Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9677/15.1T8LSB-A.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
GARANTIA BANCÁRIA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Radicando a regra da imunidade de jurisdição no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, só se justifica que tenha aplicação quando os Estados exercem funções de soberania e não quando actuam como particulares, despidos de jus imperii. É este entendimento que está mais conforme ao estádio actual da prática e da jurisprudência internacionais.
-Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro (Mali) contra o qual foi interposto um procedimento cautelar, visando impedir o acionamento de garantias bancárias, prestadas no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre aquele Estado e uma sociedade portuguesa.
-A garantia bancária autónoma, automática ou à primeira solicitação é a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário, certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o mesmo contrato.
-Nas relações entre o ordenador de uma garantia autónoma “on first demand” e o beneficiário, aquele só pode intentar, em sede judicial, providência cautelar, destinada a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.
-O critério para aferir dos limites à recusa de pagamento de uma garantia bancária tem de ser muito restritivo com exigência de clara, inequívoca e manifesta má-fé, por parte do beneficiário, sob pena de se desvirtuar a razão de ser da garantia bancária automática.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

           
I-RELATÓRIO:


1.º-Recurso
A... S.A., anteriormente denominada por “Z... S.A.”, com sede ..., intentou PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM NÃO ESPECIFICADO contra :
1º-C... S.A., com sede ...,
2º-BANCO ... com sede ... e
3º-MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS E DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL DA REPÚBLICA DO MALI, com sede no Bairro de Koulouba, Bamako, República do Mali.

Formulou pedido nos seguintes termos:

a)Ordene ao 1.º Requerido que, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague ao 3.º Requerido nenhuma quantia por conta das seguintes garantias bancárias:
i.Garantia bancária de 9.627.305,17 € emitida pelo 1.º Requerido em 13-9-2010, com o n.º GBA 9520004590;
ii.Garantia bancária de 4.813.652,59 € emitida pelo 1.º Requerido em 1-7-2010, com o n.º GBA 9520004469.

b)Ordene ao 2.º Requerido que, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague ao 3.º Requerido nenhuma quantia por conta das seguintes garantias bancárias:
i.Garantia bancária de 4.813.652,56 € emitida pelo 2.º Requerido em 7-7-2010, com o n.º 125-02-1676982;
ii.Garantia bancária de 4.813.652,56 € emitida pelo 2.º Requerido em 7-7-2010, com o n.º 125-02-1676964.
c)Ordene ao 3.º Requerido que se abstenha de qualquer accionamento ou pedido de pagamento de quaisquer quantias junto dos 1.º e 2.º Requeridos relativas, respectivamente, às sobreditas Garantias Bancárias.

Alegou para tanto ter celebrado com o 3º requerido, em Junho de 2010, um contrato de contrato de empreitada e que os 1º e 2º Requeridos, a pedido da Requerente, prestaram ao 3ºRequerido, garantias bancárias autónomas, à primeira solicitação, que a partir de Setembro/Outubro de 2014 ascendiam ao valor global de € 18.018.567,22 destinadas a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pela Requerente no referido contrato de empreitada.

Todavia, a requerente foi confrontada, no decurso da execução da obra, em início de 2012, com uma rebelião tuaregue e de grupos jihadistas, o que determinou a sua suspensão por iniciativa do dono da obra, em 7.2.2012.

Mercê de tais conflitos, a requerente sofreu prejuízos, vindo subsequentemente a ser celebrado um adicional ao contrato de empreitada tendente a ressarci-la.

Entretanto estavam pendentes negociações destinadas a definir as condições de retoma dos trabalhos que não chegaram a ser concluídas, tendo sobrevindo, em Agosto de 2014, nova rebelião armada dos citados grupos e uma epidemia de ébola.

Sem embargo, a 3ª requerida instou a requerente a retomar os trabalhos e diminuindo o prazo da execução da obra sem que as negociações tendentes a restabelecê-los estivessem concluídas e sem quaisquer garantias de segurança para o efeito.

Tendo a requerente feito sentir à requerida através de reclamação formal, a inadequação de tal decisão, solicitou a prorrogação da suspensão dos trabalhos, tendo, porém, a requerida se limitado a notificar a requerente, em 3.11.2014, para apresentar um plano de trabalhos de mobilização , sob pena de se reservar o direito de rescindir o contrato de empreitada.

A requerente apresentou o referido plano de trabalhos, reiterando, todavia, a reclamação apresentada e manifestando a sua disponibilidade para novas reuniões de negociação para acordar os termos do plano de segurança, incluindo meios de evacuação, i.e. a negociação do adicional nº2.

Após uma reunião havida entre a requerente, a requerida e o FED que se revelou inconclusiva, foi posteriormente acordado iniciar um processo de negociação tendente à rescisão amigável do contrato de empreitada que estava a decorrer quando a requerente foi surpreendida com uma notificação do requerido, recebida no dia 30 de Março de 2015 mediante a qual rescindia o contrato de empreitada, com fundamento no incumprimento da notificação de 3 de Novembro de 2014, produzindo tal rescisão  efeitos no prazo de 15 dias, requerendo, concomitantemente, em igual prazo o pagamento pela requerente da quantia de € 8,4 milhões respeitante aos adiantamentos por amortizar.

Salienta, ainda, os acentuados prejuízos decorrentes do eventual accionamento das garantias bancárias em apreço.

Foi proferido despacho no qual se indeferiu a pretensão do requerente da providência de a ver decretada sem audiência prévia dos requeridos, mas que, dada a urgência que a mesma revestia, determinava que, concomitantemente com a citação, e até ser proferida decisão na 1ª instância, os mesmos se abstivessem de as executar e pagar, respectivamente.

Citados os Bancos requeridos, não deduziram oposição.

Citada a requerida através das competentes vias diplomáticas, limitou-se a mesma a suscitar a incompetência deste Tribunal para impedir a “liberação das referidas garantias“ em conformidade com o disposto pelo artº 46/7 das condições gerais aplicáveis às empreitadas financiadas pelo FED.

A Requerente pronunciou-se no sentido de tal excepção ser desconsiderada por a requerida a ter deduzido sem cumprimento das regras processuais (i.e. através de  oposição subscrita por mandatário constituído e mediante o pagamento de taxa de justiça).

Não obstante a requerida não ter apresentado formalmente uma oposição, nem constituído mandatário - constituindo-se, por isso, numa situação de revelia absoluta - foi entendido que a competência internacional é um pressuposto processual de conhecimento oficioso e, por isso, conheceu dessa questão decidindo que “sendo o domicílio dos Bancos requeridos em território nacional, resulta ser internacionalmente competente este Tribunal para apreciar a presente providência”.

Apreciado o pedido foi decidido julgar o procedimento cautelar procedente e por consequência decidiu-se intimar :

1)O 1º Requerido no sentido de que, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague ao 3.º Requerido nenhuma quantia por conta das seguintes garantias bancárias:
i.Garantia bancária de 9.627.305,17 € emitida pelo 1.º Requerido em 13-9-2010, com o n.º GBA 9520004590;
ii. Garantia bancária de 4.813.652,59 € emitida pelo 1.º Requerido em 1-7-2010, com o n.º GBA 9520004469.

b)O 2.º Requerido no sentido de que, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague ao 3.º Requerido nenhuma quantia por conta das seguintes garantias bancárias:
i.Garantia bancária de 4.813.652,56 € emitida pelo 2.º Requerido em 7-7-2010, com o n.º 125-02-1676982;
ii.Garantia bancária de 4.813.652,56 € emitida pelo 2.º Requerido em 7-7-2010, com o
n.º 125-02-1676964.

c)A 3ª Requerida a abster-se de qualquer accionamento ou pedido de pagamento de quaisquer quantias junto dos 1.º e 2.º Requeridos relativos, respectivamente, às sobreditas Garantias Bancárias.

Inconformado com esta decisão, o MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS E DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL DA REPÚBLICA DO MALI veio interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

a.Resulta claro dos autos, maxime do próprio texto das garantias bancárias em causa, que o Recorrente, que é um estado soberano estrangeiro age, perante a Requerente e perante os demais Requeridos investido de poderes de autoridade;
b.O que se verifica tanto no que diz respeito às relações jurídicas emergentes do contrato de empreitada de obras públicas no quadro de cuja execução foram emitidas as sobreditas garantias bancárias, quer no que diz especificamente respeito às relações jurídicas emergentes das próprias garantias bancárias autónomas em que o Requerido é impressivamente identificado como “o poder adjudicante”;
c.O que foi peticionado no procedimento, e o que foi ordenado na decisão ora recorrida, foi uma intimação para abstenção de determinado comportamento que não pode ser, de acordo com o Direito Internacional Público, dirigida por um Tribunal de um Estado a um Estado soberano estrangeiro;
d.Pelas razões expostas nas conclusões supra procede a excepção de imunidade de jurisdição de que o Recorrente beneficia e ora expressamente invoca;
e.As garantias bancárias em questão dispõem expressamente que os pedidos de pagamento a efectuar ao seu abrigo devem ser efectuados por escrito assinado conjuntamente pelo ora Recorrente e pela Delegação da União Europeia no Mali ou até, em alguns casos, apenas pela dita Delegação ou por outro representante devidamente habilitado da União Europeia;
f.Assim, é evidente, salvo o devido respeito, que uma intimação para abstenção da apresentação de pedidos de pagamento ao abrigo das mesmas garantias tem de ser dirigida pelo menos contra ambas as entidades que têm de efectuar conjuntamente os pedidos de pagamento e portanto sempre, também, contra a Delegação da União Europeia no Mali;
g.Verifica-se portanto um caso manifesto de preterição do litisconsórcio necessário passivo, quer porque o negócio exige expressamente a intervenção dos vários interessados bem como um caso em que a decisão proferida não pode produzir o que seria o seu efeito útil normal;
h.Os pactos privativos de jurisdição expressamente constantes das garantias bancárias em causa abrangem quaisquer litígios relacionados com essas garantias bancárias, sendo manifesto que se quis com a expressão incluir quaisquer procedimentos cautelares;
i.Tais pactos privativos de jurisdição são vinculativos para as três partes nos contratos de garantia em causa: os bancos garantes, os beneficiários e o ordenador da garantia, ou seja a aqui Requerente, estando para mais comprovada a solicitação da emissão das garantias de acordo com o texto especificamente aprovado e comunicado por esta;
j.Ainda que não se considerem procedentes as excepções dilatórias alegadas, a providência cautelar nunca poderia ter sido decretada, em face da manifesta falta de indícios do preenchimento do requisito do fumus bonus iuris, sendo manifesto, salvo o devido respeito, que não estão indiciados quaisquer comportamentos abusivos por parte da aqui Recorrente e muitos menos que pudessem revestir o carácter de evidência e gravidade unanimemente exigido pela jurisprudência portuguesa para que possa proceder um pedido de abstenção de accionamento de garantias bancárias autónomas á primeira solicitação como as dos autos;
k.Pelo contrário, o que está claramente indiciado é que a Recorrente (e a União Europeia) pretende apenas assegurar o reembolso dos adiantamentos recebidos pela Requerente e por esta não amortizados, em plena conformidade com o que está contratado e com que é o uso e o que é lógico na execução de contratos de empreitada;
l.Adiantamentos esses que a Requerente pretende – confessadamente! – reter em desrespeito frontal do contratado para depois compensar com putativas indemnizações a que diz ter direito, mas que constituem créditos hipotéticos e não exigíveis;
m.Donde resulta também que nenhum prejuízo, muito menos grave e de difícil reparação, pode decorrer para a Requerente do accionamento das garantias relativas a adiantamentos emitidas pelo requerido Caixa Geral de Depósitos;
n.A decisão recorrida violou o principio da imunidade de jurisdição dos estados soberanos estrangeiros reconhecido e consagrado no artigo 8.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 33.º, n.º 1, 78.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 1, 97.º, n.º 1, 362.º, n.º 1, 577.º, alínea a) e 578.º, todos do CPC, bem como o artigo 405.º do Código Civil. 

Nestes termos, e no mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que
a)Absolva o Recorrente da instância, e julgue a mesma extinta, em virtude de se reconhecer que beneficia de imunidade de jurisdição relativamente ao pedido contra si deduzido; ou, caso assim não se entenda;
b)Absolva o Recorrente da instância, e julgue a mesma extinta, por preterição de litisconsórcio necessário passivo; ou, caso assim não se entenda;
c)Absolva o Recorrente da instância, e julgue a mesma extinta por incompetência absoluta do tribunal, em virtude de violação de pacto privativo de jurisdição; ou, caso assim não se entenda,
d) Julgue o procedimento cautelar improcedente por não provado,
Tudo, em qualquer caso, com as legais consequências.
Nas suas contra alegações, a Requerente pronuncia-se pela improcedência do recurso e consequente confirmação da decisão recorrida.

2.º Recurso
Foi também interposto recurso do despacho que indeferiu a arguição, por parte do 3.º Requerido, da NULIDADE de todo o processado por falta de citação.

Formula as seguintes conclusões:
a.A nulidade de citação prevista no artigo 191.º do CPC não se confunde com a nulidade do processo por falta de citação, prevista nos artigos 187.º, alínea a) e 188.º do CPC, arguida pelo Recorrente no seu requerimento de 06.05.2016, com referência 22596038, assim, ao passo que a falta de citação pressupõe que a parte, pura e simplesmente, não tenha sido citada, sendo nulo todo o processo, a nulidade da citação, pressupõe que a parte tenha sido citada, mas a sua citação não tenha obedecido aos formalismos legais, sendo susceptível de prejudicar a defesa do citado.
b.Não obstante a nulidade do processo por falta de citação dever ser arguida na primeira intervenção da parte no processo, é manifesto que a intervenção que consista apenas no pedido ao tribunal para que proceda à citação omitida a não poderá sanar tal nulidade, sendo essa interpretação do artigo 189.º do CPC inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
c.Na sua primeira intervenção no processo o Recorrente deixou claro que não tinha ainda sido citado no âmbito do presente procedimento cautelar e que apenas dispunha de um despacho preliminar proferido no processo, dizendo que se iria proceder à citação do Recorrente através de mandatário, que lhe foi disponibilizado por um dos bancos requeridos.
d.Só quando o Recorrente foi notificado do despacho com referência 346446108, em 26.04.2016 (a data de elaboração é 20.04.2016), indicando que todos os requeridos tinham sido citados e não teriam apresentado oposição e com a notificação da sentença, é que percebeu que o Tribunal considerava que este, supostamente, já tinha sido citado.
e.Só uma intervenção processual posterior ao despacho com referência 346446108, em 26.04.2016, é que poderia ser susceptível de sanar a nulidade do processo arguida, contudo, na primeira intervenção do Recorrente após esse despacho, este
arguiu a nulidade do processo por falta de citação, sendo tal arguição, como tal, tempestiva.
f.A comissão rogatória que o Tribunal solicitou que fosse remetida às Justiças da República do Mali nunca foi entregue ao Recorrente, que apenas recebeu uma comunicação remetida pela embaixada do Mali em Dakar, no Senegal que, por sua vez, a tinha recebido da embaixada de Portugal, também de Dakar.
g.O Recorrente, em face das cerca de 20 fls. recebidas, algumas ilegíveis, não entendeu, nem podia entender, que tal carta rogatória consubstanciava uma citação e designadamente não compreendeu que estava sujeito a uma qualquer cominação na falta de constituição de advogado e de intervenção formal no processo num determinado prazo.
h.Por causa não imputável ao Recorrente, este nunca chegou a ter a clara percepção do conteúdo da carta rogatória, bem como do procedimento cautelar que foi intentado contra si, o que gera a nulidade do processo, por falta de citação.
i.É da mais elementar justiça e bom senso que o requerimento através do qual a parte solicita ao tribunal que a cite para contestar não seja susceptível de sanar a nulidade do processo por falta de citação, pelo contrário, tal requerimento deve, no limite ser considerado uma verdadeira arguição da nulidade por falta de citação, sendo a mais evidente demonstração de que o Recorrente não fazia a mínima ideia do teor do procedimento e que apenas pedia a oportunidade de o conhecer e contraditar, querendo, tudo tal qual sucederia por efeito da declaração da nulidade.
j. O despacho recorrido violou os artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, alínea e) e 189.º, todos do CPC, bem como o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
A... SA apresentou contra alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

3.º Recurso.

DELEGAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA NO MALI veio interpor recurso do despacho que indeferiu o incidente de intervenção espontânea deduzido, formulando as seguintes conclusões:

a.No requerimento com referência n.º 22595957 a Recorrente arguiu duas nulidades, uma principal e outra consequência desta, consistindo ambas na omissão de um acto ou formalidade legalmente prescrita, a pronuncia sobre a (i)legitimidade das partes, questão que é, consabidamente, de conhecimento oficioso.
b.Em nenhum momento do processo, até à arguição da nulidade no requerimento com referência n.º 22595957, o Tribunal abordou minimamente a questão da (i)legitimidade das partes, isto apesar dos pedidos formulados e do que expressamente decorre do texto das Garantias Bancárias, que são o cerne dos presentes autos.
c.Essa omissão de conhecimento – em face dos elementos constantes do processo – consubstancia uma nulidade, a qual, foi arguida à cautela, ainda antes da admissão da intervenção da Recorrente, para que não lhe fosse, mais tarde, oponível a intempestividade da sua arguição.
d.Por outro lado, existindo uma situação de litisconsórcio necessário o processo não poderia prosseguir sem o chamamento da Recorrente, e muito menos poderia dar-se por concluída a fase dos articulados e proferir-se sentença, sob pena de o processo ser nulo, por falta de citação de litisconsorte.
e.É certo que, como refere o despacho recorrido, verificada a situação de litisconsórcio necessário, a consequência seria a de absolvição da instância, todavia, em causa, está a omissão dessa verificação – acto/formalidade que cabia ao tribunal conhecer, sendo de conhecimento oficioso – a qual possibilitou que o processo prosseguisse até à sentença, sem uma parte principal com interesse directo em contradizer os factos alegados, daí a nulidade processual invocada.
f.É irrelevante para a admissão da intervenção requerida que a Recorrente não integre nenhum dos vértices da relação contratual triangular em que a doutrina tem esquematizado as situações de garantias bancárias autónomas, porque esta esquematização – atenta a atipicidade legal das garantias bancárias e a liberdade contratual – tem que ser adaptada ao caso concreto.
g.Sendo a garantia bancária autónoma um contrato legalmente atípico, a fonte primeira da sua interpretação deverá ser o seu próprio texto, só fazendo sentido recorrer a modelos e esquemas doutrinários de interpretação nos casos em que este não apresente de forma clara a solução jurídica pretendida pelas partes.
h.Conforme decorre do texto das próprias garantias bancárias à Recorrente cabe não só o direito de as accionar em conjunto com o 3.º Requerido (e a impossibilidade deste as accionar sem intervenção da Recorrente), como até a possibilidade de se substituir ao 3.º Requerido e accionar por si só as mesmas garantias.
i.Se o texto das garantias dispõe expressamente que as mesmas só podem ser “accionadas” mediante pedido escrito conjunto de duas entidades é por demais evidente que também a intimação para a abstenção de “accionamento” das mesmas garantias deve ser dirigida contra ambas essas mesmas entidades (nº 1 do artigo 33º do CPC) aliás sob pena da decisão não produzir o seu efeito útil normal (nº 2 do mesmo artigo).
j.Os contratos no quadro dos quais foram emitidas as garantias bancárias em causa, bem como os adiantamentos pagos no mesmo quadro à Requerente, foram financiados pela União Europeia através do Fundo Europeu de Desenvolvimento, sendo a União Europeia a beneficiária directa dos pagamentos devidos ao abrigo das mesmas garantias.
k.É claro portanto que a procedência do presente procedimento causa prejuízo à União Europeia e esta é portanto, através da sua Delegação no Mali, parte legítima no mesmo, sendo este, manifestamente, um caso de litisconsórcio necessário, nos termos do disposto no artigo 33.º, n.º 1, do CPC.
l.Perante a evidência da referida situação de litisconsórcio necessário, é manifesto que o incidente de intervenção principal espontâneo deveria ter sido admitido, nos exactos termos em que o mesmo foi requerido, ou seja, notificando-se a Recorrente para, querendo, se opor mediante a apresentação de articulado próprio.
m. A Recorrente não pretende aceitar os autos na sua fase actual, situação que consubstanciaria um atentado aos seus direitos de defesa e ao princípio do contraditório.
n.O despacho recorrido violou o artigo 33.º, n.º 1, 188.º, 195.º, n.º 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do CPC, bem como o artigo 405.º do Código Civil.

Nas suas contra alegações a A... SA pronuncia-se pela improcedência do recurso e consequente confirmação do despacho recorrido.
           
II-OS FACTOS.

Os elementos relevantes para a decisão são os que constam do relatório destacando-se ainda a factualidade que foi dada como assente na sentença e o teor dos despachos recorridos.

Factualidade dada por indiciariamente assente na sentença do procedimento cautelar, por ter sido considerada confessada, face à ausência de oposição, por força do preceituado no disposto no artº 567º nº1, ex vi artº 366ºnº5 do CPC, de que se salienta:
1-A Requerente é uma sociedade de direito português que se dedica à actividade de construção civil e obras públicas em Portugal, assim como noutros países, designadamente na Europa, África e Ásia.
2-No quadro da sua actividade comercial, a Requerente apresentou uma proposta no concurso público internacional, promovido pelo 3.ª Requerido, tendente à adjudicação da empreitada denominada “Reabilitação/Construção da estrada entre GOMA COURA –TOMBOUCTOU e DIRE – GOUNDAM, Lote 1 GOMA COURA –LERE (165Km)”, a levar a cabo na República do Mali.  
3-No quadro do referido concurso público, o 3.º Requerido adjudicou à Requerente a execução da Empreitada.
4-Tendo sido celebrado em Junho de 2010, o respectivo contrato de empreitada.
5-A Empreitada é financiada pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento (doravante designado por FED) que é o principal instrumento da União Europeia no âmbito da cooperação para o desenvolvimento dos Estados ACP (países de África, Caribe e Pacífico), sendo o FED financiado pelos Estados membros da União Europeia.
6-Os trabalhos da Empreitada compreendem a construção/reabilitação de uma estrada numa extensão de 165Km, na zona de “Nampala”, situada próxima da fronteira com a Mauritânia.

7-O contrato de empreitada foi celebrado:
a)Segundo o regime de Série de Preços em que o valor a pagar à Requerente corresponde às quantidades de trabalhos executadas multiplicadas pelos preços unitários estabelecidos no contrato de Empreitada para cada espécie de trabalho; 
b)Com um preço estimado de € 48.136.525,87.
c)Estabelecendo a atribuição de
1.Um adiantamento para compra de materiais de 20% (€9.627.305,17)
2.Um adiantamento financeiro de 10% (€ 4.813.652,59)
Ambos sujeitos à prévia prestação das correspondentes garantias bancárias.
d)Com a prestação de uma caução inicial, através de garantia bancária, no valor de 10% (€4.813.652,56).
e)E realização de retenções, para reforço da caução, no valor de 10% de cada auto mensal, substituíveis por garantias bancárias.
f)Com um prazo de execução de 24 meses;
g)E com um prazo de garantia de 1 ano a contar da recepção provisória dos trabalhos.

8-Para cumprimento das suas obrigações contratuais, tal como estabelecido na cláusula 15.ª das condições particulares do contrato de empreitada, o Requerido entregou ao 3.º Requerido, a título de caução correspondente a 10% do preço da empreitada, uma garantia bancária de € 4.813.652,56, emitida pelo 2.º Requerido em 07-07-2010, com o n.º 125 -02-1676982, a ser liberta após a recepção definitiva da Empreitada.
9-Para reforço da caução inicial e em substituição das retenções a efectuar em cada auto mensal de medição de trabalhos, a Requerente entregou ao 3.º requerido a garantia bancária de € 4.813.652,56 emitida pelo 2.º requerido, em 07-07-2010, com o n.º 125-02-1676964.

10-A Requerente entregou ainda ao 3.ª Requerido:
Uma garantia bancária de € 9.627.305,17 emitida pelo 1.ª Requerido em 13-09-2010, com o n.º CBA 9520004590 destinada a assegurar o adiantamento de materiais e
Uma garantia bancária de € 4.813.652,59 emitida pelo 1.ª Requerido em 01-07-2010, com o n.º GBA 9520004469 destinada a assegurar o adiantamento financeiro.  

11-Na sequência da celebração do contrato de empreitada, o 3.º requerido emitiu a ordem de serviço para início dos trabalhos, com efeitos a contar do dia 20-09-2010, pelo que a conclusão dos trabalhos da empreitada deveria ocorrer após o decurso de 24 meses, isto é, a 20-09-2013.
12-A Requerente iniciou, então, todo o processo de importação e mobilização de meios (equipamentos, materiais e mão de obra, com construção do estaleiro da obra, seguindo-se os trabalhos de execução física da empreitada.
13-Durante este período, a Requerente executou trabalhos contratuais num valor de € 17.426.122,73 que foram pagos pelo 3.ª Requerido via FED.
14-Todavia, no início de 2012, teve início uma rebelião tuaregue e de grupos jihadistas que ocupam e dominam o norte do Mali que determinou que os trabalhos da Empreitada tivessem que ser suspensos pelo 3.ª Requerido e também pelo FED.
15-Em resultado da referida rebelião tuaregue com pretensões autonómicas/ independentistas e de grupos jihadistas pretendendo implementar a lei da Sharia no Mali, o 3.ª Requerido determinou por ordem de serviço de 7 de Fevereiro de 2012, a suspensão dos trabalhos da empreitada.
16-Também o FED, por comunicação de 11-04-2012, instruiu a Requerente para, fruto da “situação política existente e dada a ausência de condições securitárias” desmobilizar os seus meios para fora do Mali.
17-Igual instrução foi emitida pelo 3.º requerido, por carta de 06-04-2012.
18-A Requerente acatou essas instruções e, assim, desmobilizou todos os seus meios (equipamentos e pessoal) para fora do Mali.
19-Os rebeldes tuaregues e jihadistas lograram destruir o estaleiro da obras.
20-As partes iniciaram processo negocial que decorreu durante meses com o objectivo de avaliar os prejuízos sofridos pela Requerente em resultado da referida rebelião e desmobilização.
21-Tal processo negocial culminou, em 28-02-2014 com a celebração de um acordo entre a Requerente e o 3.º Requerido em que foi reconhecido à Requerente o direito a uma compensação de € 9.500.000,00.
22-Entretanto estavam pendentes negociações destinadas a definir as condições de retoma dos trabalhos que não chegaram a ser concluídas, tendo sobrevindo, em Agosto de 2014, nova rebelião armada dos citados grupos e uma epidemia de ébola.
23-Ainda assim, o 3.º requerido instou a Requerente a retomar os trabalhos e diminuindo o prazo da execução da obra sem que as negociações tendentes a restabelecê-los estivessem concluídas e sem quaisquer garantias de segurança para o efeito.
24-Tendo a requerente feito sentir à requerida através de reclamação formal, a inadequação de tal decisão, solicitou a prorrogação da suspensão dos trabalhos, tendo, porém, a requerida se limitado a notificar a requerente, em 3.11.2014, para apresentar um plano de trabalhos de mobilização , sob pena de se reservar o direito de rescindir o contrato de empreitada.
25-A requerente apresentou o referido plano de trabalhos, reiterando, todavia, a reclamação apresentada e manifestando a sua disponibilidade para novas reuniões de negociação para acordar os termos do plano de segurança, incluindo meios de evacuação, i.e. a negociação do adicional nº2.
26-Após uma reunião havida entre a requerente, a requerida e o FED que se revelou inconclusiva, foi posteriormente acordado iniciar um processo de negociação tendente à rescisão amigável do contrato de empreitada. 
       
27-No dia 30 de Março de 2015, a Requerente recebe uma notificação do 3.º Requerido a comunicar o seguinte:
“Rescindia o contrato de empreitada com base no incumprimento da Ordem de serviço (Ods) de 3 de Outubro relativa á retoma dos trabalhos.
Mais requerendo o reembolso integral, (…) dos adiantamentos por amortizar num total de 8,4 milhões de euros.”

28-Por força da rescisão do contrato de empreitada, que a Requerente considera abusiva, arroga-se a mesma ao direito a receber a título de indemnização o valor de €66.947.639,32.
29-A Requerente tem a seu favor um saldo de Adiantamentos no valor de € 8,4 milhões de euros
30-A Requerente declara que irá consignar em depósito o valor dos Adiantamentos (8,4 milhões de euros), à ordem do tribunal Arbitral em benefício da decisão condenatória do 3.º Requerido nos valores reclamados, que espera venha a ser proferida.

31-É do seguinte teor o despacho recorrido que indeferiu o incidente de intervenção principal provocada:
Incidente de intervenção principal espontânea da Delegação da União Europeia no MALI:
Ancorando-se numa disposição do texto das garantias bancárias cujo pagamento a requerente visou impedir através da presente providência que refere que qualquer pedido atinente às mesmas deve ser assinado conjuntamente pelo chefe da Delegação da União Europeia, entidade financiadora dos contratos em apreço e beneficiária directa dos pagamentos devidos ao abrigo das mesmas garantias, requer a mesma a sua intervenção nos autos (cuja sentença já foi proferida) ao abrigo do disposto no artº 311º do CPC.
A Requerente opôs-se à dedução do incidente referindo que face ao texto das garantias, o único beneficiário directo é o requerido Ministério dos Negócios Estrangeiros do MALI.
Vejamos.
Como tivemos oportunidade de salientar na sentença, a doutrina tem esquematizado a situação envolvida pela garantia bancária autónoma, isto é à primeira solicitação, a partir do contrato base, do contrato de mandato entre um dos sujeitos daquele e uma instituição bancária, e do contrato de garantia entre esta e o outro sujeito do contrato principal (Cfr. PINTO MONTEIRO e ALMEIDA COSTA, Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, Tomo 5,pág. 19).
Ocorre, em conformidade, no caso vertente, considerando os termos do litígio, uma situação de triângulo contratual, cujos vértices são ocupados pelo 3º requerido, pela requerente e pelos Bancos requeridos.
De facto, a ora requerente não integra qualquer desses vértices, i.e. não é sujeito da relação material controvertida ( artº 30º do CPC) não ocorrendo, pois, qualquer preterição de litisconsórcio necessário.
E não o sendo, não pode intervir como parte principal já que o novo CPC eliminou a figura da intervenção coligatória activa à luz do artº 311º por o interesse em intervir, com base numa relação autónoma, embora conexa (a de financiador), com a controvertida entre as partes não justificar a perturbação causada pela intervenção tardia na tramitação da causa pendente (neste sentido, Conselheiro Lopes do Rego in Incidentes de Intervenção de Terceiros, CEJ, ed. On line).
Termos em que se indefere o incidente de intervenção principal espontânea deduzido.
Custas pela requerente.
Notifique.”   
  
32-É do seguinte teor o despacho que indeferiu a invocada nulidade por falta de citação:
Fls. 1819 : Veio agora o requerido, Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação Internacional da República do Mali mediante requerimento entrado em juízo em 6 de Maio de 2016 arguir a nulidade da sua citação e por via da mesma requerer a anulação de todo o processado.
A primeira questão que se coloca (independentemente da bondade da arguição) é se a mesma é tempestiva.
A este propósito dispõe o artigo 189.º do NCPC (art.º 196.º CPC 1961) que : “ Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade “.
Apesar desta norma se reportar à nulidade por “ falta de citação” que efectivamente determina, como vimos, a anulação do processado posterior à petição, por maioria de razão se deve estender aos casos de nulidade da mesma por inobservância das formalidades prescritas na lei ( que foi a suscitada pelo requerido).
Ora, ainda que tivesse ocorrido qualquer nulidade atinente à sua citação, o certo é que esta interveio nos autos mediante requerimento entrado em 28 de Março de 2016 ( fls.1741 e segs dos autos) do qual resulta com clareza ter tido conhecimento deste processo e nada arguiu neste conspecto, só o vindo a fazer mediante requerimento entrado em juízo em 6 de Maio.
Termos em que se julga intempestiva a nulidade arguida que, a ter ocorrido, se considera sanada.
Custas do incidente pela requerida com taxa de justiça que se fixa em 1 UC.
Notifique.”

III-O DIREITO.
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são as seguintes:

1.º Recurso:
1-Imunidade de Jurisdição do Recorrente (Estado do Mali)
2-Preterição do litisconsórcio necessário passivo
3-Incompetência absoluta do Tribunal / violação do pacto privativo de jurisdição
4-Erro de julgamento quanto ao fumus bonus iuris

2.º Recurso:
5-Nulidade por falta de citação

3.º Recurso:
6-Intervenção provocada espontânea           

5-Por uma razão de ordem lógica, começamos por analisar a matéria do 2.º recurso, dado que no caso de procedência do mesmo, necessariamente, ficaria prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos outros recursos.
O Recorrente Ministério dos Negócios Estrangeiros do Mali, por requerimento de 6 de maio de 2016, arguiu a nulidade do processo por falta de citação do Requerido.
Alegou, em síntese, que a rogatória que o Tribunal solicitou fosse remetida às Justiças da República do Mali, nunca foi, a estas, entregue.    
Segundo refere, a rogatória terá sido remetida à embaixada de Portugal em Dakar, Senegal a qual por sua vez a terá feito chegar à embaixada do Mali, na mesma cidade. E terá sido remetida, via fax, para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Bamako, onde chegaram pouco mais de vinte folhas, em grande medida ilegíveis.
O tribunal recorrido considerou intempestiva a arguição da nulidade nos termos do disposto no art.º 189.º do CPC.

Cumpre apreciar:
Efectivamente, nos termos do disposto no art.º 189.º“ Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade”.

A questão está em saber se, na verdade, o ora Recorrente interveio no processo sem arguir a falta da sua citação. Ou seja, importa verificar se do requerimento entrado em 28 de março de 2016 “resulta com clareza ter tido conhecimento deste processo e nada arguiu neste conspecto, só o vindo a fazer mediante requerimento entrado em juízo em 6 de maio”, tal como se refere na decisão recorrida.

Ora, nesse requerimento datado de 28-03-2016, com a referência 22217134, o ora Recorrente Ministério dos Negócios Estrangeiros do Mali expôs ao Tribunal, em suma o seguinte, como ele próprio admite nas suas alegações de recurso:
por carta datada de 15.05.2015 tinha, conjuntamente com a Delegação da União Europeia no Mali, remetido à Caixa Geral de Depósitos, SA, um pedido de pagamento da garantia bancária com o n.º G005768;
Que em resposta à referida carta, aquele banco informou a Recorrente e a Delegação Europeia no Mali que não poderia proceder ao pagamento solicitado, uma vez que havia sido proferida pelo Tribunal uma decisão preliminar proferida neste processo de que juntava cópia;
Que até àquela data, nem o Recorrido nem a Delegação da União Europeia no Mali haviam sido citados para os termos do procedimento.”

Ora, do exposto, resulta, claramente, que no requerimento datado de 28 de março de 2016, o ora Recorrente já tinha tido conhecimento da existência do processo, e que nesse processo tinha sido proferida uma decisão, cuja cópia lhe foi enviada pela  Caixa Geral de Depósitos. Ora se, como refere, não tinha sido citada para tal processo, sabendo que tal processo existia e até já tinha sido proferida “decisão preliminar”, parece óbvio que deveria ter sido logo nesse momento, nessa sua primeira intervenção no processo que deveria ter sido invocada a nulidade do processo por falta de citação, como decidido no despacho recorrido.

Não o tendo feito é só mais tarde, por requerimento entrado em juízo em 6 de Maio de 2016, tendo arguido a nulidade da sua citação e por via da mesma requerer a anulação de todo o processado, deve considerar-se sanada a eventual nulidade.

Não nos merece censura o despacho recorrido que deverá manter-se.

Passamos seguidamente a apreciar as questões suscitadas no 1.º Recurso:
1-Imunidade de jurisdição do Recorrente:
Ministério dos Negócios Estrangeiros do Mali vem recorrer da sentença que deferiu o procedimento cautelar e, designadamente, intimou o ora Recorrente “a abster-se de qualquer acionamento ou pedido de pagamento de quaisquer quantias junto dos 1.º e 2.º Requeridos (Caixa Geral de Depósitos e Banco Comercial Português) relativas, respectivamente , às sobreditas garantias bancárias.”

O recorrente invoca desde logo a excepção da sua imunidade de jurisdição.

Importa, pois, apreciar se o Estado do Mali pode ser condenado por um Tribunal de um outro Estado, neste caso, um tribunal Português.

Não existindo tratado ou convenção vinculativa para o Estado Português a regular a matéria em causa, importa analisar a questão à luz da regra consuetudinária de Direito Internacional, segundo a qual, em face da independência recíproca dos Estados e de harmonia com o antigo princípio par in parem non habet jurisdictionem, os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus.

Porém, importa notar que “a jurisprudência nacional tem-se mostrado, neste domínio, particularmente oscilante, entre uma concepção mais dilatada do alcance da regra da imunidade de jurisdição (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1997, processo n.º 809/96-A, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 473; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Julho de 1989, processo n.º 4918, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, tomo IV, pág. 178, de 4 de Maio de 1994, processo n.º 704/92, de 23 de Fevereiro de 2000, processo n.º 8356; e do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Janeiro de 1981, processo n.º 15 139, na Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo I, pág. 183) e uma concepção mais restrita, como a do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Maio de 1990, processo n.º 6319, confirmado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 1991, processo n. 2927, no Boletim do Ministério da Justiça, n. 403, pág. 267.”[1].

Parece ser esta a posição mais correcta, pois que radicando a regra da imunidade de jurisdição no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, só se justifica que tenha aplicação quando os Estados exercem funções de soberania e não quando actuam como particulares, despidos de jus imperii. É este entendimento que está mais conforme ao estádio actual da prática e da jurisprudência internacionais[2].

“As sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm, desde há vários anos, salientado que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quanto estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil e comercial), o que inclui, além do mais (transacções comerciais, contratos para fornecimento de serviços, empréstimos e obrigações financeiras, titularidade, posse e uso de propriedade, protecção da propriedade industrial e intelectual, acções in rem relativas a navios e cargas, etc.), "contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party" (cfr. artigo III, d), do Projecto de Resolução relativo à Imunidade de Jurisdição dos Estados, apreciado na sessão plenária de Santiago de Compostela, em 1989, publicado no Annuaire de l’Institut de Droit International, vol. 63, tomo II, pág. 83-120; artigo II, c), da Resolução adoptada na sessão de Basileia, em 1991, publicada no Tableau des Résolutions Adoptées (1957-1991), Instituto de Direito Internacional, Paris, 1992, págs. 220-231)”[3].[4]

Ora, no caso em apreço, o que está em causa é a celebração de um contrato de empreitada, mediante o qual uma empresa portuguesa de comprometeu a realizar uma obra para o Estado do Mali. E é no âmbito da execução desse contrato de empreitada que surgiu a questão particular deste procedimento cautelar que se prende com o acionamento de garantias bancárias prestadas. A prestação de garantias bancárias é um acto típico de gestão privada e nada nos permite identificar características próprias de gestão pública, nos termos dessa contratação.

Cremos, portanto, que este é um caso, em que deve ser afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro pois estão em causa relações reguladas pelo direito privado e não actos relativos ao exercício do poder público (jus imperii).

Não se verifica pois, a invocada excepção da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. Improcedem as conclusões de recurso a este propósito.

2-Da preterição do litisconsórcio necessário passivo
As garantias bancárias em questão dispõem expressamente que os pedidos de pagamento a efectuar ao seu abrigo devem ser efectuados por escrito assinado conjuntamente pelo ora Recorrente e pela Delegação da União Europeia no Mali ou até, em alguns casos, apenas pela dita Delegação ou por outro representante devidamente habilitado da União Europeia. Daqui retira a ora Recorrente a conclusão de que a União Europeia, através da sua delegação no Mali é parte directamente interessada nas garantias bancárias em causa, cabendo-lhe nos termos expressos do respectivo texto não só o direito de as acionar em conjunto com o Recorrente como até a possibilidade de se substituir ao Recorrente e acionar por si só as mesmas garantias. Com efeito os contratos no quadro dos quais foram emitidas as garantias bancárias em causa, bem como os adiantamentos pagos no mesmo quadro à Requerente, foram financiados pela União Europeia através do Fundo Europeu de Desenvolvimento. Conclui, assim, a Recorrente que a procedência do presente procedimento cautelar causa prejuízo à União Europeia e por isso, esta, através da sua Delegação no Mali, é parte legítima, sendo um caso de litisconsórcio necessário.

Será assim?

Vejamos.

Conforme resulta dos factos dados como assentes, as garantias emitidas pelo 1.º e 2.º Requeridos destinavam-se a garantir o cumprimento de obrigações contratuais assumidas pela Recorrida perante o Recorrente. Logo, o beneficiário das garantias é o Recorrente. O facto de qualquer pedido de pagamento das garantias ter de ser assinado pela Delegação da União Europeia no Mali, não lhe confere a qualidade de beneficiária das garantias em causa.

A Delegação da União Europeia no Mali não é sujeito da relação material controvertida nestes autos. Sucede que a empreitada foi financiada pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento, que é um instrumento da União Europeia no âmbito da cooperação com estados africanos. É compreensível, portanto, que esta pretendesse prevenir que o dono da obra, por si financiado, não viesse sem o seu conhecimento, executar as garantias bancárias emitidas ao abrigo do contrato. Ora as providências decretadas destinam-se, precisamente, a impedir, enquanto não for julgada a acção principal, o pagamento das garantias bancárias ao ora Apelante. Por conseguinte, não existe qualquer risco de, por força deste processo, serem feitos pagamentos ao Recorrente, sem o conhecimento e controlo da Delegação da União Europeia no Mali, risco esse que se visou acautelar, ao estabelecer a necessidade de assinatura da Delegação da União Europeia para acionar as garantias.

Conclui-se assim que não procede a excepção da ilegitimidade invocada pelo Recorrente nem estamos perante um caso de litisconsórcio necessário.

3-Da violação do pacto privativo de jurisdição
As garantias bancárias mencionadas nos autos contêm o seguinte texto em língua francesa:
la loi applicable à la présente garantie est celle du Portugal. Tout litige découlant de la presente garantie ou y relatif sera porté devent les tribunaux de la République du Mali.” 
          
Ou seja, do texto das garantias consta que “a legislação aplicável à presente garantia é a legislação portuguesa. Qualquer litígio relacionado com a presente garantia ou derivado desta será levado para os tribunais da República do Mali.”

Deste texto retira a Apelante a conclusão de que tais pactos privativos de jurisdição expressamente constantes das garantias bancárias em causa abrangem quaisquer litígios relacionados com essas garantias bancárias, sendo manifesto que se quis com a expressão incluir quaisquer procedimentos cautelares.

Por seu turno a Apelada defende que tal pacto privativo de jurisdição apenas se aplica a litígios entre os Requeridos, ou seja, entre as entidades bancárias prestadoras das garantias e o Estado do Mali.

Quid juris?

Cremos que, efectivamente, o referido pacto privativo de jurisdição não se aplica ao litígio dos autos.

É certo que o contrato de garantia bancária é um negócio atípico, inominado, «com base no qual o garante, em regra um banco, se obriga a pagar a um terceiro-  beneficiário - certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base, sendo mandante ou ordenante (…) o devedor nesse contrato, sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato-base) quaisquer excepções reportadas ao contrato fundamental.

A autonomização em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia (…). A característica da autonomia é mais patente quando a garantia deve ser prestada à primeira solicitação, “on first demand”».[5]

Assim sendo podemos concluir que o pacto privativo de jurisdição que consta do texto da garantia bancária se aplica apenas aos litígios relacionados com a execução da garantia bancária. Ora, esse litígio pode surgir entre o garante e o beneficiário da garantia. Ocorre vulgarmente esse litígio quando o beneficiário exige o acionamento da garantia e o garante entende que não há lugar ao pagamento por diversos fundamentos.

Porém, no caso que nos ocupa, o litígio não versa directamente sobre as garantias bancárias. O litígio desenvolve-se entre o dono da obra, ora Recorrente e a Recorrida – A... S.A.- empreiteira, relativamente ao incumprimento do contrato de empreitada e à rescisão unilateral do mesmo contrato, por parte do dono da obra. Uma vez que a Requerente, ora Recorrida, entende não ser devedora, mas antes credora, por força do referido contrato de empreitada, pretende que, cautelarmente, enquanto não foi decidida a acção principal, seja suspenso o acionamento das garantias bancárias. É o que consta do pedido formulado no requerimento inicial deste procedimento cautelar. Portanto, o que está em causa é o cumprimento ou incumprimento do contrato de empreitada e não um litígio sobre as garantias bancárias. O Requerente não põe em causa a validade das garantias, apenas se pretende que o respectivo acionamento seja suspenso até à decisão da acção principal que versa não sobre a validade das garantias, mas sobre o incumprimento do contrato de empreitada.

De qualquer modo, ainda que por mera hipótese de raciocínio, se admitisse a competência dos Tribunais do Mali, sempre a Requerente, ora Apelada poderia beneficiar do disposto no art.º 62.º c) do Código de Processo Civil que dispõe que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes “quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”. 

Ora, como é facto notório, dadas as condições de insegurança no Mali, à data da propositura do procedimento cautelar, de resto detalhada no requerimento inicial e que não sofreu contestação das partes, geram obviamente impossibilidade prática de propor uma acção naquele país. Por outro lado, para além do Mali, só com a ordem jurídica portuguesa o litígio tem uma forte conexão, dado que todas as partes, para além do Apelante, são sociedades sedeadas em Portugal.

Conclui-se assim que não é aplicável aos autos o referido pacto privativo de jurisdição, improcedendo, por conseguinte a invocada excepção da incompetência absoluta do Tribunal por violação do referido pacto, sendo os Tribunais portugueses internacionalmente competentes para apreciar a questão em apreço.

4-Pressupostos do decretamento da providência cautelar
Por fim importa apreciar a questão suscitada pelo Apelante que se prende com o mérito do procedimento cautelar. Ou seja, está em causa saber se os factos alegados e provados são suficientes para determinar a sua procedência.

Alega a Apelante que não “não é alegado um único facto que seja susceptível de indiciar que o 3.ª Requerido tentou ou sequer pretendeu tentar acionar as garantias bancárias em causa, verificando-se uma total omissão de alegação quanto a este facto/requisito fundamental para a procedência da pretensão da Requerente o que só por si faz soçobrar a providência requerida por falta de fundado receio.

Refere a sentença recorrida o seguinte:
Decorre da factualidade alegada e indiciariamente provada que estando a decorrer uma negociação entre as partes do contrato de empreitada, tendente à sua rescisão amigável e sendo inexigível à requerente o seu cumprimento mercê da situação de conflito armado existente na zona da obra, susceptível de por em causa a segurança dos seus trabalhadores, configura-se uma situação de procedimento abusivo quando o beneficiário solicita ao garante a soma objecto da garantia nesse circunstancialismo.
Face ao exposto entende-se existir a séria probabilidade de a requerente ter o direito de obstar a que sejam accionadas as garantias bancárias em questão, assim como existe o receio fundado de que tal acionamento ocorra (sendo aliás essa a demonstrada intenção da 3.ª), justificando-se adequadamente, esta providência não existindo outra  específica que acautele o invocado direito da Requerente e não sendo o prejuízo resultante da mesma superior ao dano que se pretende evitar”.

Como resulta da factualidade indiciariamente provada, no início de Dezembro de 2014, as partes iniciaram um processo de negociação tendente à rescisão amigável do contrato de empreitada. Porém, as negociações não tiveram êxito e o 3.º Requerido decidiu rescindir o contrato de empreitada. A requerente considera que tem direito a ser indemnizada pelos prejuízos causados pela rescisão abusiva do contrato de empreitada, anunciando que pretende reclamar a condenação do 3.º Requerido a pagar-lhe a quantia de cerca de € 66.000.000,00. Acrescenta que “tal montante deve ser compensado com o saldo de Adiantamentos (num total de 8,4 milhões de euros), sob pena de uma sentença arbitral que se espera seja favorável poder não ser executável por razões óbvias”.[6]

Portanto, da própria alegação da Requerente ora Apelada, resulta que, em última análise o que esta pretende é que não sejam accionadas as garantias bancárias  de que é beneficiário  o 3.º Requerido para que a mesma possa garantir, pelo menos parte, do crédito que se arroga, relativamente a este.

Ora, parece-nos que, independentemente da muita razão que possa ter a Requerente, relativamente ao crédito que se arroga, não parece que, para acautelar esse crédito, seja adequada a solução jurídica pretendida, ou seja suspensão do acionamento das garantias bancárias prestadas.

Na verdade, como já foi decidido por este Tribunal da Relação, em acórdão que o Apelante cita [7]  , também relatado pela ora relatora, a garantia bancária autónoma, automática ou à primeira solicitação é a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o mesmo contrato. Nas relações entre o ordenador de uma garantia autónoma “on first demand” e o beneficiário, aquele pode intentar, em sede judicial, providência cautelar, destinada a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário. O critério para aferir dos limites à recusa de pagamento de uma garantia bancária tem de ser muito restritivo com exigência de clara, inequívoca e manifesta má-fé, por parte do beneficiário, sob pena de se desvirtuar a razão de ser da garantia bancária automática.

Importa explicitar os contornos da garantia bancária on first demand e analisar em que casos a execução da ordem de pagamento por parte do terceiro garante pode ser paralisada por iniciativa do dador da garantia.

A garantia bancária autónoma constitui um instrumento imprescindível ao desenvolvimento económico, colocando os sujeitos a coberto das dificuldades de cobrança de créditos que, pelas mais variadas razões, podem ocorrer, permitindo que confiadamente cada uma das partes aceite a contratação.

Tais garantias são, em geral, assumidas por entidades do sector financeiro dotadas de solvabilidade que, em contrapartida de remuneração e depois da avaliação do risco negocial, aceitam responsabilizar-se pelo cumprimento de obrigações do ordenante ou dador da garantia. Cumprimento esse que pode ser imediatamente solicitado (“à primeira solicitação”), sem que o garante (ou o devedor) possa colocar obstáculos decorrentes do relacionamento contratual subjacente.

Como refere Duarte Pinheiro, “através da garantia bancária autónoma, o banco fica adstrito para com o beneficiário à realização duma prestação pecuniária, logo que por este último seja invocado o incumprimento da obrigação garantida ou a impossibilidade da prestação a que respeita a obrigação garantida”[8]. Sendo certo que é na “área da construção civil, dos fornecimentos, do engeneering, da cooperação industrial, que a garantia bancária autónoma se manifesta com mais frequência”[9]
Sob pena de total inversão da configuração normal da garantia on first demand, com prejuízo para a utilidade que pode extrair-se da mesma, deve ser encarada, como instrumento que, uma vez accionado pelo credor, permite obter do garante uma resposta imediata, a qual não poderá ser paralisada por alegações mais ou menos fundadas respeitantes ao contrato subjacente ou ao relacionamento entre o beneficiário e o dador ou entre o beneficiário e a entidade que assumiu o compromisso traduzido na garantia autónoma.

A garantia bancária autónoma, automática ou à primeira solicitação é "a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o mesmo contrato."[10]

Ou seja,“ as garantias autónomas à primeira solicitação obedecem ao seguinte lema: paga-se primeiro e discute-se depois.”[11]

É que a garantia automática não se destina, como no caso de garantia acessória, não autónoma, como a fiança, a satisfazer uma divida alheia. Trata-se de garantir ao beneficiário a satisfação de um seu crédito bastando-lhe que alegue que o mesmo não foi satisfeito pelo devedor.

O banco garante não se imiscui nos litígios entre o devedor e o beneficiário, não tendo que tomar posição a favor de um ou de outro. "O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a divida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor.[12]

Estes são os princípios fundamentais relativos à garantia bancária autónoma que não são, evidentemente, absolutos e rígidos. Existem, necessariamente, situações em que o garante pode – ou até deve – recusar o pagamento. Entramos, assim, no campo dos limites à exigência do pagamento da garantia e que têm a ver também com princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica, designadamente o paradigma da eticidade que deve estar presente em qualquer negócio[13] que é o princípio da boa-fé.

E é assim que para Galvão Telles[14], a única razão que justifica a recusa do banco em honrar a garantia prestada, será a manifesta má-fé do beneficiário. Exigindo-se a “manifesta” ou “patente” má-fé. Outros autores admitem como única excepção ao pagamento imediato da garantia o caso de “fraude manifesta, de abuso evidente, por parte do beneficiário”, que terão de ser “inequívocos[15]. Também constituirá motivo de recusa do pagamento da garantia a nulidade da mesma, por inexistir relação subjacente, “o recurso abusivo ou de má fé à garantia, por parte
do beneficiário[16]

Deve pois concluir-se que o critério para aferir dos limites à recusa de pagamento de uma garantia bancária tem de ser muito restritivo com exigência de clara, inequívoca e manifesta má-fé, por parte do beneficiário, sob pena de se desvirtuar a razão de ser da garantia bancária automática.

Assim, em regra, os efeitos da garantia bancária autónoma não poderão ser perturbados pela intervenção de medidas cautelares, salvo em raras excepções reduzidas ao mínimo. Por um lado, devem situar-se numa estreita faixa delimitada pelas regras da boa fé ou do abuso de direito ou pela necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, designadamente envolvendo fraudes ou falsificação de documentos.
Uma das razões que têm sido indicadas para justificar a recusa do pagamento da garantia é a existência de
prova irrefutável de que
o contrato base foi cumprido[17].

Ora, a questão que é suscitada nestes autos reside em saber se os factos provados serão susceptíveis de integrar uma situação excepcional nos termos descritos, de molde a justificar a recusa do pagamento da garantia, sendo certo que o tribunal não pode deixar de se orientar pelo referido critério restritivo, que faça jus à natureza autónoma da garantia e ao seu carácter “on first demand”, de modo que o decretamento de qualquer providência inibitória deve ser reservado para a alegação e prova de circunstâncias que traduzam os conceitos acima referidos.

Ora, analisando a matéria de facto dada como provada, a verdade é que não resulta qualquer indício de que a execução da garantia represente a violação flagrante e inequívoca das regras da boa- fé, se integre numa actuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública. Com efeito, a própria Apelada refere que tem em seu poder um saldo de 8,4 milhões de euros, referente a adiantamentos, valor esse de que já não necessita visto não prosseguir com a obra. Portanto, se viessem a ser accionadas as garantias bancárias de Adiantamento Financeiro e de Adiantamento de Materiais, o beneficiário apenas seria reembolsado dos adiantamentos que realizou.

Em suma, não existem factos dos quais se possa concluir pela má-fé ou abuso de direito por parte do 3.º Requerido.

Por fim, importa lembrar que, pelo menos três das garantias bancárias em apreço, têm como requisito da respectiva execução a necessidade de o pedido de pagamento ser também assinado pela Delegação da União Europeia no Mali. Ora, só esse facto já permite dar alguma garantia à Requerente, ora Apelada, de que uma entidade idónea irá controlar esse acionamento das garantias bancárias, constituindo este facto para esbater se não anular o “periculum in mora”.

Procedem nesta parte as conclusões do Apelante. Não se verificam os pressupostos para o decretamento da requerida providência cautelar.

3.º Recurso.
Foi interposto recurso do despacho que indeferiu o incidente de intervenção provocada espontânea da Delegação da União Europeia do Mali, com vista à intervenção desta, no lado passivo.
Ora, perante a improcedência do procedimento cautelar, entende-se que está prejudicado o conhecimento deste recurso pelo que não se conhece do mesmo.

IV-DECISÃO:

Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa:
(i)Julgar improcedente o recurso do despacho que indeferiu a invocada nulidade da citação.
(ii)Julgar procedente o recurso da decisão que decretou a providência cautelar, revogando essa decisão.
(iii)Não conhecer do recurso do despacho que indeferiu o incidente de intervenção provocada espontânea da Delegação da União Europeia do Mali, por prejudicado pela procedência do recurso anterior.
Custas do recurso relativo à nulidade da citação pelo Apelante.
Custas do recurso relativo à sentença final do procedimento cautelar, pela Apelada.
Custas do 3.º recurso, pela Apelante.



Lisboa, 10 de Novembro de 2016



Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal



[1]Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-11-2002, Processo 01S2172, disponível em www.dgsi.pt.
[2]Idem.
[3]Idem.
[4]Esta linha de orientação, tem sido evidenciada pelas análises comparadas das diversas jurisprudências nacionais (cfr. Guido Fernando Silva Soares, "As imunidades de jurisdição na justiça trabalhista brasileira", Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 88, 1993, págs. 519-552; Jean Salmon, "Immunités et actes de la fonction", Annuaire Français de Droit International, vol. XXXVIII, 1992, págs. 314-357; e Didier Nedjar, "Tendances actuelles du droit international des immunités des États", Journal du Droit International, ano 124.º, n.º 1, Janeiro-Março 1997, págs. 59-102).
[5]Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 25-11-2014, disponível em www.dgsi.pt
[6]Vide art.º 198.º do requerimento inicial.
[7]Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-10-2012, disponível em www.dgsi.pt
[8]Vide ROA, ano 52.º, p.419.
[9]Idem, p.427
[10]Galvão Telles, “Garantia Bancária” in “O Direito”, 120, 1998, III- IV, p. 283
[11]Almeida Costa e Pinto Monteiro, “Garantias Bancárias – O contrato de garantia bancária à primeira solicitação, CJ XI-1986-V, p.19.
[12]Galvão Telles, Ob.Cit.
[13]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-10-2004, disponível em www.dgsi.pt.
[14]Ob.Cit., p.289.
[15]Almeida Costa e Pinto Monteiro, Ob.Cit., p.20
[16]José Simões Patrício, “Preliminares sobre a garantia on first demand”, in R.O.A.,43.º, III, 1983, 715.
[17]Mónica Jardim

Decisão Texto Integral: