Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
400/19.2T8CSC.L1-7
Relator: LUIS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: MEIO DE PROVA
INSPECÇÃO
CIBERNAVEGAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
CONTRADITÓRIO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.–A prova inspeção integra a modalidade cibernavegação, nos termos da qual a parte faculta ao juiz um computador, ou este utlizada um próprio, com acesso à internet, a fim de se inteirar, diretamente e na presença das partes, do conteúdo de sites ou de correio eletrónico trocado entre as partes.

II.–O meio de prova constituenda cibernavegação não prescinde da observância dos princípios processuais que presidem à produção de prova, a começar pelo princípio da audiência contraditória, consagrado no Artigo 415º do Código de Processo Civil, mesmo que a cibernavegação seja de iniciativa oficiosa.

III.–Ao recorrer ao meio de prova cibernavegação, sem observância do regime dos Artigos 415º, 491ºe 493º, o tribunal a quo incorreu numa nulidade processual porquanto foram omitidos atos e formalidades prescritos por lei, sendo que tais irregularidades podem influir na decisão da causa na precisa medida em que o facto em causa é um facto nuclear para a decisão de mérito (cf. Artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil).

IV.–Quando o «tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório; a decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, al. d)), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não podia conhecer».

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de (...):


RELATÓRIO


ML veio intentar contra o ex-cônjuge FM ação de alimentos definitivos, com processo especial, pedindo que o requerido seja condenado a pagar-lhe a título de pensão de alimentos à requerente a quantia de €600,00, atualizável anualmente de acordo com o índice de preços do consumidor publicados pelo INE.
Citado o Réu, o mesmo contestou conforme resulta de fls. 28 e ss., impugnando na essencialidade a matéria alegada pela Autora, concluindo pela improcedência da ação,  quer porque a autora não carece de pensão de alimentos quer porque o réu não tem capacidade financeira que lhe permita suportar o pagamento do valor pretendido.

Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, decido:
a)- Julgar a presente ação totalmente procedente por provada e em consequência, condenar o Réu FM a pagar à Autora ML a quantia mensal de €600,00 (seiscentos euros), a título de pensão de alimentos a esta, até dia 8 do mês a que respeite, por depósito ou transferência bancária para conta titulada pela Autora.»
*

Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
«1.–A prova do facto constante da relação dos factos provados com o n.° 9, relativa ao valor mínimo mensal das rendas na zona de residência da A., foi obtida com violação do disposto nos arts. 415.°, 491.° e 493.° do Código de Processo Civil, o que constitui nulidade, que determina a supressão desse facto da relação de factos provados.
2.–A procedência da conclusão anterior implica que não subsista a fundamentação de facto para a decisão proferida, visto que passa a inexistir matéria de facto provada quanto ao valor necessário para tomar de arrendamento uma casa na zona em questão.
3.–Ainda que não procedam as conclusões que antecedem, não ocorre uma necessidade pessoal da A. em matéria de habitação, pelo que a douta decisão recorrida, ao condenar o R. no pagamento de uma pensão de alimentos à mesma A., no valor mensal de € 600,00, violou o disposto nos arts. 2003.° e 2004.° do Código Civil.
4.–Ainda que não procedam as conclusões anteriores, vigorando, em matéria de alimentos a ex-cônjuges, o princípio da excepcionalidade, limitação e transitoriedade, a atribuição de uma pensão de alimentos à A., quando ficou provado que, em todo o período considerado, a mesma A. auferiu rendimentos substancialmente superiores ao salário mínimo nacional, dispondo, além disso, de habitação em casa da Mãe, violou o disposto nos arts. 2016.° n.° 1 e 2016.°-A n.° 3, ambos do Código Civil.
5.–Deve, por isso, ser concedido provimento à apelação, revogando-se a douta sentença recorrida e absolvendo-se o R. do pedido.»

Contra-alegou  a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.-Nulidade por violação dos Artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil ;
ii.-Se o Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito ao julgar a ação procedente, fixando uma pensão de alimentos a favor da autora.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1.–ML e FM contraíram casamento católico, em 16 de Maio de 1998, sem convenção antenupcial, na freguesia de (...), concelho de (...), tendo nessa data a primeira 32 anos e o segundo 42;
2.–Deste casamento nasceram: JM, em 21 de Janeiro de 2000 e AM, em 18 de Setembro de 2003;

3–As responsabilidades parentais relativamente aos filhos da Autora e Réu foram reguladas nos autos que sob o nº (...), que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de (...) Oeste – Juízo de Família e Menores de Cascais – Juiz 2, por sentença que homologou o acordo alcançado entre as partes, proferida 17.11.2017, transitada em julgado, nos seguintes termos:
1-As responsabilidades parentais referentes às questões de particular importância na vida dos menores serão partilhadas por ambos os pais.
2- Fixam a residência dos menores JM e AM, em casa da mãe.
3-Os filhos estarão com o pai sempre que este quiser e puder e mediante acordo prévio com a mãe e os filhos.
4-O progenitor suportará na íntegra, todas as despesas escolares, de transportes, de saúde, vestuário e calçado de ambos os filhos.
5-A título de pensão de alimentos devida aos menores, o progenitor suportará a quantia de € 400 mensais (€200 para cada filho), quantia que transferirá/depositará até dia 8 de cada mês para a conta que a progenitora indicará aos autos em cinco dias.
6-Quando cada um dos filhos atingir a maioridade, mantém-se a obrigação alimentar do pai constante das alíneas anteriores, desde que estes se mantenham a estudar e com o limite máximo de 25 anos de idade”

4.–A Autora instaurou contra o Réu ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge com o nº (...), que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de (...) Oeste – Juízo de Família e Menores de Cascais – Juiz 1, com fundamento na separação de facto do casal há mais de um ano e falta de vontade da A. em manter o vínculo matrimonial ou estabelecer a vida em comum com o Réu, tendo sido decretado o divórcio entre ambos por Sentença de 27 de Junho de 2018, transitada em 18 de Setembro de 2018, tendo sido dado como provado, entre o mais que “No dia 21 de janeiro de 2017 a Autora manifestou pretender separar-se do Réu(...) desde 23.01 2017, que nem o Réu frequentou mais a casa da sogra onde residia e reside a Autora, nem esta (Autora) se deslocou mais à casa de (...), onde reside o Réu(...) Desde o referido dia 23, Autora e Réu não mais viveram em comunhão de leito , mesa e habitação”
5.–Na constância do matrimónio, o casal vivia, durante a semana, em casa da Mãe da Autora, onde a mesma Autora presentemente reside, e, ao fim de semana, na morada do Réu, na R. (...) – r/c dto., em 1900-103 (...), o que sucedia pelo menos desde o nascimento do filho em 2003;
6.–Ambos os filhos da Autora e Réu residem com esta, conforme acordo devidamente regulado judicialmente referido em 3) em casa da mãe da Autora, sem prejuízo de conviverem com o pai nos moldes apurados em 11.7) “infra”;
7.–A Autora e os dois filhos pernoitavam no mesmo quarto, sem qualquer privacidade, até fins do ano de 2018 e estando, atualmente, a Requerente a pernoitar no hall de entrada do andar.
8.–E isto porque o andar onde habitam tem somente uma assolhada que se destina ao quarto da mãe da Autora, uma outra assolhada que se destina ao compartimento onde tomam as suas refeições e por fim a assolhada que serve de quarto aos dois filhos.
9.–A requerente quer arrendar uma casa na zona onde atualmente reside, sendo que as rendas ascendem ao valor mínimo mensal de € 500 a € 650,00

10.–A Autora:
10.1)- À data da propositura da presente ação a Autora exercia funções nas (...), sede da sociedade, com a categoria de sócia gerente, auferindo a remuneração mensal líquida de €516,20, sendo de junho a agosto de 2019 de €534,00 líquidos mensais;
10.2)- A entidade patronal de que a Requerente é uma das sócias gerentes estava a passar por grandes dificuldades económicas;
10.3)- O capital social da (...) é de €5400,00, sendo a Autora titular de uma quota no valor de €1575,00;
10.4)-A (...), Lda., cessou a sua atividade em data não concretamente apurada mas sempre anterior a 18.09.2020;
10.5)-Na sequência da cessação da atividade da empresa da qual era sócia-gerente, a Autora está a receber o “subsídio por cessação da atividade profissional no valor diário de 14,525333 concedido por um período de 780 dias, com início em 08.11.2019;
10.6)- O estabelecimento onde a A. exercia a sua atividade (sede da sociedade identificada em 10.1) “supra”, que abrange 4 prédios e 12 frações, tem registado por Ap. 9 de 28.10.1985 uma hipoteca voluntária pelo valor de 40.000.000$00 e montante máximo assegurado de 68.000.000$00 escudos a favor da Caixa Económica do Funchal a título de garantia de empréstimo, com juro anual de 20%, agravado em 2% em caso de mora, sendo sujeito passivo (...) SARL.
10.7)-A aquisição do estabelecimento referido em 10.1, em comum e sem determinação de parte ou direito, foi registada pela Ap. 16 de 19.06.2002, tendo por causa dissolução da comunhão conjugal e sucessão por morte, tendo como sujeitos ativos: a Mãe da Autora, (...), da irmã da Autora (...), da própria Autora, e sujeito passivo O pai da Autora (...); (certidão permanente de fls. 97 e verso e assentos de nascimento dos filhos das partes com a identificação do avô materno);

10.8)-Obteve, pelo menos, os seguintes rendimentos declarados como relevantes para efeitos fiscais:
a)-Em 2018: o valor anual bruto de €6.960, 00); e € 4042,71 e €5566,37 a título de pensão de alimentos para os filhos pagos pelo progenitor, sendo o rendimento coletável antes dos impostos 4.318,57 e o imposto apurado de 626,16, totalmente deduzido, nada havendo a pagar ou reembolsar;; Declarou como alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis , relativo à fração AJ art16, 1freguesia com o código (...) o valor de €129,10, adquirida em 1999 pelo mesmo valor, correspondente à quota parte de 16,67%
b)-Em 2019: O valor anual bruto de €4800,00 e €4065,15 e 3724,37 de pensão de alimentos dos filhos pagos pelo progenitor, sendo apurado o valor líquido antes dos impostos de 696, 00, totalmente deduzido, nada havendo a pagar ou a reembolsar (fls. 105 verso a 107 verso e liquidação de fls. 108);
c)-em 2020: apenas as pensões de alimentos dos filhos €4070,31 e 4056,05 (cf. fls. 108 verso a 110- em conformidade com os valores declarados pelo Réu como pagamento para pensão de alimentos;

10.9)-Tem despesas com:
- alimentação, gás, água, eletricidade, internet e telefone, telemóvel, calçado e vestuário, cabeleireiro, despesas médicas, produtos de higiene, que ascendem a uma média mensal de pelo menos €380,00 mensais, com a especificação que se tratam de despesas suportadas pela própria para além das despesas referentes aos filhos e que são suportadas pela pensão de alimentos paga pelo progenitor.
10.10)- Face aos rendimentos da requerente esta não tem possibilidades de tomar de arrendamento uma casa;

11)–Quanto ao réu:
11.1:Vive sozinho;
11.2:Não necessita de pagar uma renda para nela residir;
11.3:Encontrando-se tal imóvel integralmente pago e registado a seu favor;
11.4: É reformado, auferindo uma pensão mensal de reforma paga pelo Centro Nacional de Pensões pelo menos desde 2016 no valor bruto anual de €58.525 (cfr fls. 63,verso), sendo no que no ano de 2019 ascendia ao valor bruto de 4.257,24, paga 14 vezes ao ano;
11.5- Obteve, pelo menos, os seguintes rendimentos declarados como relevantes para efeitos fiscais:
a)-Em 2018: o valor anual bruto de €59.601,36,00 deduzido do valor de imposto retido na fonte de 20.258,00; tendo declarado os valores pagos a título de pensões de alimentos aos filhos “supra” apurados em al a) de 10.8), sendo apurado o rendimento coletável, antes dos impostos, de €55.036,06, tendo assim a receber de reembolso de IRS €3.492,55;
b)-Em 2019: o valor anual bruto de €59.140,00 deduzido do valor de imposto retido na fonte de 24.766,23; tendo declarado os valores pagos a título de pensões de alimentos aos filhos “supra” referidos em al. b) 10.8), sendo apurado o rendimento coletável, antes dos impostos, de €55.497,36, a receber de reembolso de IRS €3.434,99;
c)-em 2020: o valor anual bruto de €59.140,00 deduzido do valor de imposto retido na fonte de 20.134,00;, apresentando como pensões de alimentos os valores referidos em al. c) de 10.8) “supra;

11.6).- Tem os seguintes encargos :
a)-Alimentação (mensal)       .250 euros;
b)-IMI: € 141,68 (anual);
c)-seguro relativo à fração: €197,19 (anual);
d)-eletricidade: € 63,05 mensal;
e)-água: € 26,73 (mensal);
f)-comunicações (MEO): € 84,08 (mensal);
g)-combustível para o automóvel, regularmente utilizado pelo R. para transportar os Filhos, pelo menos no valor mensal de € 40,00;
h)-o Réu tem ainda de ocorrer aos encargos com vestuário, calçado, medicamentos e outras despesas de saúde, refeições fora de casa e outros custos, com o valor mínimo anual de €1000,00;

11.7)- Os filhos ficam semanalmente com o pai desde sábado após o almoço até domingo após o jantar e passam anualmente uma semana de férias com o pai, salvo em 2017 em que passaram duas;
11.8)- Em casa do Pai, cada um dos Filhos dispõe de um quarto para seu uso exclusivo e essa casa, no que diz respeito ao Filho, fica mais próxima do estabelecimento de ensino que o mesmo frequenta, que é a Faculdade de Ciências da Universidade de (...), no (...).
11.9)-O Pai (Réu) suporta integralmente todas as despesas escolares, de transportes, de saúde, vestuário e calçado de ambos os Filhos, tal como estipulado no acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais.
11.10)- Contribui para as despesas com a alimentação dos filhos, entregando mensalmente a quantia de € 400,00 à Autora para esse fim e dá-lhes uma mesada para os seus gastos pessoais, no valor de € 60,00 para cada um deles.

12)–Encontra-se junto aos autos extrato do Banco BPI de conta nº (...) , de 23.05.2017 em nome do requerido, que apresenta como ativos em depósitos à ordem o valor de €45.691,84 e em seguros de capitalização/P. Poupança o valor de €11.268,44;
13)–Encontra-se junto aos autos extrato da conta referida no ponto anterior de 10/2017 que apresenta como ativos depósitos à ordem no valor €2.801,00- cfr extrato de fls. 22;
14)–Encontra-se junto aos autos extrato da conta nº (...)-000-001 do BPI da qual consta um a transferência de €27.773,07 para a conta de FM, no dia 29.09.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

NULIDADE POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 415º, 491º E 493º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O tribunal a quo considerou provado o seguinte facto:
9)-A requerente quer arrendar uma casa na zona onde atualmente reside, sendo que as rendas ascendem ao valor mínimo mensal de € 500 a € 650,00.

O tribunal a quo fundamentou a resposta nestes termos:
«Factos sob o nº9): Conforme resulta do depoimento/declarações da Autora (na parte não confessória), explicando, contudo, que já não por razões de proximidade do trabalho e poupança nos transportes, uma vez que a sociedade onde era sócia gerente encerrou a atividade e corroborado pela simples consulta do site www.idealista.pt, que consultamos, não encontrando nenhuma casa/aparamento com um mínimo de 2 quartos ( já nem sequer com três, como seria o ideal), por preços inferiores.»

Argui o apelante que ocorre nulidade porquanto a prova do facto 9 foi obtida com violação do disposto nos Artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil , o que determina a supressão desse facto da relação de factos provados.

Nas contra-alegações, a apelada sustenta que o tribunal a quo não deu tal facto como provado com base em inspeção, sendo um facto notório que o valor do arrendamento para habitação na zona da apelada atinge um valor mínimo mensal de quinhentos a seiscentos euros, conforme indicado na petição inicial.

Apreciando.

Conforme foi expressamente assumido pelo tribunal a quo, para a formação da convicção da Mma Juíza quanto ao facto 9 relevou a consulta do site www.idealista.pt, onde a mesma pesquisou o valor de arrendamento para um casa com o minimo de dois quartos na zona de residência da apelada.

Ao atuar de tal modo, a Mma Juíza recorreu ao meio de prova inspeção na modalidade de cibernavegação. Nesta modalidade de inspeção, «a parte faculta ao juiz um computador, ou este utlizada um próprio, com acesso à internet, a fim de o juiz se inteirar, diretamente e na presença das partes, do conteúdo de sites ou de correio eletrónico trocado entre as partes» - Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material, 2ª Ed., p. 206.

No caso em apreço, o recurso à cibernavegação tendo em vista apurar o valor (de mercado) de arrendamento de uma casa numa certa localidade constitui um meio de prova admissível e que pode ser idóneo para o efeito, sabendo-se que os sites imobiliários dão expressão à lei da oferta e da procura quanto à venda e arrendamento de casas.

Todavia, o meio de prova constituenda cibernavegação não prescinde da observância dos princípios processuais que presidem à produção de prova, a começar pelo princípio da audiência contraditória, consagrado no Artigo  415º do Código de Processo Civil . Assim, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas (nº1 do Artigo  415º) e, tratando-se de prova constituenda (como é o caso) , a parte é notificada para todos os atos de preparação e produção da prova, sendo também admitida a intervir nesses atos nos termos da lei (nº2 do Artigo  415º).

No caso em apreço, sendo a cibernavegação resultado da atuação oficiosa da Mma Juíza (art. 411º ), deve na mesma ser garantida a intervenção de ambas as partes na produção da prova e a apreciação dos elementos recolhidos deve ser precedida do contraditório (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 528).

A observância do princípio do contraditório na produção da prova «destina-se a permitir que à produção de prova por uma das partes a outra possa responder com uma contraprova (art. 346º CC) ou com prova do contrário (art. 347º CC)» (Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, p. 515). A circunstância de a iniciativa da cibernavegação ser oficiosa não tolhe a necessidade de observância do princípio do contraditório, o qual persiste incólume.

Isto mesmo decorre do regime do Artigo  491º quando prevê que as partes sejam notificadas do dia e hora da inspeção, podendo prestar ao tribunal os esclarecimentos de que ele carecer, assim como chamar a sua atenção para os factos que reputem de interesse para a resolução da causa. Acresce que a inspeção, mesmo na modalidade de cibernavegação, dever ser plasmado num auto que pode, em última instância e no caso em apreço, radicar essencialmente em fotografias ou prints que sejam juntos ao processo (cf. Artigo 493º do Código de Processo Civil ).

Ao recorrer ao meio de prova cibernavegação, sem observância do regime explicitado, o tribunal a quo incorreu numa nulidade processual porquanto foram omitidos atos e formalidades prescritos por lei, sendo que tais irregularidades podem influir na decisão da causa na precisa medida em que o facto em causa (e fundamentado em cibernavegação que não respeitou os direitos das partes) é um facto nuclear para a decisão de mérito (cf. Artigo  195º, nº1, do Código de Processo Civil).

Ora, quando o «tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório; a decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, al. d)), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não podia conhecer» (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, p. 44; cf. ainda Teixeira de Sousa, “Nulidades do processo e nulidades da sentença: Em busca da clareza necessária”, 22.9.2020, https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html ).

Assim, há que anular a sentença proferida, cabendo ao tribunal a quo reabrir a audiência e realizar a cibernavegação com observância dos normativos citados.

Não colhe aplicação o disposto no Artigo  665º do Código de Processo Civil porquanto o quadro factual mostra-se incompleto, não dispondo este Tribunal da Relação dos elementos fácticos suficientes para decidir.

Improcede a argumentação da apelada no sentido de que o valor de arrendamento de casa na zona onde reside constitui facto notório.

Conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material, Almedina, 2ª ed., pp. 21-22:
«Nos termos do Artigo 412º, nº1, do CPC, não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

A exigência do conhecimento geral atua em vários âmbitos:
- Na esfera pessoal, o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade de pessoas de cultura média entre as quais se encontra o juiz;
- Na esfera cognoscitiva, no sentido de que tal conhecimento deve integrar a cultura média, de acesso geral, e não ser constitutivo de um saber especializado próprio de um reduzido número de pessoas que se dedica a uma atividade comum;
- Na esfera espacial, no sentido de que tal facto deve ser conhecido no território que integra as instâncias de recurso. Não pode o facto ser notório para o juiz da primeira instância e desconhecido para o juiz conselheiro. Assim, um desastre nacional divulgado pela imprensa constitui um facto notório, mas já não será facto notório os prejuízos causados pelo granizo numa comarca mesmo que tenham afetado pessoalmente o juiz.»

Ora, o valor de arrendamento em Queijas/Oeiras não constitui um facto de conhecimento geral a nível nacional nem integra o conhecimento de generalidade das pessoas de cultura média, estando – assim – afastada a sua natureza de facto notório.

Fica prejudicado o conhecimento da segunda questão a decidir (Artigo  608º, nº2, do Código de Processo Civil ).

A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, anula-se a sentença proferida, devendo o tribunal a quo reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis (Artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil ).
Custas pela apelada na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).



Lisboa, 14.2.2023



Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
                                    


[1]Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).