da executada.
Considerando o vencimento de juros, temos de concluir que depois de ter sido vendido o imóvel sobre o qual incidia a hipoteca para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo e penhorado o vencimento da executada durante vários anos (8 anos), a quantia exequenda é de 59 341,60 euros, ou seja, superior ao montante peticionado há 20 anos.
Assim, e considerando o exposto, entende este tribunal ser clamorosamente injusto e constituir abuso de direito o facto de a entidade mutuante pretender prosseguir uma execução para satisfação integral do crédito, após ter sido vendido o imóvel, sobre o qual incidira hipoteca para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo e penhorado o vencimento da executada durante 8 anos.
No caso em análise, entende o tribunal que estão verificados os pressupostos do abuso de direito. Atento o supra referido entende o tribunal que requerer o prosseguimento da presente acção executiva, ou seja, os resultados do exercício do direito do exequente é de tal modo intolerante que ofende o sentimento jurídico dominante.
Considerando o montante já recebido pelo exequente, a venda do imóvel sobre o qual incidia a hipoteca para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo – por valor bastante superior ao valor mutuados – penhorado o vencimento da executada durante vários anos (8 anos), o facto de ser esta uma dívida quase “eterna”, considerando o vencimento de juros, entendo que, no caso concreto, estão verificados os pressupostos do abuso de direito, o que se declara.
Certo que a exequente já recebeu praticamente três vezes o valor do mútuo, considerando o valor recebido de cerca de 74 918,97 euros, o que manifesta o desequilíbrio na repartição do rico deste tipo de negócios bancários.
Aquando da contratação a instituição bancária deve aferir da capacidade dos mutuários solverem os compromissos que assumem com a mesma, não podendo os contraentes por si só serem responsabilizados por essa falta de diligência por parte daquela instituição e verem eternizadas dívidas que já foram liquidadas através da venda do imóvel sobre o qual incidia a hipoteca para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato celebrado. 
Admitir que, por incumprimento das suas obrigações de mutuário, após venda do imóvel sobre o qual incidia a hipoteca para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo, por valor superior ao valor do mútuo, após penhora sobre o vencimento durante 8 anos, ordenar o prosseguimento da execução com penhora sobre o vencimento da executada, seria aceitar que alguém, após liquidar o valor do mútuo, valor de juros vencidos, não estar na posse do imóvel penhorado e vendido nos autos continue eternamente a pagar juros de mora vencidos e vincendos, in casu, a pagar mais do que a quantia inicialmente devida.
Cumpre, ainda, referir que, in casu, admitir que estão preenchidos os pressupostos do abuso de direito, não é um incentivo ao incumprimento generalizado das obrigações assumidas pelos mutuários, considerando o supra exposto.
Nestes termos, entendo que, no caso concreto, estão verificados os pressupostos do abuso de direito e, por conseguinte, decido não ordenar a penhora sobre o vencimento da executada”.
                                                        
Inconformada, a exequente oponente interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com as seguintes questões:

-Não é abuso de direito a recorrente pretender prosseguir a execução em causa para satisfação integral do seu crédito, pois a sua conduta não contraria a boa fé, a moral, os bons costumes e os fins económicos e sociais.
-A execução foi intentada em 25/09/95, mas a venda do imóvel sobre o qual incidia a garantia registada a favor da recorrente só se concretizou em 5/01/98, quase 3 anos depois da propositura da acção.
-Em Julho de 1998 a execução prosseguiu para cobrança do remanescente da dívida exequenda, com a penhora do único bem conhecido, ou seja, o vencimento da executada e, em 12 de Novembro de 2008, por determinação do tribunal, foram os autos remetidos à conta, com suspensão da penhora que incidia sobre o vencimento da executada.
-Em 18 de Fevereiro de 2009 a recorrente requereu o prosseguimento da execução com nova penhora sobre o vencimento da executada.
-Só 6 anos depois, no ano de 2015, o tribunal se pronunciou sobre este requerimento, indeferindo-o com fundamento em abuso de direito.
-O abuso de direito não é causa de extinção das obrigações tipificadas na lei.
-Não é da responsabilidade da recorrente o facto de o tribunal ter demorado 3 anos a concretizar a venda da garantia e 6 anos para se pronunciar sobre a requerida penhora sobre o vencimento da executada.
-Os executados nunca embargaram a execução, estando o valor da dívida fixado há muitos anos, tendo o mesmo sido aceite pelos executados.
-Deve ser revogado o despacho recorrido com as legais consequências.  
                                                          
Não há contra-alegações e a questão a decidir é a de saber se o prosseguimento da execução para pagamento do montante ainda em dívida da quantia exequenda constitui abuso de direito por parte da exequente.
                                                       
FACTOS.
Os factos a atender são os que constam no relatório do presente acórdão.    
                                                           
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

A presente execução, intentada em 1995, tem como título executivo um contrato de mútuo da quantia de 5 000 000$00, celebrado em 1989, pelo prazo de 25 anos e que, como nele expressamente se menciona, é regulado pelo DL 328-B/86 de 30/9.
Este mútuo que tem como mutuante uma entidade bancária – a ora exequente apelada – é um mútuo oneroso, remunerado, nos termos do artigo 1145º do CC.

Sendo remunerado o mútuo, o mutuário terá sempre de pagar ao mutuante uma quantia total superior ao valor mutuado, que inclui os juros remuneratórios, devidos nos termos acordados.

Não poderá assim concluir-se, do facto de a venda do imóvel hipotecado ser superior ao valor da quantia mutuada e ao valor da quantia exequenda à data da propositura da acção, que a dívida está saldada, sem se ter em conta os juros que se foram vencendo entretanto, quer os remuneratórios que sempre seriam devidos, quer os moratórios que se tornaram devidos com o incumprimento dos mutuários, bem como a capitalização operada ao abrigo do DL 328-B/86 e a imputação do cumprimento na dívida de juros ao abrigo do artigo 785º do CC.

Entendeu, porém, o tribunal recorrido que a pretensão da exequente em prosseguir a execução para cobrança da totalidade da dívida constitui um abuso de direito.

Com é sabido, o abuso de direito está previsto no artigo 334º do CC, o qual estabelece que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A apreciação do abuso de direito depende da avaliação das várias circunstâncias de cada caso concreto, havendo então que ponderar as que se verificam nos presentes autos. 

Desde logo não pode deixar de se atentar que, quando a exequente em Maio de 1999 requereu a remessa dos autos à conta por na altura desconhecer a existência de bens à executada, foi o próprio tribunal que não o permitiu, ordenando que os autos aguardassem a deserção da instância.

Deferiu depois o tribunal o pedido de penhora do vencimento da executada num valor mensal que fazia prever a continuação do aumento da dívida e o consequente prolongamento da respectiva cobrança, pelo que o despacho recorrido, ao impedir agora o prosseguimento da execução, frustra as expectativas da exequente em contradição com a posição anterior assumida pelo tribunal, com violação do caso julgado formal, nos termos do artigo 672º do CPC (a que corresponde o actual artigo 620º) e do princípio da confiança tutelado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, constatando-se, ao longo do período em que foi sendo penhorado o vencimento da executada, que o único bem penhorável era manifestamente insuficiente para satisfazer o crédito da exequente e para possibilitar o cumprimento pela executada da obrigação correspondente e que esta penhora, embora pagasse parte da dívida, não impedia o gradual aumento da mesma, poderia ter sido tomada a iniciativa, quer por parte da exequente, quer por parte da executada, de reconhecer a situação de insolvência desta ultima, intentando-se a adequada acção de insolvência.

Não tendo a executada recorrido ao instituto da insolvência e às eventuais vantagens que este processo lhe poderia ter acarretado, conclui-se forçosamente que, para além do seu incumprimento, também lhe é imputável o arrastamento da situação.  

Não pode, igualmente deixar de se ter em consideração que a situação se agravou nos últimos anos sem que tivesse havido qualquer pagamento, uma vez que foi sustada a execução antes da quantia em dívida estar satisfeita, tendo o tribunal, perante o pedido de prosseguimento da execução, demorado cerca de seis anos para se pronunciar (entre 2009 e 2015), período durante o qual a dívida foi aumentando sem qualquer amortização.

Não poderá também atender-se ao argumento de que a exequente se deveria ter certificado da capacidade dos mutuários para cumprir o mútuo, na medida em que, no presente caso, se ignora qual era a situação económica da executada e do executado (entretanto declarado insolvente) e se à data do contrato não tinham capacidade económica para o cumprir ou se, pelo contrário, estavam em condições de cumprir, mas viram essas condições ser alteradas ou por actuações suas, ou por factores a que foram alheios.

Ora, da análise de todas estas circunstâncias não pode deixar de se concluir que não estão verificados os pressupostos previstos no artigo 334º para o abuso de direito, não tendo a exequente, no exercício do seu direito, excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Procedem, pois, as alegações de recurso.  
                                                           
DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e revoga-se o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento da execução.                                                            
Custas pela apelada.


                                                           
Lisboa, 2016-11-10


                                                                 
Maria Teresa Pardal                                                                 
Carlos Marinho                                                                 
Anabela Calafate
Decisão Texto Integral: