Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2879/15.2T8PDL.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: PAGAMENTO DA RETRIBUIÇÃO
PROVA
DESPEDIMENTO
AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE DEVERES PELO TRABALHADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I– A exigência prevista no artigo 276º nº3 do CT de que o empregador, até ao pagamento da retribuição, entregue ao trabalhador documento com as especificações aí descritas, mormente com a indicação da retribuição base e das demais prestações, bem como do período a que respeitam, os descontos ou deduções e o montante líquido a receber, não corresponde a uma regra de direito probatório, que determine que para a prova do cumprimento da obrigação retributiva é necessário a apresentação de documento com as referidas características.

II– O incumprimento do disposto neste preceito legal dá lugar apenas à contra-ordenação prevista no seu nº 4.

III– A lei não exige documento escrito para a prova do pagamento da retribuição.

IV– O recibo é um documento particular, ao qual a lei não confere um valor probatório especial.

V– As declarações atribuídas ao autor do documento particular, se contrárias aos seus interesses, estão plenamente provadas por confissão (extrajudicial), o que desde logo afasta a admissão de prova testemunhal, por força do disposto no artigo 393º nº2 do C.Civil.

VI– Nos termos da lei – artigo 354º b) do C.Civil - factos há cuja realidade não pode ser estabelecida por confissão, nomeadamente os relativos a direitos indisponíveis.

VII– Se na altura em que os recibos foram emitidos e assinados pelo Autor, e em que, portanto, se constituiu o meio de prova, aquele estava ao serviço da Ré, a declaração que lhes subjaz de que o Autor recebeu as quantias ali referidas, que incluiriam a retribuição de férias e o subsídio de Natal, não faz prova plena desse facto, não tendo valor confessório, face à indisponibilidade destes direitos durante a vigência do contrato de trabalho, havendo que analisar a demais prova produzida, a testemunhal, para aquilatar se a retribuição de férias e o subsídio de Natal já estavam incluídos nas quantias que a empregadora pagou ao trabalhador.

VIII– Não ocorrendo a violação de deveres do trabalhador, únicos capazes de fundamentar a aplicação de uma qualquer sanção disciplinar, não há lugar a justa causa para o despedimento, que pressupõe essa violação, e ainda que se conclua ser inexigível que o empregador mantenha ao seu serviço o trabalhador.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


I– Relatório:


AAA instaurou a presente acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra “BBB, Lda”, opondo-se ao despedimento promovido pela Ré.
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Teve lugar a audiência de partes e, gorada a conciliação, foi a Ré notificada para apresentar o articulado de motivação do despedimento.
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A Ré apresentou o referido articulado, alegando, em suma, que o Autor, ao seu serviço com a categoria profissional de ‘pescador’ / ‘trabalhador de terra’, praticou um conjunto de actos violadores dos deveres laborais de urbanidade e probidade, zelo e diligência, obediência, lealdade e promoção de actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa, para além do dever geral de boa fé, transmitindo aos seus colegas, com falsidade, e com o propósito de criar um clima de instabilidade na empresa, que a empregadora estava a entregar, em conjunto com os recibos de vencimento, uma declaração de cessação do contrato de trabalho, de forma a que os mesmos pudessem ser despedidos sem justificação (em 21 de Maio de 2015), largando o seu posto de trabalho para intervir numa altercação de terceiros, ocorrida junto às instalações da empresa (em 28 de Maio seguinte), tratando de assuntos pessoais (arranjo do pescado integrante do seu quinhão), quer no horário de trabalho, quer no interior da instalações da empresa (em 30 de Julho seguinte), desobedecendo às ordens que lhe foram dadas, recusando-se a assegurar o serviço de ‘tarefa’ (em 4 e 6 de Agosto seguinte), e desobedecendo, uma vez mais, às ordens que lhe foram dirigidas, permanecendo junto ao armazém e à embarcação, não obstante lhe ter sido transmitido para se manter afastado das instalações até novas ordens (em 13 de Agosto seguinte). Conclui a Ré pela existência de justa causa para o despedimento, em circunstâncias que tornaram imediata e praticamente impossível a subsistência desta relação laboral. Pede a improcedência da pretensão do Autor, com a declaração de regularidade e licitude do despedimento.
Conclui pela improcedência da presente acção.
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O Autor apresentou contestação, não só invocando uma eventual falta de junção do procedimento disciplinar por parte da empregadora, com a consequente nulidade do despedimento, como também alegando, em síntese, que os factos em causa, ou não ocorreram, ou não configuram a prática de infracção disciplinar, pelo menos com gravidade suficiente para motivar o despedimento com justa causa. Pede o Autor a declaração da ilicitude do seu despedimento e a condenação da Ré no pagamento das retribuições que o mesmo deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, de uma indemnização em substituição da reintegração, da retribuição do período de férias, do subsídio de férias e do subsídio de Natal vencidos entre os anos de 1997 e 2015 (sendo a retribuição do período de férias paga no valor correspondente ao triplo, por violação culposa do direito a férias), tudo com acréscimo de juros de mora, calculados à taxa legal.
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A Ré respondeu às matérias de excepção e reconvenção alegadas pelo Autor no seu articulado, pugnando pela sua improcedência.
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O Tribunal dispensou a realização da audiência preliminar, e a enunciação dos temas da prova.
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Foi elaborado despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença julgou “a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a)-declara ilícito o despedimento do Autor, AAA realizado pela Ré, BBB, Lda.;
b)-condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 7014,57, a título de compensação, calculada desde o despedimento até à presente data, com acréscimo das retribuições que vierem a vencer-se desde agora até ao trânsito em julgado da sentença (sem prejuízo do eventual desconto ao abrigo do disposto no art. 390º, nº 2, alíneas a) e c), do Código do Trabalho);
c)-condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 10793,18, a título de indemnização em substituição da reintegração, com acréscimo da indemnização que vier a vencer-se desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, a ser calculada nos mesmos termos;
d)-condena a Ré a pagar ao Autor a quantia correspondente à retribuição do período de férias vencidas nos anos de 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 (a apurar mediante incidente de liquidação);
e)-condena a Ré a pagar ao Autor a quantia correspondente ao subsídio de Natal vencido nos anos de 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 (a apurar mediante incidente de liquidação);
f)-condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 3041,00, a título de retribuição do período de férias vencidas nos anos de 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015;
g)-condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 946,00, a título de subsídio de Natal vencido nos anos de 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015 (já com a dedução das quantias entregues pela Ré por conta desta prestação retributiva);
h)-condena a Ré a pagar ao Autor os juros de mora devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, vencidos desde a data da citação até definitivo e integral pagamento;
i)-absolve a Ré do que mais foi peticionado pelo Autor.
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Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção do decaimento.”
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
1)O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
(…)
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O Autor contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir
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II– Objecto.
Nos termos do disposto nos art 635º nº 4 e 639º nº1 e 3 do Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso ex vi do art. 1º, nº 2, alínea a) e 87º nº 1 do Código de Processo do Trabalho, é pelas conclusões que se afere o objecto do recurso, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
No presente caso, atendendo ao teor das conclusões, as questões a que cumpre dar resposta no presente recurso são as seguintes
-se o tribunal a quo errou na decisão da matéria de facto, quanto à matéria impugnada;
-se ocorre justa causa para o despedimento do Autor;
-se o tribunal a quo errou ao condenar a Ré nos créditos mencionados na sentença.
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III– Fundamentação de Facto.
São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância
1.–Em data não concretamente determinada do ano de 1997, (AAA)  ajustou com (BBB), de forma verbal, um acordo ao abrigo do qual o Autor prestava, no interesse e sob as ordens, direcção e fiscalização deste último, mediante uma retribuição, as funções de ‘pescador’ / ‘preparador de artes de pesca’.
2.–Sendo esta retribuição variável, de acordo com a captura de peixe e suas vendas.
3.–Com a atribuição, para o pagamento dos funcionários, de uma percentagem superior face à que é atribuída ao armador.
4.–Ainda de acordo com o ajustado, o Autor iniciava as suas funções às 08:00 horas, saindo às 17:00 horas, com interrupção para almoço das 12:00 às 13:00 horas, de segunda a sexta-feira.
5.–À margem do descrito no número anterior, com a chegada da embarcação a terra, após a ‘descarga do pescado’, os funcionários da Ré eram dispensados das suas funções, apresentando-se, de novo, no dia de saída do barco para o mar.
6.–No dia de saída do barco para o mar, os funcionários da Ré que estivessem ao serviço no armazém apenas prestavam funções no período da manhã.
7.–Em Janeiro de 2014, foi constituída a sociedade BBB, Lda., sendo (…) seu único sócio gerente.
8.–Desde Fevereiro de 2014, o Autor passou a exercer as suas funções nos termos definidos nos números anteriores, no interesse e sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré.
9.–Esta sociedade explora a actividade de pesca da embarcação “…”.

10.–Em data não concretamente determinada de Maio de 2015, mas anterior ao dia 21, o sócio gerente da Ré reuniu-se com os seus funcionários, comunicando-lhes que era sua intenção dedicar-se a um outro tipo de pesca e ter todos os seus funcionários a prestar serviço a bordo da embarcação;
11.–Mais lhes dirigiu, pelo menos, a seguinte expressão: “quem quisesse poderia ir, quem não quisesse…”.
12.–Ainda em data não concretamente determinada de Maio de 2015, mas anterior ao dia 21, a Ré apresentou ao Autor um escrito com o seguinte teor: “Cessação contrato de trabalho Eu (…) na qualidade de trabalhador da embarcação (…), vem pela presente declarar que a partir da presente data, e por mútuo acordo com a entidade patronal, cessam as minhas funções na referida embarcação. Mais declara para os devidos e legais efeitos tidos por convenientes, que se encontram todas as minhas contas saltadas com a entidade patronal, nada mais tendo a reclamar ou a haver desta”.
13.–O Autor, na altura, recusou-se a assinar este escrito.
14.–No dia 21 de Maio de 2015, durante uma descarga da embarcação, o Autor abordou (…), (…), (…)  e (…), funcionários da Ré, com funções em tal embarcação.
15.–Disse-lhes o Autor que havia recebido, da parte da Ré, um ‘documento de cessação do contrato’.
16.–Perguntando-lhes ‘se haviam recebido o mesmo’, e afirmando que, com esse ‘documento’, a Ré podia ‘mandá-los embora’.
17.–Na viagem seguinte, a bordo da embarcação, o descrito nos números anteriores foi falado entre alguns dos pescadores / funcionários da Ré, comentando-se entre eles que ‘o patrão os iria despedir a todos’.
18.–O descrito no número anterior gerou desconfiança e desconforto entre alguns dos pescadores / funcionários da Ré, e entre estes e a Ré.
19.–A partir de então, o sócio gerente da Ré determinou que o Autor deixasse de fazer a ‘descarga do pescado’.
20.–Passando o mesmo, nesses momentos, a desempenhar as suas funções sozinho, na área do armazém.
21.–No dia 28 de Maio de 2015, junto às instalações ‘de terra’ da Ré (armazém), localizadas em …, (…), que se apresentava como conhecida de um dos funcionários ali em actividade, (…), surgiu e encetou um discussão, de conteúdo não concretamente determinado, com este funcionário.
22.–Durante esta discussão (…) chegou a dirigir palavras aos restantes funcionários ali presentes, entre eles o Autor, perguntando-lhes se (…) se havia ausentado do local naquele dia, entre as 14:00 e as 15:00 horas.
23.–Nessa altura, o Autor, entre outros funcionários presentes, parou de exercer as suas funções e confirmou que (…) havia estado fora daquele local entre as 14:00 e as 15:00 horas daquele dia.
24.–E ficou a observar e ouvir tal discussão,
25.–Instantes depois, o Autor procurou dirigir-se a (…), por forma a falar com este último sobre o descrito nos números anteriores.
26.–No dia 30 de Julho de 2015, às 16:30 horas, (…), sócio gerente da Ré, dirigiu-se às instalações terrestres da empresa (armazém), abordando, então, o Autor.
27.–Nos dias 4 e 6 de Agosto de 2015, ao Autor foi determinado pela Ré, mediante intervenção do ‘mestre de terra’, seu superior hierárquico, que procedesse à denominada ‘tarefa’.
28.–A ‘tarefa’ consiste na preparação de 8 gamelas (caixa com anzóis e aparelhos), destinadas a entregar na embarcação quando esta regressa da faina.
29.–Tem regularidade ocasional, por forma a repor as gamelas a bordo.
30.–Sendo realizada para lá das horas de início e término de funções, em cada dia, por parte do Autor e dos restantes funcionários ‘de terra’: antes das  08:00 horas, durante o período de interrupção para almoço ou depois das 17.00 horas.
31.–E sendo o ‘mestre de terra’ encarregado de avisar os funcionários da Ré para a sua realização.
32.–Nas circunstâncias descritas nos números anteriores, o Autor negou ao ‘mestre de terra’ em funções, (…), a realização da ‘tarefa’, afirmando que só a fazia entre as 08:00 e as 17:00.
33.–O que levou a que outros ‘funcionários de terra’ da Ré, não concretamente identificados, tivessem de realizar mais gamelas.
34.–E o que levou a que os mesmos questionassem ‘se o trabalho era igual para todos ou não’.
35.–No dia 12 de Agosto de 2015, a embarcação encerrou a sua viagem, procedendo-se à sua descarga no Porto de ….
36.–Em momento não concretamente determinado, entre os dias 12 e 13 de Agosto, a Ré comunicou ao Autor que não deveria participar nessa descarga, tendo de aguardar por novas determinações para o exercício das suas funções.
37.–No dia 13 de Agosto seguinte, enquanto se preparava a embarcação para nova viagem, o Autor, às 07:55 minutos, compareceu junto do armazém, ficando a aguardar determinações da Ré.
38.–Ainda durante essa manhã, a uma hora não concretamente determinada, António Bizarro, na altura com funções de ‘mestre de terra’, comunicou ao Autor que não tinha nada determinado para ele nesse dia, devendo o mesmo aguardar.
39.–Após, instado pelo sócio gerente da Ré, também a uma hora não concretamente determinada, para sair das instalações da empresa e só regressar quando ele ligasse, o Autor respondeu-lhe que enviasse uma mensagem por telemóvel a comunicar isso mesmo.
40.–Em resposta, o sócio gerente da Ré enviou ao Autor uma mensagem ‘sms’ com o seguinte teor: “Venho por este meio informar que a partir de hoje encontra-se de folga e assim deve permanecer até receber novas ordens da entidade patronal via telemóvel”.
41.–Entretanto, também a uma hora não concretamente determinada dessa manhã, o Autor deslocou-se à doca onde se encontrava a embarcação, retomando, depois, ao armazém.
42.–Pelos factos descritos nos números anteriores, a gerência da Ré determinou, em 12 de Junho de 2015, instaurar procedimento disciplinar contra o Autor, nomeando a respectiva instrutora.
43.–Em 4 de Julho de 2015, a Ré elaborou a nota de culpa, comunicando o teor da mesma ao Autor, em 5 de Julho seguinte.
44.–O Autor apresentou resposta à nota de culpa, requerendo a inquirição de testemunhas.
45.–Em 25 de Agosto de 2015, a Ré elaborou aditamento à nota de culpa, comunicando o teor da mesma ao Autor, em 31 de Agosto seguinte.
46.–Em 23 de Setembro de 2015, a Ré, tendo por base o relatório elaborado pela instrutora, proferiu a decisão final no âmbito deste procedimento disciplinar, comunicando ao Autor, em 28 de Setembro seguinte, “o seu despedimento imediato, com justa causa”.
47.–O Autor é considerado pela Ré como um ‘bom profissional’.
48.–A Ré declarou, para efeitos fiscais, como rendimentos pagos ao Autor, os seguintes valores: a) ano de 2011 – € 8625,50; b) ano de 2012 – € 10318,83; c) ano de 2013 – € 13130,11; d) ano de 2014 – € 9423,46; e) ano de 2015 – € 8083,33.
49.–E entregou ao Autor, a título de subsídio de Natal, as seguintes quantias: a) € 200,00 (à moeda actual), em Junho de 2000; b) € 250,00, no ano de 2002; c) € 300,00, em Dezembro de 2003; d) € 295,00, no ano de 2000; e) € 300,00, em Dezembro de 2005; f) € 450,00, em Dezembro de 2006; g) € 300,00, em data não concretamente determinada,
50.–A Ré promove períodos de paragem da sua actividade, com pausa de serviço dos seus funcionários, nas épocas de Natal, Páscoa, Festas do Senhor Santo Cristo e reparação da embarcação.
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IV– Apreciação do Recurso.
1.–A Ré não se conforma com a resposta dada pelo Tribunal a quo à factualidade por si alegada (…)
Em face do exposto, soçobra integralmente o recurso que incide sobre a matéria de facto.
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2.–Cumpre agora avaliar se os factos praticados pelo Autor justificam a aplicação da sanção de despedimento, importando averiguar se existe ou não justa causa para esse efeito.
A Ré entende que o Autor quebrou os deveres de zelo, lealdade, urbanidade e probidade, comprometendo a relação de confiança que subjaz ao contrato de trabalho.
Nos termos do art. 98º do CT, “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho”.
A posição jurídica do empregador congrega assim, no âmbito do vínculo contratual e enquanto titular da empresa (havida esta como um organização de meios, materiais e humanos), um conjunto de poderes, incluído o disciplinar, que se manifesta tipicamente pela possibilidade de reagir, por via punitiva, aplicando sanções internas aos trabalhadores cuja conduta se revele desconforme com ordens, instruções e regras de funcionamento da empresa.
No âmbito desse poder, foi aplicada ao Autor a sanção disciplinar de despedimento por factos que lhe são imputáveis.
Como afirma Abílio Neto, “a infração disciplinar está indissociavelmente ligada à ideia de comportamento ilícito e culposo do trabalhador violador de algum dos seus deveres contratuais ou legais, mas não necessariamente causador de danos patrimoniais, e, daí que as sanções laborais visem, acima de tudo, objectivos, não tanto ressarcitórios, mas de retribuição e de prevenção geral e especial, consoante decorre da respectiva tipologia, prevalentemente dirigida à pessoa do trabalhador (…). Tanto na eleição da sanção aplicável como na sua graduação, haverá que atender ao grau de culpa do infractor (se agiu dolosamente, com negligência grave ou leve) ao valor ofendido e às demais circunstâncias atendíveis, por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar sanções desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em atenção todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas.”[1]
A proibição de despedimentos sem justa causa decorre do princípio constitucionalmente consagrado no art. 53º da CRP, sob a epígrafe “Segurança no emprego” e inserido no Capítulo III “Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores”, do Título I – “Direitos, liberdades e garantias”, da Parte I –“Direitos e deveres fundamentais”. Nos termos desse preceito legal, “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa …” (sic)
No plano infra constitucional, e nos termos da lei aplicável ao presente caso, o art. 338º do CT proíbe os despedimentos sem justa causa. E o art. 351º nº1 esclarece que constitui justa causa de despedimento “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.” (sic)
A noção de justa causa pressupõe assim:
-um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador dos deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, que seja grave em si mesmo ou nas suas consequências - o chamado elemento subjectivo;
-a impossibilidade de subsistência da relação de trabalho – o chamado elemento objectivo;
-um nexo de causalidade entre esse comportamento e a impossibilidade de subsistência da relação laboral.[2]
Por sua vez, o nº2 do art. 351º do C.Trabalho estabelece exemplos-padrão de comportamentos que podem conduzir ao despedimento com justa causa, e o nº 3 estabelece critérios para apreciação deste conceito, a saber, o grau de lesão dos interesses do empregador, o carácter das relações entre as partes, ou entre o trabalhador e os seus companheiros, e as demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.

Não basta assim que tenha ocorrido uma violação dos deveres a que está obrigado o trabalhador. Cumpre ademais formular um juízo sobre os efeitos reais e concretos que a infracção praticada tem na relação de trabalho, pois o apuramento da “justa causa” corporiza-se essencialmente na impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho, que a jurisprudência tem interpretado, considerando as seguintes vertentes:
-a impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzida à ideia de inexigibilidade da manutenção vinculística;
-exige-se uma impossibilidade prática, com necessária referência ao vínculo laboral em concreto;
-e imediata, no sentido de comprometer, desde logo e sem mais, o futuro da relação contratual laboral.
Para integrar este elemento de impossibilidade da manutenção da relação laboral, torna-se necessário fazer um prognóstico sobre a viabilidade da relação contratual, no sentido de saber se ela mantém, ou não, a aptidão e idoneidade para prosseguir a função típica que lhe está cometida.
Nessa linha de entendimento, a jurisprudência dos tribunais superiores vem reafirmando que a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral verifica-se quando, perante um comportamento ilícito, culposo e com consequências gravosas na relação laboral, ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral.[3]
Este o regime legal e a respectiva interpretação jurisprudencial e doutrinal, à luz dos quais iremos analisar os factos que resultaram provados nos presentes autos, de molde a aferir, não só se o Autor praticou qualquer comportamento ilícito, porquanto violador dos seus deveres legais, como se esse comportamento, a ter ocorrido, colocou irremediavelmente em causa a relação contratual-laboral que a liga à Ré.
E aplicando os factos que resultaram provados ao Direito, não podemos dar razão à Ré.
Resulta do disposto no art. 126º nº1 do CT o princípio segundo o qual “O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações” (sic)
Com o contrato de trabalho nascem para as partes determinados direitos e deveres.

Para o que interessa à decisão desta questão, resulta provado que:
-no dia 21 de Maio de 2015, durante uma descarga da embarcação, o Autor abordou (…), (…), (…)  e (…), funcionários da Ré, com funções em tal embarcação;
-disse-lhes que havia recebido, da parte da Ré, um ‘documento de cessação do contrato’;
-perguntou-lhes ‘se haviam recebido o mesmo’, e afirmou que, com esse ‘documento’, a Ré podia ‘mandá-los embora’;
-na viagem seguinte, a bordo da embarcação, o descrito nos números anteriores foi falado entre alguns dos pescadores / funcionários da Ré, comentando-se entre eles que ‘o patrão os iria despedir a todos’;
-o descrito gerou desconfiança e desconforto entre alguns dos pescadores / funcionários da Ré, e entre estes e aquela;
-em data não concretamente determinada de Maio de 2015, mas anterior ao dia 21, a Ré apresentou ao Autor um escrito com o seguinte teor: “Cessação contrato de trabalho Eu (…) na qualidade de trabalhador da embarcação (…), vem pela presente declarar que a partir da presente data, e por mútuo acordo com a entidade patronal, cessam as minhas funções na referida embarcação. Mais declara para os devidos e legais efeitos tidos por convenientes, que se encontram todas as minhas contas saldadas com a entidade patronal, nada mais tendo a reclamar ou a haver desta”, tendo o Autor recusado assinar este escrito.
-em data não concretamente determinada de Maio de 2015, mas anterior ao dia 21, o sócio gerente da Ré reuniu-se com os seus funcionários, comunicando-lhes que era sua intenção dedicar-se a um outro tipo de pesca e ter todos os seus funcionários a prestar serviço a bordo da embarcação;
-mais lhes dirigiu, pelo menos, a seguinte expressão: “quem quisesse poderia ir, quem não quisesse…”.
Ora, tal como a primeira instância, considerando o contexto em que os factos do dia 21 ocorreram, entendemos ser perfeitamente natural que o Autor pretendesse saber se os seus colegas haviam recebido um documento idêntico àquele que recebeu, para cessação do contrato de trabalho, questionando-os acerca do assunto.
Não resulta provado qualquer facto que permita concluir que a pretensão do Autor foi desestabilizar o ambiente de trabalho na Ré (e isso, aliás, não resulta sequer da decisão de despedimento), mas apenas informar-se junto dos colegas acerca do que se estava a passar e alertá-los para um determinado facto. Entendemos este comportamento como perfeitamente natural e legítimo, face ao espectro do despedimento que pairava na Ré, na sequência da reunião que antecedeu esta conversa e do papel que o Autor foi chamado a subscrever e que visava a cessação do seu contrato de trabalho. Está provado que esta conversa gerou desconfiança entre alguns trabalhadores e a Ré, o que também se nos afigura natural, mas esse facto não torna ilícito o comportamento do Autor, que não violou qualquer dever para com a sua entidade patronal, nomeadamente o dever de lealdade, o qual “tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de “perigo” para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa.” [4] O Autor limitou-se a conversar com os seus colegas, partilhando com eles o que lhe tinha acontecido e tentando alertá-los acerca do ocorrido. Se isso acabou por gerar desconfiança, é sintomático de que também estes acreditaram que os seus postos de trabalho estavam em perigo, para mais com a conversa já havida pelo representante da Ré e que também resulta da matéria de facto. Não praticou o Autor qualquer facto com vista, ou mesmo apto, a neutralizar a actividade da Ré.
Ademais, não se vislumbra qualquer situação tradutora de abuso de direito, tanto mais que o facto subjacente ao despedimento resultou provado, no entanto, o tribunal, legitimamente, confere-lhe um valor diferente daquele que pauta a tomada de posição da Ré.

Resultou ainda provado que
-no dia 28 de Maio de 2015, junto às instalações ‘de terra’ da Ré (armazém), localizadas em …, …, (…), que se apresentava como conhecida de um dos funcionários ali em actividade, (…), surgiu e encetou um discussão, de conteúdo não concretamente determinado, com este funcionário;
-durante esta discussão, (…) chegou a dirigir palavras aos restantes funcionários ali presentes, entre eles o Autor, perguntando-lhes se (…) se havia ausentado do local naquele dia, entre as 14:00 e as 15:00 horas;
-nessa altura, o Autor, entre outros funcionários presentes, parou de exercer as suas funções e confirmou que (…) havia estado fora daquele local entre as 14:00 e as 15:00 horas daquele dia e ficou a observar e ouvir tal discussão;
-instantes depois, o Autor procurou dirigir-se a (…), por forma a falar com este último sobre o descrito nos números anteriores.
Argumenta a Ré com a falta de produtividade do trabalhador por tempo indeterminado e com a desobediência a ordens suas para cumprir as respectivas funções. Acrescenta que o Autor se manifestou em favor de uma terceira pessoa que estava a praticar actos contra a Ré, sendo que teve entretanto conhecimento de que esta pessoa auxiliava o Autor na sua demanda contra si.
Relativamente a esta última questão, a mesma não consta da nota de culpa, pelo que não tem qualquer relevância para a presente decisão.
Acresce que, sendo os factos alheios ao Autor, o que é certo é que ocorreram junto de si, e é preciso ponderar o contexto sócio profissional e até espacial onde tiveram lugar. As pessoas não são autómatos, e se uma discussão como a relatada acontece, para mais no exterior, é natural que os trabalhadores da Ré, entre eles o Autor, tenham prestado atenção e suspendido o que estavam a fazer. Mas tal aconteceu, segundo se pode depreender dos factos provados, por alguns minutos, sendo certo que não está provado que tenha a Ré, em consequência, sofrido qualquer prejuízo, seja de que espécie for.
Não se vislumbra, também neste caso, qualquer ilícito disciplinar, mas, ainda que existisse, não justificaria o despedimento do Autor.

Resultou também provado que:
-no dia 30 de Julho de 2015, às 16:30 horas, (…), sócio gerente da Ré, dirigiu-se às instalações terrestres da empresa (armazém), abordando, então, o Autor.
Este facto, só por si, não tem qualquer relevância disciplinar.
Resultou ainda provado que
-nos dias 4 e 6 de Agosto de 2015, ao Autor foi determinado pela Ré, mediante intervenção do ‘mestre de terra’, seu superior hierárquico, que procedesse à denominada ‘tarefa’;
-a ‘tarefa’ consiste na preparação de 8 gamelas (caixa com anzóis e aparelhos), destinadas a entregar na embarcação quando esta regressa da faina;
-tem regularidade ocasional, por forma a repor as gamelas a bordo;
-sendo realizada para lá das horas de início e término de funções, em cada dia, por parte do Autor e dos restantes funcionários ‘de terra’: antes das  08:00 horas, durante o período de interrupção para almoço ou depois das 17.00 horas;
-e sendo o ‘mestre de terra’ encarregado de avisar os funcionários da Ré para a sua realização;
-nas circunstâncias descritas nos números anteriores, o Autor negou ao ‘mestre de terra’ em funções, (…), a realização da ‘tarefa’, afirmando que só a fazia entre as 08:00 e as 17:00;
-o que levou a que outros ‘funcionários de terra’ da Ré, não concretamente identificados, tivessem de realizar mais gamelas;
-e o que levou a que os mesmos questionassem ‘se o trabalho era igual para todos ou não’.

É a seguinte a fundamentação que resulta da sentença, e com a qual concordamos inteiramente:Ora, temos, então, que a Ré ordenava ao Autor o cumprimento regular de uma determinada função – a tal preparação das gamelas (a denominada ‘tarefa’) – sempre para lá do horário de trabalho estabelecido. Isto não obstante o trabalho prestado fora do horário – o trabalho suplementar – só poder ser realizado – e o trabalhador só estar obrigado a tal – quando a empresa tenha de fazer face a acréscimo eventual e transitório de trabalho e não se justifique para o efeito a admissão de (outro) trabalhador, ou quando ocorra caso de força maior ou seja exigido para prevenir ou reparar prejuízo grave (cfr. art. 227º do Código do Trabalho, conjugado com o art. 21º da Lei nº 15/97, de 31 de Maio). Nestas datas aqui em causa, o Autor, em resposta, afirmou que não cumpria a ‘tarefa’ fora do seu horário, só o fazendo dentro do horário fixado. Ou seja, o Autor não se limitou a incumprir, pura e simplesmente, a ordem que lhe foi dada, declarando, sim, que só cumpria esta tarefa dentro do seu horário. Uma tarefa, reitera-se, que, embora sem uma dia concreto para a sua realização, era regular, previsível, de forma alguma eventual e transitória, ocorrendo sempre que a embarcação chegava da faina. O que leva a concluir que, nestas circunstâncias, embora fosse sempre realizada para lá do horário – até na hora da pausa para almoço – não se apresentava como trabalho suplementar válido e justificado. E, recusando-se a prestar esta função em tais condições, o Autor, também se conclui, agiu de uma forma legítima.
Pelo referido, não podia a Ré exigir ao Autor o cumprimento da ‘tarefa’, de uma forma regular, previsível, constante, sempre para lá do seu horário: antes das 08:00, à hora de almoço, para lá das 17:00 horas. Se tal não pode ser exigido ao Autor, é-lhe lícito, mesmo depois de já ter cumprido essa tarefa, recusar-se, a dada altura, a fazê-lo. Pelo que, da parte deste último, não houve a violação – ilegítima – dos deveres de obediência e de promoção de actos tendentes à melhoria da actividade da empresa, nos termos do art. 128º, nº 1, alíneas e) e h), do Código do Trabalho (com referência ao art. 351º, nº 1 e 2, alínea a), do mesmo Código). Ou de qualquer outro dever a que estivesse vinculado por força desta relação laboral estabelecida com a Ré. “ (sic)

A Ré defende que o Autor nunca, em momento algum da relação laboral, se insurgiu quanto à realização das gamelas, antes, durante ou depois do considerado horário normal de trabalho, pois entendeu e aceitou que essas eram as necessidades da embarcação. Defende ainda que essa era uma tarefa ocasional e não previsível. Conclui que foi violado o dever de obediência, zelo e diligência.

Ora, o que resulta dos factos é que a Ré ordenava o cumprimento destas tarefas sempre fora do horário de trabalho do Autor.

De acordo com o disposto no artigo 21º da Lei 15/97 de 31 de Maio, que estabelece o regime jurídico do contrato individual de trabalho a bordo das embarcações de pesca, a propósito do trabalho suplementar,1Entende-se por trabalho suplementar aquele que é prestado para além do período normal de trabalho.
2O trabalho suplementar deve ser remunerado com acréscimos sobre a retribuição de acordo com o convencionado pelas partes para os diferentes tipos de pesca, em regulamentação colectiva de trabalho ou em contrato individual de trabalho.
3Não é considerado trabalho suplementar, mesmo que executado para além do período normal de trabalho:
a)-O trabalho ordenado pelo comandante, mestre ou arrais com vista à segurança da embarcação, do pescado ou dos marítimos quando circunstâncias de força maior o imponham;
b)-O trabalho ordenado pelo comandante, mestre ou arrais com o fim de prestar assistência a outras embarcações, aeronaves ou pessoas em perigo, sem prejuízo da comparticipação a que o marítimo tenha direito em indemnização ou salários de salvamento e assistência;
c)-Os exercícios de salva-vidas, de extinção de incêndios e outros similares previstos pela Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar;
d)-O trabalho exigido por formalidades aduaneiras, quarentena ou outras disposições sanitárias.

Daqui resulta que o trabalho executado fora do horário de trabalho em vigor para o trabalhador em causa, é considerado trabalho suplementar, excepto quando executado nas circunstâncias descritas no preceito legal, que não têm interesse para o presente caso.

Acresce que o Código do Trabalho prevê as condições em que a prestação de trabalho suplementar pode ser imposta ao trabalhador, e tal acontece quando “a empresa tenha de fazer face a acréscimo eventual e transitório de trabalho e não se justifique para tal a admissão de trabalhador.” (cfr. art. 227º nº1 e 3 do CT).

No presente caso, manifestamente, não se trata de um acréscimo eventual e transitório de trabalho. Estamos perante uma tarefa regular, que acontecia sempre que a embarcação regressava da pesca. Portanto, era legítimo ao trabalhador recusar-se à sua realização, não podendo ser responsabilizado pela reacção dos demais trabalhadores da Ré, e esse facto não pode constituir fundamento para o seu despedimento.

Quanto aos factos descritos nos pontos 36. a 41., a saber
-em momento não concretamente determinado, entre os dias 12 e 13 de Agosto, a Ré comunicou ao Autor que não deveria participar nessa descarga, tendo de aguardar por novas determinações para o exercício das suas funções;
-no dia 13 de Agosto seguinte, enquanto se preparava a embarcação para nova viagem, o Autor, às 07:55 minutos, compareceu junto do armazém, ficando a aguardar determinações da Ré;
-ainda durante essa manhã, a uma hora não concretamente determinada, (…), na altura com funções de ‘mestre de terra’, comunicou ao Autor que não tinha nada determinado para ele nesse dia, devendo o mesmo aguardar;
-após, instado pelo sócio gerente da Ré, também a uma hora não concretamente determinada, para sair das instalações da empresa e só regressar quando ele ligasse, o Autor respondeu-lhe que enviasse uma mensagem por telemóvel a comunicar isso mesmo;
-em resposta, o sócio gerente da Ré enviou ao Autor uma mensagem ‘sms’ com o seguinte teor: “Venho por este meio informar que a partir de hoje encontra-se de folga e assim deve permanecer até receber novas ordens da entidade patronal via telemóvel”;
-entretanto, também a uma hora não concretamente determinada dessa manhã, o Autor deslocou-se à doca onde se encontrava a embarcação, retomando, depois, ao armazém.
O tribunal a quo pronunciou-se da seguinte forma: “Admitindo-se que o Autor assim tenha agido já depois das ordens expressas que lhe haviam sido dadas pelo sócio gerente da empresa, vislumbra-se, aqui sim de forma ilegítima, o não acatamento de uma ordem que lhe foi dirigida pela sua empregadora, susceptível de consubstanciar a violação do dever de obediência, previsto no citado art. 128º, nº 1, alínea e), do Código do Trabalho. Contudo, mesmo a admitir-se essa possibilidade – note-se que não ficou concretamente demonstrado que o Autor tenha ido ao cais após receber o tal telefonema e a tal ‘sms’ do sócio gerente –, tal desobediência, por si só, não é suficientemente grave para fundamentar uma decisão de despedimento com invocação de justa causa. É que apenas se provou isto mesmo: o Autor, tendo ordens para sair das instalações da empresa, permanecendo de folga, até novas instruções, ter-se-á ainda deslocado ao cais (onde estava a embarcação), retomando, depois, ao armazém. Sem que se apure qualquer outro facto, qualquer razão ou motivação para esta conduta, designadamente, e uma vez mais, qualquer propósito, da sua parte, de criar instabilidade na empresa ou qualquer outro prejuízo para a sua empregadora. Sabendo que importa apreciar os factos, não de forma isolada e descontextualizada, mas sim circunstanciada, com o necessário enquadramento, concluindo-se, ou não, pela justa causa para o despedimento com base em princípios de proporcionalidade, equidade e subsidiariedade, privilegiando, se assim for suficiente e eficaz, a aplicação de sanção menos grave, de natureza conservatória da relação de trabalho, e só se optando pela cessação do vínculo se assim se tornar inevitável, face à ruptura irremediável do laço de confiança entre as partes onde o mesmo se alicerça, esta acção de (…), embora se admita que possa ser censurável, merecedora de uma sanção disciplinar, não determina, inevitavelmente, a impossibilidade de subsistência da relação de trabalho, com o consequente despedimento. Estando, para mais, na presença de um trabalhador com quase de 18 anos de serviço, sem qualquer registo disciplinar apurado, visto pela empregadora como um ‘bom profissional’, considera-se, pois, que a sanção mais gravosa, o despedimento, sempre seria desproporcional e desajustada, sendo possível concluir que a relação de trabalho que vincula (…) e a Ré, com tal factualidade, não está irremediavelmente comprometida.

A Ré, nas suas alegações, concorda que esta desobediência, só por si, não seja suficientemente grave para fundamentar a decisão de despedimento com invocação de justa causa, mas argumenta que o Autor foi despedido em consequência de todo um conjunto de actos e comportamentos que adoptou nos últimos meses da relação laboral.

Antes do mais, e mesmo com relação a este facto ocorrido entre os dias 12 e 13 de Agosto, cumpre não esquecer que a Ré tem o dever de ocupar o trabalhador. O dever de ocupação efectiva constitui um imperativo constitucional – cfr. art. 58º, 59º nº1 b) e 18º da CRP – e ordinário – cfr. art. 129º nº 1 b) do CT.

Como afirma Pedro Romano Martinez, “[A] ocupação efectiva traduz-se num direito do trabalhador a trabalhar …[5], o que significa que o empregador não pode, sem justificação, deixá-lo inactivo. A justificação terá de basear-se em circunstâncias objectivas motivadoras da não ocupação efectiva. A questão, segundo Monteiro Fernandes, coloca-se “no plano da exigibilidade: não se pode deixar de reconhecer como atendíveis as situações em que o empregador esteja objectivamente impedido de oferecer ocupação ao trabalhador, assim como aquelas em que se esteja em presença de interesses legítimos do mesmo empregador na colocação do trabalhador em estado de inactividade (por razões económicas, disciplinares ou outras)[6]

A Ré não justificou a sua decisão de o Autor, ao contrário do habitual, não participar na descarga do barco, no dia 12. E no dia 13, para além de reiterar verbalmente que não tinha nada determinado para o Autor para esse dia, referiu em sms que “Venho por este meio informar que a partir de hoje encontra-se de folga e assim deve permanecer até receber novas ordens da entidade patronal via telemóvel”, o que, sem mais explicações, é inaceitável.

Mas ainda a entender-se, por hipótese, que a conduta do Autor foi ilícita, não podemos deixar de concordar com a primeira instância quando ai se conclui que este comportamento de comparecer no local de trabalho para exercer as suas funções, à revelia do que lhe fora transmitido, não assume uma gravidade tal que coloque em crise a relação de trabalho.

Por outro lado, não podemos considerar os factos no seu conjunto porquanto os mesmos não assumem foros de ilicitude. São factos que desagradaram à Ré, uma vez que o trabalhador, ao contrário do que, ao que tudo indica, foi habitual durante o cumprimento do seu contrato de trabalho, passou a estar mais consciente dos seus direitos e a verbalizar o que o incomodava – caso de lhe ser apresentado um papel para cessação do contrato – ou a não estar disponível para continuar a colaborar com a Ré numa situação ilícita como seja a do trabalho suplementar fora do circunstancialismo legal, sendo certo que tudo o mais que resultou provado é absolutamente irrisório, como a questão de ter prestado atenção a uma discussão havida no seu local de trabalho e respondido a uma pergunta que lhe foi feita. Mas não são factos ilícitos, porquanto não violam os deveres do trabalhador, únicos capazes de fundamentar a aplicação de uma qualquer sanção disciplinar, desde que, ainda assim, se conclua ser inexigível que o empregador mantenha ao seu serviço o trabalhador.

Em face do exposto, confirmamos integralmente a sentença recorrida, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.
***

3.–Quanto às quantias em que foi condenada, a Ré insurge-se, argumentando que não foi dado como provado qual o montante médio da retribuição mensal do Autor, entendendo que qualquer quantitativo compensatório ou indemnizatório sempre terá de ser sujeito a posterior liquidação de sentença, por ser indeterminado esse valor médio, tanto mais que, existindo uma relação laboral há mais de quinze anos, e tendo o custo de vida sido inflacionado, é da mais elementar justeza que seja apurado a valor real médio de toda a relação contratual entre ambos. Refere ainda suscitarem-se dúvidas sobre a forma como o tribunal a quo elaborou as contas.

É a seguinte a fundamentação da sentença:No que se refere à compensação por despedimento, importa, neste caso, ter presente o  disposto no art. 390º, nº 2, alíneas a) e c), do Código do Trabalho (não se verificando a situação prevista na alínea b) do mesmo artigo), donde resulta que aos trabalhadores não é devido, tanto as importâncias que não receberiam se não fosse o despedimento, como o valor correspondente ao subsídio de desemprego que eventualmente tenham auferido durante este período.
Assim, tendo presente que a retribuição de (…) é variável, em função do volume de captura de pescado e suas vendas, deve a mesma, nos termos do regime previsto no art. 261º, nº 3 e 4, do Código do Trabalho, conjugado com a necessária aplicação de critérios de equidade, ser calculada, tendo por base o que se apurou quanto aos rendimentos do Autor, declarados pela Ré para efeitos fiscais entre os anos de 2011 e 2015 (€ 8625,50 + € 10318,83 + € 13130,11 + € 9423,46 + € 8083,33 = € 49481,23), pelo menos no valor médio mensal peticionado pelo trabalhador no seu articulado: € 608,20. Pelo que, nestes termos, a título de compensação por despedimento, ao Autor é devido, neste momento, a quantia de 7014,57, correspondente a (€ 608,20 x11 meses) + (€ 608,20 x 16 dias : 30), com acréscimo das retribuições que vierem a vencer-se desde a presente data até ao trânsito em julgado da sentença, mas sem prejuízo do disposto no art. 390º, nº 2, alíneas a) e c), do Código do Trabalho.
*
Em relação à indemnização em substituição da reintegração, determina o art. 391º, nº 1, que cabe ao Tribunal definir o seu montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no art. 381º. A lei fixou o valor indemnizatório de acordo com parâmetros mínimos e médios e estabeleceu, como critérios, o valor da retribuição e o grau de ilicitude. Como tal, atendendo ao tempo de antiguidade (pelo menos desde 31 de Dezembro de 1997 até 28 de Setembro de 2015: 17 anos, 8 meses e 29 dias), e tomando em consideração que não se chegou a apurar o cometimento pelo Autor –que até era considerado pela Ré como um ‘bom profissional’ – de nenhuma infracção disciplinar susceptível de fundamentar o despedimento, esta indemnização deverá corresponder a 30 dias de retribuição por cada ano de serviço (ou sua fracção, na devida  proporção), ascendendo, então, a € 10793,18, com acréscimo da indemnização vencida desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença.

Vejamos

É certo que a retribuição do Autor era variável, daí a necessidade de se apurar um valor médio dessa retribuição, o que o tribunal a quo fez, por referência aos valores indicados pela própria Ré para efeitos fiscais e calculando esse valor por baixo, dado que, no rigor das contas feitas pelo tribunal e com as quais concordamos, tanto mais que não se provou que o Autor tivesse auferido subsídio de férias e de Natal (portanto deverão considerar-se 14 meses), ele seria superior, mas também em função daquele que foi o pedido do Autor.

Não há que ter em consideração quaisquer outros elementos, que não estão previstos na lei.

A sentença é muito clara quanto ao percurso seguido não se percebendo quais as dúvidas da Ré, e sendo certo que as contas estão correctas, e baseando a Ré a sua discordância no montante considerado como retribuição média, que foi encontrado correctamente.

Improcede, pois, nesta parte, o recurso.

Relativamente à retribuição de férias e ao subsídio de Natal (uma vez que a sentença recorrida absolveu a Ré quanto ao subsídio de férias, na medida em que as normas especiais que regulam o caso não contemplam esta prestação retributiva), não tendo a apelante conseguido provar, como lhe competia, que pagou ao apelado as prestações salariais que o mesmo reclama, a esse título, a sentença recorrida que a condenou no pagamento dessas prestações não merece qualquer censura, nessa parte, e deve manter-se.
***

IV.–Decisão:

Face a todo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto por “BBB, Lda”, e, em consequência, decidem confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Registe.
Notifique.


Lisboa, 19.04.2017



(Paula de Jesus Jorge dos Santos)
(Claudino Seara Paixão)
(Maria João Romba)
***


[1]Sic Novo Código do Trabalho e legislação complementar, 3º edição, pág. 661 – com referência ao CT/2003, mas com inteira actualidade face à Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro.
[2]Cfr. Direito do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, pág 899 e 900.
[3]Nesse sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 07-02-2007 – Proc 06S2839, de 22-04-2009 -  Proc 09S0153, de 29.04.2009 - Proc 08S3081, de 17-06-2009 - Proc 08S3698, de 03.6.2009 - Proc 08S3085, de 15-09-2010, Proc 254/07.1TTVLG.P1.S1, de 7-10-2010 - Proc 439/07.0TTFAR.E1.S1, de 13-10-2010, Proc 142/06.9//LRS.L1.S1, de 03-10-2012 – Proc 338/08.9 TTLSB.L1.S2, 4º secção, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[4]Sic Monteiro Fernandes, ob citada, 16º edição, pág. 199.
[5]In Direito do Trabalho, 5ª edição, pág. 541.
[6]Cfr. Direito do Trabalho, 16ª edição, pág. 245.

Decisão Texto Integral: